Carlos Carvalho Arte Contemporânea O OLHAR DO MACACO Jonathan Goodman O que significa construir a imagem da cabeça de "reconhecimento", se encontra um Tyrannosaurus Rex a partir de mil ou mais momentaneamente em suspensão? (Este marcas de uma caneta cor-de-laranja muito fina, processo de redução da ambiguidade visual a como que construindo um enorme edifício a partir que comodamente chamamos "ver" tem uma de outros tantos elementos exponencialmente relação correlativa com um conceito da teoria da mais pequenos? O que significa o facto de estas informação e pode no fundo dar no mesmo. O imagens da cabeça de um dinossauro serem, à cientista britânico Richard Dawkins explica: "Uma primeira vista, de facto irreconhecíveis... e asserção informativa é aquela que nos diz algo aparentemente uma outra coisa? O que é isto?, que não sabíamos antes. O conteúdo informativo somos tentados a perguntar: uma paisagem? de uma asserção mede-se em termos da Não serão montes e vales e, ah, névoa, talvez? redução da incerteza anterior. Se eu disser que Evelyn é do sexo masculino, o meu interlocutor E depois chega o momento: Claro. Ali estão os sabe imediatamente uma quantidade de coisas a famosos dentes ferozes, ali estão os frios olhos seu respeito.") reptilianos, ali está a cabeça monstruosa e cheia de bossas, agora universalmente conhecida - ali A partir do momento em que reduzimos a nossa está o icónico monstro de outrora, conhecido incerteza visual anterior e afirmamos que isto são através de milhões de reproduções em cabeças de dinossauro, confrontamos enciclopédias e revistas, através de Jurassic ambiguidades mais tangenciais: o que significa o Park I e II, através dos passeios de estudo ao facto de, de entre o imenso mundo das imagens, Museu de História Natural. (A imagem de partida, a artista Alexandra do Carmo ter escolhido este a cabeça de um Tyrannosaurus Rex de perfil, tema, um dinossauro, para através dele nos provém de um livro infantil que a artista lançar nesta aventura de cognição (e confusão)? encontrou numa livraria.) Porém, reconhecer a E o que significa o facto de a produtora destas natureza destas imagens pode demorar algum imagens ter repetido este singular processo de tempo... e o que significa isso? O que significa composição da cabeça de um dinossauro não não conseguir "ver a floresta para além das uma, duas ou três mas mais de uma dúzia de árvores", como se costuma dizer, perder o vezes e (segundo consta) planear prossegui-lo? sentido do todo na proliferação de mil ou mais (A série compreende agora perto de vinte partes constituintes? O que significa o facto de, desenhos de grande escala.) ao encontrar estas imagens - ou, pelo menos, a primeira destas imagens -, estarmos (ou disso Todas estas perguntas têm obviamente uma nos apercebermos retrospectivamente) coisa em comum: O que significa - o prelúdio envolvidos num processo deliberado, intencional, interrogativo à fixação do sentido, a problemática de protelação, no qual a resolução da da interpretação. O projecto de estabelecer as ambiguidade fundamental que subjaz ao, ou condições para uma abertura da interpretação e melhor, define o processo de ver, de o imperativo com ele intimamente relacionado de Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com Carlos Carvalho Arte Contemporânea subverter qualquer significado claro ou espectador; iniciando um envolvimento épico consagrado estão no âmago da obra de com uma prática/metodologia de investigação Alexandra do Carmo. Esta tornou-se, não por paralela - que é a paleontologia; e exibindo uma acaso, a ideia central de muita da arte recente. subtileza, uma poesia e uma sensualidade que Cay Sophie Rabinowitz, editora da revista podem advir do traço da caneta ou do lápis sobre Parkett, organizou uma exposição no passado o papel. A imagética do dinossauro e sobretudo o Verão (2004) na Apexart, em Nova Iorque, onde modo de criar as imagens destas criaturas expôs obras de Efrat Shvily, Liliana Moro, Paul extintas - pacientemente, pouco a pouco, no de Guzman e Wade Guyton. Escreveu no ensaio decurso de um longo período de tempo - instilam que acompanhou a mostra: "Cada uma das nesta obra um paralelo implícito com a obras exibidas nesta exposição interrompe de investigação científica e mais precisamente com algum modo a convenção, frustrando a a paleontologia. Nas palavras de Alexandra do expectativa de ver a forma definitivamente ligada Carmo falando a propósito deste paralelo, "os ao significado". O que vejo nisto de interessante paleontólogos criam momentos (...), encontram é que alguns projectos estéticos de disrupção, ou algo, tomam notas (...), um passo condu-los ao de redireccionamento radical, dessa ligação passo seguinte". (Todas as citações do texto se entre a forma e o significado podem produzir reportam a conversas do autor com a artista.) resultados muito diferentes: alguma arte provoca uma espécie de dispepsia semiológica; parece Invocando o dinossauro e a ciência através da frustar activamente a compreensão e afigura-se qual compreendemos e literal e figurativamente arbitrária, ou mesmo perversa, impermeável à "vemos" o dinossauro, as imagens de Alexandra interpretação. Por outro lado, as instâncias e as do Carmo invocam também a fulcral dimensão estratégias artísticas como as de Alexandra do temporal - a questão, ou melhor, as muitas Carmo, mesmo quando desorientam, podem questões sobre o tempo. Trata-se de algo de que parecer ao mesmo tempo aliciantes, começamos por nos aperceber de forma intuitiva: reverberantes e estimulantes; em lugar de erguer depois de uma olhadela aos desenhos, ficamos um muro inexpugnável, rasgam uma quantidade cientes do tempo de uma dada natureza, a de portas e janelas superior ao habitual. (Além saber, da substancial quantidade de tempo que destes desenhos que requerem o envolvimento por certo levará criar estas imagens - produzir activo do espectador, Alexandra do Carmo significado de forma efectiva, lenta e produz instalações - essencialmente parâmetros pacientemente, a partir de minúsculas marcas para uma actividade participativa - na produção elementares. Trata-se de um processo, não de cujo significado os visitantes são também incidentalmente, afim do trabalho dos efectivamente convidados a participar.) paleontólogos, que, operando no seu próprio eixo da história natural, têm também eles de progredir Sendo embora um membro activo das fileiras lentamente e produzir significado a partir de actuais de agentes subversivos apostados em fragmentos inicialmente inconclusivos. Alexandra atacar a estabilidade do significado, Alexandra do Carmo sublinha, todavia, que "isto é, em do Carmo cria uma obra que multiplica e compõe última análise, arte e não ciência". É importante significado, em lugar de o frustrar. Fá-lo, entre assinalar a diferença no seio das semelhanças outras coisas, reflectindo um ethos de entre estes desenhos; o modo como, de certo generosidade e inclusão em relação ao modo, são absolutamente iguais e, ao mesmo Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com Carlos Carvalho Arte Contemporânea tempo, únicos, diferentes uns dos outros. Esta a um espectador activo, autónomo e não diferença-na-semelhança ou, em termos mais passivo. Assim fazendo, elas reflectem ainda, na convencionais, estas variações sobre um tema minha opinião, uma espécie de repúdio; uma reflectem uma coisa muito importante para a reacção a uma força opressiva, coarctante, artista, que entende o desenho não como algo designadamente o poder corporativo globalizado com um objectivo predeterminado, uma imagem e a sua supremacia no domínio visual. A que se assemelha a isto ou àquilo, com esta ou qualidade de ambiguidade, a recompensa de um aquela característica, mas como "uma prática olhar e de uma interpretação pacientes e activos aberta. Há milhões de possibilidades no acto de e uma estruturação da experiência estética que desenhar. Com caneta e papel e a mesma favorece uma consciencialização individual - imagem, nunca se está a fazer a mesma coisa". todas estas qualidades podem ser interpretadas Por outras palavras, a qualidade da abertura como a consequência de um impulso nestas obras encontra-se a um tempo na prática democrático e de uma resposta reactiva e da artista e na experiência do espectador. tacitamente crítica a um regime visual contemporâneo no qual o significado das Mas, podemos ser levados a perguntar, porquê imagens é de forma rotineira reduzido, esta ampla frente de assalto estético ao simplificado, sobredeterminado e comprometido significado, na obra desta artista e na de outros? por uma multiplicidade de imperativos de Num ensaio brilhante sobre a obra de Alexandra mercado, económicos, consumistas e do Carmo, publicado por ocasião da exposição corporativos. No actual império da imagem, dos seus desenhos de dinossauros na Sala do artistas como Alexandra do Carmo estão Veado do Museu Nacional de História Natural, efectivamente a encontrar modos de em Lisboa, no Verão-Outono de 2004, o crítico e proporcionar momentos de resistência e refúgio, poeta Jonathan Goodman relaciona esta por forma a instaurar uma espécie de autonomia abertura do significado com a implementação de temporária do significado. um princípio de democratização da experiência estética. Creio que ele tem toda a razão em Tradução do inglês de Maria Ramos divisar esse ethos democratizador no projecto desta artista. Mas eu apontaria também um outro Alexandra do Carmo: O olhar do macaco pilar da cultura ocidental contemporânea, que é o capitalismo global. Poderá parecer rebuscado A artista Alexandra do Carmo (uma portuguesa invocar esta vasta dinâmica social na radicada em Nova Iorque) criou uma nova série consideração de um conjunto de desenhos de de desenhos. Inspirada por uma fotografia de dinossauros; mas aqui fica a tese em termos chimpanzés que viu num museu de história breves. Assentemos em que existem forças natural, Alexandra do Carmo desenhou uma políticas e económicas operando em favor de série de cabeças de chimpanzés cujo olhar certos desenvolvimentos estéticos. Eu diria que é segue claramente o estúdio no interior do qual a possível ver estas forças nestas obras de artista esboçou as suas imagens; o que o animal Alexandra do Carmo em particular. Elas vê é directamente visível nos olhos dos símios, reflectem o efeito de um impulso democratizador, desenhados sobre papel, em geral um por fomentador do poder próprio - um desejo positivo página, de forma muito ténue mas também muito de mudar os termos da experiência estética rumo definitiva. Alexandra do Carmo chama a atenção Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com Carlos Carvalho Arte Contemporânea para uma série anterior de obras - imagens de demasiado penetrante, e demasiado pública, dinossauros, em particular do Tyrannosaurus para só na esfera privada ser significante; o seu Rex, baseadas numa ilustração original olhar não é apenas o seu próprio mas também o encontrada num livro para crianças - que de igual do chimpanzé porque ela é a autora de uma modo sujeita o observador a uma imaginação imagem que veicula uma certa independência de capaz de, pelas suas implicações, nos render a espírito. Ocorrem alusões de toda a espécie, no uma estética militante. Tal como as ferozes âmbito de uma série que pode com segurança mandíbulas do predador, desenhadas com ser designada como narrativa e alegórica, no infinita minúcia e subtileza, desafiam nos seus sentido em que os desenhos representam uma delicados contornos os limites daquilo que realidade que se estende da artista para a conseguimos ver e em que conseguimos crer, imagem e desta para aqueles que vêem essa também nós, à semelhança do público de imagem, cujo significado é elaborado pelo grupo Alexandra do Carmo, somos instados a imaginar de desenhos actuando no tempo. o esforço do macaco para assimilar a realidade Nos desenhos que imediatamente se seguem do estúdio, o local de trabalho e transformação (imagens 18 a 26), a cadeira desapareceu e o da artista. O chimpanzé, a criatura estúdio está mais ou menos vazio. À medida que geneticamente mais próxima dos humanos, a série prossegue, o macaco começa a mesclar- oferece o seu olhar, em essência um assunto se com os elementos arquitectónicos do espaço - privado, ao público, que o observa com os as paredes, o tecto, as janelas -, de tal modo que privilégios decorrentes do facto de pertencer a o seu corpo abarca não só o interior mas uma espécie superior. também o exterior desse espaço. À medida que Poderá contudo dar-se o caso de este privilégio o macaco se confunde com aquilo que vê - esta ser um tema em debate; a história que decorre é sem dúvida uma potente metáfora da nos olhos do chimpanzé desmente qualquer criatividade -, a desconstrução do animal é enfatuada pressuposição que possamos ter a reiterada na aparente decomposição do próprio respeito das hierarquias sociais ou genéticas. desenho. A imaginação anda aqui à deriva e o Lembremos que, nos primeiros quinze a dezoito caos daí resultante torna-se uma metáfora de exemplos da série de Alexandra do Carmo, o uma identidade perdida, uma visão vulnerável do macaco fita o estúdio, registando emoções mundo que rodeia a mais importante faculdade relacionadas com as características específicas que o macaco e a sua autora partilham: a do local ou, mais precisamente, do espaço de capacidade de ver, a um tempo a partir de uma criatividade. Mais do que uma censura, o olhar perspectiva pessoal e de uma perspectiva do animal é uma pergunta: como comunica a abstracta. Uma vez transposto o desenho 28, a artista com um público que supomos ser capaz janela torna-se o principal foco não só da de ver mas não de verdadeiramente entender? atenção do observador como da do chimpanzé. No estúdio encontra-se uma cadeira, reflectida A janela reflectida nos olhos deste adquire uma no olhar do macaco; essa cadeira é um tonalidade verde-vivo e os olhos assemelham-se substituto não só da presença da artista mas a um grande plano da janela. No desenho também do observador humano, que avalia o seguinte, os olhos tornam-se verdes e o macaco olhar do animal através do seu próprio olhar. Não fugiu do estúdio, encontrando-se já no exterior. é justo classificar Alexandra do Carmo como uma Nos dois desenhos subsequentes vêem-se três artista puramente simbólica - a sua inteligência é pequenos macacos no interior dos olhos, ao Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com Carlos Carvalho Arte Contemporânea passo que no seguinte dois chimpanzés dos macacos, no interior do qual se vê a silhueta diferentes se encontram num campo verde, de numerosas pessoas que parecem aproximar- fitando dois outros. se deles e também do observador. Através da A complexidade visual destes desenhos funciona sequência, Alexandra do Carmo relata uma como metáfora da atenção criativa - da do história de erros visíveis que reconhece as chimpanzé e da nossa. A natureza intrincada do dificuldades do desenho enquanto processo; os que o chimpanzé vê prende-se com a visão da macacos são encarnações da criatividade mas artista, a criadora da situação. Por vezes, o meio também a exercem, de forma que o fosso entre envolvente abarca o mundo exterior; outras criador e criatura é sumariamente eliminado. O vezes, o macaco vê versões de si mesmo - por aparecimento de visitantes no último desenho outras palavras, enfrenta o seu próprio duplo ao alude à presença de um público, o último mesmo tempo que representa a inventiva da acontecimento na construção da realidade artista. A questão da alteridade está também imaginada em arte. Os macacos e o que eles aqui presente; os macacos encarnam a sua vêem são prova evidente da imaginação, por criadora, funcionando a um tempo como índices natureza etérea e efémera: eles proporcionam a do eu da criadora e como tema por direito Alexandra do Carmo a substância de um tema. próprio. Nos desenhos 38-43, aparecem quatro Justamente porque os chimpanzés chimpanzés, todos diferentes. Contudo, vendo os deliberadamente desenvolvem o tópico da artista olhos deles, o observador apercebe-se do lugar - a criatividade encarnada e a sua inevitável onde estão. Na mesa que integra o meio tendência para a imperfeição -, há lugar para o envolvente dos macacos vêem-se quatro rolos erro humano; os erros são uma parte natural do de papel - o que indicia o facto de os chimpanzés processo de desenhar e devem ser incorporados estarem em conjunto a arquitectar um projecto, em qualquer teoria sobre um acto imaginado. marcado por "erros" que diferenciam o desenho Nesta série de obras, Alexandra do Carmo da fotografia original; linhas, setas, círculos, propõe um conceito que passa pela identificação quadrados devolvem o público à natureza da sua pessoa com o seu tema, numa noção construída do desenho e realçam o papel crucial autoconsciente e sagazmente elaborada sobre que o conceito de desenho e as suas visíveis as responsabilidades que assume ao desenhar. incorrecções assumem para o processo que é As fusões ocorridas durante a série aglutinam desenhar. objecto e sujeito, gerando uma estimulante Nos desenhos 43-50, os chimpanzés ambiguidade que abrange a artista e o seu abandonam o espaço do estúdio e a mesa é mundo. A criatividade tipicamente subtil e deslocada para o exterior, aparecendo sobre a aparentemente modesta de Alexandra do Carmo relva, rodeada de quatro cadeiras; nesta sugere um idioma da perda; contudo, essa perda sequência, os macacos - tornados figuras é percebida não como uma negação mas como o humanas - estão sentados. Nos desenhos 45-50, reconhecimento honesto do erro enquanto parte figuras inacabadas regressam à ficção metafísica integrante do processo que é desenhar. Sem ele, dos desenhos e do respectivo conteúdo, tornamo-nos perfeitos e perdemos a dimensão deixando ao mesmo tempo vagas as cadeiras meramente humana, tal como os chimpanzés nos olhos dos macacos. Fazendo-o, as figuras perdem a visão de um campo unificado, que começam a aparecer no próprio desenho, apenas existe enquanto tema utópico inerente à embora no último a artista regresse aos olhos criatividade; sabemos que a sua natureza utópica Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com Carlos Carvalho Arte Contemporânea não pode ser nunca realizada. Nestas circunstâncias, Alexandra do Carmo dirigiu muito realisticamente a sua atenção para a arte enquanto processo absorvente, e não como um produto de digestão fácil. A sua obra torna-se um exemplo da imaginação em acção, digerindo matérias na esperança de se tornar verdadeira e exacta em relação à originalidade criativa. Tradução do inglês de Maria Ramos Rua Joly Braga Santos, Lte. F - r/c . Lisboa, Portugal + (351) 217 261 831 + (351) 217 210 874 [email protected] http://www.carloscarvalho-ac.com