O DESENCANTAMENTO DOS VALORES TRADICIONAIS SEGUNDO MAX WEBER E O PRÉFUNDAMENTALISMO PROTESTANTE DO SÉCULO XIX Marcelo Silva dos Santos [email protected] Demais, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne. De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem. Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más (ALMEIDA, 1997, 672).1 Inegavelmente a Inglaterra do século XIX teve papel preponderante sobre as demais nações do globo. Seu papel enquanto referencial da chamada “Revolução Industrial” denota a força de uma supremacia que vinha sendo construída ao longo de séculos, não como projeto, para não cair no erro teleológico. Mas, pelas condições que lhe foram favoráveis desde o século XVI até o século em questão. Com muito cuidado, usando o termo de forma bastante ampla, podemos afirmar que a Inglaterra deste período ocupou posições de vanguarda. Pois, as suas experiências nos campos sociais, políticos, econômicos e culturais, incluindo neste a religiosidade, por diversas vezes serviram de parâmetros para outras sociedades. Desde Henrique VIII que passou de “defensor da fé” à herege ao separar a Inglaterra dos domínios de Roma e fundar a sua Igreja nacional. E, principalmente ao longo do governo de sua filha Elisabeth I, que fez de seu reinado no século XVI uma “era de ouro”. 1. AS PECULIARIDADES DA EUROPA A estabilidade do poder absoluto sofreu seu revés ao longo do século XVII com a chamada Revolução Inglesa, que de fato foram duas (Puritana e Gloriosa). Neste sentido, as bases que consolidavam a forma anterior de governo foram sendo remodeladas em cujo processo culminaria na criação de um novo ambiente político, que gradualmente transferia o poder do rei para as mãos do parlamento. Contudo, as mudanças essenciais para a Inglaterra foram as oriundas das transformações sociais que se deram cabo ao longo do século XVIII. As mudanças políticas do século anterior foram fundamentais, e deram base para tais alterações nas relações da sociedade inglesa deste século. O sentido destas novas relações sociais foi, sem dúvida, o alicerce que proporcionaram a hegemonia econômica inglesa do século XIX. A Inglaterra mudava, e o mundo acompanhava conjuntamente esta mudança. Uma verdadeira revolução precisa de idéias que a alimentem – sem elas têm-se apenas uma rebelião ou um golpe de Estado – e os suportes intelectuais e ideológicos da oposição ao governo são, portanto, de importância primordial. Algumas destas correntes intelectuais, como a devoção ao direito consuetudinário, eram muito antigas, mas tornaram-se então mais difundidas, enquanto outras, como o puritanismo ou a ideologia do “País”, eram relativamente novas; algumas, como o puritanismo ou o legalismo, criavam polarizações, enquanto outras, como o ceticismo, corroíam vagamente 1 Referência ao livro de Eclesiastes 12:12-14 da Bíblia. as crenças. Mas todas ajudaram no enfraquecimento da confiança nas instituições centrais como a Igreja e o Estado (...). A influência mais profunda sobre a mentalidade das pessoas, embora muito difícil de fixar em detalhes precisos, foi o puritanismo, aqui interpretado como significando não mais do que uma convenção generalizada na necessidade de independência de julgamento – por parte de cada um – com base na consciência e na leitura da Bíblia. (STONE, 2000, 178-179). O resultado desta nova conjuntura proporcionou a efervescência do que foi o século XIX. Obviamente que não podemos ignorar as influências advindas da Revolução Americana e da Francesa, incluindo a esta o Iluminismo. Do desenvolvimento da filosofia idealista alemã e seus desdobramentos que ainda nos afetam consideravelmente. O resultado disto, é que o período entre 1789 a 1914 experimentou as maiores mudanças sociais da história da humanidade (que, sim, podem ser superadas em volume pelos nossos dias atuais, mas ainda é cedo para sabermos). Das “revoluções” do século XIX, duas se destacam para o desdobramento da presente pesquisa: o avanço científico e o desencantamento com o sagrado. Sendo que a segunda é diretamente um desdobramento da primeira. Os 99 anos de 1815 a 1914 formaram um período distinto na história da humanidade e do cristianismo. (...). Por causa de uma combinação de expansão geográfica, vitalidade interna, e o efeito sobre a humanidade como um todo, eles constituíram o maior século que o cristianismo conheceu, até então. Essa realização do cristianismo associou-se à explosão prodigiosa da criatividade dos povos europeus ocidentais, a cristandade tradicional. Ele se igualou por movimentos que pareciam ameaçar a própria existência da fé e dos desafios que requereram todos os seus recursos internos. (LATOURETTE, 2006, 1437). Segundo Latourette, a experiência vivida pelo cristianismo durante o “longo” século XIX foi extremamente positiva, pois, mesmo diante das adversidades advindas do desencantamento do sagrado a partir do avanço sensacional das ciências, especialmente as humanas, a cristandade soube superar os obstáculos, e, através dos reavivamentos, desembocou o século XX ainda com força substancial. Contudo, o que se pretende demonstrar é que estes “reavivamentos” são, de fato, uma mescla de apelo generalizado às emoções em consonância com a reestruturação da ortodoxia, que tende a se conformar às mudanças provocadas pelas descobertas científicas. E, assim sendo, um dos produtos destes processos históricos é o surgimento de um pré-fundamentalismo que não se adapta às mudanças e reage bruscamente através do endurecimento das suas crenças. Para isso, os grupos pré-fundamentalistas lançam mão de uma vasta produção intelectual de forma a contrapor a modernidade. Julgando esta como os “sinais do fim dos tempos” e o breve início do reinado do anticristo na Terra (DARBY, 1991, 54-70). O fim das guerras napoleônicas proporcionou um período de relativa paz e prosperidade. Nunca antes a cristandade havia experimentado um tempo tão amplo livre de guerras (LATOURETTE, 2006, 1437). As guerras neste período foram localizadas e restritas. Assim, os povos europeus, em detrimento dos demais, promoveram sua expansão ao redor do globo. Com a “diminuição” das distâncias através dos avanços tecnológicos, as fronteiras foram alargadas, assim como o conhecimento humano acerca de si mesmo e do mundo em que vivemos. Por intermédio de hipóteses desafiadoras, observação, e experimento, eles exploraram a constituição da matéria, tornaram-se cada vez mais cônscios da eletricidade, examinaram os espaços estelares, e começaram a desenrolar a história do passado geológico do planeta que era sua habitação. Por meio de conjecturas associadas ao nome de Charles Darwin, os cientistas buscaram entender o curso da vida sobre o planeta. Por métodos aos quais o nome “psicologia” foi dado, eles labutaram para revelar os sistemas de suas mentes e as dos outros. A antropologia e a sociologia foram marcas aplicadas ao empenho de compreender os homens como animais e as maneiras como as sociedades, em que eles estavam associados, operavam. Por intermédio do que se chamou economia, os estudiosos examinaram o sistema no qual a riqueza era produzida e distribuída (LATOURETTE, 2006, 1438). Diante de tantos avanços e descobertas, e todas estas provocadas por “meros” homens, construíram um ambiente hostil à religiosidade. Gradualmente, o homem foi se tornando senhor de seu mundo, e as respostas oferecidas pela religião ou eram contraditórias em relação às descobertas científicas, ou não satisfaziam mais ao processo de individuação da sociedade. Outro fator importante a ser considerado é o processo de urbanização oriundo da Revolução Industrial, que transformou em ritmo acelerado a demografia citadina. As massas que começam a ocupar as regiões próximas às indústrias são exploradas e suas condições de vida extremamente dificultadas. A estas massas, também o cristianismo não dava respostas, pelo contrário, pertencer à Igreja era ser diretamente associado às classes dominantes. Principalmente à Igreja Anglicana, onde o aluguel de acentos ainda era uma prática em pleno século XIX. Temos, porém, a exceção feita ao metodistas, cujo número de adeptos oriundos da classe operária supera às demais dissidências da Igreja Oficial. As guerras (século XVIII) coincidiram com o aumento considerável do número de seguidores do Metodismo, e testemunharam o “declínio constante do espírito revolucionário” entre as seitas heterodoxas. (...). Durante os anos de guerra, o Metodismo distingui-se principalmente por dois motivos: em primeiro lugar, a maior parte dos novos adeptos provinha da nova classe operária industrial; em segundo lugar, os anos que se seguiram à morte de Wesley presenciaram a consolidação de uma nova burocracia de ministros que consideravam seu dever manipular a submissão dos fiéis e disciplinar todos os membros desviantes da Igreja que pudessem ofender sua autoridade (THOMPSON, 2002, 226). Contudo, não somente a religiosidade ocidental se percebe acuada diante desta conjuntura, o próprio sociólogo Max Weber conjectura acerca do papel da ciência em dar sentido ao nosso cotidiano Na conferência A ciência como vocação, (WEBER) expõe uma leitura sobre o significado que a ciência adquiriu no mundo ocidental moderno, verificando em que medida ela poderia ou teria contribuído para o processo de “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt). Se aceitarmos a idéia de que a ciência deveria fornecer sentido ao nosso cotidiano, para o nosso bem viver, a descrição feita por Weber certamente nos contraria. À ciência não caberia estabelecer uma visão de mundo que pudesse ser considerada como fator decisivo, único e último da existência humana. No mundo desencantado haveria uma infinidade de pontos de vista, perspectivas, sem que a vida adquirisse sentido universal através deles. Neste mundo, moderno segundo ele, os homens estariam solitários, com um grande vazio na alma, submetidos ao cálculo e ao interesse, resultado da instauração de uma racionalidade no campo da vida sociocultural, em que a ciência, a moral, a arte, a política e a economia adquirem leis próprias, tornando-se justificadas por uma razão que perdeu o caráter de universalidade (CARVALHO, 2005, 15). 2. A EXISTÊNCIA CRISTÃ EM XEQUE Assim sendo, diante dos fatos, uma onda de otimismo e euforia toma conta dos povos europeus, confiantes que a sua vontade e a razão solucionariam todos os problemas e vicissitudes da humanidade. A experiência cristã não houvera dado certo. E neste momento de relativa paz para os cristãos, a dialética que nos primórdios do cristianismo foi sua “sementeira”2, agora a paz é sua desgraça (no sentido de perder graça diante dos homens). Pois a Razão trouxe consigo uma expectativa de paz que o cristianismo sempre pregou, mas nunca realizou. Desta forma, paulatinamente a religiosidade cristã vai perdendo sua força diante da sociedade, independentemente de classe social3. As respostas que os homens deste século perguntam não se encontram mais nas respostas dadas pela Religião, quem as responde satisfatoriamente é a Razão. Por seu próprio sucesso, o cristianismo parece ter preparado o caminho para a sua própria queda. Essa fé foi entretecida por meio da civilização da Europa: a maior parte desse continente tinha se tornado cristandade. À medida que a civilização mais velha, com a qual ele parecia se identificar, desaparecia ou era violentamente destruída, o observador casual a até mesmo o cuidadoso poderia esperar o desaparecimento do cristianismo e, se ele sobrevivesse, seria somente em áreas grandemente rurais, não penetradas ou pouco alteradas pelas correntes novas. Assim enfraquecido, presumivelmente o cristianismo não estaria em condições de mover-se efetivamente nas áreas abertas pela expansão da Europa e para entrar nas culturas novas, que emergiriam a partir das revoluções induzidas pelo impacto do Ocidente. A menos que fosse forçado pela identificação com eles, na primeira parte do século 19 o estudante da cena contemporânea dificilmente creria que os despertamentos no protestantismo e na Igreja Católica Romana, confinados como eles estavam as minorias, provariam ser poderosos o suficiente para contrabalançar as forças adversas. Por todo o século 19, mesmo o cristão convencido, se ele fosse de fato cônscio das forças que modelavam os povos europeus e por intermédio deles o restante do mundo, não poderia senão 2 Referência à frase atribuída a Tertuliano de que “o sangue dos mártires é a sementeira do Evangelho”, ou seja, a guerra e a perseguição contra os cristãos seria um dos principais motivos de seu crescimento. Contudo, não pude confirmar esta citação. A frase que mais se aproxima desta se encontra na carta Apologeticum e está escrito: "semen est sanguis Christianorum" (Apologeticum (Apologia) 50.13) que traduzido fica “o sangue dos cristãos é semente”. Não encontrei em nenhum de seus textos a frase que em latim seria "sanguis martyrum semen christianorum", contudo, posso estar equivocado. 3 Considerando, é claro, que a Aristocracia ainda mantém em seu ethos a mentalidade de unicidade de seu status quo com o pertencimento à Igreja Oficial. questionar se ele poderia ou seus amigos crentes se levantariam para o desafio. Ele abrigava, relutantemente, o medo sóbrio de que ele e eles lutavam atrasando a ação em uma campanha perdida (LATOURETTE, 2006, 1446). Este pessimismo que Latourette expõe, apesar de ser somente uma conjectura própria, pode expressar um possível destino para o cristianismo. Que só tem, a partir de então, duas opções: se adaptar à modernidade, ou reagir contra ela. A adaptação garante a subsistência da cristandade, a reação pode provocar seu aniquilamento. Desta forma, surgiram maciçamente movimentos de reavivamento em todas as modalidades de cristianismo existentes então. E esses processos se atrelam à modernidade, buscando transformar as manifestações cristãs em atos carregados de extrema emoção e gradualmente moldar sua ortodoxia de forma a enquadrála nos “padrões” modernos. Assim, o cristianismo deixa paulatinamente de ser antagônico à modernidade e, pelo contrário, passa a dar respaldo a esta. O cristianismo foi desafiado não somente por ameaças à sua existência contínua. Ele também foi desafiado por oportunidade não precedente. A civilização ocidental estava em mudança rápida e se o cristianismo fosse suficientemente dinâmico para operar criativamente seu remodelamento (grifo meu), ele poderia ser mais profundamente influenciado por essa fé do que em qualquer estágio anterior em sua história. O impacto do Ocidente produzia revoluções em todas as outras culturas sob a qual os homens viviam. Aqui estava uma oportunidade para ajudar a modelar o futuro da humanidade não ocidental. Vindo como ele veio em associação com a cultura, que produzia as revoluções que perturbavam a raça humana, o cristianismo encontrou oposição que surgiu do ressentimento contra os ocidentais como seus supostos adeptos.Contudo, a ele foi também concedida uma ampla audiência, mais do que se ele tivesse derivado o prestígio dessa associação. O domínio por povos ocidentais destruiu barreiras políticas e culturais que permaneceram no caminho da difusão do cristianismo. A redução das distâncias temporais e os métodos melhorados de transporte e da comunicação tornaram possível o desenvolvimento e o mantimento de uma empreitada missionária mundial. A riqueza crescente de povos europeus forneceu ao cristianismo com os meios materiais para o apoio da empreitada, de modo nunca visto. Aqui estava uma oportunidade maior do que o cristianismo jamais enfrentara para levar sua mensagem a toda humanidade e para se fazer sentir em cada ser humano (LATOURETTE, 2006, 1456). Assim sendo, o cristianismo se une aos interesses coloniais europeus não somente para propagar a fé cristã, mas, principalmente para sobreviver. O desencantamento com o sagrado já era uma realidade consolidada na Europa, e esta união entre o imperialismo e a cristandade foi benéfico para ambos. Se de um lado, a imposição cultural facilita a dominação, para o outro garante a sua existência. “As Igrejas empreenderam a conversão dos pagãos a várias versões da verdadeira fé cristã, exceto onde ativamente desencorajadas pelos governos coloniais (como a Índia) ou onde a tarefa era claramente impossível (como nas regiões islâmicas)” (HOBSBAWM, 2006,107). 3. A FORMAÇÃO DO PRÉ-FUNDAMENTALISMO As ações sociais têm significado individual no conjunto das relações que formam a sociedade. Assim também ocorre com as idiossincrasias que compõem os grupos sociais, unidos por pela ação social racional por valor com sentido comum. Assim sendo, diante dos desafios da modernidade, nem todos os cristãos optaram pela adaptação, pelo contrário, escolheram uma ruptura extrema com aquilo que começava a ser conhecido como a teologia liberal4. Muitos grupos se formaram, especialmente nas Ilhas Britânicas, formulando suas práticas de acordo com esta reação direta contra os ideais modernos, que “maculavam” o verdadeiro Evangelho. Dentre estes grupos, esta pesquisa focaliza o “Movimento dos Irmãos de Plymonth”. Pois, a partir da analise mais profunda da sua dogmatização, podemos construir um tipo ideal do que se constitui como o pré-fundamentalista do século XIX. Esta construção é feita a partir da analise minuciosa da ortodoxia do movimento e como seus escritos e doutrinas produzem a base do fundamentalismo que irá se consolidar no princípio do século XX. Praticamente todos os movimentos reacionários do cristianismo, sejam eles considerados hereges ou não, até o século XVIII tinham normalmente um ideal em comum: o retorno a “era de ouro” da Igreja, ou seja, aos padrões da Igreja Primitiva5. Contudo, como já vimos, os “reavivamentos” do século XIX perderam esta característica. Pelo contrário, o sentido social destes movimentos focam a sua própria sobrevivência, mesmo tendo que negar muitas de suas doutrinas, ou adaptá-las de forma a serem adequadas à modernidade, cuja empiricidade é irrefutável. Porém, ainda assim, os novos grupos pré-fundamentalistas usaram todos os recursos intelectuais de seus membros para rebater as provas científicas que contrariavam suas convicções e que impediam a Igreja de voltar a ser como ela deveria ser: “primitiva”. Diante deste paradigma, o que seria necessário para que um corpo eclesial seja considerado como sendo segundo os padrões apostólicos descritos especialmente no livro de Atos dos Apóstolos e nas cartas paulinas? Para suprir esta demanda, um corpo altamente intelectualizado se debruça para produzir uma ortodoxia própria, avessa às mudanças do presente século, rústica e hermeticamente fechada em si mesma. Muitos livretos e livros são publicados, e o reconhecimento por parte das grandes escolas teológicas não tardou. Contudo, a contra-reação liberal ignorou os pontos mais polêmicos dos escritos dos Irmãos, mas, explorou os que mais lhe interessavam. A semente do fundamentalismo está plantada e pronta para germinar. Seguem-se algumas considerações acerca dos escritos e convicções do movimento. 3.1 Simplicidade das reuniões Como todo processo histórico, a lei natural de causa e efeito não pode ser determinantemente aplicada, ou seja, a reação à modernidade é, obviamente, umas das vicissitudes que culminaram no surgimento do pré-fundamentalismo. Mas, certamente, não a única. Porém, a impossibilidade de esgotamento da compreensão do movimento social, não impede a objetividade que advém do trato metodológico das fontes e das conclusões obtidas a partir destas. Logo, o processo histórico em questão pode ser analisado de diversas formas. Deixando isto claro, verifica-se claramente o surgimento de diversos movimentos ao longo das Ilhas Britânicas com similitudes especificas e aparentemente sem conexão clara. Uma das características comuns a estes movimentos é justamente a questão da simplicidade das reuniões. Estes grupos começam a se reunir desprezando os aparatos ortodoxos da eclesiologia 4 Teologia liberal entendida como uma ramo desta ciência que adequa aos princípios das ciências naturais e humanas que começam a ser produzidos a partir do século XIX. 5 Ecclesiae primitivae forma. convencional. Os motivos precisam ser melhor estudados, pois, associar esta ruptura às classes sociais dominadas não teria respaldo histórico, já que os movimentos iniciaram normalmente entre os membros da burguesia, e só posteriormente, a população operária começou a ingressar e encorpar os movimentos. Especialmente o dos Irmãos. Desta forma, independentemente das “causas”, o fato é que dentre estes grupos, surgiu o movimento de Dublin e que mais tarde deslocaria seu foco para Plymonth. Para estes, o inicio de suas reuniões se deve justamente pela vontade de se reunir de forma simples, buscando a condução do Espírito Santo (talvez por influencia Quacker), na qual, todos os rebuscamentos litúrgicos eram abolidos. Não haviam templos. As reuniões eram feitas normalmente nas casas dos participantes do grupo, sem ordem previamente estabelecida. A simplicidade da reunião é fator característico deste movimento. De um de seus primeiros participantes, Bellet, temos a seguinte referência acerca de um comentário feito por Groves, pouco antes de sua partida para Bagdá: Andando certa vez com ele, enquanto passávamos pela da Rua Lower Pembroke, ele me disse: “Eu não tenho dúvidas quanto a mente de Deus concernente a nós – nós devemos nos reunir em toda a simplicidade como discípulos, não esperando por nenhum púlpito ou ministro, mas confiando que o Senhor irá edificar-nos conjuntamente pela ministração que Lhe aprouver e vê com bons olhos por estar no meio de nós” (NEATBY, 2001, 24)6. Nota-se que a condução das reuniões cabia ao “Senhor” e que os participantes deveriam estar sujeitos a esta direção com toda a simplicidade para a mútua edificação. E Groves associa este pensamento ou esta forma de reunião a vontade do próprio Deus. Portanto, enquanto a modernidade caminha a passos largos para o antropocentrismo extremo, o movimento retrocede alguns séculos e volta diretamente ao teocentrismo exclusivista. 3.2 Não-denominacionalismo Uma formulação dos Irmãos das mais difíceis de serem compreendidas, por ser extremamente antagônica, é justamente a questão denominacional. Pois, eles pregam a unidade da Igreja enquanto Corpo de Cristo, ou seja, todos os cristãos que vivem na face da Terra e os que já “dormem no Senhor” fazem parte de um organismo vivo, único e indivisível. Por isso eles se declaram sem denominação. Não usam nenhum nome que possa distingui-los dos demais cristãos. Mas, em suas práticas, normalmente este grupo não aceita os participantes das chamadas por eles “denominações”. Portanto, o discurso é contraditório com a prática. Uma das características do entendimento acercado que é uma denominação é a distinção de nomes, e quando este nome é mantido, mesmo em uma posição independente, esta igreja não pode ser determinada enquanto não-denominacional. Mas as assembléias que rejeitam qualquer nome que as divida, mesmo quando nomes são dados por outros contra a sua vontade. The Random House Dictionary of the English Language define denominação como: 1. Um nome ou designação, especialmente uma classe de coisas. 2. Uma classe ou tipo de coisas ou pessoas distinguidas por diferentes nomes. 3. Um grupo religioso usualmente possuidor de vários locais de reunião, normalmente maiores que as seitas. 6 Traduzido pelo autor da versão em inglês original. Vamos considerar uma denominação a partir do senso desta terceira definição acima. Esta possui quatro características básicas: 1. Um nome distinto. 2. A união de vários locais de reunião. 3. Um líder humano ou cabeça. 4. Um centro terreno ou quartel general. Por nenhum destes testes as (nossas) assembléias podem ser declaradas como denominações. Várias vezes foram rejeitados todos os distintos nomes atribuídos às assembléias locais pela grande maioria dos cristãos em comunhão nestas localidades. “Irmãos”, “Irmãos de Plymonth”, “Irmãos Exclusivos”, “Irmãos Abertos” etc. Todos são nomes aplicados às assembléias, mas nunca aceito por elas. Nenhuma união organizacional sugerida entre as assembléias jamais foram aceitas. Não existe nenhum lugar na Terra que seja reconhecido como o quartel general ou central. Nenhum indivíduo, seja no passado ou presente, foi reconhecido como líder humano ou cabeça das assembléias (MACKAY, 1981, 30)7. Logo, parece que podemos concluir que o discurso não-denominacional procura, de alguma forma, filtrar ou impedir que os ideais modernizantes penetrem em seu meio. Pois, impedindo a denominação de participar de suas reuniões, eles impedem que os grupos que aderem à modernidade “maculem” suas convicções ou que promovam dissensões internas. 3.3 Inerrância bíblica O respaldo à sua própria ortodoxia se origina da fonte fundamental para todo cristão, as Escrituras Sagradas. Contundo, neste momento muitas dúvidas acerca da originalidade dos escritos bíblicos, de sua veracidade, integridade ao longo dos anos, possíveis manipulações e adulterações dos textos originais e o próprio questionamento sobre a inspiração divina dos textos fervilham entre a cristandade. Teorias, hipóteses e métodos estão sendo elaborados para corroborar ou desacreditar os textos sagrados. A posição assumida pelos irmãos, obviamente, é de que o texto bíblico é sim inspirado pelo Espírito de Deus e desta forma inerrante. A visão de Jesus sobre as Escrituras é muito clara para os que acreditam que os evangelhos, inerrantes ou não, apresentam um relato bastante confiável de seus ensinamentos. É vasto o material proveniente dos quatro evangelhos e de todas as suas principais citações. Há centenas de citações e de alusões que aparecem espontaneamente em muitas situações. De modo geral, elas revelam com muita clareza os pressupostos básicos de Jesus mais do que seus ensinamentos específicos. Cristo sempre trata as narrativas históricas como registro de fatos, e a força de seus ensinamentos quase sempre depende da verdade literal delas. Ele usa os ensinamentos do Antigo Testamento (AT) como tribunal de apelação em questões controversas de doutrinas e ética. Que esse era seu ponto de vista, e não uma condição ad hominem por ele adotada em benefício de seus ouvintes, percebe-se pelo uso que faz da Escritura quando enfrenta o Diabo. Também não era consequência de suas 7 Traduzido pelo autor da versão em inglês original. limitações humanas, como mostra a ênfase que dá a Escritura depois da ressurreição. Ele considera inspirada cada palavra da Escritura, até mesmo “a menor letra” e “o menor traço” (Mt 5:18)8. Reconhece que os livros da Bíblia foram escritos por autores humanos; para ele, porém, o autor por excelência da Escritura é o próprio Deus. Esse atestado de verdade dado ao relato verbal em todos os seus detalhes, aliado à verdade histórica e doutrinária, pressupõe a doutrina da inerrância em questões históricas e também doutrinárias. A suposta revogação da Escritura por Jesus (como, por exemplo, no Sermão da Montanha), em que ele teria entrado em contradição, é decorrência de uma compreensão errônea da passagem citada. Para Jesus, o AT era verdadeiro, inspirado e dotado de autoridade; o Deus do AT era o Deus vivo, e os ensinamentos contidos no AT provinham dele. Ler a Escritura era ouvir a voz de Deus (GEISLER, 2003, 13-14). Sem este respaldo das Escrituras, toda a ortodoxia do movimento cai por terra, se torna injustificável. Portanto, a afirmação da Bíblia é a afirmação do movimento contra o turbilhão que se aproxima para “destruir a fé”. 3.4 Literalidade bíblica Além da inerrância bíblica, outro fator fundamental relacionado às Escrituras Sagradas é sua literalidade. De Gênesis ao Apocalipse, a Bíblia trata de assuntos históricos, com personagens reais e manifestações divinas irrefutáveis. Sendo os textos sagrados a Palavra de Deus, logo, todo seu conteúdo expressa nada menos do que a verdade absoluta. Quantas pobres almas há por aí, às quais acontece o mesmo que aconteceu com o lavrador; andam agitadas e perturbadas porque escutam as opiniões dos homens, ou se ocupam com os pensamentos e sentimentos dos seus próprios corações, ao passo que, se com sinceridade recebessem a Palavra de Deus, como sendo a Palavra de Deus, as dúvidas que os atribulam cederiam imediatamente seu lugar à CERTEZA (CUTTING, 1999, 13). Esta afirmação é a mais contundente forma de reação à modernidade. Diante de todos os avanços científicos, este grupo sempre tem duas respostas: ou negam as descobertas ou encontram na Bíblia uma “brecha” que permite adequar o texto às revelações inegáveis das ciências. Vários livros são escritos pelos irmãos para defender uma posição ou outra. Mas, nunca, em nenhum momento, a Bíblia é colocada em posição de desconfiança ou demérito. Sempre há uma resposta. 3.5 Uma vez salvo, pra sempre salvo Esta questão tem abrangência puramente teológica, num primeiro momento. Obviamente, estudos como os de Thompson demonstram como as classes operárias reagem diante das afirmações acerca da salvação das almas e da igualdade dos homens perante Deus. Contudo, este debate seria mais sociológico do que histórico neste momento. Desta forma, a apresentação deste tema segue mais um objetivo didático acerca do movimento, do que necessariamente epistemológico quanto a argumentação central desta pesquisa. 8 Referência ao Livro de Mateus 5:18 da Bíblia. As Escrituras dizem que aquele que crê está salvo, e aquele que não crê está condenado. Não pode haver dúvida, nem em um caso nem em outro, pois é Deus Quem o diz, e para o crente de coração sincero a Palavra de Deus resolve tudo. “Porventura diria Ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?”9 (CUTTING, 1999, 13). 3.6 A Ceia do Senhor Este ponto é fundamental na doutrina dos irmãos. Se, num primeiro momento eles rompem definitivamente com qualquer discussão metafísica acerca dos elementos eucarísticos (transubstanciação ou consubstanciação). A Eucaristia assume a posição central nas suas reuniões. O estabelecimento da mesa do Senhor em uma determinada localidade centraliza neste ponto o foco do olhar divino e é ao redor desta que os verdadeiros cristãos devem estar. A mesa é a comunhão. Participar desta é ser parte do Corpo, e somente aqueles que passaram pelo batismo podem participar desta. Não participar da Ceia implica duas condições, a primeira, de não-crente, logo, condenado ao inferno. A segunda é a exclusão do crente por associação com o mal. A salvação é garantida, mas, a comunhão é negada. Dos desdobramentos desta concepção surgem as dissensões no meio do Movimento dos Irmãos. Peter Burke, fazendo referência a Victor Turner, entende isto a partir do desenvolvimento de umas das idéias de Durkheim sobre a importância de momentos de “efervescência coletiva” (BURKE, 2002, 84) de um grupo para a renovação social, e Turner, assim, cunhou o termo “communitas” para referir-se a estas solidariedades sociais espontâneas, não estruturadas. Portanto, este “communitas” surgiu a partir da conjugação dos interesses diversos do grupo em favor do bem comum e da manutenção de sua experiência religiosa. Contudo, a tendência é de que a institucionalização dos movimentos ocorra mais cedo ou mais tarde, sob pena do desaparecimento das mesmas. Assim, a dialética interna de manutenção da doutrina foi a causa da ruptura interna do movimento de tinha como um dos seus principais alicerces a unidade. A ordenação da Ceia do Senhor deve ser considerada por toda mente espiritual, como uma prova particularmente tocante do benigno cuidado do Senhor e de Seu terno amor por Sua Igreja. Desde a época de sua instituição até o presente, a Ceia tem sido um testemunho contínuo, embora silencioso, da verdade que o inimigo tem procurado corromper e colocar de lado por todos os meios ao seu alcance, de que a redenção é um fato consumado para ser desfrutado até pelo mais simples crente em Jesus. Passaram-se dezoito séculos10 desde que o Senhor Jesus designou “o pão e o cálice” na Ceia como significativos símbolos do Seu corpo oferecido e do Seu sangue derramado por nós, e apesar de toda heresia, toda divisão, e toda controvérsia e discórdia, e da guerra de princípios e preconceitos que a página manchada da história eclesiástica registra, esta ordenação tão expressiva tem sido observada pelo povo de Deus em todas as épocas. É verdade que o inimigo tenha conseguido, em um amplo segmento da Igreja professa, envolver a Ceia do Senhor em uma mortalha de negra superstição, apresentando-a de uma maneira tal que efetivamente escondesse do participante a grandiosa e eterna realidade daquilo que é memorial, substituindo Cristo e Seu sacrifício consumado por uma 9 Referência ao livro de Números 23:19 da Bíblia. O autor viveu no século XIX 10 ordenança que, além de tudo, pelo modo como é administrada, prova ser de total inutilidade e oposição à verdade (MACKINTOSH, 2003, 45). O papel central da Ceia do Senhor fica claramente demonstrado a partir das palavras de Mackintosh: Quero agora falar algo quanto à maneira de celebrar a Ceia. A principal aspiração dos cristãos deveria ser mostrar que o partir do pão é o objetivo primeiro e mais importante de se reunirem no primeiro dia da semana. Deveriam mostrar que não é para a pregação ou ensino que se reúnem, se bem que o ensino possa ser um complemento feliz, mas que o partir do pão é o assunto principal que têm em vista (MACKINTOSH, 2003, 44). A questão da Ceia é tão fundamental para os Irmãos que no seu entendimento não pode haver mais de uma mesa no primeiro dia da semana em uma única localidade (normalmente delimitada pelos limites da cidade, ou de uma região, no caso das grandes cidades). Assim, a mesa define a Igreja Local. Por exemplo, segundo os irmãos, não existiam igrejas batistas, metodistas, congregacionalistas ou anglicanas em Plymonth. Existia a Igreja em Plymonth, e o local onde a verdadeira comunhão era celebrada seria em volta da mesa do local onde os Irmãos estavam estabelecidos. Como ficou anteriormente explicitado, os demais crentes não estavam destituídos da salvação, e sim da verdadeira comunhão no Corpo de Cristo. Logo, fica delimitado claramente quem realmente está em comunhão com a Igreja e quem está associado com a presente era. 3.7 Afastamento do mal Desdobramento da doutrina anterior. Na medida em que a ortodoxia do movimento se enrijecia, gradualmente os crentes de maior influência no meio dos irmãos assumiam posições de liderança. Aceitar os novos rumos que a sociedade estava assumindo era claramente uma associação com o mal, visto que o mundo estava sendo preparado para receber o Anticristo e a luta final entre o Bem e o Mal estava prestes a ser travar. Porém, para manter suas posições de liderança, determinados irmãos usaram do artifício de afirmar que determinado opositor de suas idéias estava associado com o mal, e assim, o mesmo era imediatamente cortado da comunhão e “entregue a Satanás”11 para ser disciplinado. O que é importante saber-se, segundo o meu parecer, é que o poder ativo que nos reúne é sempre a graça – amor. A separação do mal pode ser exigida. Em circunstâncias especiais da igreja, quando o mal entra pode caracterizar muito a conduta dos crentes. Pode ser que, devido a muitos aturem ao mesmo tempo sob a mesma convicção, isto forme um núcleo. Contudo, isto nunca é em si mesmo um poder de 11 “Geralmente, se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai. E, contudo, andais vós ensoberbecidos e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou? Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor”. Primeira carta aos Coríntios 4:1-5. Baseados nestas instruções de Paulo, os Irmãos criam que aqueles que se associavam com o mal eram passíveis da privação da comunhão, e assim, entregues a Satanás. Não para a perdição, mas, para a disciplina. Que na verdade, implicava na aceitação das normas do grupo. reunião. A santidade pode ser uma atração quando uma alma está sob o impulso próprio. Mas o poder de reunir é em graça, no exercício do amor – se quiserem, a fé atuando em amor. Se pensarmos em toda a história da Igreja de Deus através dos séculos, veremos que este é sempre o caso. O ato de juntar é o poder formativo de união, onde ela não existe. Admitamos que Cristo é reconhecido como o centro: Se houver mal, este centro pode juntar os que se separam desse mal, porém o poder de reunião é o amor (DARBY, 1980, 2). Deste processo surgiram inúmeras dissidências dentro do Movimento dos Irmãos, o que, inclusive, dificulta imensamente o mapeamento do movimento nos dias atuais. 3.8 Governo da Igreja Para os Irmãos, o motivo da ruptura da Igreja Apostólica Primitiva com a que surgiu logo nos primeiros anos da cristandade foi a institucionalização e a consequente hierarquização do corpo que então passou a ser conhecido como clerical. Separando assim, internamente os membros em alto e baixo cleros. E também separando o Corpo de Cristo entre clérigos e leigos. Para eles, esse foi o maior mal ocorrido em toda a história eclesiástica. Assim, a partir do momento em que a Igreja deixou de ser um organismo vivo e passou a ser uma Instituição esta apostatou da fé. E o que se segue, são grupos pequenos espalhados ao longo das regiões cristãs que normalmente eram tratados como hereges, mas, que mantinham a realidade da comunhão em Cristo. Mackay descreve assim o entendimento dos Irmãos acerca do governo na Igreja: O sistema clerical e leigo está tão profundamente enraizado na cristandade que qualquer sugestão de que isto é contrário aos ensinamentos da Palavra de Deus será recebido com tamanha surpresa e incredulidade por parte da maioria dos que se professam cristãos. Mas, porque isto não está nas Escrituras, isto é rejeitado pelas (nossas) assembléias. Uma das surpresas que esperam uma pessoa que faça uma primeira visita a uma reunião dos crentes segundo o padrão do Novo Testamento é a inexistência de um clérigo ordenado liderando a congregação. O pensamento comum entre as denominações é de que necessário para a congregação que aja um pastor “chamado” para servi-los. Ele será normalmente um homem treinado em um centro teológico, que foi ordenado por um bispo ou uma comissão, e que carrega um título de Reverendo ou Doutor, que posteriormente significará Doutor em Divindade ou em Teologia. Este homem será reconhecido como o pastor da igreja e irá, em troca de um valor financeiro estipulado, assumir a liderança e a responsabilidade pela pregação e visitação. Ele sozinho terá a autoridade de batizar, realizar as cerimônias de casamento, conduzir os funerais e de dispensar os elementos do serviço da comunhão. Seu mandato pode durar um tempo específico, ou até que seja descartado pelo corpo governamental da igreja. Ainda que esta pessoa seja uma figura familiar no mundo denominacional, mas é manifesta a sua ausência nas (nossas) assembléias. Por que? Simplesmente porque este tipo de indivíduo é totalmente desconhecido no Novo Testamento e para a Igreja Apostólica de então (MACKAY, 1981, 30)12. Este tema não está diretamente ligado à modernidade, pois, para os Irmãos, este erro ocorre desde o fim da “Era de ouro” da Igreja. Contudo, esta doutrina serve de parâmetro para identificar aqueles que realmente são fiéis à Palavra de Deus ou preferem acreditar em Deus, mas “viver como se Ele não existisse”. 3.9 Constatação da falta de comprometimento da sociedade européia para com o Evangelho Para concluir esta breve exposição acerca da doutrina dos Irmãos, segue-se a analise que eles faziam sobre o cotidiano da cristandade de seus dias. O envolvimento dos homens com seus negócios, diversões e problemas. A individualidade crescente. O desencantamento com as coisas sagradas. O nome cristão sendo não mais do que uma tradição cultural e não mais um comprometimento com o Evangelho. Assim como os religiosos do tempo de Jesus, que carregavam o Nome de Deus, mas, de fato, eram mais voltados a si mesmo do que verdadeiramente para o Senhor, segundo o entendimento deles. Homens podem ser muito religiosos; eles podem ser guias religiosos e professores de outros e ainda odiar o Cristo de Deus. Esta é uma grande lição para se aprender no palácio de Caifás, o sumo sacerdote. Cristo não é religiosidade; ao contrário, os religiosos mais zelosos normalmente são tristes e veementemente odeiam o Abençoado. Mas, podem dizer, “os tempos mudaram”. Religião está tão intimamente ligada ao Nome de Jesus, que para ser um homem religioso, é necessário ser um servo de Jesus. “Você não poderia mais encontrar ninguém respondendo como no palácio de Caifás.” Isto é mesmo uma realidade? Nós não podemos crer nisto por um momento. O Nome de Jesus é tão odiado hoje no meio dos cristãos como Ele foi odiado no palácio de Caifás. E aqueles que buscarem seguir a Jesus serão odiados da mesma forma. Não precisamos ir muito longe para provar isto. Jesus continua a ser rejeitado no mundo. Onde você irá ouvir o Seu Nome? Onde Ele é um tema bem vindo? Fale Dele onde você for, nas salas de visita dos ricos e elegantes, nos vagões dos trens, nos salões dos cruzeiros, nos cafés ou salões de jantar, em resumo, em qualquer lugar onde os homens freqüentam, e dirão a você, na maioria das vezes, que este tema está fora de propósito. Você pode falar de qualquer outra coisa - política, dinheiro, negócios, prazer, besteiras. Estas coisas estão sempre no propósito, em qualquer lugar; Jesus não está em nenhum lugar. Nós vemos em nossas cidades, com freqüência, ruas sendo interrompidas para a passagem de desfiles, festivais e shows, e eles nunca são molestados, reprovados e impelidos a mudarem de lugar. Mas deixe um homem nestes lugares falar de Jesus e ele será insultado ou será levado a mudar de lugar e não interferir no tráfego. Em linguagem clara, existe lugar para o diabo em qualquer lugar deste mundo, mas não existe 12 Traduzido pelo autor da versão em inglês original. lugar para o Cristo de Deus. O lema do mundo para Cristo é: “Oh! Nem sussurre Seu Nome” (MACKINTOSH, 1995, 215). Os ecos destas doutrinas ecoaram no princípio do século XX, sendo uma das bases do fundamentalismo contemporâneo. E ecoam até hoje, sem que sejam plenamente percebidos. 4. CONCLUSÃO A estruturação de considerações comparativas da formulação de Max Weber acerca do desencantamento dos valores tradicionais ocorridos em pleno século XIX são frutos de suas analises sobre o capitalismo ocidental, os tipos de dominação, a sociologia da religião. A consolidação da racionalização enquanto forma de compreensão da realidade em contraponto com as explicações religiosas, que até então eram determinantes, impedem o estabelecimento de um conjunto de regras com validade universal para todos os homens, que, a partir destas, possam orientar as suas ações. Diante deste quadro analítico, a comparação destas constatações com a reação de um grupo religioso específico que se opõe diretamente a essas mudanças e a elaboração de vasta literatura teológica com o objetivo claro de rebater as questões “modernizantes” em voga neste tempo histórico. A construção deste material promoveu a formulação de uma ortodoxia cada vez mais rígida. E assim, a consequente influência nas formulações do fundamentalismo protestante que surge nos Estados Unidos no princípio do século XX é incontestável. Portanto, o aprofundamento destas questões pode ajudar a construir o cenário que irá perdurar ao longo de todo o século passado e que ainda permanece, pois, sendo os Estados Unidos o maior “exportador” de cultura, principalmente através da sua filmografia, e sendo o país mais influente em questões econômicas e políticas. Perceber que a religião ainda é um fator determinante na construção social americana é fundamental para entender o mundo contemporâneo. E cabe a História, delinear os caminhos percorridos em seus cursos, para que possamos entender bem quem somos e não nos conformarmos com a nova era mundial sem questioná-la sabiamente. Autor: Marcelo Silva dos Santos Instituição: UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS Grau Acadêmico: GRADUANDO EM HISTÓRIA E-mail: [email protected] GP: ORTODOXIAS E FUNDAMENTALISMOS – Prof. Arnaldo Huff Jr. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, João Ferreira. Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição Revista e atualizada no Brasil AGOSTINHO. De civitate Dei, XXII, 30, 5. ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002. CARVALHO, Alonso Bezerra. Max Weber: Modernidade, ciência e educação. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. 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