1 ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO ENSINO: A TRAJETÓRIA DE UMA DISCIPLINA Maria Neusa de Oliveira1 1. Introdução: A partir do final da década de 60, todos os cursos de formação de professores Pedagogia e outras Licenciaturas (nível superior) e Cursos Normal de Magistério (nível médio) - passaram a incluir obrigatoriamente em seus currículos a disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino. Em que pese sua relevância pedagógica, esta disciplina parece relegada a um plano secundário na consideração e no interesse de muitos estudantes que, entre outros, apontam como maiores problemas a superposição de conteúdos e a falta de definição da função da disciplina. Nesse sentido, as principais acusações feitas por ex-alunos referem-se ao fato de que os programas de Estrutura centram seus conteúdos nos aspectos legais. Cumpre aqui ressaltar que essa crítica, talvez, deva-se à forma como essa disciplina foi concebida em sua origem, no contexto da reforma educacional, pós-golpe militar de 64, na qual seus programas acabaram por enfatizar o estudo da legislação do ensino (Lei 5.692/71) que, via de regra, foi ensinada, durante muito tempo, de forma acrítica e descontextualizada, como se a lei tivesse o poder de, por si só, gerar a escola que aí está e/ou de transformá-la. "Tendo em vista a atitude formalista e acrítica que predomina no desenvolvimento das programações dessa disciplina, a legislação acaba por se transformar numa matéria árida, insípida e aversiva". (Saviani, 1978:175)2. Este trabalho é parte dos resultados de uma pesquisa, que vem sendo desenvolvida pelas professoras3 de Estrutura e Funcionamento do Ensino da UESC, acerca da trajetória dessa disciplina, tomando como referência nossas próprias experiências. A preocupação com a problemática surgiu com a possibilidade de assumir nesta Universidade a referida disciplina a partir de 1996 e, especialmente, no contexto dos estudos e debates em torno da reformulação 1 2 3 Maria Neusa de Oliveira é Professora-Assistente do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Estadual de Santa Cruz -UESC (Ilhéus/BA), onde leciona Estrutura e Funcionamento do Ensino a partir de 1996. SAVIANI, D. Análise crítica da organização escolar brasileira através das leis 5.540/68 e 5.692/71. In: GARCIA, W. E. (Org.) Educação Brasileira Contemporânea: organização e funcionamento. São Paulo: McGRAW-HILL, 1978. (pp.174-194). Maria Neusa de Oliveira (que assume, no presente texto, a exclusiva responsabilidade pelas idéias aqui apresentadas) e Raimunda Assis - Professora-Assistente do Departamento de Ciências da Educação da UESC. 2 curricular do Curso de Pedagogia/UESC (1996-1997). Essas reflexões, entre outras, se referem a (re) definição dos programas de cursos: tendências e desafios enfrentados na construção de entendimentos acerca do papel/função do Pedagogo no processo de organização do trabalho escolar, face às exigências da conjuntura atual. Os resultados delinearam esse contexto e apontaram para as múltiplas relações e condições de mudança que levam à redefinição de tais programas - conteúdos e objetivos que marcam as tendências atuais e que resultaram inclusive numa "nova" denominação: "Política Educacional e Estrutura e Funcionamento do Ensino". 2. Referenciais Teórico-Metodológicos Esse trabalho insere-se numa nova área de estudos e pesquisas, dentro da chamada “nova sociologia da educação” (Young) que é a “história das disciplinas escolares”4. Tem como objetivo abordar a história da disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino desde a sua criação (1969) até os dias atuais, procurando privilegiar a prática e o conteúdo no contexto da formação do educador, dentro de uma perspectiva sócio-histórica (Young), na qual o fenômeno analisado é inserido no contexto econômico, político e social, sem contudo desconsiderar as relações entre fatores internos. De tal forma, conforme sugere Goodson (1983, apud Santos, 1990: 25)5, que “mudanças a nível macro possam ser ativamente reinterpretadas no nível micro”. Para isso, ele sugere um modelo analítico baseado nas seguintes hipóteses: (1) as disciplinas não são "entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições"; (2) estas mudam de objetivos utilitários e pedagógicos até se consolidarem como disciplinas abstratas e acadêmicas, diretamente vinculadas às Universidades; (3) este processo deve ser analisado "em termos de conflito entre matérias em relação a status, recursos e territórios" (Godson (1995)6. Isso tem em vista a possibilidade de compreender o desenvolvimento dessa disciplina como resultante das “contradições dentro do próprio campo de estudos, o qual reflete e mediatiza diferentes tendências do campo educacional, relacionadas aos conflitos, contradições e mudanças que ocorrem na sociedade” (Santos, 1990:27). A adoção dessa postura deve refletir “a idéia de que as mudanças em uma disciplina, ou conteúdo escolar, são condicionadas por fatores internos e externos, que devem ser analisados dentro de uma perspectiva sócio-histórica” (Santos, 1990: 27). 4 Disciplinas escolares é aqui compreendida como "uma forma histórica particular de sistematizar conhecimento e de ir além do senso e da experiência comuns" (Young,1989). 5 SANTOS, L. L. de C. P. História das disciplinas escolares: perspectivas de análises, Teoria & Educação, (2): 21-29, Porto Alegre, 1990. 3 2.1. Procedimentos utilizados na coleta e análise dos dados. A questão teórica central da análise é o processo de mudanças na disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino e seus condicionamentos internos e externos. Para tanto, realizamos uma análise da origem, da trajetória e das tendências atuais da disciplina tomando como fenômeno concreto essas mudanças ocorridas, enquanto resultantes da "relação entre as relações de mudança – aquelas atividades e estratégias internas dos agentes envolvidos no campo de estudo – da disciplina e as condições de mudança – mudanças nas condições econômicas e sociais de escolarização que permitem, inibem ou possibilitam mudanças no processo de ensino e no conteúdo do conhecimento escolar” (Ball, apud Santos, 1990: 25- 26). A análise da origem da disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino (Parecer CFE nº 252/69), identifica o lugar ocupado pela disciplina no contexto geral da história da educação e da formação de professores, a partir das reformas educacionais pós-golpe 64. Procurando um melhor entendimento da trajetória dessa disciplina, buscamos estabelecer uma certa periodização cujos critérios derivam da história da educação e da formação dos educadores e suas ligações com o contexto econômico, político, social e cultural, tomando como referência as opções de mudanças dos conteúdos e objetivos da disciplina. Ênfase especial é dada às tendências atuais, que apresenta a disciplina (anos 90) face às mudanças estruturais - globalização, reestruturação produtiva e neoliberalismo; o redirecionamento das políticas educacionais; os movimentos dos profissionais da educação; e a produção intelectual em torno dessa temática. Essas tendências e perspectivas suscitaram algumas questões que direcionaram a construção do presente texto: qual o lugar da disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino, e seu papel enquanto componente curricular dos cursos de formação de professores, instituídos a partir do final da década de 60; quais as mudanças ocorridas nos conteúdos, nos objetivos e na prática dessa disciplina? E quais os elementos internos e externos que interferem nesse processo de mudança? No processo de investigação empírica, tomamos como fontes de análise: os documentos relativos à organização administrativa e estrutura curricular do curso de Pedagogia (pareceres, relatórios, projetos de cursos); os programas e ementas da disciplina 6 GODSON, I. F. Currículo: teoria e História. Petrópolis: Vozes, 1995. 4 Estrutura e Funcionamento do Ensino da UESC (e de outras Universidades); memorial dos professores da UESC e de outras Universidades sobre suas experiências profissionais com a disciplina. (Essa análise será concluída em estudo posterior dada a dificuldade de se contactar com alguns desses professores por já serem aposentados). 3. Origem da disciplina: A origem da disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino (Parecer CFE nº 252/69), se insere no quadro mais amplo da política econômica, pós-golpe militar de 64, marcada pela dominação do capitalismo internacional, que passou também a nortear a educação brasileira visando adequá-la ao modelo de desenvolvimento econômico. Tal dominação incluía além da repressão, um modelo de aculturação imposto pelo imperialismo - a direção pelo consenso que vinha sendo articulado na área educacional pelos Acordos MEC/USAID que delinearam a Reforma do Ensino Superior (Lei nº 5.540/68) e, posteriormente, a Reforma do Ensino de 1º e 2º graus (Lei nº 5.692/71) que deveriam atender às necessidades de mão-de-obra qualificada do setor econômico de acordo como a concepção economicista da educação: racionalidade, eficiência e produtividade. No contexto pós-golpe de 1964, "A administração pública e privada, em diferentes setores, submetia-se às exigências do projeto de desenvolvimento nacional visado pela ditadura militar. Consequentemente, no âmbito do curso de Pedagogia, ganhava espaço a idéia de que o técnico em Educação tornava-se um profissional indispensável à realização da educação como fator de desenvolvimento". (Silva, 1999:43)7 Nessa ótica economicista de produtividade, foram reformulados os cursos de Pedagogia8 (pelo Parecer CFE nº 252/699) destinados à preparação dos "especialistas em educação", que deveriam, ao realizarem tarefas diversificadas, ser competentes, na ótica da divisão do trabalho na escola, para exigir junto aos docentes o cumprimento das tarefas e normas das reformas educativas baixadas pelo Estado ditatorial. "Daí a ênfase na questão das 7 SILVA, C. S. B. da. Curso de Pedagogia na Brasil: História e Identidade. São Paulo: Autores Associados, 1999. 8 Os cursos de Pedagogia destinavam-se também à formação de professores para o ensino normal e mediante determinadas condições lecionar nas séries iniciais do 1º grau. 9 Esse parecer de autoria de Valnir Chagas, juntou-se à Resolução CFE nº 2/69 que fixou os mínimos de conteúdo e duração do curso de Pedagogia, nortearam a sua organização até a aprovação da nova LDB - Lei nº 9.394/96. Apesar dos limites impostos pela legislação, isso não impediu que os cursos de Pedagogia, em 5 habilitações no Curso de Pedagogia, habilitações que, supõe-se, vão formar pessoas preparadas para assumir uma prática pedagógica afinada com esses princípios". (Coelho (1987:10)10. Naquele momento, confirma Gadotti (1980:55)11 "o pedagogo tornou-se mais um 'policial da educação' do que um homem formado para criar a educação". Por influência também dessa concepção tecnicista da formação do pedagogo, foi implantada, por esse mesmo Parecer, no curso de Pedagogia, a disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino, e posteriormente nos cursos de Licenciaturas, (pelo Parecer 672/69), que tinha como "objetivo difundir, junto aos futuros professores, a política educacional que se vinha elaborando nas instâncias governamentais" (Mendonça & Lellis, 1988: 123)12, ditada pelo capitalismo internacional. Mas como lembra essas autoras é com a aprovação da Lei nº 5.692/71 e, em decorrência das mudanças introduzidas na estrutura dos graus de ensino, que a disciplina passa a intitular-se "Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º Graus". A partir de então todos os cursos de formação de professores - Pedagogia e outras Licenciaturas (nível superior) e Cursos Normal de Magistério (nível médio) - passaram a incluir obrigatoriamente em seus currículos a referida disciplina. Nos cursos de Pedagogia, essa disciplina compõe o rol das matérias da "parte diversificada" (juntamente com outras, que variam conforme as habilitações), tais como: Princípios e Métodos; Currículos e Programas, Medidas Educacionais, Estatística Aplicada à Educação, Orientação Vocacional, Metodologias de Ensino, Práticas de Ensino, Legislação de Ensino. Nos cursos de Licenciaturas (Parecer nº 672/69), Estrutura e Funcionamento do Ensino de 2º Grau, em conjunto com Didática, Psicologia da Educação e Prática de Ensino das matérias objeto de habilitação profissional, sob a forma de estágio supervisionado, constituem os mínimos de conteúdos, a serem ministrados em, pelo menos, um oitavo das horas de trabalho fixadas, como duração mínima, para cada curso de Licenciatura. 4. Reconstituição da trajetória: diferentes instituições de ensino superior, sofressem modificações em sua estrutura, na tentativa de amenizar os efeitos da sua "concepção tecnicista". 10 COELHO, I. M. Curso de Pedagogia: a busca da identidade, In: Formação do Educador: a busca da identidade do Curso de Pedagogia. Brasília, INEP, Série Encontros e Debates, 1987. 11 GADOTTI, M. Educação e Poder. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1980. 12 MENDONÇA, Ana Waleska P. C. e LELLIS, Isabel Alice O. Da estrutura do ensino à educação brasileira: reflexões sobre uma prática. In: Educação e Sociedade. (29):122-129, São Paulo, Cortêz, julho de 1988. 6 Ao se reconstituir a trajetória da disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino, tendo por referência a própria história da educação e da formação dos profissionais da educação, percebe-se que, em diferentes momentos, o ensino dessa disciplina sofreu em seus conteúdos e objetivos influência do contexto social, político e econômico. No entanto essa reconstituição histórica do conteúdo não é linear, se dá num "entremeado" social, político, econômico e cultural onde se confrontam com a teoria e prática pedagógica, constituindo-se assim em propostas de programas que tendem a responder, em suas linhas gerais, às opções (teóricas e político-pedagógica) dos professores, conforme as tendências das políticas governamentais, dos movimentos dos profissionais da educação e da produção intelectual na área. É nesse sentido, que se observa, após o processo de abertura política, que a disciplina passa de uma abordagem tecnicista - "pela convivência da teoria do capital humano e a teoria funcionalista" - com conteúdos que enfatizam a lei com o mero objetivo de impor a reforma educacional, para uma abordagem crítico-reprodutivista e desta para uma abordagem histórico-crítica. Conforme análise dos procedimentos adotados por seus professores, a partir do levantamento (das alterações) dos conteúdos, dos objetivos e da prática entre o ensino de estrutura e o contexto, constatamos que os cursos na UESC, nestes momentos apresentam uma coerência com essa evolução já constatada em trabalho anteriormente realizado na USP por Mendonça & Lellis (1988). Essa análise será concluída após um estudo mais rigoroso dos planos de cursos e do memorial dos professores: sua trajetória teórico-prática e os pressupostos que apontam nessa direção em relação ao contexto social, político e econômico e a produção intelectual, nos diferentes momentos. No decorrer da análise da trajetória surgiram duas dificuldades: a obtenção das programações desde a introdução da disciplina (em 1969) no curso de Pedagogia (criado na ex-FAFI, em 1961) e de se contactar com alguns desses professores por já serem aposentados, como já foi dito anteriormente. A segunda metade dos anos 70 é marcada pelo discurso crítico-reprodutivista sobre o papel social da educação. No ensino de Estrutura e Funcionamento do Ensino, este período caracteriza-se pela crítica à reforma do ensino - a partir do seu eixo principal - a questão do fracasso da profissionalização do ensino de 2º grau e da função/papel da educação e do educador na reprodução da dominação de classes. Nesta época define-se por influência de 7 Althusser (1979)13; Baudelot & Establet (1971)14; Bourdieu & Passeron (1975)15; Bowles & Gintis (1976)16, uma vasta produção teórica nessa perspectiva, proveniente dos cursos de PósGraduação, que passou a ser obrigatória nos cursos de Estrutura tais como: Freitag (1985),17 Rossi (1978),18 Cunha (1975)19 e Nosella (1980)20 só para citar alguns que se tornaram clássicos na literatura educacional brasileira. Mas, como reconhece Gadotti (1987:74)21 "A análise crítica da escola capitalista, ao explicitar o sentido conservador e reprodutor dessa educação, está reconhecendo o valor e as possibilidades de uma escola socialista". Nesse sentido o papel da educação e do professor passa a ser questionado como uma atividade que pode ser transformadora. Inspirações teóricas aparecem ou reaparecem como no caso de Paulo Freire. A leitura de Gramsci começa a ser incorporada no cenário educacional brasileiro pelos educadores progressistas. E começa-se a privilegiar a educação e a escola como um espaço de luta, de possibilidades de construção de uma "contra hegemonia". "Isto significa atribuir à escola, instituição estratégica da sociedade civil, um papel dominante na difusão da ideologia e na constituição de um senso comum unificador, indispensável para assegurar a coesão do bloco histórico, e também na difusão de contra-ideologias destinadas a solapar essa mesma coesão" (Freitag, 1984:126). Nas programações da disciplina em estudo, até hoje as categorias gramscianas, tais como: bloco histórico, hegemonia, conceito de Estado constituem referenciais de análise da realidade educacional, para a maioria de seus professores. Isso fez surgir uma luz na inércia que parecia imergir a educação e o educador, sem contudo perder o caráter de denúncias da dominação. 13 ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelho Ideológico de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983 14 Baudelot C. & Establet R. L'école capitaliste en France. Paris: Maspero, 1971. 15 BOURDIEU, P. e PASSERRON, J. C. A Reprodução - Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 16 BOWLES, S. & GINTIS, H. Schooling in capitalist América: educational reform and the contradictions of economic life. Nova York: Basic, 1976. 17 FREITAG, B. Escola, Estado e sociedade. São Paulo: Moraes, 1984 (5ª ed.) 18 ROSSI, W. G. Capitalismo e educação. São Paulo: Cortez, 1978. 19 CUNHA, L. A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. 20 NOSELLA, M. de L. D. As belas mentiras. São Paulo: Moraes, 1980. 21 GADOTTI, M. Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Ática, 1987. 8 O contexto histórico dos anos 80, nos mostra que a crise econômica que lançou seus primeiros sinais em 73, atinge em cheio a sociedade brasileira. Seus reflexos na educação, fazem-se sentir na queda do nível de ensino e das altas taxas de evasão e repetência. Nesse espaço repleto de ambigüidades e contradições os professores de Estrutura iriam explicar os problemas da seletividade social e econômica e suas possíveis soluções. Nesse período, respondendo ao movimento de redemocratização da sociedade brasileira, (pós-ditadura militar) a democratização da educação torna-se uma das propostas mais requisitadas no debate educacional. Evidencia-se no ensino da Estrutura que o problema da democratização do ensino passa a ser incorporado ao eixo central dos programas da disciplina - a relação escola e sociedade. E, neste particular, são considerados tanto os fatores externos quanto os fatores internos da escola (sua estrutura e funcionamento), tendo em vista a superação do fracasso educacional. Nesse contexto tornaram-se referenciais para os estudos da disciplina os textos de autores como: Melo (1979)22, Saviani (1980; 1987)23, Gatti (1989)24 e Rodrigues (1985)25. A forma de engajamento do professor nesse processo de democratização da escola também se reflete nos programas da disciplina. Temas tais como: "Da competência técnica ao compromisso político"26, ou "O compromisso como horizonte da competência técnica"27 "magistério como categoria profissional", "professor como intelectual orgânico", passaram a se constituir em leituras obrigatórias, conforme as referências bibliográficas constantes nos planos dos cursos. 5. Tendências atuais da Estrutura e Funcionamento do Ensino no contexto das políticas e das reformas educacionais atuais. 22 MELO, G. N. de. Fatores intra-escolares como mecanismos de seletividade no ensino de 1º grau. In: Educação e Sociedade. Cortez/CEDES, N. 2, jan./1979, pp. 70-78. 23 SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortêz/Autores Associados, 1980. _______. Escola e Democracia. São Paulo: Cortêz/Autores Associados, 1987. 24 GATTI, B. Democratização do Ensino: uma reflexão sobre a realidade atual. Revista Em Aberto. Brasília: INEP 8 (44): 3-8, out./dez. 1989. 25 RODRIGUES. N. (1985). Por uma nova escola. São Paulo: Cortez, 1985. 26 MELO, G. N. de. Magistério de 1º grau: da competência técnica ao compromisso político. São Paulo: Cortêz, 1986 e SAVIANI, D. Competência política e competência técnica. Educação e Sociedade. nº 15, 1983, pp. 111-169. 27 NOSELLA, P. O compromisso como horizonte da competência técnica. Educação e Sociedade. nº 14 1983. 9 Dos anos 90 até os dias atuais, os debates sobre a educação, que tiveram início nos anos 80, ressurgem com todo vigor trazendo à tona os diferentes sujeitos (sindicatos, associações e entidades) e as diferentes propostas de mudanças em pauta. De um lado, o projeto educacional neoliberal do governo FHC que tenta sua hegemonia à custa da exclusão, do desemprego e da miséria da maioria da sua população; e por outro, o projeto dos educadores e dos movimentos sociais organizados que tenta resgatar o esforço histórico pela democratização da educação e da sociedade. As disputas pela legitimidade de tais projetos tiveram como pontos principais de convergência/divergência: a CF/88, a nova LDB/96 e mais recentemente o PNE. As CBEs, os CONEDs, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, a ANDES, a ANFOPE são alguns dos espaços ou entidades representativas nessa construção democratizadora. A partir desses e outros processos observa-se que as disputas de interesses (polêmicas/polarização) seguem seus rumos e perpassam as propostas de políticas e reformas governamentais e as práticas discursivas dos professores de estrutura (e outros) na sala de aula. Nesta ordem de considerações, seguindo a sua trajetória de ser um espaço por excelência, de discussão sobre a realidade brasileira em cada momento histórico - já assinalado por Mendonça & Lellis - a disciplina Estrutura segue seu curso, nesse momento em que vivemos, inscrevendo-se na perspectiva de compreensão dessa trama das relações sociais e dos embates que se travam no plano estrutural e conjuntural. Trata-se de entender a educação no contexto da reestruturação produtiva, da globalização excludente e do neoliberalismo que lhe dá sustentação. 6. Tendências atuais da Estrutura e Funcionamento do Ensino no Curso de Pedagogia/UESC Foi nesse contexto de discussões, reflexões e produções teóricas críticas que a formação de professores aponta com um dos temas centrais, resultando num amplo movimento nacional em torno da proposta de reformulação dos cursos de Pedagogia (e outras licenciaturas) visando à ruptura com a figura do pedagogo/especialista. Essas discussões se deram através da CONARFE (Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do Educador) o que a partir de 1992 passa a constituir a atual ANFOPE. As discussões da reformulação do curso de Pedagogia da UESC, segundo os novos paradigmas curriculares, embora remontem a 1990, intensificaram-se a partir de setembro de 1996. É curiosa a constatação de que as tendências de mudanças anunciadas para os cursos de 10 Pedagogia desde a década de 80, já se observava antes da reformulação oficial do Curso na UESC (1999), sendo patente as modificações em sua estrutura bem como nos programas e nas ementas das disciplinas, a exemplo da Estrutura, conforme as apropriações feitas pelos professores em torno desse ideal de mudanças: sua postura teórica e político-pedagógica. Esse período coincide com as nossas atividades como professora da disciplina na UESC. Ao chegarmos, em 1996, logo percebemos que embora todos os professores concordassem que a "Estrutura é uma disciplina importante na formação do professor", poucos pareciam se dar conta da insuficiência de estudos a respeito da delimitação da identidade desta disciplina, principalmente nos cursos de Pedagogia - onde nos parece apontar uma configuração de conteúdos muito próximos ao campo de outras disciplinas tais como: a História da Educação, Sociologia da Educação, Didática e Legislação. No caso da UESC, os conteúdos abordados na própria disciplina apresentam certas ambigüidades a considerar pela intensidade da carga horária a ela atribuída no curso de Pedagogia (até 1998): são 240 horas distribuídas em quatro períodos letivos, na seqüência a partir do 3º semestre do curso: Estrutura e Funcionamento do Ensino 1º grau I (60 horas), Estrutura e Funcionamento do Ensino 1º grau II (60 horas), Estrutura e Funcionamento do Ensino 2º grau I (60 horas) e Estrutura e Funcionamento do Ensino 2º grau II (60 horas). Essas e outras constatações preliminares vieram à tona com mais precisão, por ocasião da reformulação curricular do Curso de Pedagogia da UESC28 (1996-1997), quando deveríamos proceder a uma (re) definição dos programas de cursos: (objetivos, conteúdo, metodologia, bibliografia). Nesse processo questionávamos sobre o nosso trabalho com a disciplina e que novo tratamento deveríamos lhes dar, bem como a concepção e as possíveis contribuições da disciplina para a formação do professor/pedagogo no processo de organização do trabalho escolar, face às exigências da conjuntura atual: desafios e limites. "As novas bases materiais que caracterizam a produção (reestruturação produtiva), a economia (globalização) e a política (neoliberal), trazem profundas implicações para a educação neste final de século, uma vez que cada estágio de desenvolvimento das forças produtivas gesta um projeto 28 Uma nova proposta curricular para nortear o Curso de Pedagogia da UESC foi aprovada pelo CONSEPE em 1997, dando-se a sua implantação a partir do primeiro período letivo de 1999. A proposta curricular da UESC, extingue as "tradicionais habilitações" de Orientação Educacional e Supervisão Escolar, privilegiando-se a formação do "professor pedagogo generalista" - para o exercício da docência na Educação Infantil; no Ensino Fundamental: 1ª a 4ª séries; e Curso Normal (matérias pedagógicas). O Curso também passou a oferecer as seguintes "áreas de concentração" (300 horas cada) em caráter opcional: Psicopedagogia; Educação Especial; Gestão Educacional; Educação de Jovens e Adultos e Trabalho, Educação e Pedagogia. 11 pedagógico que corresponde às suas demandas de formação de intelectuais, tanto dirigentes quanto trabalhadores" Kuenzer (texto mimeo)29. Considera-se ainda que essas mudanças (fatores externos) que ocorrem neste final de século, na economia, nas relações sociais e culturais e no mundo do trabalho, alteram entre outras coisas a organização da escola (sua função e estrutura) e o perfil do trabalhador/educador. Nos cursos de Pedagogia, essas mudanças orientam-se sobretudo pela ruptura com a figura do "pedagogo/especialista" para o "pedagogo generalista", dando-se ênfase na formação de profissionais da educação que tivesse a docência como base. (ANFOPE). No entanto vale lembrar, que nesse período entrava em curso o redirecionamento das políticas educacionais face às reformas estruturais de ajuste neoliberal, dentro das exigências impostas pelos organismos internacionais - FMI, Banco Mundial - nos limites da nova ordem econômica mundial, e que resultou na mudança de toda institucionalidade da educação no país. Conforme disse o Ministro Paulo Renato (1996) "toda a institucionalidade da educação no país mudou nos últimos dois anos". Dessa forma, evidencia-se que uma das mais arraigadas concepções presentes na história do ensino de estrutura ainda continua presente em seus programas - a do estudo da legislação da educação. Nesse contexto, a nova LDB - eixo central dessa disciplina - é o que podemos chamar de institucionalização de uma síntese dos interesses sociais que lutaram e continuam a lutar pela hegemonia na direção das mudanças nos sistemas escolares e nas escolas. Enfim, seguindo essa disputa de projetos, uma gama de produções editoriais colocou em pauta temáticas como, neoliberalismo, globalização, qualidade total, exclusão, desemprego e outros. Autores como Pablo Gentili, Gaudêncio Frigotto, Emir Sáder, Tomaz Tadeu da Silva, Lucília Machado, José Eustáquio Romão são alguns, entre muitos outros, que têm se pautado numa leitura crítica dessa temática e constam na nossa referência bibliográfica. Esses fatos vivenciados instigaram-nos, como professora da disciplina, a um "novo" olhar sobre o papel da educação, para além dos limites definidos nas políticas e reformas educacionais ditadas pelo Banco Mundial. É nesse contexto que se dá o rompimento com o 29 KUENZER, A. Z. (Org.) A formação dos profissionais da educação: proposta de diretrizes curriculares nacionais. (mimeo) 12 programa em vigor na tentativa de traduzir esses debates atuais, em conteúdos centrais nos programas da disciplina. Entre estas e outras implicações, tornou-se cada vez mais premente uma nova configuração da disciplina no curso de Pedagogia (e outras Licenciaturas) que culminou numa "nova" denominação: "Política Educacional e Estrutura do Ensino I e II" e, na redução da carga horária de 240 para 120 horas, compreendendo o 2º e o 3º períodos letivos do curso. Nesse sentido, observando a estrutura curricular dos cursos de Pedagogia em outras Universidades3031 percebemos existir uma certa tendência nessa mudança da denominação da disciplina, talvez na tentativa de livrá-la dessa carga histórica de "matéria chata" que estuda as leis educacionais. Mas por outro, parece haver um certo sentido na tentativa de aproximá-la das disciplinas compreendidas como "fundamentos da educação". É também nesse sentido que a Política Educacional (até então ausente, pelo menos de forma explícita, nos currículos dos cursos de formação de profissionais da educação) passa a ser o eixo central da disciplina, sem contudo perder a ênfase na estrutura e na organização da educação nacional, que não dispensa a legislação como fio condutor e enquanto institucionalização jurídica das políticas oficiais. Algumas considerações para finalizar: Conforme o objetivo a que se propôs esse trabalho, dos muitos desafios da vivência dessa transição, enquanto professora de Estrutura e dada a especificidade da função de tal disciplina, destaca-se a exigência de se fazer a leitura dos diferentes projetos educacionais que se desenvolvem nas relações sociais e produtivas de cada época e seus respectivos fundamentos, e traduzir esses desafios e essas reflexões em termos de conteúdos que melhor contribuam para a articulação do desenvolvimento e consolidação de relações verdadeiramente democráticas. Tais condições leva ao entendimento de que a educação constitui-se uma prática social que traduz objetivos e interesses, sendo um fenômeno social intrínseco ao contexto sóciopolítico e econômico. Nesta perspectiva, a disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino, desde a sua criação, é portadora de uma história que se relaciona às formas específicas de organização (estrutural) da sociedade (fatores externos) e dos atores (professores/alunos) que a (re)constróem no tempo e espaço escolares (fatores internos). 30 USP/SP - Política Educacional e Organização da Educação Básica I e II; UNICAMPI - Política Educacional e Estrutura e Funcionamento da Educação Básica I e II. 13 Bibliografia: ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelho Ideológico de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983 BOURDIEU, P. e PASSERRON, J. C. A Reprodução - Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. BOWLES, S. & GINTIS, H. 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