ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTORES E PESCADORES DO ASSENTAMENTO AGROEXTRATIVISTA BOA ESPERANÇA DA ILHA DO MUTUM - ASPABIM E A LUTA PARA CONSTRUÇÃO DE UMA TERRITORIALIDADE ESPECÍFICA NO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ Sônia Maria Pereira do Amaral1 RESUMO No arquipélago do Marajó, vivemos em um lugar de pertencimento de povos e comunidades tradicionais; entretanto, ainda são poucos os estudos que identificamos e/ou percebemos que reconhecem os povos e comunidades desta região enquanto agentes sociais. Se vivemos na Amazônia e fazemos parte de uma instituição que discute, pesquisa e trabalha nesta região, nosso papel de pesquisadores é de grande importância no desvelamento das realidades das territorialidades específicas que a compõem; nesse sentido o objetivo deste trabalho é analisar por que e como a antiga comunidade Boa Esperança, atual Assentamento Agroextrativista Boa Esperança da Ilha do Mutum no município de Curralinho, Marajó, Pará, organizou-se em associação. A partir de uma metodologia que se utiliza de instrumentos da Antropologia o artigo etnografa de que maneira os assentados chegaram a essas terras, o que produzem e que direitos e/ou benefícios acreditam ter recebidos a partir da sua organização em associação. A base teórica articula-se aos estudos de Almeida (2008, 2004 e 2000); Aramburu (2003); Duprat (2007); Farias Júnior (2009) e Vianna (2008), dentre outros. As análises indicam que a comunidade assentada, não diferente de outras realidades brasileiras de povos e comunidades tradicionais, ainda vive a mercê das políticas públicas; entretanto, segundo eles os efeitos da organização já lhes trouxe a garantia de alguns direitos, dentre eles o de receber os benefícios sociais em vigor. Todos os interlocutores da pesquisa afirmaram que a partir da ASPABIN houve melhoria na vida do povo e da comunidade, embora afirmem que a natureza sempre lhes proporcionou condições de sobrevivência, entretanto, necessitam das políticas de direitos referentes às suas territorialidades uma vez que a terra ocupada, não é apenas física, mas identitária e carrega consigo conhecimentos, saberes que serão compreendidos e reconhecidos a medida que forem analisados a luz de suas crenças e práticas culturais. Palavras-Chave: Comunidades. Povos tradicionais. Direitos. Territorialidade. Marajó. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará – PPGA/UFPA. Professora do Campus Universitário do Marajó – Breves. INTRODUÇÃO No arquipélago do Marajó, vivemos em um lugar de pertencimento de povos e comunidades tradicionais2; entretanto, ainda são poucos os estudos que identificamos e/ou percebemos que reconhecem os povos e comunidades desta região enquanto agentes sociais, inserindo-os nos debates dos direitos que se acirraram a partir da Constituição Federal (CF3) de 1988 quando se asseverou o Brasil como um Estado pluriétnico, e da Convenção 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho (OIT4) que reconhece direitos específicos; ou seja, as discussões referentes aos direitos dos povos e comunidades tradicionais vêm sendo pauta nas últimas décadas nos debates políticos, nas pesquisas acadêmicas, em especial pela Antropologia. Se vivemos na Amazônia e fazemos parte de uma instituição que discute, pesquisa e trabalha nesta região, nosso papel de pesquisadores é de grande importância no desvelamento das realidades das territorialidades específicas que a compõem, nesse sentido faz mister compreendê-la e só teremos tal entendimento se partirmos para o reconhecimento e a compreensão dos povos e comunidades tradicionais que aqui habitam, e se estamos em um século em que as reivindicações por direitos acirraram-se – sejam os direitos de gêneros, identitários, territoriais,...), devemos nos predispor a produzir conhecimentos que motivem os povos que ainda encontram-se invisibilizados a sair desta condição e lutar também por seus direitos. Nesse sentido é que apresentamos este ensaio sobre a comunidade Boa Esperança na Ilha do Mutum no arquipélago do Marajó, sua constituição e como se organizou juridicamente a fim de garantir o direito de viver a sua territorialidade5. Para chegar ao nosso objeto de pesquisa, primeiramente fizemos um levantamento de associações e assentamentos que existem nas proximidades da cidade de Breves no Pará onde estamos localizados, para então, de acordo com as condições de 2 Art. 3º. Decreto 6.040/2007, I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. 3 No artigo 215, 216 (I e II), a Constituição determina que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais. E como sinais distintivos da identidade dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira, inclui, dentre outros, suas formas de expressão e seus modos de criar, fazer e viver (DUPRAT, 2007, p.20). 4 A convenção 169, da OIT, reconhece, ao lado dos povos indígenas, outros tantos grupos cujas condições sociais, econômicas e culturais os distingu/em/ de outros setores da coletividade nacional, arrolando, para todos eles, um rol de direitos específicos (DUPRAT, 2007, p.21). 5 A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força (ALMEIDA, 2004, p. 10). deslocamentos, traslados e conhecimento de pessoas que pudessem nos auxiliar, nos receber e conversar conosco sobre seu cotidiano e a comunidade que fazem parte, definir nosso objeto de estudo. Antes, porém, é preciso enfatizar que este trabalho originou-se a partir de uma disciplina denominada “comunidades e povos tradicionais”, atividade curricular do Doutorado em Antropologia do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará - PPGA, que nos envolveu e nos inquietou para a presente pesquisa, uma vez que é preciso reconhecer no arquipélago do Marajó as territorialidades específicas enquanto comunidades tradicionais que vivem em “terras tradicionalmente ocupadas”. As Terras tradicionalmente ocupadas6 por produtores e pescadores que nos propomos a estudar, com o propósito de analisar por que e como esta comunidade organizou-se em associação, localiza-se no rio Guajará, especificamente na Ilha do Mutum, no município de Curralinho, Marajó - Pará. Após a escolha da referida comunidade7, entramos em contato com o presidente da Associação com o qual iniciamos a nossa relação de pesquisa. A realização desta pesquisa pautou-se nos princípios de uma pesquisa etnográfica com o envolvimento de 04 (quatro) moradores da comunidade, sendo o primeiro o presidente da ASPABIN. Este senhor faz parte de uma das famílias que há mais tempo mora na localidade. É o penúltimo filho de nove, nasceu na comunidade e sempre fez parte dela, mesmo distanciando-se em alguns momentos, mantém a comunidade como seu lugar de residência fixa, é onde trabalha e de onde retira os recursos financeiros para manter sua família, além de está desde 2006 na condição de articulador entre a associação e os agentes externos. A partir do contato inicial tivemos a possibilidade de conhecer a Ilha do Mutum, conversar com alguns de seus moradores e realizar nosso trabalho de campo. Nosso diálogo ampliou-se com mais três interlocutores, sendo dois irmãos que fazem parte não só da família, mas da história desta comunidade e uma moradora, casada com o presidente da associação. A escolha dos interlocutores se deu pela idade e 6 Segundo Almeida, as Terras tradicionalmente ocupadas expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza. Não obstante suas diferentes formações históricas e suas variações regionais, elas foram instituídas no texto constitucional de 1988 e reafirmadas nos dispositivos infraconstitucionais, quais sejam, constituições estaduais, legislações municipais e convênios internacionais (ALMEIDA, 2008, p.25-26). 7 Para a categoria “Comunidade”, utilizaremos os estudos de Bauman (2003), para quem “À categoria „comunidade‟ se atribuem os primeiros predicados referentes à pressuposição da presença de um determinado tipo de laço social (e de juízos de valor) em função de localização, procedência e convívio comunal”. pelo envolvimento político com a comunidade. O irmão mais velho, este acompanhou seu pai desde a sua chegada à ilha, hoje aposentado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Curralinho; segundo ele, atualmente não trabalha regularmente como os demais irmãos, mas mantém sua residência fixa na ilha e diz que vive sozinho por opção e não ter coragem de sair de suas terras para morar na cidade. Visita a família por poucos dias e retorna, já que é neste lugar que encontram-se seus mais sete irmãos. Nosso outro interlocutor é o 4º irmão desta família; este senhor também está aposentado pelo Sindicato Rural de Curralinho, entretanto, mantém a sua família na ilha (esposa, filhos e netos), se autodenominam pescadores de camarão, produtores de açaí e pelas suas informações por meio da entrevista soubemos por ele que é o único na região que ainda não deixou de plantar arroz, atividade que preserva desde que morava com seus pais; não tem grande produção, entretanto, produz uma tonelada a cada ano. Para a coleta de dados utilizamos como instrumento entrevistas semiestruturadas realizadas nas residências dos nossos interlocutores. Com o presidente da associação, a primeira entrevista aconteceu na cidade de Breves, na sua segunda residência, onde encontrava-se presente sua esposa que também é associada da ASPABIM. As demais entrevistas todas foram realizadas na Ilha do Mutum nas residências dos interlocutores com a presença de vários irmãos, esposas, filhos e netos dos entrevistados. Todas as imagens e documentos foram devidamente autorizados por eles. As informações coletadas foram sobre como chegaram à ilha do Mutum, como e por que resolveram organizar-se em associação. As bases teóricas encontram-se assentadas nos estudos de Almeida (2008, 2004 e 2000); Aramburu (2003); Duprat (2007); Diegues (2000); Farias Júnior (2009); Vianna (2008), dentre outros. Para chegar ao nosso campo de pesquisa nos deslocamos da cidade de Breves em uma lancha motor (embarcação que faz viagem diária Curralinho-BrevesCurralinho) até uma comunidade do município de Curralinho numa distância de aproximadamente uma hora e meia de viagem8, depois continuamos viagem por aproximadamente meia hora em uma pequena canoa9 até a Ilha do Mutum. A comunidade do assentamento agroextrativista Boa Esperança localiza-se no município de Curralinho entre outros dois assentamentos, o do Sapateiro e o do 8 Aqui no Marajó como somos movidos pelas as águas, contamos as distâncias em horas, dificilmente alguém fala em quilômetros. 9 Embarcação feita em uma só peça, comprida impelida a remo ou por motor (BORBA, 2011). Jupatituba no mesmo município. É um espaço onde as casas ficam relativamente próximas umas das outras, precisando de canoas ou barcos para chegar a elas. Não localizamos comércios de varejos, apenas algumas casas à beira dos rios com placas anunciando a comercialização de combustível. Os moradores informaram que as compras de alimentos, utensílios domésticos e para o trabalho são feitas na cidade de Breves10. A educação formal é garantida pelo município de Curralinho11 que disponibiliza nas proximidades 2 (duas) escolas: 1 (uma) que oferta do 1º ao 5º ano e a outra até o 9º ano do ensino fundamental. O presente ensaio está organizado em quatro seções. A primeira trata de como os moradores chegaram a essas terras e as relações estabelecidas entre eles – fregueses e patrão. Apresenta a organização familiar, a economia de subsistência e as estratégias de vida após a saída da figura do patrão. A segunda seção discute a criação de associações, a organização política da comunidade a partir da presença de agentes externos que ameaçavam tomar suas terras. A terceira seção trata dos benefícios e/ou direitos adquiridos, conquistados ou mesmo reconhecidos como resultado da organização associativa e do projeto de assentamento agroextrativista implantado na localidade e por fim, apresentamos nossas considerações com as análises da realidade empiricamente observada. I - AS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS Segundo nossos interlocutores, moradores do Assentamento Agro Extrativista Boa Esperança, as terras (recurso natural), ocupadas por eles pertenciam a um grande comerciante de borracha, arroz, castanha do Pará e óleo de copaíba que nas proximidades deste local onde atualmente residem, tinha uma espécie de armazém de onde grandes barcos eram abastecidos com esses produtos que escoavam para a Capital do estado – Belém, local de comercialização. Esse senhor que se dizia ser o dono das 10 O município de Breves está localizado no estado do Pará, no arquipélago marajoara – região de rios, furos e igarapés, conhecida como “estreitos de Breves”. É a maior cidade em número de habitantes, aproximando-se a 100.000. É onde também se encontra o maior número de órgãos e serviços públicos que prestam atendimento e assistência à população, seja de seu município, para os circunvizinhos (Bagre, Curralinho, Melgaço, Portel,...), dentre outros que fazem parte do arquipélago. 11 O município de Curralinho é um dos 16 municípios que faz parte do Arquipélago do Marajó, com uma população de 20.000 habitantes. Também faz parte da Microrregião – Furo de Breves, distante da capital a 148.813 Km. terras, tinha muitos trabalhadores que os chamava de fregueses, esses últimos, ao mesmo tempo que compravam suas mercadorias, entregavam suas produções (borracha e arroz) para o armazém e quando não tinham um local próprio para morar, solicitavam terras para fazer suas residências e ele os autorizava a morar em suas terras. Uma relação de paternalismo, ou seja, patrão cuida bem do freguês, recompensando-o com terras, uma forma de dá sentido a essa relação social e nessa dinâmica encontramos forte indício de uma relação de aviamento e a formação de uma moralidade especial. Para Aramburu que estudou o aviamento na Amazônia O grande enigma que a maioria dos autores encontrava no aviamento era a formação de uma moralidade especial, aquela que liga o patrão ao freguês mediante poderosos laços de fidelidade e deveres morais mútuos. A fidelidade comercial do freguês é um termo de uma relação cujo outro termo são as obrigações morais que os patrões têm para com seus clientes em casos de dificuldade. A relação entre o comerciante e o freguês é uma relação social central na vida do interior amazônico, pois não só possibilita a existência de produção mercantil mas constitui relação de poder sujeita a uma moralidade que dispõe prescrições morais de ajuda aos fregueses em casos de perigo (doenças, carestias etc.) em troca de uma relação comercial monopolista ( ARAMBURU, 2003, p.2 ) No caso dos nossos interlocutores, de acordo com suas narrativas nos afirmaram que seu pai há aproximadamente 60 anos foi até o denominado proprietário, pediu um pedaço de terras para fazer sua casa e foi recebido como freguês e desde então passaram a habitar o local e fazer uso das terras; entretanto, não sabem dizer se oficialmente aquelas terras pertenciam a quem se denominava dono delas. Consta que ele tinha documentos, esses proprietários de muitas terras antigas, diziam que tinham, mas não comprovavam, diziam que pagavam impostos e com o tempo ele abandonou a propriedade e foi pra Belém e os filhos não moravam lá e as terras ficaram com os antigos fregueses até porque os filhos nunca foram lá (presidente da ASPABIN). Os fregueses trabalhavam em roçados de arroz, na extração do látex da seringa e na venda de lenha para os barcos que ainda navegavam com caldeiras. Toda produção era entregue ao senhor dono do armazém que prestava contas com eles ao final de cada ano num sistema de aviamento. O aviamento, termo cunhado na Amazônia, é um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito. Começou a ser usado na região na época colonial, mas foi no ciclo da borracha que se consolidou como sistema de comercialização e se constituiu em senha de identidade da sociedade amazônica. [...] No sistema de aviamento o comerciante ou aviador adianta bens de consumo e alguns instrumentos de trabalho ao produtor, e este restitui a dívida contraída com produtos extrativos e agrícolas.[...] Nesse sistema há uma extração de valor do produtor para os comerciantes, produzindo-se uma espiral que extrai renda do trabalho rural e acumula na fonte da cadeia aviadora, nas empresas financiadoras de Belém e no sistema bancário (ARAMBURU, 2003, p.1). Segundo nosso interlocutor - o 1º filho da família, não ouviu dizer que algum freguês ao final do ano ficava sem saldo, para ele “ninguém ficava devendo nada pra ninguém”, tudo era feito na base da palavra, na confiança, tanto que o patrão garantia o que eles precisavam por um ano, inclusive, para seu pai o patrão comprou um barco. A narrativa reforça a relação de patronagem existente, nas palavras de Aramburu (2003) “uma ética da assistência de quem tem para quem não tem [...] na prática, as ajudas mais generosas com respeito à quantia e aos prazos de devolução dependem da confiança e da fidelidade que há nessa relação” e nesse caso, de acordo com as narrativas, essa relação de fidelidade estava explícita entre a família e o patrão. Aos poucos o denominado proprietário foi distanciando-se do local, entretanto, antes de se afastar definitivamente, chamou o pai de nossos interlocutores a quem considerava um grande freguês e disse que ele poderia ficar com as terras que morava, já não vinha mais para a comunidade. Com a morte do denominado proprietário, não houve ninguém da sua família que se apresentasse e reivindicasse os 5.000 (cinco mil) hectares de terras, e como as famílias que formam a comunidade já estão lá há aproximadamente 80 (oitenta) anos, não saíram mais e assim aproximadamente 120 (cento e vinte) famílias (formadas pelas relações sociais entre os moradores, dentre elas por meio de casamentos entre si), permanecem realizando suas atividades de pesca e de extrativismo. Essas famílias constituem-se de: Parentes e amigos, todos conhecidos, a maioria é parentela, uma família vai casando com a outra, 70% parentes e outros amigos que vem de outros locais residi lá, tem morador de mais de 70 anos que continua vivendo lá, por exemplo, meu irmão é morador e têm 68 anos, eu vivo lá e aqui (cidade de Breves), já morei em outros lugares, mas nunca deixei de voltar pra lá, trabalho lá, sou produtor, extrativista e o presidente da Associação (morador e presidente da ASPABIN). Esta comunidade se caracteriza organizacionalmente como uma propriedade comum ou de formas comunais, se articularmos suas vivências com os estudos de Diegues (2000), a partir de McKean (1989), quando trata da forma de apropriação dos espaços e dos recursos naturais veremos que: Essas formas de apropriação comum de espaços recursos naturais renováveis se caracterizam pela utilização comunal (comum, comunitária) de determinados espaços e recursos por meio do extrativismo vegetal (cipós, fibras, ervas medicinais da floresta), do extrativismo animal (caça e pesca), e da pequena agricultura itinerante. Além dos espaços usados em comum, podem existir os que são apropriados pela família ou pelo indivíduo, como o espaço doméstico (casa, horta, etc.), que geralmente existem em comunidades com forte dependência do uso de recursos naturais renováveis que garantem sua subsistência demograficamente pouco densas e com vinculações mais ou menos limitadas com o mercado. Esses arranjos são permeados por uma extensa teia de parentesco, de compadrio, de ajuda mútua, de normas e valores sociais que privilegiam a solidariedade intragrupal. Existem também normas de exclusão de acesso aos recursos naturais pelo “não-comunitários”. Estes, por sua vez, podem ganhar acesso a espaços e recursos de uso comum, desde que, de alguma forma, passe a fazer parte da sua comunidade (mediante casamento, compadrio etc. (DIEGUES, 2000, p. 66). Em relação à família com a qual trabalhamos - interlocutores, essa é formada por nove irmãos, sendo que destes 07 (sete) moram com suas famílias na ilha, 01(uma) nas proximidades e 01 (um) na cidade de Breves. Antes de falecer o pai distribuiu o que possuía de terras com os filhos, com exceção do que reside na cidade, os demais receberam suas terras e permanecem no local formando novas famílias por meio de filhos e netos e mantém suas vidas na comunidade, preservando costumes, crenças e práticas cotidianas. Na organização das atividades econômicas, cada um tem o seu local de trabalho “quando o patrão administrava, todos trabalhavam pra vender pra ele e o principal trabalho dos antigos era plantar e colher arroz, riscar e extrair o látex da seringueira”. Os filhos iam crescendo e aprendendo o oficio dos pais. Segundo eles, não havia o extrativismo da madeira, o que se tirava era lenha para vender aos barcos que ainda navegavam com caldeiras. Costume esse de conservação que ainda perdura, tanto que nas terras de um dos nossos interlocutores, o 4º filho, há muita madeira, segundo seus irmãos “prontas para serem extraídas, mas ele não permite, mesmo com o pedido dos filhos”. Essa ideia de conservação nos leva a discussão feita por Diegues (2000, p.87), quando trata de características de muitas sociedades tradicionais, dentre elas a de que “a conservação dos recursos naturais é parte integrante de sua cultura, uma ideia expressa no Brasil pela palavra “respeito” que se aplica não somente à natureza como também aos outros membros da comunidade”; muito embora não possamos afirmar que seja essa a justificativa para que o nosso interlocutor diga não para o extrativismo da madeira de sua propriedade. Os trabalhos realizados pelos pais foram herdados pelos filhos que quando crianças acompanhavam os pais nas atividades, tanto que atualmente todos mantém sua ocupação na pesca, na lavoura e no extrativismo e por esse motivo até conseguiram se aposentar com a profissão que mantém. Lembro bem, inclusive aprendi a fazer o trabalho que meu pai fazia. Naquele tempo não havia preocupação expressa com o meio ambiente, as “coisas” estavam lá, o açaí nascia e crescia na área do alagado, não era preciso limpar o açaizal; a natureza garantia a alimentação da família, ela se encarrega de nos dá, tudo era muito farto, até porque tinha poucas pessoas que moravam aqui (presidente da associação). Esta narrativa nos remete a discussão da relação homem natureza apresentada por Vianna quando discute os pressupostos das propostas conservacionistas; tal situação encontra-se de acordo com uma perspectiva antropocêntrica desta relação que em si é socializada, A ideia de natureza socializada implica que a relação homem e natureza é inteiramente social. Em qualquer circunstância, o homem deve salvaguardar a própria vida; precisa alimentar-se proteger-se. Para isso, faz uso da natureza, relacionando-se com aqueles entre seus elementos que elege como importantes para sua sobrevivência ou que são referência para seu entendimento do mundo (VIANNA, 2008, p. 36). A partir desta prática, de relacionar-se com a natureza como provedora da sobrevivência da comunidade e tendo eles eleito a pesca e o extrativismo como elementos importantes dessa relação, as famílias mantiveram o sistema de divisão de espaços para o trabalho, “cada um respeita o limite do outro, sempre foi assim”. Cada morador sabe onde começa e termina o seu terreno. As fronteiras ligam-se a elementos da paisagem que se tornam referência; não existe divisão feita por cercas, mas por caminhos (piques como eles chamam) e por igarapés12. São as marcações que as famílias têm para reconhecimento de seu terreno, conforme afirma um de nossos interlocutores “eu sei onde vai o meu terreno, mas as vezes eu entro no do meu irmão, tiro uns cachos de açaí, as vezes ele entra no meu e assim a gente vai, eu acho que ele não fica com raiva (risos), eu não fico, ninguém briga por isso”. Uma maneira que não deixa de ser de uso do regime de propriedade comum, se considerarmos os estudos de Mckean e Ostrom (2001) para quem “„regime de propriedade comum‟, referem-se aos 12 Na Amazônia, canal estreito que só dá passagem a pequenos barcos (BORBA, 2011). arranjos de direitos de propriedades nos quais grupos de usuários dividem direitos e responsabilidades sobre os recursos”. Segundo Toledo e Barrera-Bassols (2009), ao remeter-nos a traços do conhecimento tradicional ou local, “no interior da família, o conhecimento se divide e se matiza de acordo com o gênero e idade, pois cada um de seus membros realiza atividades específicas que outorgam ao conhecimento sua própria particularidade”; as mulheres se encarregavam de trabalhar com recursos naturais da região o que nos remete a compreensão de que essas pessoas detinham conhecimento dos recursos naturais e os utilizavam por meio de seus saberes tradicionais e utilizando-nos do conceito de economia de subsistência discutido por Toledo e Barrera-Bassols (2009, p. 35) partilhamos da premissa de que “esse conhecimento sobre a natureza se converte em um componente decisivo para o esboço e implantação de estratégias de sobrevivência”. E assim os moradores iam sobrevivendo “harmonicamente” com a natureza até que começaram a perceber interferências externas em relação à comercialização dos recursos naturais da comunidade. Sobre esta situação compartilhamos das discussões feitas por Vianna (2008, p.138), diante do pressuposto de que os conflitos acirraram-se à medida que “a natureza passou a ser percebida como objeto econômico, matéria-prima a ser continuamente dominada e explorada, transformada em recursos naturais, numa concepção de infinitude”. Desse modo a estratégia para manterem-se no seu território foi organizarem-se de forma jurídica em uma associação, a qual será nossa referência a partir de agora. II - A ASPABIM: estratégias as ameaças de desterritorialização A estas formas associativas, expressa pelos “novos movimentos sociais” (Hobsbawn, 1995:406), que agrupam e estabelecem um solidariedade ativa entre os sujeitos, delineando uma “política de identidades” e consolidando uma modalidade de existência coletiva [...] correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e asseguram sua reprodução física e social (ALMEIDA, 2008, p. 71-72) A comunidade de Boa Esperança por longos anos permaneceu utilizando-se dos recursos naturais, vivendo a partir das práticas do extrativismo e da pesca, em seu modo de vida envolvia-se em diferentes relações, desde as afetivas, econômicas a ecológica que lhes garantia uma base, um padrão cultural com sua prática específica; entretanto, com o ciclo da madeira e do açaí a partir dos anos 90, passa a viver uma nova história, com novos elementos que lhes deixaria vulnerável diante das terras que tradicionalmente ocupava, as grandes empresas madeireiras e palmiteiras passaram a atrair os moradores para que vendessem suas terras, o que causou medo e desespero as famílias que temiam perder seu local de vivências; nesse sentido era preciso, nas palavras de Almeida (2008), passar de uma unidade afetiva para uma unidade política de mobilização. Um primeiro movimento político da comunidade foi criar uma associação que tivesse como objetivo unir e organizar os ribeirinhos para lutar por seus direitos e com a ajuda do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade de Curralinho fundaram em 2001 a Associação dos Produtores Rurais extrativistas do rio Guajará (APRABURG), marco de luta para que continuassem a viver em seu território; entretanto esta associação não conseguiu manter suas atividades Aconteceu foi que eles se descuidaram e atrasou com a quitação – declaração do imposto de renda, CNPJ, eles atrasaram, se descuidaram, faltou orientação, interesse de pessoas mais preparadas pra levar em frente o trabalho, ai foi que ela encerrou, inclusive tem lá um débito deles com a receita federal. Ela foi a primeira na frente, na luta, juntamente com o sindicato produtores rurais da cidade de Curralinho e depois dela que surgiu a nova Associação (presidente da Associação). Embora essas pessoas se reconheçam como sujeitos de direitos, tenham reconhecimento jurídico formal, mesmo assim não conseguem romper com a invisibilidade social; o Estado apresenta políticas, mas não lhes proporciona condições a garantia dos direitos, neste caso a exemplo, temos os Incisos X13 e XII14 dos princípios da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais que se implementados dariam condições a esses sujeitos de se manterem organizados formalmente. Como às vezes não conseguem sobreviver às inúmeras burocracias do Estado, sem assistência e sem capacitação, entram em desacordo com as Leis e passam a ser chamados de inadimplentes, ou seja, sem as devidas orientações legais e distantes dos interpretes dos direitos e principalmente sem a linguagem do direito, são excluídos das garantias que supostamente tiveram. 13 Art. Iº - I A promoção dos meios necessários para a efetiva participação dos Povos e Comunidades Tradicionais nas instâncias de controle social e nos processos decisórios relacionados aos seus direitos e interesses. 14 Art. Iº - II A contribuição para a formação de uma sensibilização coletiva por parte dos órgãos públicos sobre a importância dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e de controle social para a garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais. Com o encerramento das atividades da APRABURG e a constante entrada de pessoas externas na localidade, novamente veio à ideia de uma nova associação já que algumas empresas de grande porte insistiam em se aproximar, inclusive enviando pessoas para tratar de compra de terras para o extrativismo próximo à localidade e com isso outros invasores foram se aproximando, dentre esses encontravam-se representantes da empresa AMACOL – Amazônia Madeiras, Compensados e Laminados, que segundo dois de nossos interlocutores, esta empresa tentou expulsar os moradores da sua localidade, dizendo ter comprado as terras daquele lugar. A afirmativa dos interlocutores pode ser levada em consideração e problematizada em relação à desterritorialização, entretanto, este não é o nosso debate central, mas a partir dos estudos de Galuppo e Cardoso (2001) podemos relacionar o que acontecia neste período na região em relação ao extrativismo, em especial da virola. Segundo esses autores com base em (Anderson et al. 1994), na década de 80 a Ilha de Marajó possuiu a maior concentração da exploração da virola Surinamensis na Amazônia, uma vez que havia benefícios ofertados pelo governo brasileiro para o extrativismo da madeira na região amazônica. Até 1990, o Estado do Pará concentrava 80% da exploração de virola, atingindo o volume máximo exportado em 1988, equivalente a 50% da sua extração madeireira (Piña-Rodrigues, 1998, 1999). No estuário amazônico, a exploração abrangeu os municípios de Breves, Portel, Melgaço e Anajás, no Estado do Pará; e Macapá; no Estado no Amapá. A produção em Breves, de 1985 a 1986, atingiu 15.000 m³/ano, decrescendo a seguir devido ao escasseamento da madeira (GALUPPO E CARVALHO, 2001, p. 22). São informações que fazem sentido diante desta discussão; Curralinho faz fronteira com Breves; os estudos não o citam, entretanto, foi mais um dos municípios do Pará que sofreu com a exploração excessiva da madeira e do palmito na década apontada. E com o propósito de combater os “invasores”, a comunidade novamente se uniu e se organizou em virtude das ameaças que vinha sofrendo. Para Almeida (2008) as lutas tecem critérios políticos-organizativos que vão além da demanda por terras “as terras vão sendo incorporadas para além de seus “aspectos físicos”, segundo uma ideia de rede de relações sociais cada vez mais fortalecida pelas auto definições sucessivas ou pela afirmação étnica” e nessa conjuntura afirma o presidente da nova associação, A gente viu que tinha que ter uma segurança de que a gente não iria perder as terras, se unisse e se organizasse em associações para ter amparo dos governos: federal, estadual, municipal. A gente não teria como deixar assim, perder a terra, não deixar invasores se apossar. Inclusive tivemos parceiros na época, quando já estava formado o sindicato (dos trabalhadores rurais) da cidade (Curralinho), ai surgiu da ideia também do sindicato que deu uma força, começou a associar as pessoas, os trabalhadores, começou nos ajudar, a organizar a associação. Diante de um cenário conflituoso, onde as ameaças são constantes em relação a territorialidade específica é possível inferir que a comunidade lança mão de estratégias que lhes garanta a condição de portarem-se como sujeitos da ação e dessa forma ao organizar-se passa a delegar poderes ao movimento social por meio de seus representantes, não no sentido de alienação política, conforme nos alerta Farias Júnior (2009), mas no sentido de “representar os interesses de um grupo que está diretamente ligado ao processo de construção de uma identidade coletiva. Trata-se de um processo de tomada de consciência, pelo qual o grupo se constitui coletivamente”. Avaliando que somente a mobilização comunitária não seria suficiente para frear a entrada de agentes externos no local e com o entendimento de que precisavam de recursos jurídicos e de representação política, buscaram encontrar ajuda para suas defesas; dessa forma, a comunidade contou com a participação de um senhor que foi eleito vereador e que morava no rio (Guajará), segundo dois de nossos interlocutores ele orientou a comunidade a organizar-se em associação. Usando da sua prerrogativa de vereador foi a Brasília com o propósito de discutir a presença de Projetos de Assentamento Agroextrativista (PAE) do INCRA para as comunidades que moram nas ilhas que fazem parte do arquipélago marajoara, especificamente as que estão na jurisdição do município de Curralinho. O referido vereador afirmou a comunidade que foi a partir desse debate que ele conseguiu inserir a comunidade no projeto de assentamentos15 do governo federal e nessa conjuntura fundaram a Associação dos 15 Basicamente, o projeto de assentamento é um conjunto de unidades agrícolas independentes entre si, instaladas pelo INCRA onde originalmente existia um imóvel rural pertencente a um único proprietário. Cada unidade, chamada de parcela, lote ou gleba é entregue a uma família sem condições econômicas para adquirir e manter um imóvel rural por outras vias. Os trabalhadores rurais que recebem o lote comprometem-se a morar na parcela e a explorá-la para seu sustento, utilizando a mão de obra familiar e contando com créditos, assistência técnica, infraestrutura e outros benefícios de apoio ao desenvolvimento das famílias assentadas. Até que possuam a escritura do lote, os assentados estarão vinculados ao INCRA e não poderão dispor da gleba sem anuência ou autorização do Incra (http://www.incra.gov.br/assentamento). Produtores e Pescadores do Assentamento Agroextrativista Boa Esperança da Ilha do Mutum (ASPABIM). Em dezembro de 2006 a ASPABIM passa a funcionar com objetivos e finalidades definidos em seu estatuto. Para o presidente da Associação os objetivos e finalidades se traduzem em: “se unir, se organizar, manter também a lei ambiental em vigor, receber os benefícios que o governo federal dispõe para os assentamentos. Fazer manejo do açaí, limpar a área do açaizal já que o açaí não pode ficar nem na sombra, nem no sol”. Outra associada assim os traduz É preservar isso que ele falou (o presidente), o meio ambiente. Não é só focar na madeira, mas sim que possa plantar o açaí pra não tirar só a madeira. Outros projetos tem que voltar como o plantio da seringueira, plantar mais andiroba, outras coisas que pudessem substituir a madeira, esse é o objetivo também. Preservar aquela área de terra, não só tirando a madeira, com outras atividades que possa complementar, isso eu entendi do que disse o INCRA no evento que eu participei (moradora). Com a legalização da associação (a ASPABIM possui ata de fundação com diretoria formada, certidão de personalidade jurídica reconhecida em cartório, registro na receita federal – CNPJ), os moradores receberam da Superintendência do Patrimônio da União – SPU, o Termo de Autorização de Uso – TAU, que para nossos interlocutores é um documento de grande importância, conforme afirmaram: “agora nós temos um endereço, esse documento da SPU mostra onde ficam nossas casas, o rio onde moramos e assim nós podemos comprar nas lojas da cidade, ter crédito nos bancos”. Com a assessoria da SPU elaboraram o Plano de Uso que normatiza como devem proceder no uso das terras. Mesmo com a tutela do Estado, uma vez que a interferência da SPU se dá diante da sua Política de Gestão do Patrimônio da União, ou seja, de acordo com os seus programas e ações que visa cumprir a função socioambiental dos bens imóveis16 da União na tentativa de proteger e reconhecer os direitos de diversos segmentos da sociedade brasileira e de outro lado, proteger o meio-ambiente; infere-se que os moradores começaram a construir os seus próprios marcos legais, sobre aquilo que podem ou não diante do que tem e da maneira como vivem e fazem suas vidas acontecer. 16 A categoria de imóvel rural é própria das estatísticas cadastrais, é uma categoria própria do Instituto de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, e é utilizada para efeitos de arrecadação do ITR. Então, o conceito de imóvel rural é uma categoria a partir da qual se produz conhecimento quantitativo, se produzem estatísticas (ALMEIDA, s/d). Esse advento da identidade coletiva chama a atenção para um novo padrão de relação política que está surgindo na sociedade brasileira. Isso envolve os povos indígenas, envolve o que antes se chamava de camponeses, o que antes se chamava meramente de extrativistas, e se chega numa dimensão em que novos agentes sociais aparecem com as designações que eles próprios se auto-atribuem. É o elemento da auto-atribuição aparecendo na sociedade brasileira. Isso data de 1985, depois se fortalece em 88. Depois, nós temos o advento dos novos movimentos sociais. São movimentos que têm raízes sociais profundas, raízes locais profundas, têm uma consciência ecológica, têm um critério político organizativo, repousam num fator étnico (ALMEIDA, p.2, s/a). A partir desta análise ratificamos que a comunidade Boa Esperança segue sua luta reivindicando os direitos que lhes são devidos e nesse contexto tanto busca os direitos externos quanto os que estão asseverados no seu estatuto. São direitos que direta e indiretamente envolvem a relação homem–natureza (Vianna, 2008); uma preocupação que se encontra na preservação dos sistemas naturais, mas também com a função da natureza como provedora dos produtos naturais a comunidade, uma vez que é por meio deles que a comunidade satisfaz suas necessidades de alimentação e trabalho, dentre outras que fazem parte de suas práticas de vivências. Os fatores de consciência ecológica, de afirmação étnica e de critério político-organizativo que amparam a identidade coletiva coextensiva à definição dos “novos movimentos sociais”, apontam para o futuro mais que para o passado [...] trata-se principalmente do resultado de processos de confrontação, e não de lugares utópicos e despolitizados (ALMEIDA, 2000, p.77). São ações que vão ao encontro de práticas de sustentabilidade e de relação homem-natureza, sustentadas por princípios éticos, ecológicos e de responsabilidade social; entretanto, por não ser objetivo deste trabalho, não podemos analisar se de fato tais diretorias trabalham para alcançar todos os objetivos definidos em seu estatuto, mas vale ressaltar que por ser um documento norteador de suas práticas é possível que alguns desses objetivos sejam trabalhados na perspectiva de manutenção dos recursos naturais que ainda é o maior provedor da subsistência da comunidade, o que não deixa de ser uma atitude política. III - BENEFÍCIOS OU GARANTIA DE DIREITOS? A associação, segundo seu presidente, desde a sua fundação vem contanto com parceiros estratégicos, dentre eles estão: O INCRA, que faz visita por meio de seus engenheiros e técnicos; a Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA que realizou cursos na comunidade, dentre eles: manejo, produção de mudas, preparo do açaí, capacitação profissional, associativismo, cooperativismo, agronegócio, cidadania, trabalho e meio ambiente, gestão de mercado; da Federação dos Trabalhadores da Agricultura – FETAGRI, seu papel é assessorar, desde que os representantes da associação cheguem até sua sede na capital do Estado – Belém e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Curralinho – STRC que foi um dos idealizadores da Associação. Com a comunidade organizada (das 120 famílias que moram no assentamento, 104 delas fazem parte da ASPABIN) e os documentos legais, as famílias passaram a receber incentivos governamentais, tais como: Projetos de fomento que possibilitou a aquisição de materiais de pesca, agricultura, aproximadamente 60 (sessenta motores); Projeto Alimentação; Projeto habitação, que garantiu a entrega de 15 casas prontas , este não encerrado, havendo casas iniciadas e não concluídas. Segundo os interlocutores a comunidade passou a receber outros benefícios sociais como bolsa família, bolsa verde, seguro defeso, salário maternidade que, de acordo com suas análises, sem essa organização associativa não teriam condições de ter os documentos solicitados para receberem esses benefícios e outros que fossem demandados por eles a partir de suas necessidades comunitárias. Com estes são auxílios, a comunidade mantém as suas formas tradicionais de sobrevivência com a comercialização do camarão no período de inverno da região (abril a junho) e no verão comercializa o açaí (agosto a dezembro); ou seja, todos se beneficiam e trabalham com os mesmos produtos de acordo com os períodos de safras; além desses produtos também comercializam limão e banana. A pesca para comercialização é do camarão, a pesca de peixes é apenas para consumo, não faz parte da atividade produtiva do assentamento. Além dos benefícios materiais, o presidente da associação afirmou que também trouxe muitos conhecimentos a eles, principalmente no fortalecimento da comunidade, a partir deste movimento os moradores aprenderam a trabalhar em grupos e conseguiram ficar mais tranquilos em relação ao seu território Minha vida, foi e é la, foi lá que eu nasci e fui criado, aprendendo os trabalhos que fazemos, a comunidade significa tudo pra mim. Uma experiência muito grande, gosto muito de lá. E a grande importância de ter uma associação é que a gente unido e organizado a gente chega mais longe, a gente consegue nossos objetivos e é muito importante essa união e organização da comunidade. As pessoas participam das reuniões e gostam muito da comunidade, cuidam da parte social, louvores das igrejas e de tudo que temos. Nós somos uns produtores, extrativistas, outros pescadores, inclusive todos são cadastrados na colônia de pescadores de Curralinho. Eu sempre digo que sou um agricultor, produtor (presidente da associação). Para o nosso interlocutor, a Associação trouxe muitos benefícios, tem dificuldades, precisam melhorar no atendimento a saúde que ainda está longe deles, mas acredita que as “as coisas melhoraram muito para todos que moram na ilha”, inclusive diz que “eu não abandono essas terras aqui, porque elas eram do meu pai e nunca pensei em deixar isso aqui”, uma afirmação que diretamente vincula-se a uma relação não só econômica, mas afetiva e de identidade com o local. Ainda em relação aos benefícios o outro interlocutor, que é o quarto filho da família que recebeu essas terras, afirma que na ilha mantém os seus filhos que continuam seu trabalho de produtores e pescadores; criou todos e nunca passou por necessidade de alimentação, sempre teve o que comer e com a associação as pessoas podem melhorar ainda mais, pois podem submeter-se a empréstimo nos bancos para ampliar seu trabalho e até “comprar a crédito nas lojas”, já que possui documento (TAU) que lhes permite ter um endereço, coisa que não tinham antes da associação, ou seja, a organização social é uma ferramenta que abre as portas para o cidadão. Diante desse contexto é pertinente afirmar que os Projetos de Assentamento Agroextrativistas apresentam-se como vias de desenvolvimento sustentável, entretanto, embora com os benefícios apresentados é possível inferir a partir das narrativas dos nossos interlocutores que as redes antigas de subsistência ainda são as grandes provedoras de recursos para essa comunidade; entretanto é inegável a importância da organização social para a garantia de direitos e de afirmação de suas territorialidades. IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS A observação etnográfica ganha força quando se reconhece que o conhecimento pormenorizado de situações localizadas, construído a partir da análise das mobilizações dos agentes sociais e de sua identidade coletiva, cria condições de possibilidade para o esclarecimento. (ALFREDO W.B. ALMEIDA) Após a análise desta realidade empiricamente observada os resultados deste trabalho inferem que a comunidade assentada da Ilha do Mutum, não diferente de outras realidades brasileiras de povos e comunidades tradicionais, em relação à garantia de seus direitos enquanto cidadãos, ainda vive a mercê das políticas públicas, por conta da sua forma de viver relacionada à natureza, vista como fator econômico diante da era do capital, conviveu e ainda convive com conflitos territoriais, disputas por recursos naturais principalmente por sua localização num espaço em que a água é fator de cobiças econômicas num mercado mundial; entretanto, este estudo embora parcial, mostra que, os efeitos da organização já lhes trouxe a garantia de alguns direitos, dentre eles o de receber benefícios sociais: projetos de fomento a pesca e a agricultura, bolsa verde, seguro defeso, salário maternidade, dentre outros que aos poucos vão se apresentando por meio dos cadastros das famílias e da captação realizada pela associação. Todos os agentes sociais, interlocutores da pesquisa afirmaram que a partir da ASPABIN houve melhoria na vida do povo e da comunidade, ratificam a importância dos recursos naturais em suas vidas, dizendo que a natureza sempre lhes proporcionou a alimentação e condições de sobrevivência, o que não é suficiente, necessitam de políticas de direitos referentes às suas territorialidades específicas, uma vez que o território que tradicionalmente a comunidade ocupa, não é apenas geográfico, físico, mas identitário e carrega consigo conhecimentos e saberes que só serão compreendidos e reconhecidos à medida que forem analisados a luz de suas crenças e práticas culturais. Com a etnografia realizada foi possível observar uma pluralidade de auto definições através da designação dos agentes sociais: pescadores, agricultores, extrativistas, produtores, ribeirinhos, ou seja, um exemplo de que somente eles estão autorizados a denominar-se. O nosso pouco tempo em campo não nos permite fazer conclusões, mas com o auxilio da antropologia e de acordo com os métodos etnográficos tivemos a possibilidade de olhar – mesmo que de maneira parcial, a relação sociedade-natureza e comunidades tradicionais a partir de uma visão menos romântica e homogeneizada e perceber que a dinâmica da vida desses povos não é estática, corroborando a análise feita por Almeida quando afirma que: O chamado “tradicional”, antes de aparecer como referência histórica do passado, aparece como reivindicação contemporânea em forma de autodefinição coletiva. Antes de serem interpretadas como “povos ou comunidades tradicionais” aparecem hoje envolvidos num processo de construção do próprio “tradicional” a partir de mobilizações e conflitos. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o “tradicional” é, portanto, social e politicamente construído a partir de uma classificação empírica fruto da existência localizada desses novos movimentos sociais. (ALMEIDA, 2004) Portanto, está em constante assimilação de padrões culturais, o fato de os considerarmos tradicionais não significa dizer que vivem em atraso, pelo contrário trazem experiências conectadas no e com o mundo, com efeitos e significados que os ajudam a sobreviver em meio às estratégias de desterritorialização e reafirmando suas posições de agentes sociais mostraram por meio da ASPABIM que viver organizadamente é uma forma de garantia de territorialidades. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, “faxinais e fundos de pasto: Terras tradicionalmente ocupadas. 2ª Ed. Manaus, PGSCA –UFAM, 2008. _______________. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização, movimentos sociais e uso comum. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n. 1, ANPUR. Maio, 2004. _______________. Os quilombos e as novas etnias. In: O‟DWYER, Eliane Cantarino (Org). 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