EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL: PERSPECTIVAS PARA A AFIRMAÇÃO E A TRANSCENDÊNCIA DE IDENTIDADES CULTURAIS Teodora de Araújo Alves Doutoranda do PPGEd/UFRN 1. VIDA, EDUCAÇÃO, UNIDADE E DIVERSIDADE A vivência educativa pautada nos conhecimentos coletivos, embora na maioria das vezes pareça invisível, faz-se presente no cotidiano de todo e qualquer ser humano, pois é da ordem da cultura. A aprendizagem que se processa nessa vivência cotidiana não ocorre necessariamente na forma de organizações formais estabelecidas conforme modelos didáticos-pedagógicos, mas é algo que existe nos corpos que dialogam cotidianamente. Corpos que dizem e ouvem, que criam e recriam, que aprendem e ensinam ao longo de suas histórias de vida. Fazem-se verdadeiros em seus rituais, em suas celebrações, em suas atitudes, formulam seus conceitos, suas concepções, seus conhecimentos. Quanto a isto, D`Ambrósio (1999,p.24), entende que “Os conhecimentos coletivos de uma sociedade incluem valores, explicações e modos de comportamento e são muitas vezes chamados as ‘tradições’, que orientam o comportamento dos indivíduos das gerações seguintes. Organizadas como História, as tradições orientam todo o comportamento de uma sociedade e de indivíduos. O homem é o resultado de sua história”. É possível observar que a educação, nesses termos de inter-relação social e cultural, aproxima-se do conceito de “sociedade educativa” preconizado no relatório da Unesco sobre educação para o século XXI (Delors, 2000). Nessa perspectiva, sociedade educativa significa que “...cada um aprende ao longo de toda a vida no seio do espaço social constituído pela comunidade a que pertence. Esta varia, por definição, não só de um indivíduo para outro, mas também no discurso da vida de cada um. A educação deriva da vontade de viver juntos e de basear a coesão do grupo num conjunto de projetos comuns: a vida associativa, a participação numa comunidade religiosa, os vínculos políticos, concorrem para esta forma de educação” (op. cit., p. 117). Pode-se, então perceber que a educação ao longo de toda a vida conduz diretamente ao conceito de sociedade educativa, pois é na vivência social que surgem múltiplas oportunidades de aprendizagem. Assim, onde há trocas, experiências, há sociedade e há educação. E foi pensando numa “educação ao longo de toda a vida” que a Comissão de elaboração do relatório para a Unesco recomenda: “Às vésperas do século XXI, as missões que cabem à educação e as múltiplas formas que pode revestir fazem com que englobe todos os processos que levem as pessoas desde a infância até o fim da vida, a um conhecimento dinâmico do mundo, dos outros e de si mesmos...” (ibid., p. 104). O relatório aponta como sendo necessário à sociedade educativa a combinação de quatro aprendizagens fundamentais, as quais funcionam como possíveis pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (ibid., p.101-102). Aprender a conhecer significa beneficiar-se de um vasto conhecimento, combinando uma cultura geral com matérias específicas. Aprender a fazer diz respeito à qualificação profissional, combinando diversas experiências sociais ou de trabalho, alternando-se ensino e trabalho. Aprender a viver juntos no sentido de desenvolver a compreensão do outro, respeitando os valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz. E por fim, aprender a ser para agir com autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal, sem negligenciar potencialidades como raciocínio, memória, sentido estético, capacidades físicas e aptidão para comunicar-se. No referido relatório para a Unesco ainda se encontram descritos valores culturais universais que a educação deve cultivar para promover uma ética global, dos quais destacamos compreensão e tolerância em relação às diferenças e ao pluralismo culturais; espírito de solidariedade; solicitude para com o outro; criatividade e espírito aberto à mudança. No entanto, “É de notar que a maior parte destes valores universais indispensáveis ao século XXI está há muito inscritos nas tradições culturais milenárias das grandes civilizações. Eles refletem apenas as concepções morais e os ideais de verdade, humanidade, beleza, justiça e liberdade, defendidos pelos nossos longíquos antepassados e magnificamente preservados nos tesouros do pensamento [...] Um dos meios de promover os valores universais, sobre os quais se deverá apoiar a humanidade no próximo século é estimular nos jovens o estudo dos grandes livros do passado e o gosto por perpetuar as suas belas tradições” (Delors, op. cit., p. 265). Morin (2000, p. 47), contribuindo para a visão de educação propugnada pela Unesco, propõe sete saberes para a educação do futuro. Dentre esses, o autor sugere no “saber ensinar a condição humana” que o ensino seja centrado no reconhecimento da humanidade comum e na diversidade cultural inerente a tudo que é humano. Nesse sentido, “conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. [...], todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente”. Por conseguinte, o autor entende como sendo necessário que a educação interrogue sobre a condição humana de seu objeto, questionando-se sobre “Quem somos?”, “Onde estamos?”, “De onde viemos?” e “Para onde vamos?” Desse modo, Morin (op. cit), pensando a educação numa perspectiva “complexa”1, recomenda como sendo necessário à educação do futuro o exame e o estudo da complexidade humana2. Petraglia (1995, p. 71), comungando com as idéias de Morin, evidencia que “O conhecimento está naturalmente ligado à vida, fazendo parte da existência humana. A ação de conhecer está presente simultaneamente nas ações biológicas, cerebrais, espirituais, culturais, lingüisticas, sociais, políticas e históricas, por isto, o ser condiciona o conhecer, que ao mesmo tempo condiciona o ser”. A educação como parte de um contexto social amplo relaciona-se com todas as questões inerentes a esse contexto. Sendo assim, na atualidade, época em que os avanços tecnológicos e a mundialização trazem para a sociedade intensos benefícios, parecendo promover em contrapartida a exclusão, o enfraquecimento das identidades culturais e a homogeneização cultural, cabe a educação instigar ações no intuito de lidar com essas questões globais. Alguns encaminhamentos nesse sentido são encontrados também no relatório da Unesco, o qual recomenda “A educação deve, pois, procurar tornar o indivíduo mais consciente de suas raízes, a fim de dispor de referências que lhe permitam situar-se no mundo, e deve ensinarlhe o respeito pelas outras culturas [...] O conhecimento das outras culturas tornanos, pois, conscientes da singularidade da nossa própria cultura mas também da existência de um patrimônio comum ao conjunto da humanidade” (Delors, op. cit., p. 48). 1 “A estrutura do pensamento Moriniano é pautada numa epistemologia da complexidade que compreende quantidades de unidades, interações diversas e adversas, incertezas, indeterminações e fenômenos aleatórios” (Petraglia, 1995, p.40) 2 “A noção de homem não é uma noção simples: é uma noção complexa. Homo é um complexo bio-antropológico e bio-sociocultural. O homem tem várias dimensões e tudo o que desfaz este complexo é mutilador”. (Morin,1984,p.101). Morin (op. cit., p. 68), referindo-se às conseqüências do fenômeno da mundialização, argumenta que “A mundialização é sem dúvida unificadora, mas é preciso acrescentar imediatamente que é também conflituosa em sua essência [...]. O mundo, cada vez mais, torna-se uno, mas torna-se, ao mesmo tempo, cada vez mais dividido”. Nesse caso, Morin (ibid., p. 78) entende como sendo necessário ensinamentos que unam concentricamente as pátrias – familiares, regionais, nacionais – integrando-as no universo concreto da pátria terrestre. Para tanto, “a unidade, a mestiçagem e a diversidade devem-se desenvolver contra a homogeneização e o fechamento”. Complementa o autor, sugerindo que “As culturas devem aprender umas com as outras [...] se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. [...] compreender é também aprender e reaprender incessantemente” (ibid., p. 100-102). Desse modo, na época de grandes transformações sociais diante de fenômenos como a globalização econômica e cultural, os anseios em busca de uma educação que consiga canalizar as diferenças e semelhanças culturais e, de resolver possíveis conflitos gerados por ela encontram respostas em movimentos socais e políticas educacionais como o multiculturalismo e transculturalismo (MacLaren, 1999, 2000; Luz, 1996). McLaren (2000), falando a respeito de uma educação que pode e deve ser o meio para impulsionar a mudança na época dos desafios globais, nos mostra que “A pedagogia do Multiculturalismo Revolucionário é sempre uma pedagogia que resgata o outro, expulso do discurso e das subjetividades como se não fosse parte integrante de nós mesmos”. (McLaren, 2000, p. ) Uma perspectiva de educação transcultural apresenta como objetivo formar identidades pessoais ricas e estáveis, que não poderiam estruturar-se unicamente dentro dos limites de uma única cultura. Nela há um intercâmbio cultural que permite os membros de uma cultura vivenciar outra, não excluindo-a mas respeitando-a e valorizando-a, porém consciente da sua própria. Dessa forma, reconhece-se as diferenças e convive-se com elas numa constante comunicação com o outro (Munanga, in Luz, 1996). Nesse sentido, é necessário que a sociedade seja incitada a valorizar formas de educação construídas de acordo com cada sistema cultural e a partir daí some esforços no intuito de lidar com a época global. Pois modelos de educação e políticas educacionais que não reconheçam a vivência cotidiana, os hábitos, os costumes, os valores, enfim a construção cultural de cada comunidade é uma educação que não considera entre outros aspectos, a ética da vida, os saberes do corpo e a sensibilidade do ser e agir humano. 2. Elementos Constitutivos do Zambê: Vozes que afirmam e transcendem cultura Caminhando no sentido de descrever e interpretar alguns elementos que constituem o Coco deZambê3, pretendemos destacar aspectos da ludicidade inerente a essa manifestação cultural, discutindo seu caráter educativo e sua capacidade de afirmação e transcendência cultural. Para isso, discorreremos em seguida a respeito desses elementos. 2.1 O Fogo Como Elemento Propulsor da Celebração do Zambê “O quarto elemento é o fogo... em serviço do homem, aquecendo, iluminando, preparando alimento, defendendo, criando a estabilidade da família”. (Cascudo, 1971, p.137). 3 Trata-se de uma manifestação cultural localizada em Cabeceiras, comunidade pertencente a praia de Tibau do Sul, no Estado do Rio Grande do Norte. É considerado um Coco de Roda, porém chama a atenção pelo inusitado, pois, entre outras características, dançam somente homens, usam tambores e “brincam” com forte expressividade. Como nos diz o Mestre do Coco de Zambê, “a fogueira é pra esquentar o Zambê. Pra esticar o som, senão esquentar não estica o som”. Num primeiro momento, observamos que a presença de uma fogueira nos espaços reservados às apresentações do Zambê tem a função de aquecimento do tambor-Zambê. Ao aquecer o instrumento, o calor das chamas tem a finalidade de afinar a pele do tambor e produzir um som de melhor qualidade. A presença do elemento fogo no Coco de Zambê é uma prática que vem dos antigos batuques africanos. Edson Carneiro (1964/1982), em sua obra “Folguedos Brasileiros”, destaca nos batuques africanos a presença de fogueiras que serviam para iluminar o terreiro da dança e aquecer as peles dos tambores. No entanto, a existência do elemento fogo em uma manifestação cultural com característica afro-brasileira pode nos dizer algo mais além da função de aquecimento do instrumento. Numa leitura mais interpretativa, acreditamos em possíveis relações com os significados dos batuques africanos. Desse modo, recorrendo ao estudo de Souza (op. cit) sobre “As Práticas dos Batuques e o Controle das Emoções”, constatamos que “Os antigos batuques caracterizavam-se como práticas mágicas e eram muito mais público do que são hoje. Tanto eram públicos, que foram necessários códigos de controle social, impostos pelos europeus, para o impedimento de sua prática. Mas, na perspectiva dos indivíduos que compunham as etnias negras, esses batuques comportavam valores que, por vezes, significavam um retorno à sua auto-imagem, à sua africanidade”. (ibid., p.25). Destacamos que as práticas de batuques e o controle das emoções dos negros, a partir das metáforas do fogo e do vento, são descritas pelo autor da seguinte forma: “Ao lado do fogo ardente dos deuses, o negro suplicava, rezava e dançava aos sons dos tambores, como parte de sua auto-imagem e garantia de vida humana, pois tal comportamento constituía uma aprendizagem de sua organização social. [...] O fogo era a emoção-êxtase que descia sobre os corpos dançantes, e o vento era o movimento corporal mais suave, mais calmo, menos extrovertido, mais contido e mais polido”. (ibid., p.2). Assim, com base no movimento da história, podemos afirmar que o fogo no Zambê exerceu e exerce um papel de integração reunindo todos em volta da fogueira, aquecendo os corpos e iluminando a noite. Além desse papel, o fogo incendeia a vontade de começar a dança, constituindo-se no elemento central do momento de concentração e preparação de todo o ritual, influenciando e determinando a qualidade do jogo dançado, na medida em que aquece o tambor, afinando o instrumento para garantir o som ideal e o brilho da música, fundamental para a dança. No Zambê, é notável a energia que emana dos corpos que cantam e dançam. A energia das chamas do fogo confunde-se com a energia dos corpos, aflorando a circulação dessas energias no ato do jogo. É uma magia divina ou cósmica que emana do fogo e dos corpos, num misto visceral e místico. Nessa perspectiva, Cascudo (1971, p. 143) refere-se à origem do fogo como divina ou sideral “...Não fôra, inicialmente, encontrado na Terra. Relaciona-se com o Raio, denunciando a unidade criadora” Nesse contexto de magia, a relação entre o fogo e os corpos dançantes é tão forte que os brincantes percebem o momento exato de reaquecer o tambor sem perder a alegria e a cadência dos gestos. Trata-se de um conhecimento musical que não foi adquirido em nenhuma escola de ensino formal, mas aprendido na vivência cotidiana, no lidar com o instrumento e com pessoas de épocas passadas que brincavam o Jogo de Zambê. Levar o tambor até a fogueira é uma tarefa que cabe ao Mestre. Ao observar a dança em seu terreiro, é possível constatar que existe um ritual que favorece um clima tribal4. A fogueira acesa, os homens ao seu redor, o Mestre às vezes sentado sobre o tambor-Zambê, outras vezes segurando-o próximo à fogueira. Há um diálogo entre o Mestre e os participantes. Há formação da roda para dar início ao canto e a dança com a saudação de cada brincante ao tambor, numa comunhão entre o individual e o coletivo. O ritual cultivado no grupo nos permite fazer uma relação com o que Augé (1999, p.44) diz, pois atividade ritual “sob suas diversas formas, tem por objetivo essencial a conjugação e domínio dessa dupla polaridade – individual-coletiva, si mesmo- outro”. Nessa perspectiva, vivenciar o ritual do Jogo de Zambê implica em compartilhar significados individuais e coletivos, numa relação que inclui símbolos, gestos e músicas. 2.2 O Ato de Reverenciar o Tambor “Ouves? É o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres, eles tocarão mais alto ainda, no poderoso toque do chamado do santo, e os deuses negros chegarão das florestas da África para dançar em tua honra. Com os vestidos mais belos, bailando os inesquecíveis bailados, as iaôs cantarão em iorubá os cânticos de saudação” (Amado, 1982). Zambê, enquanto instrumento, é o “tambor de metro e meio, cilíndrico, com uma pele numa das extremidades, percutido com ambas as mãos pelo tocador que cavalga o instrumento, sustentado por tiras de couro” (Cascudo, 1979, p. 807). Ao entrar na dança do Zambê, o dançarino se dirige até o tambor principal, agacha-se e reverencia-o. Essa ação expressa o respeito e a devoção do participante para com o instrumento-mestre. Também denominado por seus participantes de “Pau-furado”, o Zambê é o símbolo maior de todo o jogo. Para ele e com ele existe a dança. Seu significado pode apoiar-se teoricamente na seguinte afirmação: “...todo símbolo autêntico possui três dimensões concretas: ele é ao mesmo tempo, “cósmico” (ou seja, retira toda a sua figuração do mundo visível, que nos rodeia); “onírico” enraíza-se nas lembranças, nos gestos que emergem em nossos sonhos [...]; e finalmente, “poético”, ou seja, o símbolo também apela para a linguagem, e a linguagem mais impetuosa, portanto, a mais concreta” (Ricoeur, citado por Durand, 1988, p. 16). Nesse sentido, podemos afirmar que o Zambê, enquanto instrumento, pode ser considerado como um símbolo “cósmico”, “onírico” e “poético”. Na relação entre o tambor e os participantes do jogo estão presentes significados que transcendem o objeto em si. Não se trata apenas de um instrumento que produz determinado som, mas de um conteúdo simbólico. A forma do tambor, o som que é produzido por ele, a maneira como é manuseado e como é afinado, tudo isto possui um significado que é próprio do Jogo do Zambê. Toda esta simbologia entra na dança de significados numa constante troca com seus participantes. Neste místico diálogo, os símbolos são “...incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças” (Geertz, 1989, p.105). As significações da linguagem nos diz que o nome de um objeto, uma pessoa, um lugar ou o que quer que seja, leva-nos a universo de significados sobre o que é esse a quem porventura nos referimos. Segundo Castoriadis (1982, p.390), “ele só é seu nome na medida em que se refere virtualmente à totalidade das manifestações deste indivíduo ao longo se sua existência, efetivas ou possíveis [...], e sob todos os aspectos que poderia representar”. Desse modo, concebe-se o Zambê, repleto de significados que promovem vida e sentido a partir desse instrumento na dança. 4 Numa reportagem publicada no jornal natalense - Tribuna do Norte, em 18 de agosto de 1999, destaca-se como uma das características do Zambê a atmosfera tribal promovida pela presença da fogueira. A dança e a música são reveladas a partir da expressão do ritmo produzido pelo tambor, trazendo à tona saberes ancestrais, lembranças de outras épocas, cultuação do vivido no cotidiano, reconhecimento étnico de um grupo que se propõe vivenciar e celebrar um jogo dançado, compartilhando saberes que lhe são próprios. No Zambê, os sons dos tambores conduzem a um estado de grande harmonia e comunicação cósmica. É no momento de saudação ao instrumento maior que surge a comunhão entre o brincante-dançarino e o símbolo-tambor, um diálogo consubstanciado num momento de êxtase5 com o instrumento, processando-se durante toda a dança. Uma relação mística que parece se estabelecer entre a cultura africana e o jogo dançado em Tibau do Sul. Neste sentido, observamos que “a história do tambor é sugestiva e poderosa, a mais cheia de densidade mágica e de expressão social no continente africano e regiões onde suas raças influíram” (Cascudo, 1973). Vejamos as palavras de um dos integrantes: “Rapaz, aquele momento em que eu entro na roda do Zambê, pra mim significa tudo. Uma emoção muito grande! Fico cheio de energia pra dançar! Pra mim é tudo, significa tudo! A gente vai até o Zambê e fica abaixado no Zambê. O Zambê é importante, ele é muito importante na dança. O Zambê significa tudo, sem ele não existiria a dança. Ele é tudo!”(Brincante 3). Santos (1996, p. 48) argumenta que “os tambores são os instrumentos mais populares na África”. Desse modo, podemos constatar que a cultura africana foi a grande responsável pela presença desses instrumentos aqui no contexto brasileiro, sob o nome de atabaques. Cascudo (op. cit., p. 314), falando sobre a origem do tambor6, entende que “o instinto da percussão no homem atesta-se pela obstinação de bater nas superfícies planas, na vocação de obter sons ritmados, com espaços intermediários certos. O homem teve o ritmo antes de qualquer instrumento musical”. Os instrumentos que formam a orquestra do Coco de Zambê são o Pau-furado ou Zambê, que é o tambor maior; a Chama, que se refere ao tambor menor e a Lata, que é uma lata de manteiga de formato retangular com uma capacidade em torno de vinte litros. Esse último instrumento é tocado com baquetas, enquanto que os outros são tocados com as mãos. Um dos brincantes do Zambê entende que os sons dos tambores é algo que incentiva a participação dos espectadores como brincantes da Roda do Zambê. Segundo ele, “Os tambores parece que levantam mais as pessoas. As pessoas gostam, aí vão lá perguntar à gente se pode entrar na roda e a gente diz: claro que pode. E aí vem todo mundo”( Brincante 2). 2.3 O Saber do Improviso na Dança e a Criação das Músicas “Os movimentos surgem na minha cabeça. Vem uma coisa, depois vem outra, o que vem na minha cabeça eu faço, até eu tá suado, ai eu invento outra dança, e assim vai...”(Brincante 3). As expressões vividas através do jogo-dança Coco de Zambê são movimentos que possuem uma característica de improviso, mantendo a característica principal e a essência da dançaafro, ou seja, movimentos firmes, vibrantes, sensuais que se fundem numa comunicação cósmica 5 Entendendo o estado de êxtase como um momento de unidade cósmica, Grof (1994) mostra-nos que nesse momento, “sentimos ter um direto, imediato e ilimitado acesso ao conhecimento e à sabedoria de significação universal [...] é ilimitada, insondável e indescritível. Porém, mesmo um pequeno comprometimento experiencial com a mesma satisfaz plenamente nossa ansiedade por entender a essência das coisas. Todas as dúvidas sobre os mistérios da vida parecem ser esclarecidas e não há necessidade de ir além disso. Não é possível, nem necessário, falar sobre isso com quem não teve tal experiência, pois ela é uma experiência auto-avaliadora e profundamente pessoal” (p. 59 e 202). 6 “Os mais antigos tambores foram encontrados no Egito e, curiosamente, nos finais do Império Médio, 1700 anos a . C., quando já existia o arco-musical que, pelo acabamento, devia ser posterior. A idéia de tapar a extremidade do tronco com uma pele certamente passou por muitos estágios experimentais nas raças e momentos culturais”. (Cascudo, 1973, p.315). com os seus antepassados. Nesse universo de expressões, os brincantes têm a liberdade de criar e recriar seus movimentos a todo instante, de modo que cada um se exibe com uma riqueza própria de movimentos. Explorando a sensibilidade, a capacidade de imaginar, criar e recriar, os brincantes dançam com movimentos básicos de giros, contorções, agachamentos, movimentos de extensão e flexão de tronco, de pernas e de braços. A dança é realizada sob o canto-solo do Coco e do coro de respostas. O brincante, após dançar na Roda do Zambê, dirige-se até um companheiro, realiza um movimento peculiar, a “umbigada”, dando a entender que aquele deverá lhe substituir na Roda do Zambê. Esses movimentos, como afirmam os brincantes, não possuem nomes específicos e são criados conforme a capacidade de improvisação de cada um. Quem entra na Roda do Zambê dança de acordo com sua própria maneira de expressar o que sente nesse jogo dançante. Originalmente, o Zambê é dançado individualmente. Entretanto, a “Cangaloê” é a única, dentre tantas outras formas de dançar o Zambê, que permite a presença de um par de dançarinos no centro da roda. Nesse momento, existe um contato maior entre os dançarinos, um segurando a mão do outro, estando ambos de frente, executando movimentos saltitados e agachados na tentativa de equilibrar o outro. Os movimentos improvisados, tanto do próprio brincante consigo mesmo como para com os que tem em sintonia com o parceiro do jogo, traduzem uma sensibilidade estética diante do Coco de Zambê, uma vez que se deslumbra um “diálogo entre os corpos” que dançam brincando. Desse modo, a maneira própria de dançar de cada um surge no encontro com o outro, na troca de olhares e de movimentos que se apresentam no momento da dança7. São movimentos que fazem parte da vida deles, estando fortemente inscritos em sua corporeidade, proporcionando durante a dança momentos de ludicidade, de ritualidade e de diálogo entre corpos que dançam. Quanto a criação e improvisação dos movimentos dançados o Mestre destaca que há o respeito e a valorização de todos que entram na roda, pois cada um tem liberdade para se expressar ao seu modo, desde que siga o ritmo do Zambê. Um brincante evidencia: “Quando eu vou dançar eu já sei os movimentos que eu vou fazer. Eu já sei minha dança, só não sei a dos outros, dos meus companheiros que vão dançar comigo. Minha dança é a mesma, mas na hora que eu quero mudar, eu mudo. Danço de acordo com o ritmo do toque do Zambê.”(Brincante 5). No que concerne à criação das músicas, denominadas também de Cocos, observamos que muitas são conhecidas do Mestre por terem sido transmitidas de épocas passadas e que outras foram criadas por ele próprio. No Zambê existe um repertório próprio que se inicia com um Coco de Saudação aos presentes e finaliza com o canto de despedida. O Mestre, demonstrando familiaridade com a criação dos Cocos do Zambê, bem como por ter conhecimento de Cocos já cantados em outras épocas, entende que não existe dificuldades em criá-los. Como argumenta o Mestre, “...até a gente faz um coco mesmo. De qualquer jeito a gente faz um coco. Tem os cocos velhos que a gente canta.. Agora, tem uns novos que a gente criou mesmo. Eles falam nome de gente, de maré, de mar, das praias, de peixe”. Encontramos no Mestre do Zambê uma sabedoria que lhe permite criar, recriar Cocos a partir de conhecimentos adquiridos na sua vivência cotidiana, na sua cultura local. Brandão (1983), aproximando-se dos saberes de mestres e discípulos de manifestações culturais como a Folia de Reis e a Folga de São Gonçalo, permite-nos fazer um paralelo com a sabedoria do Mestre do Zambê. Nas palavras do autor, “um mestre de Folia não precisa ser alfabetizado, nem precisa possuir conhecimentos teóricos de música ou de poética”. O antropólogo destaca ainda que “...todos os integrantes da equipe realizam trabalhos de ofício – cantar, tocar, dançar, rezar, 7 E isso, ocorre, segundo os brincantes, sem que os participantes do grupo precisem de formas acadêmicas, ou sistemáticas, como por exemplo uma aula de aquecimento antes da dança. representar – para os quais é necessário um conhecimento apropriado e, portanto, o seu aprendizado. São conhecimentos da cultura do lugar” (op. cit., p. 40). Na opinião do cantor e compositor Cleudo Freire, que pesquisa ritmos tradicionais do Estado, tendo inclusive usado o ritmo do Zambê como base para seu disco “Zambê Crossover”, “o Zambê tem aspectos musicais interessantes. Toda sua célula é sincopada, ímpar no País. Não é uma coisa religiosa como o afoxé, por exemplo. Faz referência o tempo inteiro ao tambor. Uma coisa rara na cultura negra do Brasil”8. A imaginação e a criação na música e na dança do Zambê tornam-se realidade no contato com os tambores, com os aspectos da região, com os conhecimentos ancestrais, pois como argumenta Costa (2000, p.107), “Tudo que o homem imaginar e quiser é passível de dar suporte à atividade lúdica; tudo pode ser improvisado e se tornar material lúdico, que pode vir a se manifestar como uma realidade dispersante que permite estruturar mitos e sonhos”. Desse modo, no caso específico do Zambê, observamos que o mesmo traz em sua história as intencionalidades de cada época vivida. Na atualidade, evidencia-se seu sentido lúdico, sua função de divulgação cultural e de resgate de uma manifestação cultural de sua própria comunidade, garantindo, através de suas músicas e danças, a estabilidade da cultura local, mostrando o que existe na comunidade e na história de seu povo .O fato de os Cocos tematizarem aspectos da própria região, leva-nos a perceber a relação de tal manifestação cultural com uma sabedoria do vivido, ou seja, para os brincantes o que existe em seu entorno não passa despercebido, ao contrário, é conhecido e valorizado por eles. Ainda com relação ao acervo musical do Coco de Zambê, constatamos que recentemente, início de 1999, o grupo gravou um “CD” com dezoito faixas9. Saber improvisar na dança e saber criar os versos cantados fazem parte do contexto artístico do Jogo de Zambê. É da vivência lúdica que emerge o imaginário criativo do grupo e nele se encontram formas expressivas que permitem construir um cenário de beleza em torno dessa manifestação cultural. 2.4 O Dançar e Estar Com o Outro: Construindo o Saber Coletivo No Zambê, o sentido lúdico do jogo dançado aparece no encontro com os sons dos tambores, com as músicas, com os movimentos criados e recriados e, principalmente, no encontro com o outro. O dançar e o estar com o outro brincante significam compartilhar momentos de extrema felicidade no jogo. Cada brincante conhece o Zambê e contribui para a realização de cada apresentação ao longo da história dessa manifestação cultural. É no contato e na troca com o companheiro que se funda a essência festiva e lúdica do grupo. Conforme Maffesoli (1998, p.165), o “enraizamento dinâmico, esse saber incorporado que, de geração em geração, vai constituir um substrato que assegura a perduração societal”, ou seja, o enraizamento da reflexão, do pensamento orgânico do grupo. Nesse reconhecimento do outro, Freire (1987) refere-se ao eu dialógico, isto é, ao eu que reconhece no outro(tu) o seu constituinte e ao mesmo tempo este último é constituido pelo eu. Não existindo, portanto, nessa relação de trocas um dominador em busca de um objeto a ser dominado. Há, pois, sujeitos que se encontram e compartilham os mesmos objetivos de transformação do mundo. Nessa relação vive-se um clima de felicidade e de satisfação expresso na face de cada um. A alegria, a ludicidade, o brincar com o outro transcendem os momentos de apresentações e se fazem presente no cotidiano dos brincantes, transformando-se, possivelmente, no que Maffesoli 8 9 Tribuna do Norte, 18 de agosto de 1999/Natal-RN. Essa produção foi realizada pelo Projeto “Nação Potiguar”, numa parceria entre a Fundação “Hélio Galvão” e “Scriptorim Candinha Bezerra”, órgãos que promovem e divulgam a cultura potiguar, o que se constituiu em uma realização, uma conquista para todos os brincantes. (1996) denomina de “hedonismo do cotidiano”, ou seja, um prazer individual e imediato que é inerente e sustenta toda a vida em sociedade. Para o autor, “o laço social torna-se emocional. Assim, elabora-se um modo de ser (ethos) onde o que é experimentado com outros será primordial”. É isso que o autor designa pela expressão “estética da estética” (op. cit., p.12). Assim, esse estar com o outro, compartilhando momentos lúdicos, promove um laço emocional entre os brincantes do Zambê, algo que sustenta o convívio deles em sua comunidade. Esse modo éticoestético de estar com o outro é, segundo Restrepo (1998), uma estética social: “Estética, porque o que está em jogo é uma forma de sensibilidade; e social, porque não se trata da experiência individual de quem contempla uma obra de arte, mas da feição que compartilhamos com o grupo e que acaba por decidir o curso de nosso comportamento” (op. cit., p.59). No Zambê existe um respeito mútuo entre os brincantes. Cada um tem seu momento de saudar o instrumento, de brincar no centro da roda, de ir até o companheiro e realizar a umbigada. Todavia, mesmo quem não esteja no centro da brincadeira, fica sendo um integrante do círculo e com movimentos mais sutis de batidas de pés e mãos dançam e cantam para quem se encontra dentro da roda. Afinal, o que está em jogo é tanto o brilho individual como o esplendor coletivo. Em suas falas, os brincantes evidenciam que também aprendem em contato com amigos da comunidade, nos momentos de lazer e no Coco de Zambê. É um aprendizado social, de relações, de trocas, de experiências de vida.. No que se refere a um saber coletivo no grupo, entendemos que ao longo da história do Zambê seus participantes vem recebendo, criando e recriando informações que se fazem presente em seu cotidiano de modo que lhes permitem estruturar formas de ver e atuar no mundo em que vivem. São conhecimentos históricos sobre as raízes africanas e aspectos da região em que vivem; são valores referentes a sua própria cultura, bem como a de outros povos; são atitudes, comportamentos diante dos significados de cultura para cada um deles. Assim, no Zambê observamos que acontece o resgate do passado numa dinamicidade que o torna vivo e presente no jogo dançado. Desse modo, acreditamos no Jogo de Zambê como sendo sempre novidade. Novidade em seus movimentos, em seu público, nas emoções que sentem e transmitem, em sua vontade de divulgar sua expressão cultural, manifestando-se sempre vivo e contagiante. Desse modo, como afirmação da própria identidade cultural que se revela na sapiência e corporeidade de seus participantes, numa espécie de comunhão com os saberes locais e universais, o Coco de Zambê exerce um papel fundamental na vida da comunidade em que se insere, visto que incorpora valores, atitudes, tradições e significados que contribuem para sua perpetuação no contexto cultural local e ao mesmo tempo absorve e respeita elementos de outros contextos culturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, T. Aprendendo com o Coco de Zambê: Aquecendo a Educação com a Ludicidade, a Corporeidade e a Cultura Popular. (Dissertação de Mestrado). UFRN. Natal/RN, 2000. AMADO, J. Bahia de todos os santos: guias de ruas e mistérios. 33.ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. AUGÉ, M. O sentido dos outros. Atualidade da antropologia. Petrópolis, RJ : Vozes. 1999. BRANDÃO. C. R. Casa de escola: cultura camponesa e educação rural. Campinas: Papirus, 1983. CARNEIRO, E. Folguedos tradicionais. 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