Os crimes contra as mulheres afetam a todos Beatriz Conceição da Costa Orientador: Prof. Dr. Ezequiel de Souza Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus Rio Grande – RS CARTA 1: Querida Prima, Espero que você esteja bem, estou enviando esta carta para mandar notícias sobre mim e contar as coisas que venho vivenciando. Espero resposta. Primeiro, você já sabe que estou investigando casos de assassinatos de mulheres pela minha cidade e arredores, não é ? Recebi uma ligação à noite de minha chefe: uma mulher foi baleada e acabou morrendo, o principal suspeito era seu companheiro, com quem havia terminado o relacionamento há poucos dias. Você sabia que, de acordo com o a ONG Muda Mais: Ruas e Redes, em 27,6% dos casos o agressor é o companheiro? Fui então à procura deste homem; encontrei-o ainda em sua casa com a arma do crime. No interrogatório, ele me disse os motivos que o levaram ao acontecido; esses, eu já imaginava: os dois eram namorados, ela era professora de 25 anos. Tudo ia bem até que ele demonstrou cada vez mais ciúmes; discutiam frequentemente. Ele perdeu o controle e bateu na moça. Depois de uns dias de separação, eles reataram, mas não por muito tempo... Houve agressão física novamente e ela terminou o relacionamento. Então nessa mesma noite, ele foi até a casa de Cristine, estuprou-a e depois atirou nela. Esse tipo de crime, estupro seguido de morte, não deixa à vítima escolha; portanto, ela não tem oportunidade de defesa, pois, como foi dito, ela é morta. O estupro em si sai impune. Para a professora Rita Laura Segato, existe uma linguagem em que as mensagens são dadas por atos, como no estupro... É nosso dever descobrir para quem são elas e o porquê. A meu ver, a diferença de gênero é o principal deles. Ao conversar com a mãe da mulher assassinada, a senhora me contou que ele parecia ser um rapaz bom e que o ciúme só veio mais tarde; ele trabalhava e levava uma vida aparentemente normal. Não havia motivos para não se apaixonar por ele. Na última briga, que veio junto com mais uma agressão, a mulher ficou com marcas muito forte no corpo e no rosto. Isso fez com que ela não saísse de casa por três dias, fato que me fez pensar: Segato está certa, pois ele não queria que SUA mulher fosse trabalhar nem nada disso, pois isso fazia com que ela tomasse responsabilidades que, de acordo com o ponto de vista dele, não cabiam a uma mulher. Sua mãe agora é uma mulher mais velha, triste com tudo... Imagino que ela nunca mais verá alegria em coisa alguma... Como somos egoístas... Nunca tinha pensado nisso antes. Com meu trabalho e com tantas mortes que vejo, a morte dessa mulher jovem me fez ver que apenas vemos a dor dos outros quando passamos por algo parecido... Até isso, somos indiferentes, mesmo que possamos ser a próxima vítima. Segundo o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, na última década, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. A maior parte concentra-se na faixa dos 15 aos 29 anos. Imagine: são 43,7 mil mulheres que não puderam fazer o que desejaram para suas vidas: estudos, amores, experiências, inteligência, beleza... Tudo perdido! Com a morte de Cristine, perdemos uma professora, um futuro, uma vida, uma história que teve o fim antes de realmente começar. Como está na lei, seu agressor vai pagar pelo que fez; mas... Quantas mulheres estão por aí passando por coisas como Cristine? Quantas mortes impunes? Quanta dor e sofrimento de mulheres sem esperança? O cenário é realmente triste. Agora focarei meus estudos e trabalhos neste tipo de crime, o chamado femicídio... Assim que tiver mais o que falar, escrevo novamente. Beijos! CARTA 2 : Querida prima, Hoje escrevo mais triste do que ao fim da última carta. Os acontecimentos pelos quais tive conhecimento me deixaram perplexa: uma menina de 16 anos sumiu de casa, poderia ser apenas uma fuga por amor ou coisas do tipo, mas não era. Ela, ou melhor, o seu corpo foi encontrado enterrado no quintal da casa de seu irmão. Seu corpo tinha marcas de agressão e facadas. O assassino foi seu próprio irmão... É isso mesmo: SEU próprio irmão. O Brasil é o sétimo país no ranking mundial de assassinatos de mulheres, aponta o Mapa da Violência 2012: homicídios de mulheres, com a taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres. Paloma, poderia ser a sua irmã, sua filha, eu ou você... Ela era só mais uma que sofreu as consequências de pensamentos e atos desumanos. Os vizinhos e amigos dela alegaram que ela tinha brigas com o irmão, tendo inclusive registrado ocorrência, alegando sofrer agressões e ameaças de morte. Com esse novo caso, vejo que novamente as relações de poder sempre colocam as mulheres como submissas. Mesmo depois da ocorrência, nada foi feito. Ninguém tinha o direito de tirar a vida dessa garota. O Estado não fez ‘nada’ para ajudá-la. Ela poderia ser uma policial como eu... Ou então, advogada, médica... Alguém que poderia ajudar muitos de nós... Cada pessoa é importante em nossa sociedade. Nem a lei aprovada em 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que aumentou o rigor das punições aos homens agressores, a amparou quando foi preciso. Ainda é preciso melhoras. As mortes por gênero devem ser vistas pelo lado do algoz para serem melhor entendidas. Para eles, as mulheres são a presa fácil, devem seguir suas ordens, são sua posse, propriedade e não têm escolhas. O Data Popular diz que 54% da população conhece uma mulher que já foi agredida pelo parceiro, e 56% conhece um homem que já agrediu a parceira. Precisa-se de números maiores para haver um maior estudo sobre esses acontecimentos? Helena, espero que esteja tudo bem, como vai o Vítor e a pequena Amanda? Escreva. Beijos! CARTA 3 : Querida Mãe, Como isso foi acontecer? Ela era tão boa pessoa, tão amiga de todos, ele era tão gentil e educado... Agora entendo o porquê das cartas que ela me escrevia serem tão sucintas e não me dava muitas notícias... Como eu nunca percebi? Nós éramos tão unidas, e ela nunca me confidenciou o que estava acontecendo. De acordo com o IPEA, 6,42 óbitos por 100 mil mulheres ocorrem na região Norte do Brasil, 6,90 no Nordeste, 6,86 no Centro-Oeste , 5,14 no Sudeste e 5,08 no Sul... Agora Helena faz parte desses números... É muito estranho para mim... Saber que um dos meus colegas está investigando o caso em que minha prima foi assassinada pelo seu próprio marido... O que será da pequena Amanda, que viu a sua mãe morrer com um tiro, sendo que foi seu pai o assassino? Além disso, ela viu todas as agressões que sua mãe sofria... Já posso imaginar que ela terá um futuro conturbado, pois sua mãe não estará com ela para ajudá-la e seu pai é melhor que esteja bem longe. Quando estava começando a perceber vestígios de atitudes e de um perfil para homens que cometem esses crimes, vejo que estava errada: ele não se parecia o tipo de pessoas que faria isso; ele nunca demonstrou ser possessivo nem nada disso. Agora eu faço parte da família de uma dessas mulheres que venho estudando... Vejo como esse acontecimento marca nossas vidas... Não sei se vou confiar em alguém como fazia antes; toda vez que for trabalhar e ver casos como esse, lembrarei dela; sempre que prender um agressor, lembrarei de Vítor... Nunca mais serei a mesma! Irei atrás de Vítor para fazê-lo pagar pelo que fez com Helena. Ela terá justiça. Agora, mais do que nunca, seguirei com essa profissão para ajudar todas as mulheres que passaram pelo que Helena passou. E seguirei com o projeto que ensina igualdade de gênero nas escolas de Ensino Fundamental, pois a prevenção é a parte principal, a sociedade deve parar de criar monstros.