A fome mais mortífera
Algures, num lugar cuja existência é dúbia e até improvável, existia um pequeno país moldado
por guerras e conquistas. A governá-lo estava uma jovem feita da mesma matéria, soberana de
uma monarquia absoluta, conhecida como a “Devoradora de Galáxias”, nome que lhe fora
atribuído pelo povo e a que ela fazia questão de fazer justiça. “Ela podia devorar o mundo e
ainda ter fome”, era o que o povo costumava dizer. A rainha tinha fome de sangue e luxo, uma
sede insaciável de mais e mais. Tais gostos não saíam baratos a ninguém, especialmente ao
povo, que vivia sob a vontade da Devoradora, mas, apesar de tudo, ela era adorada. Parecia ter
uma forma muito particular de encantar todos à sua volta e sabia, perfeitamente, como
manipular aqueles que de outra maneira se virariam contra ela. Apreciavam o seu “esforço”
para ter um país feliz, e apreciavam ainda mais os banhos de sangue que a rainha gostava de
organizar. A Devoradora adorava fazer execuções públicas. Essas demonstrações de poder eram
algo que lhe dava bastante gozo porque, afinal, haveria melhor maneira de mostrar a sua
soberania do que fazer a cabeça dos seus inimigos rolar? E eram muitos, esses inimigos. O povo
aplaudia, vibrava com as execuções, esquecia-se de todos os males que o atormentava e gritava
por mais. Da sua cadeira, a Devoradora acenava e ria. “Um belo dia para uma execução”, dizia
sempre, “não há nada melhor para começar o dia”. Ao seu lado, a sua conselheira acenava
ligeiramente com a cabeça, verbalizando uma palavra de concordância e um elogio à rainha. A
rainha lançava um olhar à sua criada pessoal, que se limitava a acenar com a cabeça. Que
escolha tinham elas, se não queriam acabar com a cabeça dentro de um cesto? Eram belos dias
de paz para todos os ignorantes, dias de abundância e sem fome.
Um dia, durante uma dessas execuções, um membro da populaça subiu para junto da
guilhotina, dirigindo-se à multidão. Gritava palavras contra a rainha, contra a sua forma de
governar e contra o seu estilo de vida. Acusava-a de se alimentar da miséria dos outros, do
sangue que derramavam. A rainha revirou os olhos. Aquele não era o primeiro que tentava
manchar o seu nome e, certamente, não seria o último. No entanto, ao observar a forma como a
pessoa falava e, especialmente, a forma como o povo ouvia, um certo nervosismo pareceu tomar
conta dela. Os que costumavam tentar causar problemas não eram tão articulados. A
conselheira assegurou-a de que tudo seria resolvido, que era apenas um revolucionário medíocre
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a tentar arranjar problemas e que não havia razão para se preocupar. A rainha, no entanto, não
ficou convencida e ordenou que aquela pessoa fosse imediatamente executada. Antes de os
guardas chegarem a ele, este virou-se para a rainha, falando diretamente para ela. Disse apenas
uma simples frase: Nós sabemos. A Devoradora fez um ar confuso, perguntando-lhe o que é que
ele poderia saber fosse do que fosse. O indivíduo limitou-se a sorrir, fazendo uma vénia. “Longa
vida à rainha” foram as últimas palavras antes do carrasco o agarrar e levar para a guilhotina. O
sorriso desapareceu dos lábios da Devoradora. A criada e a conselheira apenas observavam,
lançando olhares nervosos à sua soberana. A fome da rainha estaria saciada por pouco tempo.
Este episódio perturbara a Devoradora mais do que ela gostaria de admitir. Apesar dos seus
esforços para manter uma certa postura, sabia que a realidade era muito diferente daquilo que
aparentava. O reino estava na miséria devido aos gastos luxuosos, e ela estava ciente dos
revolucionários prontos a tirar-lhe a coroa ao mais pequeno deslize. Pediu conselhos à
conselheira que lhe garantiu que estava tudo sob controlo. A sua criada pessoal apenas
observava, calada. A rainha mantinha-a cada vez mais junto de si.
A Devoradora decidiu que precisava urgentemente de se proteger. Os seus inimigos estavam a
ganhar terreno e isso não podia acontecer. Decidiu mandar chamar o rei do país vizinho,
soberano de um país rico, amigável e, mais importante que tudo, poderoso. Recebeu o rei da
melhor forma, com sorrisos amigáveis e boas maneiras. O rei ficou encantado e, quando a hora
de fazer o acordo chegou, a rainha estava certa que conseguiria o que queria. Pediu a todos que
saíssem, exceto a sua criada. O rei perguntou se não seria melhor esta sair, visto que podia
revelar a conversa a terceiros. A rainha riu e assegurou-o que não tinha de se preocupar, tudo o
que dissessem não sairia daquelas paredes. A Devoradora apresentou a sua proposta: faziam um
casamento arranjado, uniam os reinos, e ambos beneficiavam com isso. Assegurou-o que não era
uma questão de amor mas sim de necessidade, ele poderia ter as amantes que quisesse e a
única coisa que a rainha pedia era que ele a apoiasse nas suas causas. O rei, para surpresa da
Devoradora, não aceitou. Disse que tinha alguém com quem pretendia casar, alguém que
realmente queria a seu lado e nem a aliança com a famosa Devoradora de Galáxias o faria
abdicar. A rainha ficou furiosa, um sentimento de humilhação a crescer nas suas veias. Como se
atrevia ele a recusar termos tão favoráveis? Com o ego ferido, mandou o rei embora e ordenou
que fossem buscar a tal rapariga o que rei tanto adorava. A rapariga foi levada à sua presença
alguns dias depois e, para surpresa da rainha, não passava de uma simples rapariga do povo.
A Devoradora examinou-a com atenção. A pobrezinha tremia de medo perante ela. Não havia
nada de especial nela, não era rica, não era especialmente bonita, nada. Porque é que o rei
gostava tanto dela? Porque é que ele preferiria alguém como ela quando podia ter uma rainha?
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Perguntou-lhe o que fazia dela tão especial e, inocentemente, a rapariga respondeu que não
sabia. A resposta da plebeia contribuiu apenas para aborrecer ainda mais a rainha. Virando-se
para a sua conselheira, ordenou que a rapariga fosse executada de imediato. A conselheira
olhou para a sua rainha, interrogando-a se seria realmente uma boa ideia. Iria provocar uma
guerra, uma revolução! O rei nunca deixaria tal coisa passar impune! No entanto, a rainha não
quis ouvir. Se ela não podia ter o que queria, então quem a humilhara também não. Ela estava
faminta e iria alimentar-se.
Quando se realizou a execução da rapariga, o povo não aplaudiu. Um borborinho estranho
tomou conta da praça quando a multidão murmurava entre si. Até então a rainha tinha apenas
executado, pelo menos publicamente, os seus inimigos e os inimigos do país, mas agora virara-se
contra os seus, contra uma rapariga inocente. A multidão pareceu aperceber-se da natureza da
mulher que se sentava no trono do país em que viviam e, de repente, o peso da reprovação
pesou sobre os ombros da rainha. A criada observava-a, calada, vendo nos seus olhos algo que
nunca vira: medo. Tudo estava prestes a mudar por causa de um simples ato de egoísmo. O
buraco no seu estomago pareceu ficar mais fundo.
As manifestações começaram não muito depois disso. Parecia que bastara uma pequena faísca
para que tudo o que a Devoradora tinha trabalhado tanto para alcançar fosse consumido em
chamas e lhe fugisse por entre os dedos como água. Então era isto que os seus súbditos
chamavam de retribuição? Ela que fora tão gentil para eles, e agora eles faziam um escândalo
por causa de uma simples rapariga morta! Absurdo, pensava ela, cega pelo seu ego, não
percebendo que era muito mais do que isso. Estava tudo a vir ao de cima: o estado dos cofres do
país, a verdadeira miséria do povo, tudo. A rainha não compreendia como ela tinha mantido
tudo em segredo, tudo fechado a quatro chaves. Lembrou-se das palavras do homem naquele dia
na praça: “Nós sabemos”. Apercebeu-se que alguém dentro dos assuntos tinha partilhado essa
informação, mas agora era tarde demais para fazer fosse o que fosse. Amaldiçoou-se a si própria
e à sua estupidez por confiar que a sua fachada duraria para sempre. O povo pareceu aperceberse das suas próprias condições, que a rainha lhes tinha mentido vezes sem conta sobre o estado
do país e que ela era, na verdade, uma tirana faminta de caos e crueldade. Os grupos
revolucionários começavam a juntar apoiantes e, juntamente com o exército do rei que a
Devoradora tinha ofendido, destruíram os aliados da rainha um por um.
À medida que os dias passavam, parecia haver mais e mais problemas. Era impossível sair do
palácio, era demasiado perigoso. Os revolucionários tinham cada vez mais apoiantes e os que se
mantinham do lado da rainha estavam a ser dizimados A sua conselheira tinha fugido, imaginava
ela, e os restantes fugiam aos poucos com medo de serem levados quando o castelo fosse
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tomado pelos revolucionários. Em breve, estava sozinha naquela luta, como um animal ferido e
encurralado pelos caçadores.
Sozinha, sentada no seu trono, a Devoradora pensava. O que podia ela fazer? Por muito que
pensasse, não chegava a uma conclusão. Era tarde demais. A sua imagem estava arruinada por
causa de um erro idiota, por achar que ainda havia espaço de manobra para os seus caprichos. A
sua fome tinha sido o seu pecado. Ao seu lado, a criada, a única que se mantivera do seu lado,
mantinha-se quieta, sentada, a observar a rainha. Lá fora, o som dos revolucionários fazia-se
ouvir, cada vez mais perto, cada vez mais aterrador. De repente, o som do portão principal a ser
arrebentado ecoou pelas paredes do castelo. A Devoradora entrou em pânico. Ela não esperava
que eles viessem atacá-la, diretamente, tão cedo. Se a multidão tinha entrado no palácio, já
não havia nada que a protegesse, não tinha para onde fugir. Apercebeu-se que estava na hora de
fazer alguma coisa se quisesse sobreviver. Fazer algo que já planeara há muito tempo no caso
das coisas correrem terrivelmente mal. Agarrou no braço da sua criada e arrastou-a consigo.
Levou a rapariga para o quarto e ordenou-lhe que tirasse as vestes de criada. A rapariga,
apavorada, obedeceu, revelando a sua cara normalmente coberta pelo gorro que todas as
criadas usavam. A Devoradora teve a sensação de estar a olhar para um espelho enquanto
examinava a cara da irmã gémea, algo que não via de forma tão clara há muitos anos.
As duas irmãs tinham sido criadas naquele mesmo palácio, mas a Devoradora sempre fora mais
favorecida. A deficiência verbal da outra irmã, a sua mudez, fizera com que esta fosse posta de
parte toda a sua vida. Fora-lhe dito vezes sem conta que nunca iria governar o reino, que iria
viver sempre na sombra da irmã, uma inútil. Fora com essa mentalidade que crescera, e a
pobrezinha mantinha-se sempre submissa, sempre sem poder verbalizar os seus pensamentos.
Poucos sabiam da sua existência, e os que sabiam pareciam não se importar. Quando os pais
morreram e a Devoradora subiu ao trono, foi decidido que a irmã morreria, não de forma literal,
mas para que a sua existência fosse esquecida. Os retratos foram queimados e foi anunciado
àqueles que sabiam da sua existência que esta tinha morrido de uma febre repentina com o
desgosto da morte dos pais. Em breve, fora como se ela nunca tivesse existido. A irmã ordenaralhe que esta passaria a ser sua serva, que se manteria sempre a seu lado e que nunca mostraria
a ninguém quem ela era. A pobre criança não tivera escolha senão aceitar esse estilo de vida,
não muito diferente daquele que tinha vivido até ao momento. E agora ali estava, numa
situação que talvez tivesse sido planeada desde o início. Um plano B para a rainha.
A Devoradora vestiu as roupas de serva e começou a preparar a irmã. Vestiu-a com o seu melhor
vestido, o mais pesado e o mais rico em joias, penteou-lhe o cabelo, preformou-a, maquilhou-a
e, finalmente, pôs-lhe a pesada coroa de ouro na cabeça. Estava igualzinha à verdadeira rainha,
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tirando a expressão de puro terror que lhe contorcia as faces, os olhos esbugalhados, enquanto a
realidade da situação pesava sobre si. A Devoradora sossegou-a, passou-lhe a mão na cara
suavemente e disse-lhe que tudo acabaria em breve e que nunca mais teria de se esconder, que,
finalmente, a sua existência faria sentido, que seria útil pela primeira vez na vida! A gémea
chorava desesperadamente, tentando pedir misericórdia, mas, muda, não conseguia dizer uma
única palavra. O som dos revolucionários no outro lado das portas do quarto parecia cada vez
mais perto, mais raivoso, mais mortífero. A rainha lançou um olhar nervoso para a porta. Por
fim, estava na hora. Deu um beijo no topo da cabeça da irmã, os seus lábios um toque suave de
afeição fingida e, com um sorriso, sussurrou: “Foi uma boa decisão manter-te por perto”. Num
movimento rápido, levantou-se e fugiu para se esconder. No centro do quarto, sentada no chão,
a irmã gémea chorava o seu destino. Não havia como fugir, não se podia esconder. Era
demasiado tarde, já não havia esperança para ela. Os revolucionários, aos berros, finalmente
entraram no quarto brandindo as suas armas e apontando-as à mulher no centro do quarto. À
frente dos revolucionários estava a própria conselheira da rainha, brandindo uma arma apontada
diretamente à cara da falsa rainha. A rapariga engoliu em seco, a sua garganta áspera, e secou
as lágrimas com as costas da mão e, num último gesto de dignidade, levantou a cabeça e sorriu
um sorriso digno da verdadeira rainha.
Na manhã seguinte, uma manhã chuvosa e escura, parecia que todo o reino se reunia no largo
da praça da guilhotina. Os mesmos que antes gritavam palavras de apoio à rainha agora gritavam
louvores à sua morte, lutando por um lugar na fila da frente da sua execução. A substituta da
rainha olhou para as escadas que levavam à guilhotina e desejou que fossem mais altas. Cada
passo que dava arrepiava-a até aos ossos, mas não se permitiu ter medo. Quando a conselheira
da ex-rainha lhe perguntou quais seriam as suas últimas palavras, ela apenas sorriu. Era doloroso
fazê-lo, mas que mais podia ela fazer? Na multidão, as pessoas berravam ofensas. Como era
possível que alguém que fizera tanto mal não ter sequer um pedido de desculpas para fazer? A
falsa rainha continuou a sorrir, um sorriso trémulo e cheio de dor, perguntando a si mesma
porque é que o destino ditara que as coisas fossem assim.
No meio da multidão, a verdadeira Devoradora observava, com um capuz sob o rosto e uma
larga capa a cobrir o corpo. Mantinha-se calada, imóvel, apenas observando, como a sua irmã,
que agora tinha a cabeça sob a guilhotina, costumava fazer, a sua cara a réplica de uma
estátua. O carrasco empurrou a cabeça da falsa rainha para a barra enquanto o tambor que
anunciava a sua execução tocava. Ao olhar em frente, o seu olhar cruzou-se com o da
verdadeira rainha. Fechou os olhos recheados de lágrimas e deu um último soluço de tristeza. O
tambor parou e o silêncio caiu sobre a praça enquanto a lâmina caía sobre o pescoço da jovem
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mártir. A sua cabeça a cair dentro do cesto produziu um som seco e a multidão gritou de
alegria. Estava feito.
A verdadeira Devoradora suspirou de alívio, ao mesmo tempo que suprimia a vontade de rir.
Quem diria que tal plano iria resultar.
Com um pequeno sorriso nos lábios, murmurou para si mesma o que sempre dizia: “Um belo dia
para uma execução… Nada melhor para começar o dia.” A Devoradora puxou o capuz da capa
mais para cima dos olhos e virou costas à multidão e à guilhotina, à coroa e ao reino que ela
tinha construído e corrompido para nunca mais voltar. A sua fome tinha matado, mas não fora
ela a vítima.
Autora: Andreia Patrícia Santos
11º Ano
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