Patologizando Machado de Assis:
Simão Bacamarte e a possibilidade de enlouquecer.
Patrícia Eugênio
Resumo
Onde foi parar aquele gentil catador de latinhas que toda a vizinhança tratava como
um louco inofensivo? Uma imagem mítica que pairava pelo imaginário e pelas ruas de
nossas infâncias. Ruas agora asfaltadas pela utopia de uma felicidade perene.
A partir da teoria sobre o patologizar de James Hillman, o conto “O Alienista”, de
Machado de Assis, será revisto e interpretado com o intuito de trazer uma reflexão
sobre o lugar da loucura na sociedade. O quanto de Simão Bacamarte carregamos
dentro de nós e o quanto do desejo apolíneo nos escapa em nossos consultórios, a
fim de trancafiar o esquisito que há em cada um de nossos pacientes. Qual o
simbolismo da Casa Verde nos dias atuais, onde estão depositadas as almas que não
se encaixam em uma sociedade padronizada, que preconiza a produtividade e suas
implicações nos sofrimentos da psique.
I) O Alienista.
Simão Bacamarte é um médico psiquiatra que se estabelece na cidade de Itaguaí,
com a intenção de banir toda e qualquer possibilidade de loucura. Inaugura a Casa
Verde, um tipo de hospício, onde acaba por trancafiar a população por ele acreditada
como louca. Bacamarte prega que a saúde da alma é a ocupação mais digna do
médico.
Ele se orgulha em dizer:
"Estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos,
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu
coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade".
Incentivado pelo positivismo que domina a época, procura a confirmação de suas
hipóteses delirantes. Dotado de uma volúpia científica, Bacamarte mais se assemelha
a um cavaleiro andante: sua espada quer fazer rolar cabeças desviantes dos padrões
de normalidade por ele determinados.
Forças errantes, exageros, misérias, mentes hesitantes, todos alvos de sua ciência.
Os loucos por amor, os com mania de grandeza, fervores religiosos, todos submetidos
a um estudo contínuo. Qualquer imprecisão e delicadeza de distinções é
rigorosamente anotada como ponto fora da curva. Bacamarte alimenta-se da fantasia
de extinguir diferenças e esquisitices.
O espírito humano é comparado por ele a uma concha de onde deverá ser extraída a
pérola da razão, delimitando assim as áreas da sanidade e da loucura.
"O perfeito equilíbrio de todas faculdades. Fora daí, insânia, insânia e só insânia…"
diz ele.
Bacamarte e seus gráficos dão medo até ao mais heróico cidadão. Alheio às
desconfianças que provoca a despeito de seus métodos, o médico segue firme com
olhos cravados no futuro, celebrando a possibilidade do paraíso da razão. A Casa
Verde chega ser ocupada por 4/5 da população de Itaguaí. Trancafia do presidente ao
melhor amigo, faz uma coleta desenfreada, nem sua esposa escapa da sua
abnegação, mesmo amando-a com forças da alma - ele é um servo da ciência.
"Hipócrates forrado de Catão", diz o contista.
Eis que um dia a notícia é dada: o médico psiquiatra resolve soltar todos os loucos da
Casa Verde. Simão Bacamarte, em documento redigido à governança, solicita sua
própria, única e exclusiva reclusão na Casa Verde. A dele e de mais ninguém: apenas
ele mesmo é dotado da perfeição, do equilíbrio mental e moral fundantes de um
homem racional, sagaz, paciente, tolerante e leal. Legitima por meio dos amigos sua
impressão de homem perfeito. O ilustre médico trancafiado na Casa Verde entrega-se
ao estudo e à cura de si mesmo. O boato que corre em Itaguaí é de que Simão
Bacamarte é o único louco que a cidade um dia conheceu. Morre depois de 17 meses
de internação, levando consigo o que trouxe ao nascer: apenas incertezas.
II) O Patologizar de James Hillman.
A partir do capítulo "Patologizar ou Desintegrar-se", retirado do livro "Revendo a
Psicologia", e "Sobre a Necessidade de uma Psicologia do Comportamento Anormal
Ananke e Atena", do livro "Encarando os Deuses", ambos de James Hillman, darei um
breve panorama do conceito do Patologizar.
Patologizar: capacidade autônoma da psique para criar doença, morbidez, desordem,
anormalidade e sofrimento, em qualquer aspecto do seu comportamento, e de
vivenciar e imaginar a vida por essa perspectiva deformada e atormentada.
A patologização é uma expressão autêntica da alma, expressão encontrada na
depressão, na ansiedade, nas profundezas para as quais a vida real sempre retorna. É
também uma necessidade dessa forma penosa e maçante, como tudo o que é
necessário. No mito grego, essa ideia é vivenciada por Ananke, uma ideia tomada pelo
intransitável, pelo inacessível, a trama do destino que se torna irreversível. Não há
saída, não há outro modo de ser: a alma passa sob o trono da necessidade e, dessa
forma, entra no mundo passando sob o trono de Ananke, aquela que determina a vida
psíquica desde o início. Esse movimento anormal aterrorizado e louco da alma não é
apenas necessário, é a própria necessidade.
A necessidade não finda, atividade errante e perturbadora. Compreender o lugar que a
patologização ocupa é compreender a necessidade da patologia.
O desejo de identificação com os grupos, o esforço pela adequação e pertencimentos
sociais estão intimamente ligados com o pavor de se reconhecer na patologia, pois é
lá que se encontram os aspectos psicológicos da individualidade. A melhor forma de
esquivar-se do próprio patologizar é mimetizar-se na multidão.
Na abertura do capítulo "Patologizar" encontramos a citação de Freud: "...nada mais
estrangeiro ao ego que os sintomas". Os sintomas dão as dicas: as tragédias e dramas
pessoais nos diferenciam. Eles são aquilo que se recusa a aderir à norma, e a alma muito
deve a eles, condutores nesse caminho, fundamentais nessa interlocução. A defesa de
uma psique patológica fala em não se livrar da aflição, mas ficar com ela tempo suficiente
para validar sua autenticidade – o sintoma como algo que resiste à mediocridade.
Hillman, em uma linguagem mitopoética, conta que as figuras dos mitos, briguentas,
destrutivas, vulneráveis, estão longe de ser um modelo de perfeição. Logo, fazem-nos
crer que as fantasias de normalidade são um deslocamento humano.
Pensar mitologicamente libera a alma para a ideia de doença no arquétipo, algo bem
diferente do arquétipo da doença.
Hillman propõe "a patologização como um componente inerente a cada complexidade
arquetípica, que tem sua própria possibilidade cega, destrutiva e mórbida" – a morte
como possibilidade, ainda que os deuses sejam imortais. Sem devolver aos deuses
cada enfermidade, não encontraremos lugares adequados para os fenômenos
mórbidos.
A doença psíquica permanece como uma categoria arquetípica da existência, não
importando como é definida com o passar dos tempos – a fantasia em si continua.
Já sabiam os alquimistas fazedores de alma, os artistas e pintores que a morada da
alma não está em divindades acima dos picos, mas sim nos brejos de nossos medos,
em nossos horrores. O lugar da alma está nos excessos, nas mentes exitantes, nas
forças errantes. No suicídio, no divórcio, na mesquinharia, no desengano. Está ligada
à carne e ao espírito e tem regras próprias. A alma habita em seu reino próprio, e
Simão Bacamarte erra feio ao tentar trazer a alma para superfície, roubando-lhe sua
profundidade e intensidade devidas.
III) Simão Bacamarte e a Sombra do Analista.
1882 – Machado de Assis, com a costumeira genialidade, ironiza a sanha do
renomado médico psiquiatra, Simão Bacamarte, em encontrar a régua que ofereça as
medidas exatas da loucura.
1970 – James Hillman, psicólogo pós-junguiano, fundador da psicologia arquetípica,
um filho de Ares, desbravador, inquieto e não menos genial que Machado de Assis,
define o patologizar como um caminho autêntico da alma.
De um lado, o médico imbuído em encontrar a resposta única – um remédio universal
que salvasse o mundo de todos os males. Do outro, o psicólogo pluralista avesso a
respostas únicas e mentes maculadas; ambos encerrados em suas certezas, regidos
por um estilo heróico de insights e soluções, fechamentos e conclusões, cada um a
seu modo. E se a psique cria realidade diariamente, e a essa atividade damos o nome
de fantasia, temos aqui dois personagens ficcionais .
Na cultura somática em que vivemos hoje, onde estão localizados esses dois
personagens? O elogio à produtividade, à higienização das dores, o bombardeio para
se pensar apenas positivo, o surto motivacional e o massacre da tristeza: essa é a
grande guerra que a alma patologizada de James Hillman precisa enfrentar. O
bombardeio diário do "seja feliz a qualquer custo".
O convite aqui colocado é para uma reflexão sobre como nós, analistas junguianos,
temos nos comportado neste front. As feridas podem ficar abertas com secreções
purulentas? A dor insuportável do paciente é suportável para o analista ou
rapidamente empunhamos nossa espada forjada no mesmo fogo que a de Simão
Bacamarte?
As individualidades dos pacientes são bem-vindas em ato criativo? Naquilo que é
estranho a nós? Ou validamos apenas sonhos repletos de simbolismos localizados
com facilidade no léxico junguiano em ações socialmente bem aceitas, em
comportamentos dentro da norma? Há um alívio quando tudo corre dentro dos
parâmetros da normalidade. Vamos confessar: todos nós compartilhamos de um
delírio coletivo de normalidade; mas o que a alma quer tambem é dar vivas às
maldições, às diferenças e esquisitices. Ter um sintoma para chamar de seu: é o que
coloca James Hillman e Simão Bacamarte em cadeiras opostas da sala.
A psicologia arquetípica constrói-se muito mais sobre as obscuras percepções de
Freud e Jung, seu pessimismo dosado e as movimentações sombrias, do que no
desejo de ternura, liberdade, fé, justiça que ameaçam jogar a sujeira para debaixo do
tapete. A pseudoelevação espiritual coloca em risco o que a psicologia tem como
meta: a alma, não em sua salvação, mas em sua perdição.
Acolher a alma é levar em conta suas imagens sangrentas e obscenas, as fantasias
destruidoras como algo legítimo e necessário.
Outro dia, um paciente trouxe em seu relato uma imagem bastante interessante.
Acostumado a frequentar a fazenda de sua família, evitava a todo custo a ida nos
estábulos e currais. A razão era o forte cheiro de estrume que ambos os lugares
exalavam. Porém, tão forte quanto o cheiro do lugar, era a sua adoração pelo leite
tirado da vaca – a natureza que fede, mas que também alimenta. Contou que a última
vez em que esteve na fazenda, munido de duas xícaras de café, foi com seu filho mais
novo ao curral completar as xícaras com os jorros de leite que só uma vaca pode
oferecer. "O cheiro de estrume que sempre me incomodou" disse ele, "foi ficando mais
fraco e logo deixou de me incomodar. Fazia parte daquele ambiente, aquele era de
fato um lugar que cheirava a merda… Eu e meu filho ficamos lá dentro, sentados,
saboreando o café com leite. Tive ânsia, mas resolvi aguentar”.
O curral, a ânsia, a merda, o homem, a vaca, a resignação, o leite, a criança e o
desejo: personagens de uma imagem patologizada.
A volúpia científica força uma aproximação da postura do psicólogo à postura médica,
servidores da alma para tratadores da alma. Mas será este tratador o que está mais
afeito a receber essa alma que não fala a língua do ego? Alma canhota, profunda e
paciente em conhecer-se a si mesma e a suas imagens peculiares, indiferente à
resolução de enigmas. Alma que não quer ser explicada ou experienciada por meio de
imagens, sejam elas quais forem. A moral religiosa, o juízo de valor conseguirão ficar
do lado de fora desta festa? Deus e o Diabo foram convidados. Estamos prontos para
abandonar o impulso de Bacamarte em expurgar os incômodos, feito pragas
peçonhentas a destruir o lindo jardim: tulipas e rosas em uma depressão de águas
paradas, um pântano de incertezas.
O mundo cartesiano em que Simão Bacamarte está inserido nos remete ao uso dos
diagnósticos, que invadem cada vez mais a prática clínica do analista.
As razões são diversas, desde um desejo deliberado em aproximar-se do modelo
médico até a burocracia de uma plano de saúde, mas as exigências impulsionam ao
uso do DSM. Lançar mão dos critérios diagnósticos classificatórios pode ser algo
necessário, acreditar neles é outra questão. A postulação do que é doença, qual o
tempo de luto adequado, quais as tolerâncias e inquietudes que pertencem a esta ou
aquela síndrome faz este manual ter suas janelas pintadas de verde – assemelhandoo à Casa escrita por Machado. As diferenças são institucionalizadas pela
arbitrariedade de Simão Bacamarte. Seja entre as páginas ou as paredes, nos
consultórios ou na fictícia Itaguaí, há uma psique aprisionada.
Quem guia nossa prática? A confusão, incerteza e morbidez da alma ou os claros
diagnósticos preconizados pelo DSM? A loucura tem sua lógica, a lógica da
incoerência e ensina o método a partir de uma perspectiva mítica e não pelo viés do
conceito de saúde mental, preconizado pela fantasia de normalidade.
O que antes era apenas um ditado popular "para tudo há remédio" passou a ser uma
máxima nas condutas psiquiátricas. Não cabe aqui demonizar os uso das medicações,
tampouco desprezar a importância de diagnósticos psiquiátricos, porém insisto na
simetria do louco Simão para nossos tempos. Na varredura social dos
comportamentos extraviantes, o alienista apontava, no modo de viver de cada um, a
força singular do patologizar. Se hoje as Casas Verdes não existem em tijolos,
tratamos de trancafiá-los em um diagnóstico psiquiátrico: sou bipolar, sou ansioso, sou
depressivo.
A dor da alma para a definição do eu.
Logo, medicar os desconfortos emocionais, para além dos transtornos psiquiátricos,
seria novamente retirar das ruas problemas sociais, como aborto, alcoolismo,
homossexualidade e drogas para categorias postuladas pelas instituições. Novamente
da Casa Verde para o DSM.
O que deveria pertencer à condição humana tornou-se doença: tristeza, frustrações,
angústia, decepção.
O remédio para todos aqueles que não gozam da satisfação plena de viver; términos
de namoro, ansiedades profissionais, insônia, baixo rendimento escolar, intolerância
às frustrações mais diversas.
O comportamento dito inadequado é visto como sintoma.
A depressão passou a ser sinônimo de não pertencimento, cabendo à medicina
devolver ao sujeito esse lugar perdido em um mundo performático. Não basta apenas
a ausência de dor, faz-se necessário render.
Merecemos ser felizes o tempo todo. O descompasso entre o que somos e o que
queremos ser marcam essa impossibilidade.
Convocados ao consumo, acreditamos na potência dos sapatos novos aos
consultórios psiquiátricos, investindo assim todas as nossas fichas em busca da tal
felicidade.
Bibliografia
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––––––––––––––– Re-vendo a Psicologia - Vozes - 2010.
_______________ Suicídio e Alma - Vozes - 2011.
_______________ O Mito da Análise - Paz e Terra - 1984.
Aguiar, Adriano Amaral de - A Psiquiatria no Divã - Relume Dumara - 2004.
Birman, Joel - A Psiquiatria como Discurso da Moralidade - Graal - 1978.
Brum, Eliane - Acordei Doente Mental - Revista Época Digital - artigo publicado em
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Granato, Luis - O veneno de hoje é o remédio de amanhã: reflexões sobre drogas e
psicotrópicos na sociedade da performance - COSMOS E CONTEXTO, N.15 -fevereiro
de 2013
Martins, Anderson - O Governo da Conduta: o poder médico e a liberdade dos
indivíduos na sociedade contemporânea - tese de doutorado - UNICAMP 2012
Trabalho realizado por Patrícia Eugênio.
Psicóloga formada pela FMU, atua em consultório particular.
Especialização em Psicodinâmica de Adultos – Sedes Sapientiae, término 2002.
Especialização Farmacodependência – PROAD, término 2004.
Candidata a membro analista IJUSP – término 2013.
Participação em grupos de estudos com Gustavo Barcellos e Marcus Quintaes.
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