HOMILIA NA MISSA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS 2014 O refrão do salmo que nós cantamos é: “Tratastes com bondade vosso servo, Senhor.” Este salmo está na sequência dos últimos versículos do Livro de Jó que acabamos de ouvir na primeira leitura. Todos nós conhecemos a história de Jó. Um homem rico, com muitos filhos, fiel a Deus, a quem o demônio pediu para perder. Deus disse ao demônio: “pode fazer tudo, mas não mexa com ele.” Jó perde os filhos, os rebanhos e, assim, quando foi questionado: “você é fiel e perdeu tudo”, ele diz: “Deus deu, Deus tirou. Bendito seja o nome de Deus!” Não contente, o demônio chega para Deus e diz: “ele não o traiu, não o abandonou, porque não mexeu com ele”. Deus disse: “você pode fazer o que quiser, menos tirar a vida dele.” E Jó aparece todo coberto de feridas. Quando os amigos dele o questionam por ele ser fiel e tudo aquilo acontecer com ele, Jó diz: “nu saí do ventre de minha mãe, nu devo voltar. Bendito seja o nome de Deus!” Esta fidelidade vai ser questionada por seus amigos e, ainda assim, Jó se mantém fiel. Chega em um determinado ponto que ele diz assim: “Eu sei que o meu redentor vive e eu o verei com os meus olhos, não com os olhos dos outros.” E assim vai até o final. No final, Deus entra na conversa e questiona por que Jó se mantém fiel e Jó diz que se mantém fiel porque sabe que, um dia, Deus o restauraria. É o que acabamos de ouvir. Então: “Tratastes com bondade vosso servo, Senhor!” Quando nós olhamos para a pessoa de São Francisco, dá para nós fazermos a relação, sem nenhuma dificuldade. Francisco também era rico. Filho único de um dos mais ricos, se não, o mais rico, comerciante da cidade de Assis. Porque os comerciantes é que eram ricos. Ele também acaba deixando tudo e ninguém compreende quando ele faz isso. Todos caçoavam dele. O pai o deserda. Tem aquela cena clássica, quando ele se despe diante do Bispo e o Bispo o recobre com o seu manto. Ele sai e, na porta da cidade, encontra o mendigo. Ele tira o manto e cobre o mendigo. E Francisco vai assim sua vida toda e, cada vez mais, encontra pessoas que comungam com ele. No mesmo espírito, sentindo a necessidade de seu tempo, de uma mudança, porque não podia continuar o mundo do jeito que estava. E esse grupo foi aumentando e, quanto mais aumentava, mais eram taxados de loucos, por seguirem um rapaz que chamava a Pobreza de irmã. Aquele rapaz conversava com passarinho, conversava com cachorro, conversava com lobo. Até o fim da vida foi assim. E por que isso? Porque quando nós ouvimos o evangelho de hoje, Jesus diz assim: “"Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. (...) Felizes os olhos que veem o que vós vedes! Pois eu vos digo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vós vedes, mas não viram, ouvir o que ouvis, mas não ouviram". Tanto que, na história de Jó, ele podia compreender que tudo aquilo que acontecia com ele não era definitivo, porque ele não se valeu sequer de sua fidelidade. Mas se valeu da confiança naquele Deus que ele havia amado a vida inteira. Francisco, a mesma coisa. Francisco se fez pequeno, se fez simples, se fez pobre. E só porque se fez pequeno, se fez simples e se fez pobre, é que consegue entender o que Deus espera dele, o que ele poderia fazer, porque ele confiava, sem restrição, naquele Deus em que acreditava. Por isso, Francisco viu coisas maiores do que o que todos viam. Ele conseguia enxergar naquele Crucificado muito mais do que qualquer outra pessoa no seu tempo. Ele conseguia enxergar muito mais que muitos gostariam de enxergar e ouvia muito mais do que muitos gostariam de ouvir. Na realidade, São Francisco viveu tudo aquilo que nós rezamos na segunda parte da Oração de São Francisco: “Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado, compreender que ser compreendido, amar que ser amado, pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado”. Talvez um dos pontos mais difíceis no mundo hoje seja esse. Nós queremos nos valer de nosso conhecimento, da nossa soberba, daquilo que nós pensamos que compreendemos para entender as coisas de Deus. Nós nunca vamos conseguir entender assim. Nós nunca vamos compreender realmente o que Deus espera de nós. Porque nós estamos muito mais preocupados hoje em ser consolados que consolar, em ser amados que amar, em ser compreendidos, em ser perdoados do que fazer como Francisco fez. E aí, então, Francisco viveu em plenitude a última frase: “E é morrendo que se vive.” Ele morreu para si mesmo para viver para aqueles leprosos que Deus colocou no caminho dele. Não viveu para os ricos, nem viveu pelos ricos, mas para os pobres e leprosos que Deus colocou na vida dele. Hoje nós damos muito mais valor ao dinheiro, ao poder, ao conhecimento, à inteligência, à posição que ocupamos na sociedade ou na comunidade, nos elogios que recebemos. Tudo que nos impede de vivermos aquilo que Francisco viveu. Durante nove dias nós refletimos sobre a primeira parte da oração atribuída a São Francisco. Belíssima. Mas, se nós não vivermos a segunda parte, nós seremos incapazes de viver as nove propostas da primeira parte da oração. A decisão de viver tem que partir de nós e não de Deus. Tem que partir de nós e não de São Francisco. Por isso que, neste ano, para quem fez os nove dias, se nós olharmos todas as homilias, sabe muito bem que não estou falando nenhuma novidade. Tudo isso nos foi dito ao longo desses nove dias.] Por isso, comentava ontem com Dom Moacir: esta novena, neste ano, foi providencial, para cada um de nós parar e refletir até onde está disposto a viver a segunda parte da oração se quiser viver a primeira e ser tratado também com bondade da parte do Senhor. Teremos um ano agora, até a próxima novena, para ruminar tudo o que aprendemos, não partindo de nossa inteligência, mas partindo da inteligência de Deus. A mesma inteligência que usou Jó ao longo de todo o seu livro. A mesma inteligência que conduziu São Francisco ao longo de sua vida e, que, junto com ele, tantos que vieram depois dele, sejam seus frades, sejam as irmãs por ele criadas, sejam leigos e leigas que, ao longo da História, aprenderam a viver o mesmo espírito que Francisco viveu. Aí, nós também poderemos ver coisas maiores que aquelas que nós vimos até agora. E, aí sim, conhecermos quem é esse Pai que o Filho vem revelar para nós. Mas, para isso, nós teremos que nos fazer pequenos, diante de Deus, porque o senhor da soberba também é o senhor do Inferno. Eu não quero a parte do Inferno. Nenhum de nós quer a parte do Inferno, mas, se não tomarmos cuidado, um escorregão é muito fácil. Podemos cair a qualquer momento. Porque é isso que ele quer: fazer o que ele fez com Jó, apertar até onde não dá mais. Só que Jó soube resistir. Não sei se alguém de nós, diante de tantas propostas que o mundo nos faz hoje, terá a mesma força. Se nos fortalecermos na condução do Espírito, poderemos resistir. Se não. Cairemos e cairemos sorrindo, achando que estamos levando vantagem. E aí, infelizmente, não poderemos cantar: “Tratastes com bondade vosso servo, Senhor!” Assim como fez com Jó, como fez com Francisco, é o que Deus quer fazer com cada um de nós. Pe. Luiz Henrique Bugnolo Pároco 04/10/2014