Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC
Vitória – 2008
ISBN - 978-85-61621-01-8
Espaços de produção e deslocamentos de músicos na Tríplice Fronteira (Brasil
/ Argentina / Paraguai)
Geni Rosa Duarte *
Emilio Gonzalez **
Resumo
Esta comunicação refere-se à pesquisa desenvolvida entre músicos que vivem e atuam na
chamada Tríplice Fronteira, compreendendo as cidades de Foz do Iguaçu, no Brasil, Puerto
Iguazu, na Argentina, e Ciudad del Este, no Paraguai. Coloca em confronto a trajetória de
dois músicos ali residentes: Raul Garnica e Negendre Arbo. Discutindo questões que os
aproximam e os distanciam, o trabalho procura chamar a atenção para a discussão dos papéis
desempenhados por uma dada produção musical regional no processo de desconstrução e/ou
construção de identidades sociais políticas de luta e resistência , expondo os riscos que se
corre quando se tenta homogeneizar sujeitos e grupos sociais distintos e em constante
movimento.
Palavras-Chave: músicos, fronteira, música regional, identidades.
Este texto refere-se a uma pesquisa ainda em desenvolvimento, que consiste em levantar
questões e discutir problemáticas a partir das vivências de músicos brasileiros, argentinos e
paraguaios, bolivianos, etc. que atuam profissionalmente – ou atuaram – na cidade de Foz do
Iguaçu. Nosso objetivo é compreender as múltiplas dimensões da situação de fronteira,
*
Doutor em História Social. Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE –
campus de Marechal Cândido Rondon, PR. Email: [email protected].
**
Mestre em História Social, professor colaborador da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon, PR. Email: [email protected].
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entendida não como limite, mas como espaço de convivência e, conseqüentemente, de
trocas.
Foz do Iguaçu situa-se no que se chama Tríplice Fronteira, e sua vida cotidiana se liga às
cidades de Porto Iguazu, na Argentina, e Ciudad Del Este, no Paraguai. Por um lado o
turismo, ponto forte da vida econômica da cidade, propicia encontros entre os músicos
vindos de diferentes partes em busca de trabalho nos hotéis e casas de shows. Em
decorrência da situação geográfica de Foz, são contratados músicos especialmente do cone
sul americano, compondo espetáculos que buscam representar o típico, o exótico - tão a
gosto dos turistas, especialmente europeus e norte-americanos, que afluem para a região das
Cataratas do Iguaçu.
Por outro lado, consideramos também que o ambiente
urbano
constituído de uma multiplicidade de grupos migrantes que se alojam, permanente ou
intermitentemente na cidade, ou que saem fora do seu território, contribui para dar a ela
uma fisionomia própria. Nesse sentido, há um intercâmbio muito grande de trabalhadores
que se dirigem às cidades fronteiriças para trabalhar, e vice-versa, com lugares onde há uma
concentração muito expressiva de paraguaios, principalmente. Embora seja uma cidade com
muitas atividades
ligadas ao turismo, com excelentes hotéis e restaurantes, para ela
convergem ou por ela passam pessoas e grupos de pontos mais distantes do país que
compram artigos para revender.
Nessa pesquisa procuramos analisar não os espetáculos em si, nem apenas os elementos
presentes nas músicas compostas/apresentadas, mas as vivências dos músicos narradas a
partir da sua fixação na cidade, profissionalmente ou não. Nessas narrativas a música se
coloca como um elemento vivo, fluido, sujeito a hibridizações que decorrem das próprias
experiências de migração e acomodação em outro meio, em outras situações de vida e
trabalho.
Por isso tudo, não é nosso objetivo definir uma música que seja típica dessa região
fronteiriça, mas discutir os encontros possíveis e os desencontros entre músicos profissionais
ou não, objetivando mostrar muito mais a diversidade de trajetórias e vivências, frutos,
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muitas vezes, repito, de migrações a partir dos mais diversos lugares, e o diferenciado
processo de fixação na cidade.
Neste texto vamos aproximar e contrapor duas trajetórias, de dois músicos provindos de
regiões diferentes, que tiveram aproximações, chegando a compor e trabalhar juntos, e que,
não obstante, trilharam caminhos extremamente diversificados. Temos por objetivo não
fazer a história de cada um, mas contrapor decisões e caminhos trilhados, para compreender
as múltiplas possibilidades dentro da vida musical na fronteira.
O primeiro é o músico argentino Raul Garnica, natural de Santiago Del Estero. Ele mesmo
definiu seu lugar de origem a partir do folklore 1, delimitando assim sua origem popular e
suas ascendência indígena, da etnia quíchua:
Eu sou do norte da Argentina, de Santiago del Estero, um lugar muito
seco, donde los calores son feroses e a minha infância foi como de todo
guri del interior, o plantio começo muito cedo pra mim. Mas a musica já
vem de raiz, de família, todo pessoal, quase todo mundo toca un violón,
un legüero, una gaita, então, a musica já vem no sangue. E a minha
região é de folclore, onde se escuta las bagualas, as chacareras, samba,
gato, do escondido, son todos ritmos folclóricos...
Ao se expressar dessa maneira, a música torna-se objeto central de sua narrativa. Isso ocorre
não apenas porque ele estava sendo chamado a falar de suas experiências musicais
anteriores, mas talvez porque pudesse conceber a música enquanto depositária daqueles
elementos que, em sua visão, expressavam parte importante da identidade reivindicada, ou
seja, argentino, quíchua (descendente de incas) e músico folklorista:
Na minha região tem muito aquele violino assim improvisado, até tem
um instrumento que é muito parecido com o violino que nós chamamos
de sacha, sacha guitarra. Sacha na minha linguagem quíchua quer dizer
mato. Então seria guitarra do mato, sacha guitarra, guitarra do mato. A
caixa da sacha guitarra você faz com a carcaça da abóbora, aquela
abóbora comprida, e geralmente se usa aquele purungo compridão,
geralmente se faz... corta ao meio e ele é interiz, não tem muito espaço,
então, um arco de uns 20 cm, mais ou menos, aí tem um sonido muito
bonito...
1
Preferimos manter essa grafia da palavra, pois nos países da América espanhola ela tem um significado
diferente do que tem em português, aproximando-se muito mais do conceito de música popular e regional.
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Garnica relacionou sua saída da sua terra natal a questões políticas da época da ditadura, ao
processo repressivo vivenciado após a derrubada de Isabelita Perón do poder, e a tentativas
de disciplinarização e controle que atingiam principalmente os grupos populares, muito
especialmente as populações com ascendência indígena.:
Na época do Perón, a Argentina era um país fantástico, lindo de viver, e de
repente, veio aquela, aquele golpe que você não podia sair mais em certo
horário, não podia fazer festa na tua casa, não podia colocar música forte,
não podia... é juntar teus amigos. Não podia ficar numa esquina, aquela
coisa de adolescente que, a esquina é sempre pra se encontrar com os
vizinhos, os amigos e... não podia mais e.. (silêncio) os bailes acabaram,
na época, no pleno crescimento do ser humano, que gosta de todo tipo de
coisa, não podia, então, a gente que foi acostumando com tudo isso (...) Eu
tava jogando bola de tarde, tive que limpar as ruas durante uma semana,
porque tava jogando bola de tarde, durante a semana, o dia inteiro, não
podia, você não podia, porque você ta jogando bola? Porque não ta
estudando? Porque que não ta trabalhando?
Narrou então sua vinda ao Brasil, tendo passado antes por Buenos Aires. Dirigiu-se
posteriormente a São Paulo, a convite de alguém que tinha uma peña2, formando depois um
conjunto – CantAmérica – aliás, mais um dentre os muitos direcionados a apresentar a
música latino-americana em espaços que se configuravam como de oposição ao governo
militar da época.
Nessa época, surgiram no Brasil alguns conjuntos musicais latino-americanos, formados por
músicos emigrados em decorrência, muitas vezes, de questões políticas vividas nos seus
países de origem, os quais desenvolviam um repertório composto de canções de protesto, ou
referindo-se a questões sociais do continente latino-americano. O CantAmérica era formado
pelo argentino Raul Garnica, pelo boliviano Gilberto Nuñez, de Cochabamba, pelo
bonarense Carlos Conti e pelo uruguaio Jorge Peña, de Montevidéu, apresentando-se todos
com uma mesma indumentária, apagando origens nacionais, substituídas por uma
consciência de latinidade expressa na expressão de um dos folhetos de divulgação: “Não
cantar só por cantar...”.
2
Eram locais onde se reuniam pessoas com os mesmos interesses, para desenvolver atividades em comum – no
caso, cantar. 4 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC
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O contato com outros músicos brasileiros e de outras partes da América Latina fez com que
se constituísse, portanto, uma outra identidade musical, não mais o músico do folklore de
Santiago Del Estero, mas um representante de um outro filão que se constituía, onde os
temas políticos se faziam presentes cada vez com mais intensidade. Eram os anos em que
tiveram visibilidade conjuntos como Tarancón e Raíces de América, e, segundo Garnica,
junto com a música, vinha a fala, ocasião em que os músicos se posicionavam frente a
questões políticas, principalmente. Interpretavam temas de Geraldo Vandré, Atahualpa
Yupanqui, Armando Tejada Gomez, Cesar Isella, Horacio Guarany, Buenaventura Luna,
entre outros, todos compositores vinculados a uma posição política de esquerda – além,
claro, das composições do próprio grupo. Em geral, buscavam apresentar-se em ambientes
que lembravam as peñas chilenas e argentinas, e que, entre os anos 60 e 70, foram
importantes espaços através dos quais a música popular engajada pôde se desenvolver.
Com o processo de redemocratização em curso no Brasil nos anos 1980, tais discursos
oposicionistas parece que perderam a razão de ser. Garnica refere-se ao palco, nesse
momento, como espaço de disputa política, o que chegava a criar alguma animosidade entre
aqueles que subiam nele simplesmente para cantar, e aqueles que se utilizavam desse espaço
para também expressar opiniões políticas:
Era una, um começo da abertura democrática, esse tipo de música,
inclusive, na época não podia se escutar porque o folklore era aquele que
pegava o microfone, declamava das coisas, então, nos chegamos, ser
corrido de tanto lugar, corrido...
Esse foi um momento de redefinição dos diversos conjuntos latino-americanos que atuavam
no Brasil, que acabaram deixando de lado uma temática mais engajada, ou mesmo
encerraram suas atividades musicais.. Impossibilitado de viver exclusivamente do folklore,
aliado à própria questão de sua profissionalização no Brasil, Garnica passou a recorrer a
outros ritmos e estilos, afastando-se gradativamente da música exclusivamente política.
Assim, passou a integrar um conjunto de tango e, a seguir, um trio especializado em cantar
boleros mexicanos (ao que ele se refere enquanto folklore mexicano). Aqui, aparece um
outro elemento importante, relacionado àquilo que o autor chama de músicos ocultos, ou
seja, aqueles que não tinham renome, e que se geralmente apresentavam apenas para entreter
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turistas e “apreciadores” da música popular latino-americana, sem poder expressar opiniões
políticas a respeito dos temas cantados:
...não era músico asi que... estavan em destaque, eran músicos ocultos,
músicos ocultos, que no podia berrar muito, fue que me deu aquel lado de
cantar bolero, cantar musicas mexicanas, cantar otro tipo de musicas
porque quando deciamos que éramos folkloristas já éramos mal vistos,
perseguido, então a gente tinha que cantar outro tipo de música.
Garnica procurou, ainda, diversificar seus ganhos, trabalhando numa pousada, e em seguida
abrindo um restaurante. Foi nessa época que ele decidiu-se por viver em Foz do Iguaçu, em
1992, onde, fazendo uso de suas experiências anteriores, e aproveitando as possibilidades de
ganho a partir de sua inserção na estrutura turística em formação na cidade, passou a atuar
artisticamente como músico e cantor na tríplice fronteira:
quando eu percebi, tava trabalhando como musico na Argentina, que era
um restaurante lá, é... é... onde cantava folklore argentino, depois
trabalhava aqui no teatro Plaza Foz cantando tango e, na misma noite, ia
no Paraguai cantar música mexicana, (risos). Cantava nos três países.
Numa semana depois, tava não dando o suficiente pra fazer os pratos
gastronômicos que a gente tinha começado com a minha esposa fazer, e
trabalhamos os dois, ela dançando, fazendo malambo com boleadeira, e
eu cantando, e quando percebimos, não tinha mais tempo pra continuar
com esse lado, assim, nuevamente nos dedicamos exclusivamente a
música, a dança e não paramos mais, até hoje, gracias a Dios.
A época à qual o depoente se refere foi, de fato, um período bastante intenso na atividade
turística em Foz do Iguaçu, especialmente aquela ligada ao entretenimento. Muitos músicos,
artistas, bailarinos, artesãos, cantores e expoentes da arte latino-americana aportavam na
cidade, oriundos de diversos países: harpistas e violonistas do Paraguai; cantores de tango,
folkloristas e bandoneonistas da Argentina; grupos de música andina e tocadores de
zampoña da Bolívia; grupos tradicionalistas do Rio Grande do Sul; sambistas e capoeiristas
de São Paulo, Minas Gerais e outros lugares do Brasil, enfim, todos, ao seu modo, tecendo e
sendo tecidos a partir da grande babel cultural que ia sendo constituída em Foz do Iguaçu.
Muitos desses músicos eram itinerantes, e ficavam pouco na cidade, tomando outro
rumos à medida em que a pressão turística ia baixando; outros buscavam se estabelecer na
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região, alguns ficando ainda entre seus lugares de origem (regiões da Argentina e Paraguai
próximas à fronteira) e a tríplice fronteira; outros, finalmente, abandonando o ofício de
músico e buscando se inserir em outro tipo de ocupação.
Mas, para Garnica, tais atividades propiciaram a ele, que nessa época já havia
constituído família, fixar-se na cidade. Ali teve contato com outros músicos, o que o levou
desenvolver novas possibilidades, mesclar ritmos, fazer experimentações fora da perspectiva
de manutenção, pura e simples, da tradição.
Negendre Arbo, outro músico que atua em Foz do Iguaçu, teve uma trajetória bem
diferente. Natural de Palmeira das Missões, em 1960, iniciou estudos de violão clássico aos
13 anos, prosseguindo depois com um professor ligado à Universidade Federal de Santa
Maria. Sua narrativa desses primeiros contatos com a música, que definiram o caminho das
experimentações posteriores, é um tanto desencontrada:
... teve um momento mais tarde que a música deixou de ser um elemento
isolado na minha vida ... (...) ... a maioria das pessoas isola essa questão,
por exemplo, o meu trabalho, a minha vida profissional, minha vida
amorosa, minha vida cotidiana e tal. E der repente eu... num certo ponto
do caminho, essas coisas pra mim se misturaram todas numa só. Então,
tudo o que aconteceu na música aconteceu na minha vida... em seus
outros aspectos, digamos assim. Então, no início, quando eu era muito,
muito novo, muito novo mesmo, eu comecei como muita gente...
pegando e batendo nas cordas do violão de alguém. No meu caso era do
meu avô. Ele escondia o violão no guarda-roupa quando saia pra
trabalha. Eu pegava lá e ficava tocando as notinhas. E o curioso, hoje eu
me lembro, que foram ali que surgiram as primeiras melodias assim,
porque você tocava um botão e outro e... aquelas duas notas, sem ter
conhecimento nenhum, ate com o violão deitado, longe assim... dava
vontade de cantar. Então, aquilo ali pra mim é a faísca que... que
acarretou todo o resto, e acabou definindo a minha vida.
A essas primeiras experimentações seguiu-se o período de aprendizagem, com aulas de
violão clássico:
Ah depois a gente se mudou pra Santa Maria e lá na Universidade
Federal eu tive a oportunidade de ter aulas com o... com o... concertista
de violão, o uruguaio, Álvaro Pierre, hoje tá na Universidade do Canadá.
Então foram nove anos e meio de estudo com ele num curso de extensão
que ele fez quando eu tinha 13 anos. Aí nove anos e meio depois, tava
hora de fazer o vestibular e... fazer o curso todo de novo, não tinha razão,
né? daí a gente foi pro litoral, e aí foi que então a escola saiu das nossas
vidas assim, com todas as suas regras e leis e regulamentos ah.... ah o
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repúdio, a escola também definiu uma boa parte da minha vida, do meu
comportamento...
De fato, ele conta que formou um conjunto com o irmão, o Quintal de Clorofila, musicando
poemas escritos pelo pai, jornalista formado em filosofia. Com esse conjunto iniciaram uma
série de andanças por várias partes do país, conseguindo alguns contratos para cantar aqui e
ali. Foi uma fase de descompromisso total. Participaram de uma série de festivais nativistas,
como o Musicanto, e depois seguiram para o nordeste brasileiro e dali para outras regiões..
Em Itajaí, Santa Catarina, chegaram a morar num hospício desativado, e ali um argentino se
juntou ao grupo, participando das coreografias montadas nos espetáculos que apresentavam.
Foram a Curitiba, Cascavel, e depois de muitas outras paradas, chegaram a Foz do Iguaçu
Ali passaram a se apresentar no Raffain, casa de shows e churrascaria, onde conviveram com
músicos vindos de vários lugares da América do Sul – Argentina, Paraguai, Bolívia, etc.
Nesse local encontraram condições de fixação, pois se apresentavam nos espetáculos da casa
e dispunham de alojamento.
O espetáculo do Quintal de Clorofila que se estrutura no Raffain era experimental,
com temas musicais mesclando uma multiplicidade de influências e de vivências dos irmãos
músicos – do folk, da psicodelia, dos ritmos populares latino-americanos tanto da região de
fronteira quanto da música andina, etc. Negendre e seu irmão Dimitri executavam vários
instrumentos, com uma preocupação com a inovação e o aperfeiçoamento técnico,
diferenciando-se dos músicos típicos (segundo ele, dos que usavam uniforme), com
espetáculos de músicas tradicionais dos seus países de origem. Montaram um espetáculo
narrando lendas indígenas da região, com a teatralização dos personagens mitológicos, no
qual a própria memória das populações indígenas era re-situada dentro das mudanças que se
processavam na região e na cidade.
Raul Garnica, na entrevista, criticou o sistema do Raffain de agrupar os músicos e obrigálos a fazer sempre a mesma coisa, a repetir os espetáculos para turistas. Negendre, todavia,
embora tenha criticado o que chamou de grupos de uniforme, destacou que o período vivido
nessa casa de show, com pagamento em dólar, possibilitou a eles a estruturação do
espetáculo e o investimento em equipamentos, comprados no Paraguai. Mas depois
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justificou sua saída, dizendo que a continuidade nesse esquema, como aconteceu com muitos
músicos, representava algo que não possibilitava qualquer autonomia.
Dois anos depois de chegar a Foz, portanto, conforme narra Negendre, iniciou um
trabalho com as escolas do município e com o eco-museu, desenvolvendo atividades
culturais, discutindo ecologia e meio ambiente, chegando então a fundar a Casa de Cultura
de Foz do Iguaçu. Aqui também ele criticou o uso político dos trabalhos desenvolvidos, o
que criou problemas para os músicos participantes dessas atividades. .
Em decorrência da fixação na cidade, e do envolvimento com as questões locais, em especial
com a situação de fronteira, outras possibilidades se abriram, definindo novos caminhos a
serem trilhados. Nas suas palavras,
...teve
toda uma época de militância cultural que foi quando também eu
tomei o contato com o pessoal do Paraguai e da Argentina, me interei
mais com as coisas da fronteira, da cultura. Foi naquela época que eu
viajei pra Asunción pra pesquisar livros, pra trazer livros, tem muitos ali,
sobre a conquista, sobre a época da conquista, todo processo cultural
(...)E dentro dessa militância do que seria o que nós chamávamos na
época de integração cultural (...) foi aí que apareceu um outro trabalho
que eu fiz, que era de digitar no computador a parte orquestral pra um
coral da Itaipu do Paraguai, eu fiquei um tempo trabalhando com eles e
isso aí sustentava as minhas atividades na, na outra área que seria de
integração, de fazer intercambio, de trazer outros grupos pra cá...
Nesse processo é que os dois músicos, que então se fixavam na cidade, se conheceram e
passaram a trabalhar juntos, juntamente com outros músicos argentinos e paraguaios,
chegando mesmo, Raul e Negendre, a dividir algumas composições. Essas influências
podem ser destacadas a partir da composição de ambos, Sereno, um chamamé, ritmo
argentino, no qual Negendre, a partir das suas leituras sobre história regional, rediscute a
figura do feitor das obrages3, destacando nele características que são, inclusive, desprezadas
por essa historiografia local, objeto de suas pesquisas.
3
Obrages eram as empresas argentinas a quem o governo paranaense, no início do século, cedeu terras para
exploração da madeira e da erva mate. Nela, trabalhavam, em sistema de escravidão, os mensus, que já
chegavam endividados às obrages. Sereno era o feitor encarregado de vigiar os trabalhadores.
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É indiscutível que o contato o grupo de músicos do qual Garnica participou – e participa –
influiu consideravelmente na obra musical de Nejgendre Arbo, bem como recebeu
influências dele também. A preocupação de Negendre, nesse sentido, era com as
possibilidades experimentais que a música folklórica argentina, principalmente, oferecia. Ele
completa:
...houve um tempo que eu estava bem próximos deles, quando eu tava
mais voltado pra pesquisa do folklore, basicamente o folklore da
Argentina, que eu acho mais interessante que o do Sul, que eu acho
muito medíocre musicalmente, o folklore argentino tem vidalas, tem
bagualas, sabe? tem chacareras, tem a zamba, tem possibilidades
instrumentais que o folclore gaucho [não tem]...
Voltando-se para a análise da trajetória dos dois artistas, fica claro que para Raul Garnica,
que se dirigiu também para a militância ecológica, participando de eventos em Foz e em
diversos festivais, principalmente no Rio Grande do Sul, a questão da renovação musical se
colocava em outros termos. A quebra principal era definida como a da tradição, ou seja, da
obrigação de fazer tudo igual. Participando de festivais de chamamé na Argentina, ele
criticou com veemência a proibição, em muitos deles , do uso de instrumentos que não os
tradicionais. Ligado a outros músicos argentinos da região fronteiriça, ele canta e compõe
mesclando ritmos e influências, participando, inclusive, de festivais nativistas no Rio
Grande do Sul.
Com relação à chamada corrente nativista do Rio Grande do Sul, há um ponto de
divergência entre os dois músicos. Garnica, ligado a uma militância ecológica, referiu-se
positivamente à participação dos filhos dos proprietários agrícolas, que teriam, segundo ele,
consciência da destruição causada por seus pais.
Negendre, todavia, criticou essa
perspectiva – não só a música nativista, mas toda a ideologia que perpassa o tradicionalismo
gaúcho: “...o nativismo foi uma desgraça pra nós que fazíamos uma musica livre, né? que
tomava os espaços... não havia espaço pra nós, foi ali que a gente começou a viajar...”,
completando depois: “tem aquela coisa da patronagem, não é? Toda a cultura gaúcha ela é
baseada na dominação do patrão e os empregados... Então, é aquela figura do patrão, do
patrão (...) eles procuram manter tão estanque a música, dentro do seu estilo que, é aquilo
que eu chamo de estagnação cultural, , uma cultura que ta ali encalhada e acabou”.
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Um outro ponto deve ser destacado. Raul Garnica desenvolve atividades apenas como
músico, ao contrário de Negendre, que diversificou suas atividades profissionais, e assim
reserva para si um espaço de experimentação com muito maior liberdade e descompromisso.
Nos termos colocados por Garnica:
Porque o desafio que aparece na tua vida, que melhor coisa que pode ter,
de alguém te fazer uma proposta ou um desafio, como você queira,
interpretar esse lado, e você se topar com uma realidade e ter que fazer,
tem que fazer porque, na minha situação, por exemplo, eu tenho uma
família e me dão uma proposta, um desafio e, eu tenho que fazer, porque
a musica é o papel, a minha profissão e também porque eu preciso
manter minha família, então, uma proposta de uma gravadora, eu
preciso, quero você cantando esse tipo de musica, vou te lançar e quero
fazer contrato contigo, então, você se coloca numa realidade, e... (...)...
eu não tenho preconceito na música, porque tem gente que diz: ah eu... a
minha é aquela musica e não faço...
Além disso, Garnica se apresenta para turistas do mundo todo, o que inclui argentinos,
uruguaios, chilenos... Daí o desafio de cantar músicas de todos esses países, assumindo uma
identidade que ele chama de hispano-latino-americano, mas que o leva a assumir o
portunhol como linguagem, ao invés do espanhol ou do português.
Negendre chegou a montar estúdio de gravação, depois uma empresa para trabalhar com
áudio e multimídia, mas no momento trabalha apenas para alguns clientes exclusivos, para
ter tempo de se dedicar à música. O projeto no qual está envolvido no momento surgiu a
partir de um trabalho encomendado – gravar música tradicional guarani, cantada pelas
crianças da reserva próxima a Laranjeiras do Sul. O contato com esses indígenas foi
fundamental para ele, no sentido de conhecer e valorizar o outro, e de conhecer e valorizar a
diferença, de penetrar numa outra fronteira que não a delimitada pela proximidade de três
países, simplesmente:
O Guarani é um povo que ri, mas ele ri um riso autêntico, sabe? é um
riso que vem do fundo e você não sabe do que ele ta rindo... Quando eu
cheguei na aldeia, eu pensei poxa, estão passando necessidades,
passando fome, sem saúde, sem educação... e é um povo que ri, sabe?.
Só os pajés ficam sérios porque acho que é porque eles sabem mais. (...)
... aquele contato com as coisas antigas, coisas muito antigas assim... (...)
...parece que a tua memória tem guardado algumas cenas semelhantes,
não é? Me lembrou muito as benzedeiras, mas você sente uma coisa lá
dentro, da estrutura social que o mundo perdeu, que o nosso mundo
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perdeu, perdeu faz muito, uma pureza, uma ingenuidade assim... uma
coisa que nossas crianças tem até o primeiro dia de escola...
Embora o grupo citado viva na área de reserva próximo a Laranjeiras do Sul, o contato com
os parentes, guarani do Paraguai é constante. Esse fluxo passa por Foz do Iguaçu,
estabelecendo outros direcionamentos que nos levam a concluir que, mais do que limite e
espaço fixo, a fronteira se caracteriza pela mobilidade. Continuamente, novos caminhos são
abertos, e novos sujeitos se deixam conhecer.
Do ponto de vista musical, o contato com os Guarani, além disso, rompeu algumas amarras
e propiciou novas formas de experimentação. Como conta o próprio Negendre:
A gente mantem separado a música guarani do coral, a musica do coral
intacta (...) ... eu não toco na musica tradicional. Mas, dentro do projeto
que desenvolvemos (...) vale tudo. A gente ta trabalhando, eu, o cacique,
agora vem esse DJ de Campinas, vou fazer uma coisa bastante
interessante (...) ... a base de tudo é esse tum-tum... então, a gente vai
trabalhar em cima dessa referência (...)
Ou seja, o trabalho se desenvolve tendo como base a própria constituição rítmica da música
guarani (que seria um compasso 1/1), respeitando a própria maneira de ser desse grupo:
... a música pra ser feita com os guaranis... tem uma música que é pra
ouvir e outra pra tocar ao vivo, o material gravado é mais elaborado,
você pode colocar orquestra, você pode colocar mais elementos na
música. Agora, o trabalho ao vivo, ele é basicamente uma cena, um
musical só, e depois, uma cena musical só. Na performace ao vivo, não
pode ter uma musica que caia da parte um para a parte dois. A maneira
deles viverem a musica é diferente, a visão que eles tem da musica é
outra, eles não tem essa noção que nós temos de autoria, eles não dizem
eu que fiz, o cara sonha a musica e canta no outro dia... Quando o
cacique vem pra cá, e fica dias aqui em casa, nesse convívio cotidiano é
que se aprende muita coisa.
Ao contrário das propostas dos músicos ligados nas décadas iniciais do século a Mário de
Andrade, que pretendiam a nacionalização da música via incorporação dos elementos dos
grupos indígenas e africanos, trata-se da experiência de fazer a música com os Guarani. Ou
seja, estabelecer uma parceria que respeite o fluir da vida na aldeia, no qual o músico de fora
tem que penetrar para conseguir estabelecer um contato para além das superficialidades:
porque eles não tem a obrigação de cantar, ele pode não cantar, sabe? É
uma coisa muito natural, eu percebi isso na aldeia, não havia nada
programado, só que daqui a pouco eu estava tomando um banho na
cachoeira... e a gente via que as coisas fluíam e nós íamos navegando
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naquele fluxo, sabe? as direções do pra onde ir, do que fazer, se
apontavam naturalmente, não havia a necessidade de [dizer] agora vou
aqui, depois a gente vai lá...
Descrevendo a performance de um jovem da aldeia que toca violino, Negendre reencontra
algumas das suas próprias buscas enquanto músico, e ao mesmo tempo destaca a riqueza que
encontra nessa música feita pelos guarani:
quando eu escutei o rapaz que tocava o violino tocando junto na
apresentação que eles fizeram pra nós, eu escutei as frases do violino eu
lembrava, ele tinha umas escalas celtas, tinha algumas escalas
ornamentais que ele usava sem ter conhecimento disso e sem nunca ter
tido um professor de violino, o cara nunca teve um professor, nem dentro
da aldeia, ele aprendeu o violino assim, sozinho, num canto lá, sabe o
que é isso?
À guiza de conclusão, podemos destacar duas questões que sobressaíram a partir da análise
dessas duas entrevistas. Logo no início de nossa conversa, Raul Garnica destacou, de forma
bem clara, sua ascendência indígena. Esse elemento aparece como constituidor de uma
identidade musical que o distancia de outros músicos argentinos, e o aproxima de outros não
necessariamente argentinos, com os quais convive no espaço fronteiriço. Essa identidade se
expressa também no físico, nos longos cabelos, nos elementos da indumentária (diferente,
inclusive, daquela usada nos tempos do CantAmérica), muito mais guarani que quíchua.
Para Negendre, ao contrário, os guarani são os outros sujeitos da fronteira, são o outro que
se materializa como parceiro de caminhos não necessariamente compartilhados, mas
passíveis de o serem. As são os que responderam, de alguma forma, a questões que ele tinha
se colocado ao longo de sua vida, até aquele momento.
Essas questões nos apontam possibilidades de olhar a fronteira não como algo
estático, mas espaço de mobilidade e de múltiplas temporalidades. Isso desfaz, por certo,
definições em torno do nacional ou de um híbrido que se torna característico dos espaços
fronteiriço. As narrativas dos diferentes músicos, expressas na oralidade mas também nos
suportes musicais, nos apontam subjetividades e heterogeneidades dos quais esquemas
explicativos fechados não dão conta. Não há um ser que, na situação de fronteira, se defronta
com outro e se torna um terceiro, mas homens que, no seu dia a dia, constroem e
reconstroem liames e que, nesse processo, se transformam.
13 Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC
Vitória – 2008
ISBN - 978-85-61621-01-8
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Espaços de produção e deslocamentos de músicos na