Avaliação da educação superior: conflitos de paradigmas
José Dias Sobrinho *
I
Avaliação e qualidade são temas, interligados, de importância central na agenda
mundial da educação superior. Mas é sintomático que não sejam os atores da
comunidade acadêmica e científica os que detêm o protagonismo na definição e até
mesmo nas práticas que correspondem a essa área. A educação superior não pertence
somente aos educadores e estudantes. Cada vez mais se torna um fenômeno de enorme
importância como produção social, dada a função operacional que lhe atribui a
economia neoliberal global e informacional. Por isso, a avaliação extravasa os redutos
das salas de aula e dos laboratórios universitários e se inscreve nos terrenos cheios de
contradições das políticas públicas, das reformas, das inovações, das novas
configurações institucionais e organizacionais e dos modelos de sistemas nacionais e
mundiais. A avaliação é hoje uma política pública utilizada como estratégia de poder.
Em outras palavras, ela se afasta de seu significado primitivo de valor pedagógico e se
transforma cada vez mais em instrumento da aliança entre instâncias dos governos
nacionais e organismos multilaterais a serviço da causa neoliberal.
O campo da avaliação é conflituoso e contraditório, nem tanto por dificuldades
técnicas, mas, sobretudo, pela sua força política e ideológica na determinação dos rumos
da educação. Portanto, ao atuar no centro do fenômeno educativo de fundamental
relevância para a vida dos indivíduos, para a história de uma sociedade nacional e para
os destinos do mundo todo, a avaliação inevitavelmente carrega em seu núcleo as
contradições e conflitos sociais. Dificuldades técnicas podem ser superadas com mais e
melhores técnicas. Problemas humanos e dissensos sociais pertencem a outras
categorias - da política, da ética, da economia, da filosofia – e jamais se resolvem
completamente. Se pudessem ser plenamente resolvidos, não seriam humanos e nem
sociais. A contradição é dimensão essencial de todo fenômeno social.
*
Professor titular da Universidade de Sorocaba (UNISO - Programa de Pós-graduação em Educação); expró-reitor de pós-graduação da UNICAMP; ex-presidente da Comissão Especial de Avaliação (MEC,
2003) que elaborou a proposta original do SINAES; editor da revista Avaliação (WWW.scielo.br/aval);
autor de vários livros, capítulos e artigos sobre a temática da educação superior, com ênfase nas questões
de avaliação e globalização.
E.mail: [email protected]
Conceitos e práticas de avaliação e de qualidade se inscrevem no terreno das
contradições e dos interesses individuais, grupais, corporativos situados na sociedade
civil e nos âmbitos governamentais. A avaliação da educação superior se vai fazendo
como campo teórico e prático, incorporando todas as inerentes dificuldades técnicas,
ideológicas e políticas, acompanhando as tendências e movimentos da sociedade em
seus distintos níveis. As transformações que hoje ocorrem em todos os âmbitos
mundiais estão fortemente interligadas. Não há transformações sociais que não
produzam mudanças educacionais, e vice-versa. E a avaliação é um motor poderoso das
reformas e inovações da educação. Ela guia, justifica e induz as escolhas que se fazem
para ajustar a educação superior, isto é, primordialmente, a formação e o conhecimento,
às forças hegemônicas da sociedade. E, como se sabe, a sociedade global atual é
amplamente dominada pela economia de mercado.
A avaliação carrega consigo, em suas diversas aplicações, notadamente na
indústria, na administração pública e na educação, um apego aos objetivos de medir,
selecionar, classificar, regular, controlar, racionalizar e, frequentemente, punir. Na
educação, ao longo do século XX, e com maior ênfase a partir dos anos sessenta, a
avaliação dedicou-se a medir rendimentos de estudantes, passou à averiguação do
cumprimento dos objetivos educacionais, focalizou os currículos, o êxito da empresa
escolar e, objetivo mais forte das últimas décadas, o controle do sistema.
Mediante o uso de testes, escalas de classificação e outros instrumentos técnicos
oferecidos pela psicologia, a avaliação se desempenhou durante muitos anos como
valioso instrumento de regulação do conhecimento e da aprendizagem e de descrição
dos padrões de sucesso ou fracasso das escolas relativamente aos objetivos previamente
estabelecidos.
A partir dos anos de 1960, a avaliação incorpora o sentido da accountability.
Não era suficiente focar os rendimentos dos alunos, o cumprimento e a adequação de
currículos, mas também se considerou necessário analisar a relação custo/benefício,
avaliar os professores, as escolas, os conteúdos, os programas, as metodologias de
ensino e a gestão, para efeito de prestar contas à sociedade. Além disso, a avaliação
deveria fornecer informações de todo o tipo para a tomada de decisões.
Data de 1967 o texto em que Scriven faz a célebre distinção entre avaliação
formativa (a que basicamente se realiza ao longo do processo, permitindo alterações de
percurso) e avaliação somativa (verificação dos resultados finais). A vantagem dessa
distinção consiste em permitir que se conceba a avaliação inclusive como parte do
processo de ensino-aprendizagem. Avaliação dinâmica, não meramente descritiva e
diagnóstica, apresenta objetivos claros de interferência nos processos, com a finalidade
de determinar as mudanças que precisam ser feitas.
Os modelos de avaliação se enriqueceram bastante com o passar dos tempos, e
seus instrumentos se sofisticaram, devido aos avanços dos conhecimentos disciplinares
que lhes dão sustentação, ao alargamento do campo, à ampliação das funções e
atribuições, ao reconhecimento de sua importância fundamental nos ajustes e nas
reformas da educação superior. A avaliação veio se tornando crescentemente mais
complexa, plurirreferencial, e suas práticas se universalizaram. Mas são as questões dos
desempenhos estudantis e da quantificação de produtos e a utilização dos testes e
medidas que constituem desde sempre e até hoje os seus núcleos centrais.
Esses instrumentos supostamente objetivos e precisos se passam como se fossem
neutros e portadores da verdade definitiva. Entretanto, também resultam das dinâmicas
sociais de interações e escolhas e, portanto, estão inscritos em sistemas de valor.
Nenhuma avaliação pode se considerar ideologicamente neutra e isenta de equívocos,
ainda que desenvolvida por meio de instrumentos técnicos bem calibrados. Vêm a
propósito as seguintes palavras de Popkewitz (1992, p. 95-7):
A avaliação é uma estratégia estatal que aparece como parte da produção de
ideias em um campo social. Esta produção inclui as relações de poder. [...] A
avaliação forma parte da regulação. Controle e governo do Estado [...] cumpre
fins de política, tanto se a consideramos como parte do nobre propósito e
desejo dos que procuram melhorar a escola, como se cremos que forma parte
do aspecto mais obscuro da regulação social.
Sendo política e estando inserida no meio do campo das produções sociais, a
avaliação não escapa aos confrontos de valores e interesses, às múltiplas contradições
ideológicas e diferenças paradigmáticas. Na educação não há consensos, sobretudo
quando emergem os problemas humanos e sociais, os projetos e aspirações pessoais, as
diferenças culturais, os ideais políticos, os objetivos econômicos, as desigualdades em
geral, as contradições epistemológicas. A avaliação não é simplesmente uma questão
técnica que se aquieta com o uso adequado de bons instrumentos. Mais que isso, ela se
refere a um fenômeno social que tem enorme interesse público e, portanto, pertence às
esferas da ética e da política. Por isso, a avaliação requer debates públicos, participação
das comunidades concernidas buscando a construção social de significados.
II
As contradições que envolvem a avaliação da educação superior não estão
restritas a opções epistemológicas. Inscrevem-se em campos de valores. São expressões
práticas de distintas cosmovisões. Ligam-se a concepções de mundo relacionadas com a
vida em geral e, no caso em questão, a concepções a respeito da natureza e das
finalidades da educação superior. Essas questões de caráter ideológico e axiológico
perpassam, quase sempre silenciosamente, os enfoques e os modelos de avaliação. Elas
encontram alguma correspondência com os paradigmas epistemológicos, embora não se
possa cravar que aí haja uma relação radical e constante. Falo de aproximações, não de
identificação ou de suposta relação mecanicista de causa e efeito.
Embora não se trate simples e exclusivamente de escolha epistemológica, é
possível enxergar na teoria e nas práticas de avaliação o predomínio de dois paradigmas
muito distintos. São perspectivas de alguma forma mais familiares às ciências duras ou,
por outro lado, às ciências brandas. Com o objetivo de distinguir controle e avaliação,
Ardoino (1993) estabelece uma diferenciação entre o que deriva do complicado, que
para ele é a problemática das ciências duras, e o complexo, que segundo afirma é a
problemática das ciências sociais. O controle utilizaria as abordagens racionalistas,
objetivistas, enquanto que a avaliação propriamente dita operaria com epistemologias da
complexidade. As ciências duras operam com a explicação pretendendo demonstrar
verdades acabadas. O objeto se apresenta fragmentado e sem relação com o sujeito que
o quer conhecer. Auto-proclamadas ciências puras, rejeitam a “contaminação” da
subjetividade como algo alheio à ciência.
No enfoque racionalista, aqui destacado, a avaliação busca medir e classificar os
resultados obtidos por meio de medidas e testes, dados quantitativos, estatísticas e
análises de correlação. Nesse caso, a avaliação deve ser objetiva e produzir informações
rigorosamente confiáveis e independentes dos avaliadores e das circunstâncias. Os
resultados não mudariam caso fossem outros os aplicadores e diferentes as
circunstâncias.
Seguem esse paradigma, de um modo geral, as avaliações de sistemas educativos,
que se utilizam amplamente de exames em larga escala e outros instrumentos de recolha
de dados objetivos concernentes à produção acadêmico-científica. Esses processos
interessam, sobretudo, aos legisladores e administradores das instâncias governamentais
e aos gestores de organizações educacionais, para quem os resultados supostamente
objetivos, quantitativos e inquestionáveis servem de base para efeito de regulação,
controle e informação à sociedade em geral e, particularmente, aos “clientes”.
Segundo House, uma das principais mentoras desse modelo de avaliação,
largamente utilizado nos programas federais dos Estados Unidos e replicado em muitos
outros países, é Alice Rivlin. Suas principais ideias orientadoras, resumidas por House
(1994, p. 52), são as seguintes:

As decisões-chave devem ser tomadas nos níveis governamentais superiores.

O fim da avaliação é a eficiência na produção de serviços sociais.

O único conhecimento verdadeiro consiste em uma função de produção que especifique relações
estáveis entre inputs e outputs educacionais.

Só se pode conseguir esse conhecimento mediante os métodos experimentais e as técnicas
estatísticas.

É possível obter acordo sobre objetivos e sobre poucas medidas de resultados.

Existe um paralelismo direto entre a produção de serviços sociais e a de artigos manufaturados.
Aplicam-se as mesmas técnicas de análise.
A aplicação desse modelo de avaliação em quase todos os países do mundo produz
algumas consequências de grande importância na modelação dos sistemas, das
instituições, do trabalho docente e, em resumo, altera o ethos universitário ao
transformar os meios em fins. Seguem algumas observações muito rápidas a esse
respeito.
A autonomia e a liberdade de pensamento, portanto, de determinação dos
conceitos finalísticos, deslocam-se dos educadores para os níveis governamentais. A
educação é entendida como um serviço social que deve ser eficiente. Para medir
eficiência e produtividade, são adequadas as metodologias utilizadas nas ciências
físicas. Os métodos experimentais e as técnicas estatísticas seriam a única forma de
obter o conhecimento concernente às relações entre inputs e outputs. Mesmo assim,
é preciso circunscrever bem o objeto e restringi-lo a poucas medidas. Chama a
atenção o último ponto: uma adequada metodologia utilizada nas ciências físicas se
aplica perfeitamente às áreas sociais. Metodologias e instrumentos da ciência social
de corte positivista, importados das ciências experimentais, são, assim, utilizadas
nas avaliações de sistemas e outros tipos de larga escala.
A suposta objetividade funciona como garantia de verdade, exatidão,
neutralidade, inquestionabilidade e é importante para o controle do governo sobre o
sistema e as instituições de educação e para legitimar algumas políticas e decisões
dos órgãos superiores. A objetividade vira sinônimo de quantificação e de
possibilidade de comprovação e, então, de confiabilidade. Segundo crença comum,
o que não pode ser medido, não existe; e os números não mentem...
As ciências da complexidade pertencem ao âmbito da implicação, vale dizer, dos
horizontes de significação abertos. Assumem a pluralidade de metodologias, a
multiplicidade de visões e reconhecem que subjetividade e objetividade são coessenciais na construção do conhecimento e dos juízos de valor. Esse é o terreno da
filosofia, das artes e das áreas que se dedicam a questões teóricas e práticas das
ciências sociais e políticas. Terreno em que se praticam escolhas e se enfrentam
distintos valores éticos e políticos. Nele, o objeto não se constitui exclusivamente
por meio da razão, mas também pela sensibilidade, pela intuição, pela interferência
do sujeito.
Neste enfoque de avaliação democrático e participativo predominam noções de
complexidade, polissemia, imprevisibilidade, contradições, dialética. Mais que
explicações e definições acabadas a respeito de aspectos isolados, mais que seleção
e hierarquização, mais que quantificação de produtos e resultados, aqui importam a
visão de conjunto, as relações das partes com o todo e dos meios com os fins, a
construção da qualidade social e, sobretudo, os questionamentos e a produção de
sentidos relativamente às finalidades e missões essenciais da educação superior. A
participação é fundamental.
O sentido formativo da avaliação se potencializa quando os atores dos processos
de formação e de construção de conhecimentos assumem a responsabilidade de
protagonizar as ações avaliativas, desde as etapas de conceituação, escolha de
metodologias, envolvimento nas práticas, discussão dos resultados e (re)elaboração
dos projetos de futuro.
A avaliação, assim concebida, é um amplo processo democrático e participativo
de interrogação e debate sobre os fins essenciais da educação superior exercido
pelos sujeitos implicados com o objetivo de assegurar uma qualidade acorde com os
princípios científicos, éticos, filosóficos e políticos que a universidade se obriga a
cumprir, na medida de suas possibilidades. Não se restringe a elencar e ordenar os
produtos e resultados, segundo critérios de suposta correspondência a padrões
predeterminados por expertos comprometidos com organismos multilaterais.
Modelos externos e abstratamente universais podem ter sua validade, desde que
não sejam tomados como inquestionáveis, nem adotados sem adaptação aos
contextos culturais, ideológicos e políticos de cada país e sem o devido respeito à
missão e às prioridades e especificidades de cada instituição.
A objetividade também necessária não deve ser uma negação do contraditório,
plural, diverso, imprevisível e complexo que há numa instituição, muito menos
haveria de excluir a subjetividade e as metodologias qualitativas. Avaliação não
seria, assim, só diagnóstico e controle, mas, sobretudo, processo coletivo de
interrogação sobre as causalidades, as dinâmicas pedagógicas e cognitivas, sobre o
significado humano e social da formação e do conhecimento, sobre os contextos de
realização e as potencialidades que a universidade carrega, na perspectiva de
contribuir para a construção de um futuro mais denso de humanidade.
As ciências positivas certamente têm papel importante na avaliação e em tudo
que respeita ao conhecimento. O mundo moderno se desenvolveu impulsionado pela
ciência de natureza experimental, embora se há de criticar com rigor a noção de
progresso em que se baseou o conhecimento científico e tecnológico que se
hegemonizou no mundo ocidental nos últimos séculos. Nem tudo na educação cabe
nas metodologias quantitativistas e nos instrumentos explicativos. Há muitas
dimensões humanas das quais as medidas físicas não conseguem dar conta.
Averiguar as competências e habilidades, contabilizar o número de patentes e de
impacto, diagnosticar as capacidades de retenção de conteúdos, tudo isso fornece
algumas informações úteis aos administradores e consumidores, mas a qualidade da
educação superior não se restringe a apresentar boa performatividade nesses
indicadores. É preciso ir além e inserir a avaliação no processo mais amplo da
formação humana. Isso requer pôr em questão os sentidos e valores da totalidade
das dimensões educativas.
Educação é fenômeno social, prática humana de amplo significado ético-político e
não de há de reduzir-se a uma técnica desligada de um sujeito e de suas relações sociais.
(Dias Sobrinho, 2005a, p. 18). Mais que uma metodologia ou uma técnica de medida e
controle, a avaliação deve ser entendida como uma filosofia. No caso, uma filosofia que
funda e justifica os conceitos essenciais da educação superior, suas finalidades e
responsabilidades sociais. O conhecimento não é apenas uma ferramenta para a
pragmática dos empregos. É também uma relação com o mundo e com os outros.
No mundo contemporâneo, em que o conhecimento tem que ser funcional e
operacional relativamente às empresas, conhecer é imprescindível para conseguir
emprego, enquanto que a falta de conhecimentos, segundo os requisitos utilitários, produz
rejeitos. Seres humanos que não conseguem produzir e consumir, por ignorância ou
pobreza, são descartados, como produtos imperfeitos, indesejáveis, inúteis, incômodos.
A avaliação bem que poderia ser um processo a alimentar o valor do conhecimento
humanístico e cultural da sociedade e dos indivíduos, na contramão dessa tendência hoje
hegemônica que estabelece uma conexão linear entre conhecimento e progresso (Altbach,
2008, p. 13).
A avaliação precisa ser concebida e efetivada como um fenômeno
multirreferencial e complexo, pois o seu objeto também o é. Atualmente,
a Educação Superior deve responder a desafios ou ao menos ajudar a
solucionar problemas tão díspares e importantes, muitas vezes contraditórios,
como os da produção da alta tecnologia, formação de mão-de-obra de alto
nível, treinamento para atendimento de demandas imediatas do mundo do
trabalho, formação qualificada para ocupações de tipo novo, formação para a
inovação, preservação e desenvolvimento da alta cultura, recuperação da
cultura popular, educação continuada, formação para o empreendedorismo,
promoção da cidadania e da consciência de nacionalidade, inserção no
mundo globalizado e compreensão das transformações transnacionais,
capacitação de professores de todos os níveis, formação de novos
pesquisadores, ascensão social de grupos desfavorecidos, impulso à grande
indústria, apoio a pequenos produtores, pesquisa de ponta, tecnologia de
baixo custo e de aplicação direta na agricultura e nos serviços,
desenvolvimento local, nacional e regional, atendimento às carências de
saúde da população, sucesso individual e tantas outras exigências carregadas
de urgências e, em todo caso, de difíceis respostas.” (DIAS SOBRINHO,
2002, p. 13 e 14).
Avaliação é uma operação multirreferencial e não pode limitar-se a reduzir a
complexidade e a polissemia do fenômeno educativo a aspectos isolados,
fragmentados e não-contraditórios. Mais que realizar-se como simples instrumentos
de medir, quantificar e hierarquizar, a avaliação educativa deve ser uma construção
de um processo democrático e participativo apoiada em teorias do sujeito, da
sociedade, da ética, do conhecimento, enfim, da formação integral e cidadã
associada a projetos de consolidação de sociedades justas e igualitárias. Como
construção coletiva, a avaliação é uma prática social orientada, sobretudo, para
“produzir questionamentos e compreender os efeitos pedagógicos, políticos, éticos
do fenômeno educativo, e não simplesmente um exercício autocrático de
discriminação e comparação” (Dias Sobrinho, 2003, p. 177).
Os fins são o essencial a conhecer e a avaliar em uma instituição ou em um
programa educativo. Os fins devem ser o objeto central de uma avaliação educativa.
Para alcançar a compreensão dos fins, é preciso entender os meios, as estruturas e as
relações entre as partes. No processo de conhecimento, a fragmentação é muitas
vezes necessária. Por isso se justificam os dados quantitativos e os diagnósticos de
performatividade, mas sempre como partes de processos mais amplos de
compreensão e valoração.
Para se avaliar uma instituição complexa, como é a universidade, além dos
recursos dos testes e das estatísticas, é necessário assumir uma atitude
epistemológica animada por concepções filosóficas, políticas e axiológicas. Os fins
não são entidades etéreas. São construções sociais que se vão realizando por meio
das estruturas e das forças que se sobressaem nas relações de todo tipo –
interpessoais, sociais, de trabalho, hierarquizadas etc.. Os fins da educação não são o
ensino, tampouco é a aprendizagem ou a produção de conhecimentos. Estes são
meios, importantíssimos e imprescindíveis, pelos quais uma universidade cumpre
sua finalidade primordial - porque a primeira na ordem -, essencial e insubstituível,
pois é a razão de existir que a sociedade confere a uma instituição educativa: a
formação.
A formação afeta a todos, pois todos têm a obrigação moral e a necessidade
psicossocial de se construir como seres humanos. Não se limita tão-somente a
aspectos pragmáticos da vida. Por isso, formação é muito mais que capacitação ou
treinamento profissional, mais que o domínio nos campos do trabalho, da ciência e
da tecnologia, embora isso também lhe faça parte de modo importante, irrecusável e
fundamental.
Formação também pertence aos imperativos ontológicos, morais, políticos e
sociais da construção da personalidade, da cidadania e, em plano mais alargado, da
elevação da humanidade. “Nesta perspectiva, as questões fundamentais que a
avaliação deve afrontar dizem respeito primordialmente aos significados da
existência humana e da sociedade que a instituição está promovendo por meio de
suas atividades formativas.” (Dias Sobrinho, 2003, p. 180).
A formação tem uma dimensão eminentemente social e pública. Por isso, avaliar
os múltiplos sentidos do trabalho formativo é necessariamente tarefa social e
pública. Nenhum indivíduo, isoladamente, pode ter a palavra final e definitiva sobre
a formação e a educação que uma sociedade precisa promover em suas instituições.
A ditadura do pensamento único não deveria prevalecer em nenhum setor da
vida humana e social, e certamente a educação superior, por ser o lugar da criação,
da crítica, do debate, da reflexão e do conhecimento, deveria rechaçá-la com todo
vigor. Universidade democrática e socialmente relevante requer avaliação
participativa e multidimensional.
A avaliação democrática e participativa, muito mais que um instrumento legalburocrático, é a expressão de uma filosofia formativa resultante dos debates públicos
em uma comunidade educativa e assumida como valor a ser realizado. Tem,
portanto, um papel de compreensão e crítica do já-realizado (não só de verificação),
mas também de construção de futuros melhores. Tendo em vista a formação pessoal
e social e, inseparavelmente, a consolidação de sociedades democráticas e
desenvolvidas, é fundamental que pergunte sobre os significados e os valores,
sempre plurais e muitas vezes contraditórios, das ações e das relações institucionais.
Para isso, é necessário incluir a tarefa de organização de dados a respeito de um
objeto, seja ele o ensino, a investigação, a instituição, o sistema etc.. Por exemplo, a
quantidade de produtos de investigação e o lugar que esses produtos ocupam dentro
de uma determinada área de conhecimento. Mas esse deveria ser somente o primeiro
passo. É preciso ir além, “discutir os sentidos que esses produtos estão construindo
no processo mais amplo da formação dos indivíduos e da sociedade”. O mesmo
raciocínio vale para a capacidade de retenção de conteúdos disciplinares que os
estudantes conseguem demonstrar. “Porém, é fundamental pôr em questão os
sentidos desses conteúdos e dessa suposta aprendizagem, perguntar pelas condições
de produção dos conhecimentos e seus valores relativamente à ciência e à
cidadania”. (Dias Sobrinho, 2003, ps. 181 e 182).
III
No Brasil, em graus e momentos diferentes e sempre carregando importantes
contradições, encontram-se exemplos dos dois paradigmas de avaliação anteriormente tratados.
Não estranha que o paradigma objetivista e quantitativista tenha prevalecido, especialmente na
esfera da administração central e na mídia, em geral. Nos meios acadêmicos, não se produzem
consensos a respeito nem das teorias, nem das práticas de avaliação.
De 1996 a 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, os dois principais
instrumentos de avaliação foram os seguintes:
1.Análise das Condições de Ensino (ou de Oferta). Especialistas externos elaboravam um
relatório analítico seguindo um roteiro prévio inspirado na OCDE e que incluía os seguintes
indicadores: taxas brutas e líquidas de matrícula, disponibilidade de vagas para novos alunos, taxa de
evasão e de aprovação, tempo médio de conclusão do curso, níveis de qualificação docente, razão
aluno/professor, tamanho médio das classes, custo por aluno, percentual dos custos da educação superior
no total gasto com educação pública, percentual do PIB (produto interno bruto) gasto com Educação
Superior.
2. Exame Nacional de Curso – Provão. Tratava-se de um exame de larga escala aplicado aos
alunos concluintes. Os resultados serviam de base para os atos regulatórios de credenciamento e
recredenciamento das instituições e reconhecimento dos cursos. Foram amplamente usados pela mídia
para efeito de elaboração de rankings. Esse exame foi bastante criticado por docentes, estudantes e,
sobretudo, por especialistas em avaliação, principalmente por seu caráter impositivo. O exame era
obrigatório para os estudantes em fase de conclusão de curso, sob pena de não obterem o diploma,
embora em nada importava o seu desempenho nas provas. Isso propiciava a ocorrência de boicotes e
fraudes. Por exemplo, bastava que o estudante assinasse a prova e a deixasse em branco, se o quisesse. Só
isso já bastaria para concluir que os rankings apresentavam baixíssima credibilidade, mas se passavam
aos olhos da população como a verdadeira expressão da qualidade da educação superior.
Três diretrizes, interligadas, se faziam presentes no Provão, como em outros modelos
afins: um amplo quadro legal-burocrático institui o enquadramento normativo e punitivo; a
hierarquização dos cursos com base nos desempenhos estudantis produz efeitos econômicos, pois
estabelece critérios de distribuição de recursos e prestígios, orienta o mercado e instiga a lógica
da competição no interior do sistema; no plano ideológico, a necessidade de alcançar uma boa
posição relativa reforça o conceito de educação como mercadoria e induz práticas pedagógicas cujos
alvos passam a ser o bom desempenho dos estudantes nos testes.
Dentre outros efeitos produzidos, cabe destacar os que se referem à modelação da
educação superior brasileira. Como estudos da área apontam, a repetição de um exame nacional
com importantes efeitos regulatórios tem forte impacto na organização curricular dos cursos e
induz ações administrativas e práticas pedagógicas que levem ao bom desempenho dos
estudantes nas provas e consequente bom posicionamento nos rankings. A agência que controla a
elaboração das provas, também controla os conteúdos curriculares, o que e como deve ser
ensinado, o que e como deve ser aprendido. A tendência é a de desenvolver a cultura dos testes,
isto é: ensinar para o exame. O mais confortável, especialmente para instituições de pouca
tradição, nesse caso, é moldar um currículo e um tipo de ensino adequados à obtenção de
melhores resultados estudantis no exame nacional. O Provão teve enorme centralidade nas
políticas de avaliação e regulação da educação superior no governos de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002).
2. SINAES. A partir de 2003, no governo de Lula, se implantou um modelo de avaliação baseado
em paradigma bastante diferente do Provão. É preciso avisar desde logo que o proposto inicialmente e
realizado nos primeiros anos subsequentes não corresponde, em grande parte, ao que hoje está se
fazendo em nome do SINAES. Cabe fazer aqui uma brevíssima distinção entre esses dois momentos. A
concepção original prevaleceu de 2003 a 2007 e se aproximava do que anteriormente foi aqui
caracterizado como um modelo democrático e participativo. Desde 2008, entretanto, ocorre uma
mudança paradigmática: o SINAES vem privilegiando o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes,
que passou a incorporar a lógica de exame em larga escala semelhante ao que fora o Provão, embora
com mais elaboração técnica. Estabeleceu índices de medida que servem de base à hierarquização de
cursos (rankings) e instituições a partir dos resultados apresentados pelos alunos e de outras
performances institucionais.
Originalmente, o SINAES se fundamentava numa concepção de avaliação e de educação
global e integradora. O objeto da avaliação na proposta primitiva do SINAES era a instituição
em sua totalidade. A ideia era superar a fragmentação produzida pelo antigo Provão, que
enfatizava quase exclusivamente o desempenho estudantil em um exame. O SINAES pretendia
recuperar o conceito de fenômeno complexo da educação superior, tendo como perspectiva final
a formação de cidadãos-profissionais e os princípios que regem um bem público e direito
humano fundamental.
O desempenho estudantil era tomado como um dos elementos a avaliar, mas sempre inserido
em um processo dinâmico e, sobretudo, articulado com as questões da formação, da responsabilidade
social, da pertinência e o aprofundamento da democracia. O eixo central deveria ser a avaliação
institucional interna e externa. Este seria um processo integrador, contínuo e deveria contar com a
participação ativa - como sujeitos e co-responsáveis, não só como avaliados - de toda a comunidade
educativa interna e externa: professores, estudantes e técnicos.
O que se buscava era avaliar de modo articulado as diversas dimensões, estruturas,
objetivos, relações, compromissos e responsabilidades sociais das Instituições e de seus cursos.
Para organizar o trabalho, foi elaborado um roteiro geral contendo dez dimensões sobre as quais
deveriam incidir os debates e análises, respeitando-se sempre as especificidades de cada
instituição: 1) missão e plano de desenvolvimento institucional; 2) políticas relacionadas ao
ensino, pesquisa, cursos de graduação, pós-graduação e extensão; 3) responsabilidade social da
instituição; 4) comunicação com a sociedade; 5) políticas de pessoal; 6) administração e
organização institucional; 7) infra-estrutura física; 8) planejamento e avaliação; 9) políticas de
atendimento aos estudantes; e 10) sustentabilidade financeira.
Algumas dificuldades operacionais e mudanças na administração central, além da
obsessão da mídia e de vários setores sociais, inclusive do próprio meio acadêmico, pelos
rankings internacionais e nacionais fizeram com que importantes princípios e objetivos da
proposta original do SINAES viessem a ser descartados e descumpridos, nomeadamente desde
2008. O Exame Nacional, agora estático e somativo, voltou a ser o foco central e o principal
definidor da qualidade dos cursos e da educação superior em geral.
O SINAES vai assim perdendo sua força integradora; a avaliação institucional se
burocratiza e deixa de ser participativa; a autonomia universitária tende a deslocar-se dos
educadores para as agências da administração governamental e organismos multilaterais; a
formação toma o desvio da capacitação para o mercado, treinamento para o exame e obtenção
de diploma; a avaliação se faz prioritariamente como medida, classificação e controle legalburocrático.**
IV
Chegada a hora de ir concluindo, é importante retomar sinteticamente algumas ideias
seminais. A mais importante: os fins da educação, com sentido público, são os processos jamais
acabados de formação de indivíduos sociais, cuja construção pessoal se integra à construção da
sociedade e, em última instância, à construção da dignidade humana, ou seja, à dignificação da
humanidade. Isso implica a seguinte consideração: a educação superior deve assumir o
compromisso de buscar contribuir para que a dignidade humana socialmente construída seja um
princípio a ter proeminência sobre os interesses privados das empresas e dos indivíduos. Avaliar
com foco nos valores e significados da formação humana, além da verificação de aspectos
performativos e operacionais, consiste na interrogação radical a respeito do cumprimento, por
parte da instituição e do sistema, dos princípios fundamentais da sociedade humana: liberdade,
solidariedade, respeito à alteridade, desenvolvimento social com equidade.
Esse deveria ser o núcleo focal da avaliação da educação superior: pôr em questão, isto é,
interrogar radicalmente e produzir significados a respeito do cumprimento desses fins.
**
Não cabe aqui tratar mais extensamente desse assunto. Havendo interesse, sugere-se consultar a revista
Avaliação (61 edições até o momento), disponível em WWW.scielo.br/aval
REFERÊNCIAS
ALTBACH, Philip G. Funciones complejas de las universidades en la era de la
globalización, in: La Educación Superior en el Mundo 3. Educación Superior: Nuevos
Retos y Roles Emergentes para el Desarrollo Humano y Social. Madrid: GUNI (Global
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ARDOINO,
Jacques (1993).
Note à propos des rapports entre
l’aproche
multirreférencielle et l’analyse institucionelle. Practiques de formation, nº 25-26, Paris:
Université de Paris VIII.
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