Texto da Coleção CIEE - volume 17 A ASS N NO OV VA ASS D DIIR RE ET TR RIIZ ZE ESS P PA AR RA AO OE EN NSSIIN NO OM MÉ ÉD DIIO O Guiomar Namo de Mello Durante um ano, a Câmara de Educação estudou novas diretrizes para o ensino básico no Brasil. O debate do assunto requer atenção especial, pois nem todos os educadores estão no mesmo ponto em termos de atualização do quadro legal existente. Por ter a legislação educacional brasileira mudado substancialmente nos últimos dois ou três anos, é importante fazer, inicialmente, a apresentação da questão do ponto de vista especificamente legal, para se situar a questão das diretrizes curriculares. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), reafirmando determinações da lei anterior, que criara o Conselho Nacional da Educação, deu competência ao Conselho Nacional da Educação para traçar as diretrizes curriculares para a educação básica, nos níveis da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio e de algumas de suas diferentes modalidades (como da educação indígena ou da educação de pessoas com necessidades especiais de aprendizado). O legislador mostrou-se bastante sábio, sobretudo ao criar o Conselho Nacional da Educação e depois a LDB, por estabelecer na fixação das diretrizes uma espécie de cooperação ou de parceria entre o Conselho Nacional da Educação e o Ministério da Educação. Em primeiro lugar, a decisão foi valiosa por reconhecer as diferenças entre as duas instituições: o Ministério da Educação é órgão do Executivo, comandado pelo governo, que neste momento dirige o Estado; e o Conselho Nacional da Educação, pelo tipo de representação que passa a ter depois da modificação ocorrida na Lei 9.131/95, poderia ser mais associado com um organismo do Estado. Os acertos da nova lei O Conselho Nacional da Educação é constituído por 24 pessoas, 12 da Câmara de Educação Superior, 12 da Câmara de Educação Básica, e o processo de escolha dessas pessoas, com as limitações e possibilidades vigentes no nível de organização do País, passa pela consulta a entidades nacionais dos mais diferentes níveis. Desse processo participam entidades ligadas à educação e a ela externas, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), um organismo do setor educacional e outras. Portanto, ao instituir uma certa colaboração entre o Executivo e o Conselho, a lei reconhece que as diretrizes devem ser mais perenes que um governo. Mas admite, também, que implicam certo consenso entre o Conselho, que é um organismo mais do Estado, e o Executivo federal, um organismo mais de governo. A lei determina que as diretrizes sejam fixadas a partir de proposta feita pelo Ministério. Em princípio, cabe ao Ministério tomar a iniciativa de enviar ao Conselho essa proposta de diretrizes. Recebendo a proposta do Ministério, o Conselho a amplia, muda, Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 modifica, aprofunda, detalha, elabora e delibera a respeito do assunto, devolvendo ao Executivo. Caso este concorde com o produto do Conselho, que nasceu da provocação do Executivo, a sugestão do Conselho será homologada pelo ministro. Foi o que aconteceu com as diretrizes, mas nem sempre é o que acontece com outros temas. Há temas propostos pelo Ministério e sobre os quais o Conselho delibera; na volta à análise do ministro, não há concordância e a proposta é devolvida, começando, então, um processo de negociação natural e importante, no sentido de fazer com que os dois mecanismos tenham um mínimo de sintonia em relação às grandes questões educacionais. Não foi, entretanto, o que ocorreu no caso das diretrizes nacionais de ensino médio. O Ministério da Educação mandou ao Conselho em junho/julho de 1997 um documentos básico sobre elas. Grande parte do que futuramente seria deliberado pelo Conselho já estava contemplado no documento do Ministério. Considerando que as questões do ensino médio no Brasil eram muito mais difíceis de discutir que a questão do ensino fundamental, sobre o qual há certa unanimidade, a Câmara de Educação Básica, tendo delegado a mim a relatoria desse trabalho, decidiu aprofundar uma justificativa pedagógica melhor para as propostas que estavam vindo. A partir daí, por conta desse documento do Ministério, durante o segundo semestre de 1997 e todo o primeiro semestre de 1998, começou um intenso período de estudos. O ensino médio vive uma crise de identidade (e não só no Brasil). Há sérios problemas sobre a determinação de sua missão, de sua finalidade. Por isso, houve por bem o Conselho preparar um parecer de maior fôlego, como contribuição da Câmara de Educação Básica, da comunidade educacional. É uma tentativa de não só melhorar, no sentido de aprofundar a proposta do Ministério, como também ampliá-la. Disso resultou o parecer que fixa as diretrizes para a organização curricular do ensino médio. É um parecer longo, com quase 70 páginas. É muito importante que, com a calma e a serenidade que essas coisas merecem, nas escolas e nas comunidades, as pessoas se dediquem à sua leitura e análise. Uma vez aprovado este parecer, haverá uma resolução que, de forma sintética, espelhe a análise feita e trace efetivamente a norma de organização curricular. Do ponto de vista legal, cabe ainda esclarecer como se processa a tramitação das normas, que são obrigatórias, tanto as que emanam dos Conselhos Estaduais, como as definidas pelo Conselho Nacional da Educação. Concomitantemente com a elaboração de diretrizes tanto para o ensino médio como, antes, para o ensino fundamental, o Ministério da Educação, no desempenho de suas funções de assistência técnica aos Estados e Municípios, preparou, também, o que veio a ser conhecido como parâmetros curriculares, um trabalho de fôlego. São a proposta curricular do Ministério, e, não sendo obrigatórios, com certeza serão muito importantes e muito utilizados, sobretudo nos Estados e Municípios que não criaram, ainda, capacidade própria para formular sua propostas curriculares. Só no caso da primeira à quarta série fundamental, resultaram 14 volumes. Mas, além disso, para as escolas e para todos os demais sistemas, os parâmetros são uma contribuição extremamente importante. Podem ser usados como sugestão inicial aos Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 parâmetros que a escola proporá para seu currículo. Diante da lei, o currículo proposto por uma escola ou sugerido pelo Ministério da Educação têm o mesmo valor e nenhum dos dois é absolutamente obrigatório. A norma, a diretriz que emana do Conselho, sim. E a Câmara de Educação Básica considerou essa uma enorme responsabilidade. É que a Lei 9.394, a nossa atual Lei de Diretrizes e Bases, é extremamente flexível e aberta, quase uma convocação à criatividade e à inovação dos educadores. E a Câmara de Educação Básica, não só no que respeita às diretrizes curriculares, como também em relação a outros assuntos que por ela têm sido deliberados, tem como princípio de trabalho que não tornará rígido nenhum dos pontos flexibilizados pela LDB. Por isso, o trabalho a nós atribuído de traçar diretrizes estava exatamente na tensão que normalmente ocorre entre o Governo federal e as autonomias estaduais e municipais (reconhecidas pela nossa Constituição) na gestão pedagógica e administrativa dos seus sistemas de ensino, e depois, com a LDB, na autonomia dos seus estabelecimentos. Acreditamos que conseguimos resolver essa tensão da maneira mais produtiva possível, sem deixar de cumprir o que nos pode a lei – uma base nacional comum. Esta base precisa ser deliberada pelo Estado nacional, por ser o ponto de união de toda a enorme diversidade continental do Brasil. Deve, por isso e, ao mesmo tempo, abrir ao máximo as possibilidade de conjuntos curriculares mais diversificados possíveis. Escola vinculada à vida Esclarecidos as mecanismo de tramitação e o significado das diretrizes, podemos analisar o trabalho do Conselho Nacional da Educação que, ao determinar as diretrizes, busca fixar um ponto comum nessa diversidade. Não há nenhuma pretensão de que o seu parecer e suas propostas sejam eternos. Não se consideram escritas em pedra as doutrinas educacionais, passíveis de transformação, na medida que são incorporadas e praticadas pela sociedade e, por isso, devem ser ajustadas. Qual era o roteiro básico que o Conselho deveria seguir para traçar essas diretrizes? A Lei de Diretrizes e Bases. Na realidade, as grandes direções para os currículos nacionais já estavam traçadas na lei. E nós somos, em parte, guardiães da LDB e é muito importante que tudo que fizéssemos estivesse estritamente dentro do espírito e, na maior parte das vezes, dentro da própria letra dessa lei. Nosso ponto de partida foi o primeiro artigo da lei, que diz que a educação escolar deverá estar vinculada ao trabalho e à prática social. Quero assinalar a importância de ser esta a primeira vez que a lei não diz que a educação profissional vincula-se ao trabalho: diz que a educação escolar será vinculada ao trabalho e à prática social. Isto significa, em princípio, educação escolar da creche ao último ano de doutorado, em todas as matérias. Ela não especifica a modalidade em que a vinculação para o trabalho deve ocorrer; une o Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 trabalho à prática social como as duas dimensões que devem estar presentes no processo educativo, em todas as suas manifestações escolares. O segundo princípio importante é o fato de ser a lei muito parcimoniosa ao mencionar disciplinas, quando se refere tanto à finalidade quanto aos currículos ou às diretrizes curriculares. Só são citadas disciplinas em casos muito específicos e, assim mesmo, com o nome de componentes curriculares ou de “conhecimento sobre” e não necessariamente de uma disciplina escolar tal como a conhecemos. Essa lei, antes de mais nada, enfatiza competências cognitivas, começando pelas finalidades gerais da educação básica, na qual a capacidade de aprendizagem tem um grande destaque. Então, não se trata de ensinar um conteúdo específico, mas sobretudo de desenvolver a capacidade de aprendizagem de diferentes conteúdos, por todo o ensino fundamental. Nos artigos 35 e 36, que tratam especificamente do ensino médio, a lei abre portas para um currículo voltado para competências e não para conteúdos. Este currículo ou doutrina curricular tem como referência não mais a disciplina escolar clássica, mas sim as capacidades que cada uma das disciplinas pode criar nos alunos. Alguns pontos desses artigos devem ser destacados. Em primeiro lugar, a autonomia intelectual, outra maneira de se falar em capacidade de aprendizagem. Para haver autonomia intelectual é muito importante que a pessoa saiba como aprender. Em segundo lugar, o conhecimento dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos. É necessário notar que esse trecho é da lei sobre educação básica, não de educação profissional... Em terceiro lugar, a relação entre a teoria e a prática em cada disciplina do currículo, não só nas disciplinas chamadas práticas, mas em todas elas: português, artes plásticas, química ou matemática. É a relação entre a teoria e a prática em cada disciplina do currículo. Em quarto lugar, o enorme destaque não para os conteúdos, mas para os significados. A lei é bastante explícita: “Ao sair do ensino médio, o aluno deverá ter compreensões do significado das ciências, das artes e das letras”. Ela não diz que ele deverá saber português. Sobre a língua portuguesa, especificamente, o destaque se dá na língua como exercício da cidadania, na língua como instrumento de comunicação e na língua como capaz de constituir significados, portanto, um instrumento de organização cognitiva da realidade. É muito interessante esse aspecto e chega a ser intrigante imaginar o nosso Congresso Nacional, com sua heterogeneidade, com o que ele tem de bom e o que ele tem de não tão bom, ter aprovado uma lei muito contemporânea até mesmo na linguagem. Porque, se analisarmos os documentos a respeito das reformas mais recentes da educação secundária (como é conhecido em todo o mundo o ensino médio), ocorridas na Europa, especialmente na Espanha e na Inglaterra, a questão da linguagem e das linguagens Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 constituidoras de significados está muito mais presente do que a questão dos conteúdos, por uma série de razões. Eu não estava no Brasil quando se elaborou a LDB, e não acompanhei de perto esse processo, mas de longe eu chegava a dizer: “Que coisa estranha! Que coisa moderna em um país que pra mim tem séculos que se sobrepõem, como se os séculos 17, 18 e 19 tivessem deixado um rescaldo aqui, e se fosse acumulando uma grande contemporaneidade com muita coisa arcaica”. Considero que, pelo menos no âmbito legal, temos hoje uma situação em grande sintonia com algumas exigências educacionais de grande contemporaneidade. Para encerrar a análise da LDB, há um último aspecto importante a destacar: ela coloca o ensino médio como etapa final da educação básica, base que a ninguém em princípio deve ser negada, conforme determinam a Constituição de 1988 e a Emenda 14, aprovada após a LDB, no sentido da universalização do ensino médio. Ganhamos pontos Foi sob esse cenário legal que o Conselho trabalhou. Mas há também outras coisas tão ou mais importantes que a questão legal que tiveram de ser levadas em consideração. Uma delas diz respeito ao próprio desenvolvimento brasileiro. Ainda hoje, eu estava folheando os dados mais recentes das estatísticas educacionais que temos. São bem claras algumas tendências que traçam alguns panoramas interessantes e desafiadores para o futuro... Em primeiro lugar, aumenta, de maneira contínua, embora lenta (mas é uma tendência de alguns anos), a taxa de conclusão do ensino fundamental. E, ao mesmo tempo se reduz, de maneira lenta, mas também contínua, a idade média dos concluintes. Este é um indicador muito seguro de que o esforço para resolver alguns problemas básicos de qualidade no ensino fundamental (como repetência, abandona e evasão) começou a produzir efeitos. Por exemplo, em dez anos cresceu em cerca de 30% o número dos jovens que, em menos tempo, conseguem cursar e completar as oito séries do ensino fundamental. Os jovens equivalentes a estes, dez anos atrás, tinham expectativa de permanecer 11 anos no sistema, em vez dos 8 regulares. Atualmente estamos em 9,7 anos. Quanto mais cedo o aluno terminar a 8 série, mais disposição ele terá de buscar o ensino médio. E é por isso que, em 12 anos, estamos elevando a nossa matrícula no ensino médio de cerca de 11% a 12% ao ano. De 1997 para 1998, isso deve ter significado a incorporação de quase 800 mil alunos jovens, ou jovens adultos, na primeira série do ensino médio. Um novo jovem Isto equivale dizer que o ensino médio está dando os primeiros passos para deixar de ser excludente e começar a incluir um outro tipo de população, porque até agora a taxa líquida de matrícula no ensino médio é de 25%, até um pouco menos. Ou seja, apenas uma quarta parte dos jovens de 15 a 17 anos consegue chegar à escola média. Um outro tanto Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 está na escola, mas ainda retido no ensino fundamental. Portanto, a taxa bruta é de pouco mais de 50%, enquanto no ensino fundamental a taxa de escolaridade é superior a 95% da faixa etária. Se quiséssemos escolarizar toda a população até 17 ou 18 anos, teríamos de incluir metade da faixa etária. Se o ensino fundamental definitivamente deixar de ser um segmento de exclusão no País, a fratura social deslocou-se para o nível médio – com um movimento, porém, que vem de ensino fundamental. Estamos, portanto, exatamente no ponto de conversão. É este, e nenhum outro, o momento de se pensar qual é a escola média que se pode organizar para esta população que nunca esteve nela. Quem é este jovem que chega à escola média e estará a ela chegando cada vez mais? Este fenômeno é acentuado pela onda de adolescentes brasileiros. O país teve um pequeno O movimento de acréscimo no ensino baby boom 15 anos atrás. Então, o Brasil, acostumado a médio nacional ocorre incorporar um número x de pessoas por ano na faixa simultaneamente à adolescente, passou a incorporar esse x mais 25%. Este globalização, ao fenômeno demográfico deve perdurar até 2007 e é bom desemprego, à crise da lembrar que o movimento de acréscimo no ensino médio empregabilidade e ao aumento da ocorre em momento de globalização econômica, de aumento competitividade. da competitividade, de crise de emprego, de crise de empregabilidade que incide cruelmente sobre a população jovem. Ele não é mais um “Mauricinho”, cuja carreira já havia sido determinada pela família: terminou o 2 grau, faz o cursinho e vai para a faculdade. Este jovem tem, sim, o ensino superior no seu projeto de vida, mas não exclusivamente: precisa do trabalho como estratégia para continuar os estudos. É um jovem que, de modo geral, já atingiu nível educacional superior ao de seus pais e, portanto, é capaz de alcançar significados que a geração anterior de sua família não teve. E, finalmente, é um jovem que tem de ter autonomia na sua vida, porque vai ganhar a sua subsistência. Por isso, as exigências que se fazem a este jovem são muito mais complicadas do que as sofridas pelo outro jovem de classe média e média alta, incluído nos 25% que sempre tiveram matrícula no ensino médio. O novo aluno do ensino médio precisa ter um projeto de vida, que inclua o trabalho e a continuidade dos estudos ou, pelo menos, o trabalho. Ele responde por si mesmo, porque já tem autonomia para isso, ainda que não tenha maioridade legal. Muitas vezes, também ajuda economicamente a família e não pode contar com ela para determinadas decisões que implicam significados adquiridos da escolaridade, porque seus pais têm um nível escolar inferior. Portanto, é um outro tipo de jovem, provavelmente mais maduro e mais angustiado; certamente muito mais vulnerável à necessidade de ganhar dinheiro e com exigências em relação à ordem jurídica institucional que podem se resolver pela autonomia, mas também pela repressão... Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 O Brasil não tem tradição de escola média de massa, diferentemente de alguns de seus parceiros do Mercosul, como a Argentina e o Uruguai, onde as pessoas se identificam pela escola secundária que fizeram. No Uruguai, todo ano, as pessoas vão à sua escola média festejar, mesmo se decadente, com problemas de qualidade, etc. Há um attachment das pessoas à instituição de ensino. Onde há isso no Brasil? Em meia dúzia de escolas, num país de 160 milhões de habitantes. Temos o Pedro I, o Caetano de Campos, que já nem é mais... E aí, onde estão os outros? Nós não conhecemos a escola média, nem a da elite, muito menos a da massa. Até agora, a expansão do então 2 grau foi de classes perdidas de ensino médio em escolas de ensino fundamental, em geral no período noturno, sem identidade, sem projeto próprio. Felizmente, o governo de São Paulo adotou uma medida interessante no momento em que separou o grupo de 1 a 4 séries do de 5 a 8 e ensino médio. Isso possibilitou até um certo arranjo de escola para jovem, para a faixa etária que se apropria do tempo e do espaça de maneira muito diferente da criança pequena e cuja necessidade de acolhimento é diferente. Um jovem que se senta em uma sala de aula, em que sua perna não cabe na carteira e que olha na parede e vê cartazes de coelhinho da Páscoa não pode sentir-se vem ali... Esse espaço não o identifica. A medida tomada por São Paulo, que já está sendo imitada por vários outros Estados, é bastante interessante nesse sentido e talvez permita repensar um pouco essa identidade da escola média. O mercado a considerar Há uma outra dimensão que o debate do ensino médio deve considerar: o que está ocorrendo no mundo do trabalho e no mundo da prática social, já que, diz a lei, a educação escolar deverá estar vinculada ao mundo do trabalho e à pratica social. Sem entrar em detalhes a respeito das mudanças em curso no organização do trabalho e que deixam muitos educadores até atônitos, em relação ao perfil de habilidades e de competências. O que aumenta a possibilidade de empregabilidade no mundo de hoje é a ênfase nas habilidade básicas e gerais. Têm grande importância a capacidade de análise, a capacidade de resolver problemas, a capacidade de tomar decisões e, sobretudo, ter flexibilidade para continuar aprendendo. Isto mostra, também, a sintonia da lei com este novo panorama. Destaca-se, no capítulo da contemporaneidade, a questão das informações. Houve momentos em que se pensou – e talvez em alguns ainda se pense – que a Internet, o hipertexto, os meios de massa, a mídia de modo geral (considerando a mídia como a integração das formas de acesso à informação) substituiriam a escola. Há quem ainda defenda isso. Nós, do Conselho, pensamos exatamente o oposto: quanto mais fácil o acesso às informações, tanto mais difícil é construir significados sobre elas. Quem já não sentiu a angústia de se perguntar: “Meu Deus, qual é o sentido disto, qual o sentido da minha vida? Do meu trabalho? Do meu casamento?” Quando alguém se Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 faz esta pergunta é por estar sentindo, de repente, que lhe falta chão sob os pés e parece-lhe ter perdido a visão. Isto acontece com a aprendizagem. Quanto mais informações se têm, mais difícil se torna classificá-las, selecioná-las, incorporá-las e organizá-las de modo que elas mostrem algum sentido. Eu diria, então, que a escola tenderá a se transformar, cada vez mais, numa ponte de significados sobre a autoestrada das informações e dos conhecimentos, com questões que são muito familiares para nós, que trabalhamos no cotidiano escolar. Em primeiro lugar, porque conhecimentos e informações se adquirem sozinhos. Significados se constróem interagindo um com o outro. Ninguém constrói significados sozinho. A cultura é significado e nada mais coletivo, como produto, que a cultura. A comunicação, nesse sentido, nada mais é do que a possibilidade de que muitos significados circulem e entrem em concorrência, em condições de igualdade. Essa é a comunicação na sociedade democrática. O professor está, hoje, no ponto de se dizer: “ Epa! Eu não sou mais a única fonte legítima de conhecimento para o meu aluno! Talvez ele seja mais hábil e mais rápido do que eu para ir à Internet buscar um monte de informações! Mas eu resgato cada vez mais o meu papel de ajudar este aluno a constituir um significado, a dar sentido para essas informações...” Isso muda o papel do professor. Ele não precisa ser a única fonte de conhecimentos... Os conhecimentos podem vir da Internet, da televisão, do vizinho, da prática social, do trabalho, etc. Mas o sentido que aqueles conhecimentos podem constituir é uma coisa que esse professor pode trabalhar. E quem trabalha sentido trabalha linguagem; trabalha a língua e trabalha as demais linguagens: a linguagem do corpo, a da música, a das artes, a da informática, como linguagens que constituem sentido, que fazem a pessoa localizar-se no mundo, apesar da enxurrada de informações que lhe chegam à cabeça. Apesar de todo o peso das exigências específicas do mundo do trabalho, creio que a questão das informações no mundo contemporâneo talvez seja, do ponto de vista educacional, a mais importante. São indispensáveis a constituição de sentidos, a negociação de sentidos na sala de aula e a possibilidade de gerar, nesta sala de aula e na escola, uma certa inteligência coletiva que negocie sentidos. Não se trata só de saber química; trata-se de saber para que serve saber química e qual é o papel dela no mundo de hoje. Pesquisa recente feita com alunos do grupo das melhores escolas particulares de São Paulo é reveladora: nenhum dos alunos apontou relação entre a química que estuda na escola e a sua vida. Por aí, pode-se pensar que essas pessoas não usam roupa de fibra sintética, não comem iogurte, não têm problemas de agrotóxico, não vivem num mundo de novos materiais, todos eles produzidos no âmbito da química... As novas diretrizes O que resultou a reflexão do ensino médio? Estes são os principais pontos do trabalho concluído por nossa Câmara. Em primeiro lugar, as novas diretrizes devem considerar a questão da identidade e da diversidade do ensino médio. Nossa proposta é que Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 o ensino médio supere a dualidade profissional ou acadêmica e se volte para uma diversidade que pode ser mais profissional ou mais acadêmica, dependendo da clientela. Contornamos o pedido feito pela LDB de uma base nacional comum e uma parte diversificada, de acordo com as exigências da clientela, porque se considerou que a base nacional comum também tem de estar de acordo com as exigências da clientela. Nada no currículo tem sentido se não estiver conforme as exigências da clientela. Um currículo não pode dividir-se em base nacional comum e parte diversificada. Destacamos intensamente a preparação básica para o trabalho, que tem de estar presente na educação básica, de modo a possibilitar escolas com vocações inteiramente diferentes. Há escolas com mais vocação para a área biológica, outras para a linguagem, ou para ciências exatas e para ciências sociais. Estamos propondo três grandes áreas de conhecimento, correspondendo exatamente àquelas tradicionais: - a área das linguagens e seus códigos de apoio; - a área das ciências da natureza e suas tecnologias; - a área das ciências humanas e sociais e suas tecnologias. Nestas áreas, não são descritos conteúdos, mas competências pessoais, intelectuais e sociais que os alunos deverão adquirir durante o percurso pelo ensino médio. Não se fixa nenhuma proporção em que as áreas deverão estar presentes nos currículos. Diz-se apenas que as três áreas deverão estar representadas – mas não se diz nem em que proporção. E, sobretudo, não se menciona nenhuma disciplina ou conteúdo específico em cada área. Na área de ciências humanas, por exemplo, é possível haver estudos de direito como é possível haver estudos de sociologia ou de antropologia – ou até da velha história e geografia que nós conhecemos. Da mesma forma, na área das ciências humanas cabem estudos relativos à gestão, à administração e a outros instrumentos da área, porque são as ciências humanas e suas tecnologias. Na física e na área de ciências da natureza localizamse os estudos relativos à física, à química e à biologia e seus desdobramentos. E na área das linguagens encontram-se todas as disciplinas relativas às linguagens, que vão da educação física à língua portuguesa. Na proposta do Ministério, procuramos traçar dois princípios com o objetivo de facilitar às escolas o trabalho de organização de seus currículos. O primeiro é o princípio da interdisciplinaridade, partindo do princípio de que as disciplinas escolares são recortes absolutamente arbitrários do conhecimento. Um exemplo permite entender melhor o conceito: no século passado, a disciplina considerada mais importante do currículo francês era Pesos e Medidas – com exatamente este nome na grade curricular. Depois da incorporação do sistema métrico pela sociedade francesa, Pesos e Medidas desapareceu, integrando-se à Matemática, de onde nunca mais saiu... Quanto mais a pessoa se aprofundar em uma disciplina, mais ela poderá perceber as diversas conexões entre todos os conhecimentos. Esperamos que comece nas escolas um exercício de solidariedade didática entre as disciplinas. Dizemos solidariedade didática porque solidariedade implica boavontade. E talvez o primeiro passo para a interdisciplinaridade seja a boa-vontade, a idéia de desarmar resistências em relação aos feudos disciplinares. Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 Obviamente, a interdisciplinaridade pode ser muito mais que uma solidariedade didática. Quanto mais a pessoa se aprofunda na sua disciplina, mais percebe as conexões dessa disciplina (como objeto e como método) com outras. Não se pretende formar pessoas “desespecializadas” – interdisciplinaridade não significa isso. Ao contrário, implica domínio para perceber a conexão. E aí a interdisciplinaridade pode dar-se em níveis muito mais sofisticados. Isso vai depender, obviamente, de cada escola. Nada melhor para promover a interdisciplinaridade do que um projeto de estudo e um projeto de trabalho. E a mim espanta ouvir, sobretudo em escola públicas, mas também em escolas privadas que visito, que projeto é uma atividade extra-curricular – quando deveria ser o currículo! Projeto é uma forma interessante de integrar disciplinas, porque significa resolver um problema real ou estudá-lo. Um caso que conheci em escola do Interior de São Paulo: reciclagem do lixo escolar é um projeto interdisciplinar exemplar. Em torno dele, articulam-se todos os conhecimentos de importância: de política, de sociologia, de psicologia, de química e de física. Mas o projeto era extra-curricular! O segundo princípio vem da educação profissional. Em inglês, é conhecido como situated learning; em, português, se diz contextualização do conteúdo da vida. A contextualização nada mais é que os velhos artifícios didáticos, para motivar o aluno, apresentar significados para ele. Quando um professor ensina física, química ou história a um aluno, está transferindo a ele conhecimentos gerados em outro âmbito, e que, ao serem gerados, com certeza despertaram um encantamento muito difícil de repetir para o aluno. Nem um mágico consegue despertar no aluno o mesmo encantamento de quem fez a descoberta. Querer isso do professor é querer demais, porque a ele cabe fazer uma transposição didática. O processo de reinventar precisa ser reproduzido quase que artificialmente para que o aluno possa entender um pouco mais do que se ensina. E uma das coisas interessantes para fazer isso é a contextualização: trazer o que está sendo ensinado para mais perto da sua experiência imediata ou de sua experiência cotidiana. Assim, o aluno poderá perceber que o ruído de pneu e a freiada do carro têm a ver com aquela fórmula sobre atrito, explicada em aula pelo professor de física. E o aluno fará a ponte entre a teoria e a prática, como manda a LDB. E não há contexto melhor para fazer isso que o contexto do trabalho, a contextualização. Mas não é o único. O novo aluno do ensino médio precisa, por exemplo, determinar a sua sexualidade e como exercê-la de maneira segura. Ou precisa, também, decidir se faz dieta ou não e como cuida da sua saúde; se fuma ou não; se usa droga. Quer saber como conviver com a família, como lidar com a questão de já estar avançado em relação ao nível escolar de seu pai ou de sua mãe. Deve decidir como buscar seu parceiro ou sua parceira. É aqui que o professor pode consultar as características e exigências da clientela. É na contextualização que se ausculta. É claro que há grandes diferenças nos contextos cujos conteúdos devem ser trabalhados numa escola particular, de classe média alta, e numa escola de 2 grau noturno, de bairro da periferia. Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica Texto da Coleção CIEE - volume 17 E como se garante a base nacional comum? Pelas competências. Os conteúdos são o apoio das competências. Pretende-se que todos saiam do ensino médio com a capacidade de analisar uma tendência de dados, por exemplo, e de transformar uma tendência quantificativa numa análise qualitativa. Não importa se esse dado é a tendência da temperatura dos graus da dilatação do metal submetido ao calor ou a tendência dos votos na próxima eleição. A habilidade cognitiva que está em jogo é similar. A contextualização e a interdisciplinaridade permitem fixar, nas diretrizes, o seguinte: o ensino médio é educação básica. A LDB, embora bastante flexível, é rígida em três pontos no que se refere ao ensino médio: mínimo de três anos; 2.400 horas, 800 horas por ano e 200 dias letivos anuais. Este ensino médio é de educação básica e inclui a preparação básica para o trabalho, entendendo-a, se for o caso, como todos os estudos de base necessários para uma futura formação profissional, seja ela de nível técnico ou superior; todos ou pelo menos uma parte importante. Há até a possibilidade de aproveitar estudos. No entanto, o ensino profissional, tal como conhecido hoje, não cabe nas 2.400 horas do ensino médio e, por isso, terá de ser adicional, se for concomitante. Ou terá de ser posterior. Significa isso que as habilidades específicas de um curso de enfermagem deverão estar sendo ministradas fora das 2.400 horas. E toda a base na área de linguagens, na de ciências humanas e sociais necessária para ser enfermeiro, por exemplo, poderá e deverá ser trabalhada no contexto da enfermagem num curso de nível médio. A Câmara de Educação Básica considera, também, que uma proposta curricular como esta não convive com uma gestão centralizada. Por isso, deve-se considerar a questão da autonomia da escola e da proposta pedagógica. A nova direção terá de ir no sentido de permitir à escola armar seu currículo, recortando, destro das áreas de conhecimento, os conteúdos que lhe convêm para a formação daquelas competências que estão explicitadas nas normas curriculares. Deve poder trabalhar esse conteúdo nos contextos que lhe parecerem necessários, considerando o tipo de clientela que atende. A proposta pedagógica e a autonomia da escola são condições para a sobrevivência de um paradigma curricular como este: no fundo, o que procura fazer é cruzar princípios éticos, estéticos e políticos que estão na lei (princípios que no parecer são tidos como a estética da sensibilidade, a política da igualdade e a ética da autonomia) com conteúdos e exprimi-los do ponto de vista das competências dos alunos. Não é um paradigma curricular novo. Nada disto é grande novidade: boas escolas, privadas e públicas, já fazem trabalhos bastante sintonizados com este paradigma curricular, ainda que não lhes dêem os mesmos nomes ou não usem os mesmos termos. Alguns nós terão de ser desatados: o divórcio doloroso, talvez litigioso, da educação básica e do ensino profissional, que está na lei (Decreto 2.208), a articulação do sistema do ensino médio com um sistema de formação profissional, além, obviamente, de todas as questões relativas à infra-estrutura e formação de professores, entre outros. Guia Interativo de Informação Profissional e Educacional - GIIPE Centro de Integração Empresa-Escola - CIEE - Instituição não governamental e filantrópica