O FANTÁSTICO SEGUNDO GUY DE MAUPASSANT Jorge de Azevedo Moreira Colégio Pedro II Brasil Tido como uma das grandes referências da literatura fantástica na França, Guy de Maupassant (1850-1893) é, por isso mesmo, sempre citado nos estudos consagrados ao gênero. Teóricos como Tzvetan Todorov1, Irène Bessière 2 e Jean Fabre 3 freqüentemente ilustram suas idéias acerca do fantástico fazendo remissões a contos do autor normando, entre os quais se encontram Lui?, La Peur e, talvez o mais célebre de todos, Le Horla (em suas duas versões). É importante observar, contudo, que Maupassant não se limitou a escrever histórias fantásticas, postulando também algumas idéias sobre esse gênero. Detentor de uma aguçada percepção literária, o autor francês muitas vezes trabalhava como um autêntico crítico, analisando obras, autores e gêneros. Tal situação é facilmente compreensível, já que Maupassant atuou paralelamente nas áreas de literatura e jornalismo, conjunção que gerou inúmeras crônicas versando sobre assuntos literários. Pretende-se aqui apresentar as idéias de Maupassant em relação ao fantástico, ainda no século XIX, e compará-las com algumas das teorias veiculadas no século XX. Cumpre estabelecer também um confronto entre tais perspectivas teóricas e sua efetiva produção literária. Das centenas de crônicas que Maupassant escreveu a propósito dos mais variados assuntos, há pelo menos duas que emitem importantes opiniões sobre o fantástico. São elas Adieu mystères (publicada originalmente em 8 de novembro de 1881, no Le Gaulois) e Le Fantastique (publicada em 7 de outubro de 1883 no mesmo jornal). A avaliação desses posicionamentos teóricos torna-se válida a fim de verificar o quanto eles se aproximam efetivamente de seus textos consagrados a essa vertente literária. Em Adieux mystères, o cronista Maupassant se mostra um entusiasta do espírito positivo de seu tempo, isto é, a segunda metade do século XIX, elogiando sem cessar a contribuição da ciência para o esclarecimento humano. Nesse ponto, ele se aproxima bastante das idéias naturalistas de Émile Zola4, que acreditava no progresso da civilização calcado no desenvolvimento científico. As teorias estéticas de Zola preconizavam o texto literário como um veículo para o cientificismo, razão pela qual as obras deveriam se ater a uma análise objetiva e criteriosa dos fatos narrados. Por conseguinte, a literatura construída sobre a imaginação desenfreada e sobre o lirismo hiperbólico, à moda dos românticos, era duramente criticada pelo mestre do Naturalismo. Essa posição é vivamente compartilhada por Maupassant: Les hommes ne vous suivront plus, ô poètes. Vous n’avez plus le droit de nous tromper. Nous n’avons plus la puissance de vous croire. Vos fables héroïques ne nous donnent plus d’illusions; vos esprits, bons ou méchants, nous font rire. Vos pauvres fantômes sont bien mesquins à côté d’une locomotive lancée, avec ses yeux énormes, sa voix stridente, et son suaire de vapeur blanche qui court autour de la nuit froide. Vos misérables petits farfadets restent pendus aux fils du télégraphe! Toutes vos créations bizarres nous semblent enfantines et vieillies, si vieillies, si usées, si répétées! J’en lis chaque jour, de ces livres d’exaltés frénétiques, de bardes obstinés, de refaiseurs de mystérieux. C’est fini, fini.5 Para o autor normando, sua época é eminentemente cética e racionalista. Por essa razão, as desgastadas fórmulas românticas não são mais válidas para impressionar os leitores de seu tempo. O gosto livre pela imaginação, que recria o mundo ao bel-prazer do escritor, agrupa um repertório de técnicas já ultrapassadas. Do mesmo modo que o faz Zola, o termo “poeta”, usado por Maupassant, não se refere exclusivamente aos autores de poemas, no sentido estrito, mas a todos aqueles que se servem do espírito lírico do Romantismo para confeccionar suas obras. Essa postura romântica é combatida pelos naturalistas, que se põem a retratar a visão quotidiana da vida, livre das associações de ordem metafísica – que Charles Baudelaire tão bem exprime em seu poema Correspondances. A esse respeito, escreve Maupassant: Les choses ne parlent plus, ne chantent plus, elles ont des lois! La source murmure simplement la quantité d’eau qu’elle débite! Adieu, mystères du vieux temps, vieilles croyances de nos pères, vieilles légendes enfantines, vieux décors du vieux monde!6 A arte romântica pertence a um tempo ingênuo, ultrapassado; o Naturalismo, por outro lado, ambiciona representar a consciência do novo mundo que se ergue, construído a partir de idéias científicas. A literatura, enquanto representação da mentalidade de uma época, deve-se adequar aos novos tempos, pois o público leitor torna-se mais exigente em relação àquilo que é narrado. Os milagres e outros fenômenos ditos “sobrenaturais” tendem a não serem mais vistos como a intervenção de entidades superiores, mas como a ação de leis físicas ainda não totalmente explicadas. Ou seja, quase tudo pode ser explicado pela ciência; o que ainda não o é, certamente será desvendado com os posteriores avanços científicos. Desse modo, a questão do realismo e do tratamento dado ao quotidiano, típicas do Naturalismo, não exclui a abordagem dos fenômenos misteriosos, mas os trata com um novo enfoque. Tais fenômenos não são avaliados como sobrenaturais, fruto de uma alteração das leis naturais, uma vez que representam tão-somente manifestações raras e ainda não suficientemente estudadas dessas leis. A produção de uma nova literatura fantástica, voltada para a descrição desses fenômenos, deve ser capaz, portanto, de convencer os leitores céticos sobre a verossimilhança daquilo que é narrado. O termo “ literatura fantástica”, tal como é usado pelo autor, remete a um Fantástico lato sensu, que engloba as várias tendências do Maravilhoso, ou seja, textos nos quais o sobrenatural não provoca efeitos de estranhamento na leitura. O processo de revitalização da velha literatura fantástica deve implicar a representação dos textos fantásticos numa realidade conhecida pelo leitor e não no mundo irreconhecível e imaginário de outrora. Essa estratégia preconizada por Maupassant marca a passagem para o que chamamos de Fantástico stricto sensu7. Desse modo, autores como E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe e Ivan Tourgueniev, são, para o escritor francês, os exemplos a serem seguidos, já que foram capazes de entremear, em suas histórias, elementos reais com outros misteriosos, junção que faz o leitor hesitar frente à narrativa, conforme ele observa em sua crônica Le Fantastique: Quand le doute eut pénétré enfin dans les esprits, l’art est devenu plus subtil. L’écrivain a cherché les nuances, a rôdé autour du surnaturel plutôt que d’y pénétrer. Il a trouvé des effets terribles en demeurant sur la limite du possible, en jetant les âmes dans l’hésitation, dans l’effarement. Le lecteur indécis ne savait plus, perdait pied comme en une eau dont le fond manque à tout instant, se raccrochait brusquement au réel pour s’enfoncer encore tout aussitôt, et se débattre de nouveau dans une confusion pénible et enfiévrante comme un chauchemar.8 O efeito de dúvida descrito acima, próximo à sensação de um pesadelo, constrói igualmente sensações de pavor e angústia junto ao leitor, que, a partir do texto, mergulha num mundo a princípio familiar mas que se torna estranhamente amedrontador na seqüência narrativa. Observamos, portanto, que as idéias de Maupassant a respeito dessa literatura fantástica revigorada – o Fantástico stricto sensu – aproximamse em muito das conceituações formuladas por Tzvetan Todorov cerca de um século depois, relacionando esse gênero justamente à hesitação, que pode ou não ser compartilhada por um dos personagens de tais histórias. As opiniões de Maupassant, contudo, se apresentam com uma relativa inconsistência. Nas crônicas que analisamos, o escritor exalta a ciência, revelando-se assim como um perfeito representante da escola naturalista; por outro lado, em outros de seus textos jornalísticos, esse entusiasmo pelo cientificismo arrefece consideravelmente. Prova disso é uma outra crônica, Par-delà (publicada em 10 de junho de 1884, no Gil Blas), na qual o espírito naturalista de Maupassant se mostra enfraquecido. Nesse texto, o autor avalia o romance À Rebours (1884) de J.-K. Huysmans, escritor também ligado ao círculo dos naturalistas mas que procura outras direções para sua arte, diferentes daquelas que a estética de Zola propunha. Nessa obra, cujo protagonista é Des Esseintes, um esteta, a autonomia da arte, em geral, e da literatura, em particular, é exaltada; o objeto artístico, portanto, deve ser apreciado em si mesmo e não como um veículo portador de uma mensagem, como observavam os naturalistas. Maupassant mostra-se nessa crônica mais entusiasmado pela arte em si do que pela ciência, que ele vê então com sérias restrições: Nos maladies viennent des microbes? Fort bien. Mais d’où viennent les microbes? et les maladies de ces invisibles eux-mêmes? Et les soleils, d’où viennent-ils? Nous ne savons rien, nous ne voyons rien, nous ne pouvons rien, nous ne devinons rien, nous n’imaginons rien, nous sommes enfermés, emprisonnés en nous. Et des gens s’émerveillent du génie humain!9 O intervalo de tempo entre as publicações de Le Fantastique e Par-delà é inferior a um ano, o que nos leva a concluir que essa ambigüidade frente ao saber científico, composta de exaltação e descrença, não parece resultar de uma sucessão de opiniões distintas mas de uma coexistência de sentimentos opostos. Assim, tomando como base essas crônicas, poderíamos concluir que, enquanto as explicações sobre os mistérios do mundo calcadas nas velhas tradições do Maravilhoso parecem risíveis, as formulações propostas pela ciência se mostram demasiadamente incompletas. Isso significa que, dento das opiniões expressas pelo Maupassantcronista, essas duas modalidades de pensamento tendem a se anular. Esse confronto de pensamentos, que Irène Bessière considera como a característica principal do Fantástico, apresenta-se também nos textos do Maupassantescritor fantástico. Devemos, portanto, estudar de que maneira essas modalidades de pensamento se contrapõem na escritura fantástica do autor francês, verificando as várias facetas interpretativas que o sobrenatural toma naquele contexto histórico. A hesitação, traço fundamental do Fantástico stricto sensu de acordo com Todorov, representa o índice mais evidente do confronto de mentalidades exposto nos textos do gênero. Conforme já foi citado, esse efeito de hesitação não é necessariamente expresso através da perspectiva de um determinado personagem; em alguns casos, a construção da dúvida no texto é estabelecida pelo antagonismo de dois discursos distintos, cada um propondo explicar à sua maneira os eventos narrados. Analisando as idéias propostas por Todorov e Bessière, pode-se concluir que esse confronto de discursos provém da sua própria natureza. Com efeito, de um lado, temos um discurso regido pelas leis do racionalismo, enquanto, de outro, observamos a expressão de um ponto de vista voltado para o sobrenatural. No entanto, no contexto histórico em que Maupassant escreve suas obras, marcado pelo cientificismo triunfante, a noção de sobrenatural se torna bastante complexa. No caso específico do autor francês, o sobrenatural tradicional, aquele das velhas crenças religiosas e folclóricas, tende a ser substituído por uma abordagem científica dos fatos. A idéia de forças misteriosas atuando exteriormente ao homem sofre, portanto, uma mudança na sua formulação tradicional. A intromissão de seres oriundos de planos espirituais – fantasmas, anjos, demônios, criaturas elementares, gênios, deuses – cai em relativo descrédito na segunda metade do século XIX, perdendo espaço para doutrinas científicas e paracientíficas, como o Magnetismo e o Espiritismo. Isso significa que a idéia de elementos transcendentes ao homem permanece, mas sob um novo enfoque, já que o termo “transcendência” deve ser entendido aqui não como a interferência de um outro plano existencial em nossa realidade, mas sim como uma série de aspectos de fato misteriosos porém pertencentes a leis naturais de difícil comprovação. Tratar-se-ia, pois, de fenômenos físicos e não metafísicos. Na segunda versão de Le Horla, verifica-se de modo bem claro a diferença que a abordagem do sobrenatural sofre em função do desenvolvimento científico: Quand cette intelligence demeurait encore à l’ état rudimentaire, cette hantise des phénomènes invisibles a pris des formes banalemente effrayantes. De là sont nées les croyances populaires au surnaturel, les légendes des esprits rôdeurs, de fées, de gnomes, des revenants, je dirai même la légende de Dieu, car nos conceptions de l’ouvrier-créateur, de quelque religion qu’elles nous viennent, sont bien les inventions les plus médiocres, les plus stupides, les plus inacceptables sorties du cerveau apeuré des créatures.10 Especificamente, em Maupassant, o cientificismo se traduz no texto fantástico pela contraposição de duas hipóteses racionalistas, uma negando o fenômeno sobrenatural e outra o explicando através de estudos não plenamente comprovados. Assim, de um lado a ciência pode atribuir os acontecimentos misteriosos a uma coincidência, a um sonho ou a uma alucinação; de outro lado, ela tenta analisá-los à luz de leis físicas apenas sugeridas e não compreendidas na sua totalidade. Desse modo, a ciência se divide entre a negação ou a aceitação da idéia de forças transcendentes ao homem. No conto Magnétisme (1882), encontramos um claro exemplo dessa duplicidade racionalista. O personagem principal, cético como ele mesmo se proclama, narra o caso de uma criança que teria acordado no meio da noite e previsto a morte do pai no mar. No dia seguinte, a família foi informada de que o chefe-de-família realmente morrera e, o mais espantoso, num horário que coincidira com o anúncio desesperado do filho. Todavia, o narrador minimiza essa pretensa manifestação do sobrenatural, ao constatar que na maioria das famílias de marinheiros tais pesadelos eram muito freqüentes. Logo, é natural que ocorresse a coincidência entre um acidente e um sonho, assumindo este então um suposto valor de premonição. Por outro lado, o texto menciona uma outra possibilidade de interpretação dessa estranha ocorrência. Para o narrador, várias pessoas explicariam o que se passou através da teoria do magnetismo animal, embora ele próprio não creia nisso. No entendimento dos defensores do magnetismo, um fenômeno fisiologicamente normal como um sonho passaria a ser visto sob um prisma de transcendência: não mais a transcendência ligada à questão do milagre ou de um aviso divino, mas sim como uma prova do intercâmbio de fluido energético entre dois seres. Em seguida, o personagem se põe a contar um episódio acontecido com ele mesmo. Certo dia, enquanto escrevia uma carta, veio-lhe abruptamente à cabeça a imagem de uma mulher que ele conhecia superficialmente. Apesar de considerá-la um tipo comum, sem nada de especial que lhe chamasse a atenção, sua lembrança avultou-se de maneira tão obsessiva que, no dia seguinte, o narrador dirigiu-se à casa dela, iniciando aí uma relação afetiva que durou dois anos. Ao final da narração, o texto apresenta duas explicações plausíveis para a inopinada paixão. O personagem-narrador credita o inesperado e poderoso sentimento a alguma lembrança dessa mulher, adormecida em sua mente e despertada sem uma razão clara, o que acabou por fazê-lo notar nela qualidades nunca antes percebidas: J’en conclus… je conclus à une coïncidence, parbleu! Et puis, qui sait? C’est peut-être un regard d’elle que je n’avais point remarqué et qui m’est revenu ce soir-là par un de ces mystérieux et inconscients rappels de la mémoire qui nous représentent souvent des choses négligées par notre conscience, passées inaperçues devant notre intelligence!11 Um homem que assistira atentamente à explanação do narrador defende, em contrapartida, a hipótese do magnetismo, isto é, a influência de forças invisíveis originárias de um indivíduo e agindo fora da matéria. Dirigindo-se ao personagem-narrador, ele acha que os eventos relatados provam por si mesmos a influência do magnetismo: “Tout ce que vous voudrez, conclut un convive, mais si vous ne croyez pas au magnétisme après cela, vous êtes un ingrat, mon cher monsieur!” 12 Dessa maneira, verificamos a existência de dois discursos distintos para explicar essa fantástica paixão. Um deles nega qualquer transcendência e vincula o estranho sentimento a uma lembrança repentinamente emergida do inconsciente; o outro aventa a hipótese de uma misteriosa ligação energética, invisível a nossos sentidos, e com a qual a mulher teria atraído o narrador. Assim, a hesitação nesse texto não é produzida pela tensão entre uma crença racional e outra sobrenatural, se considerarmos como “sobrenatural” os valores preconizados por uma metafísica tradicional. Na verdade, tal hesitação é gerada pelo confronto de duas visões racionalistas, uma vez que, conforme verificamos em Magnétisme, o sobrenatural que costuma aparecer em Maupassant é racionalizado. A diferença entre o sobrenatural tradicional e o sobrenatural racionalizado é que, naquele, o termo propõe a idéia de uma natureza outra e superior em relação àquela com a qual estamos habituados. O sobrenatural racionalizado, por outro lado, desmistifica a crença nessa natureza superior que contraria as leis físicas; assim, ele considera os acontecimentos fantásticos simplesmente como a incidência de fenômenos raros e de causas não totalmente explicadas, mas que são essencialmente naturais. Desse modo, poderíamos afirmar que o “inexplicável” do sobrenatural tradicional é substituído no sobrenatural racionalizado pelo “inexplicado” – ou, preferencialmente, pelo “ainda não-explicado”. Essa espécie de apropriação do sobrenatural por parte da ciência, tomando assim o lugar destinado à religião, retira do mistério sua aura sagrada e mistificadora, pois assegura virtualmente sua compreensão total. Até mesmo os fenômenos que em dado momento não são explicados de maneira satisfatória tornar-se-ão plenamente compreendidos um dia, porque representam fatos tão naturais quanto aqueles observados na vida prática, apenas escapando de nossa sensibilidade comum. A esse respeito, Maupassant dá um exemplo muitas vezes usado ao longo de sua obra e que assinala a debilidade dos sentidos humanos. Na crônica Adieu mystères, bem como nas novelas Lettre d’ un fou, Un fou?, L’ Homme de Mars e nas duas versões de Le Horla, o escritor reduz a música, arte tão magnífica e bela, espécie de dádiva espiritual, à condição de uma mera seqüência de vibrações físicas, percebidas pela audição humana. Não tivesse essa capacidade auditiva, o homem ignoraria a música. De modo similar, é possível que haja uma série de manifestações físicas que são julgadas como sobrenaturais, quando parcialmente percebidas por nossos sentidos grosseiros. A incapacidade das doutrinas científicas em explicar inteiramente os fenômenos naturais conduz o homem a um sentimento ambíguo, pois ele se divide entre a esperança confortadora de um conhecimento que deverá ser alcançado e a angústia oriunda das lacunas de seu saber, que mostram sua ínfima condição frente aos enigmas da vida. Na literatura fantástica, o homem pende para essa segunda postura. Em Maupassant particularmente, esse aflitivo impasse se reflete no texto através do comportamento dos personagens. Da ampla galeria de personagens dos seus textos fantásticos, poucos são aqueles que crêem no sobrenatural tradicional. Poderíamos mencionar apenas alguns: Jonh Rowel (La Main), que teme o ataque do finado inimigo a quem pertencia a mão dissecada; a senhora Patin (Le Noyé), que credulamente pensa ouvir a voz do marido desaparecido ao escutar um papagaio; o protagonista de La Chevelure, que crê piamente na volta dos mortos; e Ulrich Kunsi (L’ Auberge), que acredita na presença do espírito de seu amigo perdido na neve. Em sua maioria, contudo, os personagens de Maupassant são declaradamente céticos, embora nem por isso deixem de temer os fenômenos misteriosos. O sentimento de medo frente ao sobrenatural tradicional persiste mesmo após sua cientificização. Uma manifestação clara dessa ambigüidade entre cientificismo e medo se encontra em Renardet, o assassino da jovem Roque, na novela homônima: Puis, il tomba sur les genoux et balbultia: “Mon Dieu, mon Dieu”. Sans coire à Dieu, pourtant. Et il n’osait plus, en effet, regarder sa fenêtre où il savait blottie l’apparition, ni sa table où luisait son revolver.13 Renardet não atribui a habitual aparição da falecida jovem a uma manifestação espiritual, mas a um surto alucinatório, embora tente se convencer de que não sente remorsos do crime; entretanto, alucinação ou fantasma, a imagem de Roque lhe causa extremo pavor. Esse medo atroz o leva a clamar por Deus, mesmo que não creia em nenhum tipo de força ou ser transcendente ao homem. A indecisão entre crer ou não crer numa transcendência é comum aos personagens de Maupassant e significa possivelmente a presença de fortes reminiscências da tradição do sobrenatural. De fato, embora engajado em modernizar as histórias de terror e mistério em razão da influência do cientificismo de sua época, Maupassant não se furta a desenvolver certos temas ligados ao sobrenatural tradicional. Entrariam nesse caso histórias em que partes do corpo ganham vida própria (La Main d’écorchée, La Main), objetos se movem sozinhos (Qui sait?) e fantasmas apavorantes surgem (Apparition). Entretanto , os vestígios mais relevantes do sobrenatural dentro dos textos de Maupassant não se vinculam à abordagem desses temas convencionais, mas à exploração do sentimento de medo. Pouco importa o quanto a ciência se esforce por tentar explicar um fenômeno inusitado ou o quanto os personagens recusem qualquer espécie de transcendência; o medo diante daquilo que se afasta dos padrões da normalidade quotidiana é irreprimível. Essa perturbadora sensação que Maupassant tão incisivamente desenvolve em suas obras fantásticas não representa um temor banal diante de um perigo concreto. Seus personagens não temem exatamente os fantasmas, até porque, de modo geral, não acreditam neles. Eles se aterrorizam, na verdade, diante de uma ameaça vaga e indefinível, segundo confessa o narrador de Lui?: Je n’ai pas peur d’un danger. Un homme entrerait, je le tuerais sans frissonner. Je n’ai pas peur des revenants; je ne crois pas au surnaturel. Je n’ai pas peur des morts; je crois à l’anéantissement définitif de chaque être qui disparaît.14 De modo quase idêntico, mas desenvolvendo ainda mais o tema do medo, na primeira versão de La Peur, de 1882, o personagem-narrador tece uma valiosa explicação desse medo absoluto e invulgar que estaria ligado à fragmentação da consciência humana e representaria um sentimento ancestral. Declara ele: La peur (et les hommes les plus hardis peuvent avoir peur), c’est quelque chose d’effroyable, une sensation atroce, comme une décomposition de l’âme, un spasme affreux de la pensée et du coeur, dont le souvenir seul donne des frissons d’angoisse. Mais cela n’a lieu, quand on est brave, ni devant une attaque, ni devant la mort inévitable, ni devant toutes les formes connues du péril: cela a lieu dans certaines circonstances anormales, sous certaines influences mystérieuses en face de risques vagues. La vraie peur, c’est quelque chose comme une réminiscence des terreurs fantastiques d’autrefois.15 A idéia do medo como a reminiscência de estádios anteriores da formação da personalidade humana, fazendo vir à tona parcelas esquecidas de uma mentalidade positiva, é claramente expressa na segunda versão de La Peur, esta de 1884, conforme notamos nas palavras de um dos narradores, que explica o que efetivamente é a moléstia conhecida como cólera: Le choléra c’est autre chose, c’est l’Invisible, c’est un cólera: Le choléra c’est autre chose, c’est l’Invisible, c’est un fléau d’autrefois, des temps passés, une sorte d’Esprit malfaisant qui revient et qui nous étonne autant qu’il nous épouvante, car il appartient, semble-t-il, aux âges disparus.16 Essa descrição do medo como projeção de terrores oriundos de uma era anterior, infantil ou primitiva, remete aos comentários propostos por Freud em seu artigo Das Unheimliche17, texto muito citado nos variados ensaios sobre o fantástico. É interessante notar que Maupassant, quase três décadas antes desse ensaio psicanalítico, já tratara à sua maneira da questão da mentalidade superada e sua influência no comportamento humano, sobretudo no tocante ao medo. A partir do que se lê nas novelas fantásticas do escritor francês, é possível afirmar que o medo em Maupassant se associa menos a um objeto concreto e explicitamente ameaçador do que a uma angústia apavorante da perda de consciência do real. Assim se expressa o narrador de Lui?, ao se referir à presença fantasmagórica com que se deparara em sua casa: J’avais peur de le revoir, lui. Non pas peur de lui, non pas peur de sa présence, à laquelle je ne croyais point, mais j’avais peur d’un trouble nouveau de mes yeux, peur de l’hallucination, peur de l’épouvante qui me saisirait.18 Enfim, não seria descabido sintetizar essa aterrorizante sensação nesta frase, reiterada algumas vezes por um dos personagens da segunda versão de La Peur: “On n’a vraiment peur que de ce qu’on ne comprend A pas”19. mentalidade positiva, calcada no Racionalismo, tornase, portanto, perturbadoramente debilitada, em face da intrusão do medo. O temor do desconhecido, aludido em La Peur, é também abordado por Jean Fabre20, que o considera um sentimento cujo alcance escapa da capacidade cognitiva e do controle racional do indivíduo. Daí resulta não ser necessário acreditar em algo para sentir medo, situação em que se encontram vários personagens de Maupassant. Para Fabre, se o indivíduo tem sua mentalidade inteiramente dedicada à fé religiosa ou, em contrapartida, à ciência positiva, ele não estará propenso ao medo diante de um suposto fenômeno sobrenatural. No primeiro caso, porque primeiro caso, porque a fé é confortadora e implica a idéia de um Deus protetor; no segundo caso, porque a ciência tenta reduzir o sobrenatural a um fenômeno essencialmente natural. Fora desses dois padrões elementares de pensamento, Fabre menciona também o indivíduo supersticioso, atormentado por uma condição dualista, pois ao mesmo tempo em que acredita no sobrenatural também o teme. Sua crença revela-se, portanto, altamente inquietante. Situação parecida é observada nos indivíduos que não acreditam totalmente no sobrenatural, mas ainda assim o temem. Poderíamos afirmar que esses indivíduos possuem uma modalidade de pensamento fantástico, que representa o retorno de aspectos de uma mentalidade julgada superada. É nessa categoria que se encaixa a maior parte dos personagens das histórias de Maupassant. É preciso também considerar que o sobrenatural não se mantém apenas na questão do medo. Sendo produto de uma cultura, o sobrenatural persiste como crença em alguns indivíduos, mormente os religiosos e os supersticiosos, ainda que o racionalismo se configure como crença hegemônica. Mais do que isso, o sobrenatural permanece no imaginário coletivo, figurando de diversas maneiras, mesmo nos indivíduos mais céticos, conforme se aprecia em algumas obras de Maupassant. Tal fato implica, por conseguinte, a análise do texto fantástico como uma retomada constante do sobrenatural tradicional. De certo modo, sua obra desmente certas considerações feitas na já aludida crônica Adieu mystères, na qual se lê que “a noite não nos apavora mais, porque não tem fantasmas nem espíritos”. É possível que, de fato, não haja fantasmas e espíritos; contudo, nas obras fantásticas do escritor francês, algo de insidioso, assustador e inexplicado ainda permanece na penumbra da consciência humana, desafiando seu saber racional. A esse respeito, é importante igualmente considerar que cada leitor reconstrói o texto em sua mente de acordo sua mente de acordo com as interpretações baseadas em sua própria bagagem cultural. Em termos práticos, ainda que o ser misterioso de Le Horla seja apresentado como o próximo degrau na cadeia evolutiva do homem, ele tenderá sempre a ser encarado como um fantasma – invisível, apavorante e opressor. Pelo que foi apresentado, revela-se de grande importância reavaliar o conceito de hesitação fantástica no que concerne à obra de Maupassant. Certamente, encontramos nesse escritor personagens que expressam uma angustiante dúvida a respeito dos fatos que presenciam (reais ou imaginários?), o que confirma parcialmente a definição proposta por Todorov. No entanto, julgamos mais conveniente mais conveniente afirmar que geralmente o personagem de Maupassant não se divide entre uma hipótese racional e uma outra sobrenatural, como sugere o renomado teórico, mas sim entre duas hipóteses racionais: uma nãotranscendente e outra transcendente – sendo esta o sobrenatural racionalizado. Feitas tais considerações, poderíamos falar, portanto, de uma espécie de dupla hesitação na obra fantástica de Guy de Maupassant: a primeira, voltando-se para a realidade do fenômeno – ele ocorre mesmo ou não? –; a segunda, recaindo sobre sua natureza transcendental – se ocorre, trata-se da influência de um outro plano ou é apenas a apenas a manifestação de leis físicas ignoradas? A condução do texto poderá privilegiar um desses dois tipos de hesitação, sendo importante lembrar que as narrativas que Todorov julga como genuinamente fantásticas são aquelas nas quais o impasse não se resolve. De um certo modo, a observação de Todorov se coaduna com as idéias formuladas por Bessière, Fabre e pelo próprio Maupassant: o fantástico explora, mais do que um mero jogo de incertezas, aspectos angustiantes da consciência humana, incapaz de vencer seus temores frente ao desconhecido. Talvez seja exatamente esse o traço que torna até hoje a leitura de textos como Le Horla textos como Le Horla envolvente e aterrorizante, apesar dos avanços científicos de nossa época. 1 Tzvetan Todorov. Introduction à la littérature f antastique. Paris, Seuil, 1970. 2 Irène Bessière. Le récit f antastique ; la poétique de l’incertain. Paris, Larousse, 1974. 3 Jean Fabre. Le miroir de sorcière ; essai sur la littérature fantastique. Paris, José Corti, 1992. 4 Émile Zola. Le roman expérimental. Paris, Garnier-Flammarion, 1971. 5 Guy de Maupassant. Chroniques. Paris, UGE, 1993. 2e. éd. [1 ère éd. 1980]. Édition de Hubert Juin. Vol. I, p. 313-314. 6 Maupassant, 1993, Vol. I, p. 314. 7 Jorge de Azevedo Moreira. O Realismo bruxuleante e o Fantástico em Guy de Maupassant. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras UFRJ, 2001. Dissertação de Mestrado. 8 Maupassant, 1993, Vol. II, p. 257. 9 Maupassant, 1993, Vol. I, p. 403. 10 Guy de Maupassant. Contes et nouvelles. Paris, Albin Michel, 1957. Édition d’Albert-Marie Schmidt avec la collaboration de Gérard Délaisement. Vol. II, p. 1107 . 11 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 780. 12 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 780. 13 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 1046. 14 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 853. 15 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 798. 16 Maupassant, 1993, p. 964. 17 Sigmund Freud. L’inquiétante étrangeté (Das Unheimliche). Essais de Psychanalyse appliquée. 11 e éd. Paris, Gallimard, 1952. p. 163-221. 18 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 858. 18 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 858. 19 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 959. 20 Fabre, 1992, p. 90-91.