A Providência em Alexandre de Afrodísia
The Providence in Alexander of Aphrodisias
Meline Costa Sousa1 – Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: A existência da providência divina e os modos pelos quais ela se realiza são
discutidos por Alexandre de Afrodísia em sua obra Sobre a providência. O autor busca
apontar as incongruências das doutrinas atomistas e estóicas que assumem posições distintas
com relação a doutrina aristotélica, da qual ele se considera defensor. Um dos pontos centrais
da argumentação de Alexandre de Afrodísia é defender, contra o atomismo, que existe um
cuidado divino para com o mundo sublunar que se realiza de acordo com uma intenção
segunda. Assim, resolver-se-ia o problema de atribuir o mal existente no mundo à divindade.
Palavras-chave: Alexandre de Afrodísia, Destino, Providência.
Abstract: The existence of the divine providence and the ways that comes about are
discussed by Alexander of Aphrodisias in his work On providence. The author seeks to point
out the inconsistencies of the Atomist and Stoic doctrines which defend different positions
compared with the Aristotelian doctrine, he considers himself a defender. The argument's
central point against the Atomism is the divine care for the sublunar region according to a
second intention. Therefore, it would be solve the problem about the evil's attribution to the
gods.
Keywords: Alexander of Aphrodisias, Fate, Providence.
Introdução
O
objetivo deste artigo é explicitar os argumentos que Alexandre de Afrodísia
utiliza para apontar as incongruências das doutrinas atomista e estóica acerca da providência
na defesa daquela que seria, segundo ele, a teoria de Aristóteles. Também estabelecerei uma
comparação entre a leitura que Alexandre faz destas teorias com outros testemunhos a fim de
reconhecer em que medida ele se aproxima e se afasta das outras interpretações, tendo em
vista que parte importante da sua obra Sobre a providência é dedicada a estas doutrinas, a seu
modo, apresentadas. É importante salientar que a presença de outras fontes estóicas e
1
Mestranda pela UFMG / Bolsista do CNPq / e-mail: [email protected]
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epicuristas aqui não visa nenhum tipo de reconstrução histórica das doutrinas destas duas
escolas. Parte, apenas, do meu interesse secundário em identificar pontos em comum entre os
testemunhos que serão apresentados, já que meu interesse primário é analisar o Sobre a
providência de Alexandre de Afrodisia.
Sendo assim, este artigo se divide em três grandes momentos que acompanham a
estrutura da obra, na qual, primeiramente, ele propõe uma crítica às posições atomista e
estóica sobre a providência, encerrando com a exposição da doutrina aristotélica que, como
veremos, distingue-se daquela encontrada nos textos de Aristóteles. A primeira parte deste
estudo será dedicada ao levantamento de algumas considerações epicuristas acerca dos deuses
e da providência, partindo dos testemunhos de Cícero, Diógenes Laércio e Lucrécio,
acompanhado da crítica feita por Alexandre às concepções não só de Epicuro, mas de outros
atomistas como Leucipo e Demócrito. Como será mostrado, o aristotélico discorda da
afirmação atomista de que deus não se dedica ao mundo, chegando a afirmar que eles
negariam sua existência. Na segunda parte, abordarei a doutrina do estóico Crisipo baseada
nos fragmentos de Von Arnim seguida pela exposição dos pontos contra os quais Alexandre de
Afrodísia desenvolve seu raciocínio na tentativa de levantar as incongruências dos autores que
defendem a intervenção direta dos deuses nos eventos mundanos, os quais determinariam não
apenas o domínio físico, mas também o ético. Por fim, tratarei da teoria aristotélica sobre a
providência sugerida por Alexandre de Afrodísia recorrendo a dois textos citados por ele: o
De caelo e a Metafísica. Buscarei apontar as considerações fundamentais sobre as quais se
funda a concepção de que há uma providência divina indireta que se realiza em benefício dos
seres sublunares através do movimento circular e incorruptível dos corpos celestes. Dizer que
ela se dá indiretamente é retirar a atribuição da responsabilidade pela existência do mal no
mundo à divindade.
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A Providência em Alexandre de Afrodísia
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1 Teoria de Epicuro acerca dos Deuses2 e a Crítica de Alexandre de Afrodísia à
Doutrina Atomista
Segundo Cícero em A natureza dos deuses, Epicuro, em primeiro lugar, afirma que os
deuses existem porque foi a natureza mesma que imprimiu tal noção no animus3 de todos os
indivíduos. Assim, todos os povos, mesmo aqueles que não receberam nenhum tipo de
doctrina, possuem um conhecimento antecipado deles e a isto Epicuro nomeia de πρόληψιζ,
i.e., um tipo de representação (informationem) formada no intelecto sem a qual nada pode ser
conhecido (intellegi) ou procurado. Esta crença (opinio) na existência dos deuses não é
estabelecida nem pelo costume nem por leis, mesmo que pressuponha um consenso unânime.
Deste modo, tendo em vista uma crença acerca da qual todos os homens estão por natureza de
acordo, faz-se necessário admitir a existência dos deuses. De acordo com Epicuro, porque isto
é igualmente aceito não apenas pelos filósofos, como também pelos incultos, reconhece-se
que nós temos um conhecimento antecipado ou uma pré-concepção (praenotionem). Para
confirmar a crença na existência de deus, nosso intelecto se interroga (anquirit) acerca da sua
forma (formam) e do seu modo de vida. Sobre a forma, nós recebemos esta informação das
indicações da natureza e dos ensinamentos da razão (ratio docet): porque se reconhece que os
deuses são os mais felizes, que uma pessoa não pode ser feliz sem a virtude e que a virtude
não pode se estabelecer sem a razão a qual se encontra no homem, deve-se admitir que os
deuses têm uma forma humana. No entanto, esta forma não é um corpo, mas um tipo de
corpo, nem um sangue, mas um tipo de sangue4. É a partir deste conhecimento racional que os
indivíduos os concebem como bem-aventurados (beatos) e imortais, pois a natureza que
formou em nós a representação divina também gravou em nosso intelecto tais crenças. Diz
Cícero:
2 Para tal, usarei Diógenes Laércio, Lucrécio e a Natureza dos deuses de Cícero. A ordem de exposição daquilo
que estes autores testemunham acerca de Epicuro não será cronológica, tendo em vista que este trabalho não tem
como objetivo a reconstrução de nenhuma das doutrinas aqui expostas, mas apenas um vislumbre dos
testemunhos que dizem respeito a elas.
3 Não é uma boa opção traduzir animus como espírito, pois este é o termo utilizado para traduzir πνεῦμα que,
para os estoicos consiste em uma substância dinâmica responsável pela coesão dos objetos materiais, pela
organização dos seres vivos, pela percepção, pela vontade nos animais e, no homem, pela cognição e
entendimento. Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A Phýsis como fundamento do sistema filosófico
estoico. Kriterion [online]. 2010, vol.51, n.121, pp. 173-193. ISSN 0100-512X.
4 “Idem facit in natura deorum: dum individuorum corporum concretionem fugit, ne interitus et dissipatio
consequatur, negat esse corpus deorum, sed tamquam corpus, nec sanguinem, sed tamquam sanguinem”
CICERO. De natura deorum, I, 71.
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se, em efeito, é assim, é verdade que Epicuro disse esta famosa máxima: isto que é
bem-aventurado e eterno não experimenta ele mesmo nenhuma preocupação e não
causa nenhuma a outro; também não sentem nem cólera nem benevolência, pois tais
sentimentos são manifestações de fraqueza (CÍCERO, 2010, p. 759).
A cólera e a benevolência são incompatíveis com a natureza imortal dos deuses, os
quais não padecem das paixões que nos afligem. Em primeiro lugar, o que caracteriza sua
natureza é o fato de eles não serem percebidos pelos sentidos (sensu), mas pelo intelecto
(mente) devido às imagens (imaginibus) percebidas graças à similaridade e à frequência. Ele
tenderia verso estas imagens compostas de átomos inumeráveis que seguem um
fluxo contínuo e nossa inteligência (intellegentiam) conceberia (capere) com um
grande prazer este ser que é bem-aventurado e eterno, cuja vida é a mais honrosa,
plena de bens de toda ordem (CÍCERO, 2010, p. 768).
Deus nada faz e nenhuma ocupação o obstrui. Caso se ocupasse com o mundo, com os
astros, com o retorno das estações ou com a sucessão de todas as coisas a fim de salvaguardar
a vida humana, tratar-se-ia de um deus cuja vida seria realizar tarefas penosas. O argumento
que Cícero expõe para corroborar esta tese epicurista é de que, para nós, a bondade consiste
na tranquilidade da alma e na ausência de qualquer fardo. Sendo assim, Epicuro, ao contrário
da posição adotada pelos estóicos, que será apresentada na parte dedicada à crítica de
Alexandre de Afrodísia ao estoicismo, discorda da existência de uma providência por meio da
sucessão necessária de causas e do fato de os deuses se dedicarem à vida dos seres tanto
sublunares quanto supralunares.
Na Carta à Meneceu, segundo Diógenes Laércio, Epicuro, direcionando-se à
Meneceu, expõe que, sendo o deus incorruptível e bem-aventurado, conforme à noção
comum, não se deve acrescentar a ele nada que seja estranho à sua incorruptibilidade e
inapropriado à sua bondade. Na sequência do texto, o filósofo reafirma a existência dos
deuses, embora aponte para o fato de eles não serem como muitos os consideram 5. Para
Epicuro, são ímpios aqueles que atribuem aos deuses o que advém das suposições falsas
como, por exemplo, que os maiores males assolam os homens maus por causa dos deuses a
ponto de defenderem uma interferência divina no curso dos acontecimentos. Nas Máximas
Capitais, Epicuro também salienta que os atributos divinos, como a incorruptibilidade e a
bem-aventurança, determinam que a divindade não se concebe vinculada a qualquer
5 O que parece uma contradição com o testemunho de Cícero. Isto, pois um dos argumentos utilizados para se
acreditar nos deuses é, justamente, a noção comum compartilhada tanto pelos filósofos quanto pelos homens
incultos.
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dificuldade, pois ela não está submetida nem à cólera nem à complacência para com os outros.
Caso fosse assim, tratar-se-ia de um ser falível, pois estas preocupações são características dos
entes corruptíveis.
Lucrécio no De rerum natura, expondo a doutrina do mestre Epicuro, na altura do
verso 148, aponta que a natureza divina está muito longe dos nossos sentidos (sensibus),
tendo em vista que apenas se apresenta a nós por meio do intelecto (mente) pelo fato de não
podermos sentir o que não pode ser sentido. Em sua análise das superstições populares, diz
Lucrécio:
aquela causa espalhou (peruulgarit) entre as grandes nações (magnas gentis) a ideia
do divino e encheu (compleuerit) de altares (ararum) as cidades e fez instituir ritos
solenes (sollemnia sacra) que ainda hoje levam a cabo eventos insólitos e de onde
provêm aos mortais o temor (horror) que sobre toda a terra faz se elevarem novos
templos aos deuses (delubra noua) (LUCRÉCIO, 2004, p. 177-8).
A crítica do epicurista exposta nos versos citados se direciona aos indivíduos que
consideram os deuses não apenas como criadores de todas as coisas no mundo tanto sublunar
quanto supralunar, como também responsáveis por intervenções na sua ordem. E, como nada
disto procede, pois o que há são causas naturais, realizam em vão cultos e sacrifícios
religiosos a fim de agradecer pelos benefícios alcançados.
Segundo Case em A religião de Lucrécio, o epicurista rejeita a religião caso a
entendamos como a crença nos deuses acompanhada da prática de ritos empregados em sua
adoração. Assim compreendida, ela deve ser abolida da vida humana. Para isto, Lucrécio nega
este modo de existência dos deuses6 e atribui à matéria a completa responsabilidade pelos
eventos naturais. Para a comentadora, o sentimento de repulsa pela religião pode ser melhor
apreciado se se compreende as práticas cotidianas da vida em Roma. Tanto a vida privada
quanto a pública eram dominadas pela crença na adivinhação e pela preocupação com aquilo
que seria o desejo dos deuses. Case cita autores contemporâneos de Lucrécio como Políbio e
Ápio que realizavam a manutenção da superstição e do temor aos deuses de modo a incentivar
a piedade e as crenças religiosas. Sendo assim, a proposta com a qual nos deparamos no De
rerum natura vincula-se à aceitação do mundo dos sentidos em seu valor de face, i.e., a
experiência cognitiva não deve ser entendida como uma concessão divina por fazermos parte
6 É importante sublinhar que Lucrécio não nega a existência dos deuses, mas apenas uma certa concepção
divina. No livro V do De rerum natura, depara-se com a crítica do modo pela qual os homens tomaram os
deuses.
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de um λόγος maior, mas como uma interação natural com o mundo:
[...] a ideia religiosa de que os mais importantes itens do conhecimento foram
adquiridos pela arte da adivinhação, pela experiência do êxtase, pela consulta dos
livros sagrados e por outras formas de revelação, pode também ser ignorada. Assim,
o ponto de vista epicurista não concedeu lugar para nenhum tipo de revelação. Por
um simples processo mecânico e natural, o homem adquire todo tipo de
conhecimento pelo exercício dos sentidos físicos (CASE, 1915, p. 103).
Tanto a constituição humana quanto a realização de suas ações se devem aos átomos,
como, por exemplo, a sensação e a intelecção. Os deuses, ao contrário de se dedicarem à
ordem do mundo e à manutenção das atividades dos corpos sublunares, seriam livres de
qualquer tipo de cuidado, gozando de uma perfeita felicidade. Segundo Case, é essencial na
compreensão da doutrina epicurista o fato de os deuses estarem absolutamente livres de
qualquer relação íntima com o nosso mundo.
Na visão de Alexandre de Afrodísia em Sobre a providência, a tese atomista
compartilhada por Leucipo, Demócrito e Epicuro nega que os deuses se dediquem a cuidar
dos seres. Isto, pois se a providência (ʻināya) fosse uma reflexão (rawīa) das divindades, a
partir da qual se produziria todas as coisas que se produzem por natureza (bi-thabiʻ) no
mundo, então, nada do que é produzido (hhudut) existe a partir da providência, tendo em vista
que não possui sua existência a partir da opinião (raʼī) e da reflexão (rawīa) divinas, mas por
acaso (bakht) e de modo espontâneo (taliqāʼ nafshu). Deus, na concepção destes autores, não
se dedicaria a tal ação, i.e., ao cuidado com os existentes, já que todos os seres que se
produzem por natureza, fazem-no através de causas (asbāb) naturais; o que se dá devido ao
movimento contínuo e não circular dos átomos, associando-se e entrelaçando-se mutuamente
por acaso. Deste modo, os corpos compostos (ajsād murakkab) são engendrados e
combinados por uma associação de átomos cujo contato produziria o clínamem (al-dawar).
Sendo assim, a diferença entre os seres proviria da diferença entre a configuração dos átomos
que se unem e formam um arranjo (tartīb) já que nada é idêntico quanto à ordem e à posição
dos átomos7.
São vários os argumentos que o autor utiliza a fim de explicitar as contradições
daqueles que compartilham desta doutrina, como é o caso de Epicuro. O ponto de partida de
Alexandre contra os atomistas é a negação da afirmação do espontâneo e do acaso como
7 Esta explicação a partir da configuração dos átomos também se aplica à sensação. É interessante notar que, no
caso da visão e dos outros sentidos, as qualidades sensíveis próprias como a cor, o som, a rugosidade, dentre
outras, não existem no mundo, mas graças à configuração que toma os átomos ao entrarem em contato com o
órgão do sentido.
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causas dos eventos, reconhecendo tal causa em deus, e não no movimento dos corpos
inanimados (ajsād mutanaffas). Caso se afirmasse a tese contrária, o que eles fazem, assumirse-ia que seres que não possuem um λόγος/ʻaql são os responsáveis pela origem de tudo.
Contudo, o aristotélico assume que o mundo provém da reflexão e da inteligência (rawīa walʻaql) de um ser separado, ou seja, o mundo provém do que é mais complexo e não, como
desejam os atomistas, do mais simples.
Segundo Alexandre de Afrodísia, um outro ponto no qual eles se apoiariam para negar
a providência é o fato de nós testemunharmos os homens mais vis sempre alcançarem os bens,
enquanto que os virtuosos e melhores dentre eles vivem em uma situação oposta por se
encontrarem sempre em dificuldade. O aristotélico radicaliza dizendo que “estes negadores da
providência chegam até mesmo a negar absolutamente a existência de deus” (DE
AFRODISIA, 2003, p. 93).
Tendo em vista os testemunhos expostos, pode-se dizer, acerca do posicionamento de
Alexandre, que é mais meticuloso na crítica aos estóicos, que seus argumentos visam apontar
as dificuldades de se negar a providência divina como, por exemplo, o fato de não fornecerem
uma resposta para as questões em torno da existência do mal no mundo. Compreende-se que,
ao negarem a intervenção divina, retiram dos deuses a responsabilidade pelos males que
assolam os homens, embora não fique claro se a origem do mal se deve ao acaso e ao
espontâneo. Nos testemunhos de Cícero, Diógenes Laércio e Lucrécio não encontramos uma
negação da existência dos deuses, mas apenas da intervenção em favor dos seres sublunares.
Deste modo, Alexandre leva ao extremo a posição atomista a ponto de afirmar que ela
defende a inexistência dos deuses, embora não se diferencia dos outros testemunhos na
medida em que todos apontam para a ausência de providência.
3 Teoria de Crisipo acerca da Providência8 e Crítica de Alexandre de Afrodísia
ao Estoicismo
Segundo o fragmento 1107 de Crisipo, a providência divina é responsável por dar
8 A teoria que explicitarei aqui é baseada nos fragmentos recolhidos por von Arnim acerca da providência dos
deuses defendida por Crisipo. Os fragmentos de Galeno e Clemente de Alexandria também foram retirados da
mesma obra de Von Argin. Cf. VON ARNIM, H. Stoici antichi, tutti frammenti. Trad. Roberto Radice. Milão:
Bombiane, 2002.
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forma à matéria da realidade a partir da qual tudo subsiste, realizando todos os seus desejos
por meio da matéria de modo a não expender nenhum esforço. Esta providência faz parte de
um único λόγος que a informa, possuindo como causa uma lei divina que é deus ele mesmo.
Na ausência deste motor do universo, nada poderia se mover no mundo. Deus é considerado
bom e beneficia a todos os seres com a sua bondade e, com respeito ao mal, não se trata de
não querer cometê-lo, mas ele simplesmente não o pode fazer.
É necessário que, se os deuses existem, não apenas são dotados de alma (animantis),
mas também de razão (rationis) e estão unidos entre eles em uma sociedade e em
uma associação enquanto regem o cosmos (mundum) unitariamente como se fosse
um estado comum, uma cidade (urbem). Disto deriva que a sua razão (ratio) não se
diferencie daquela que compartilha o gênero (genere) humano e que, para nós e para
eles, vale a mesma verdade e a mesma lei (VON ARNIN, 2002, p. 931).
A diferença entre a razão que se encontra nos homens e a que é possuída pelos deuses
consiste no fato de eles a possuírem em maior grau e a usarem de modo a realizar as melhores
ações como, por exemplo, o ordenamento do cosmos. Sendo assim, tanto eles, quanto a
natureza e os homens são razão (λόγος) já que todos são partes constituintes da mesma
unidade. A analogia com a cidade, no trecho citado, deve-se à ideia de que o cosmos é
composto por membros que, no caso dos homens e dos deuses, vivem sob um único direito e
uma mesma lei.
Quando se fala em natureza (φύσις), Crisipo a entenderia como um princípio gerador e
motor dos seres terrestres, conduzindo à existência tudo que dela deriva. Segundo os
fragmentos 1133 e 1134 de Galeno e Clemente de Alexandria (VON ARNIN, 2002, p. 933),
ela é o fogo criador (πῦρ τεχνικὸν) que se move por obter, em si, a energia necessária. Com
respeito à criação do mundo, ele foi criado por deus em seu benefício e dos seres animados
que fazem uso da razão. É obra da providência que o mundo seja esférico porque esta é a mais
veloz e movediça dentre as figuras e também é a mais necessária dado que todas as suas
partes tendem ao centro, impedindo que o mundo se disperse no vazio. Conforme Galeno
acerca da relação entre o νοῦς e o mundo:
quem não está convencido da existência de um νοῦν dotado de um poder (δύναμιν)
extraordinário que, penetrando a terra, está difuso em todas as partes? De fato, é
visto nascerem animais, todos possuidores de uma constituição excelente. Há,
talvez, uma outra parte do cosmos que seja menos privilegiada do que a terrestre? E,
todavia, aqui parece refletir um certo intelecto proveniente dos corpos mais
elevados, tanto é verdadeiro que se alguém os contempla, subitamente é tomado pela
beleza da sua natureza: em primeiro lugar e sobretudo pela beleza do sol, depois
daquela da lua e, em seguida, por aquela dos astros. Com efeito, tanto mais é pura a
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substância corpórea dos astros quanto mais é privilegiado e refinado o intelecto que
há nela se comparado com aquele dos seres terrestres. Pensando nestas coisas, tomame a crença de que também no ar que nos circunda se estenda um tal intelecto. Se
este, por natureza, não participasse do esplendor do sol, não participaria nem mesmo
do seu poder (VON ARNIN, 2002, p. 941).
Sobre a relação entre a providência e a existência do mal no mundo, Crisipo defende
no fragmento 1169 que apenas podem haver bens se também existem males, caso contrário
não teríamos parâmetro para classificar um evento como bom ou mal. Ambos, assim, existem
em recíproca oposição como, por exemplo, a justiça e a injustiça, sendo que um ato apenas
pode ser considerado justo se sabemos o que é um ato injusto e o diferenciamos deste. Os
males podem ser, erroneamente, considerados uma punição divina pelos homens que
desconhecem a finalidade deste evento dentro do contexto de uma ordem maior. Tratando-se,
então, de uma ignorância com respeito à economia universal (τὰ ὅλα οικονομίαν) e os fins da
natureza.
Segundo Alexandre de Afrodísia, os estóicos julgaram que nenhuma das coisas que
existem (īakwn) escapa à providência e todas estão plenas de deus, o qual penetra os seres
cuja formação se deve à sua vontade (ikhtīār) já que ele administra cada um deles. Eles
estenderiam a noção de necessidade não apenas ao mundo supralunar, como também ao
mundo sublunar, pois, como não há distinção entre deus e o mundo, tudo está tomado pela
providência. O argumento dos estóicos contra a afirmação atomista de que tudo se dá por
acaso e espontaneamente é que nada disto existe de modo definido, mas se apresenta diferente
a cada momento. Ou seja, há uma inconstância e uma sucessão variada na apresentação das
coisas que se dão espontaneamente e por acaso. A existência das predições (inḍārāt) e dos
oráculos (ḥukkām) é prova da constância advinda do cuidado e da providência dos deuses,
pois, caso fosse por acaso que se dessem os acontecimentos, não seria possível nenhum tipo
de previsão. Ao assumirem a providência direta, os estóicos inserem a necessidade das causas
do destino conforme o qual os eventos no mundo acontecem. Assim, cabe aos deuses que
estão no mais elevado grau de entendimento (fahm) determinarem os acontecimentos,
possibilitando as práticas de adivinhação.
Caso eles não o fizessem, seria ou porque eles
não desejam (lā muḥībb) e igualmente não podem (lā qādir) ou porque eles podem (qādir),
mas não desejam beneficiar o que existe. De acordo com a crítica de Alexandre, nenhuma
destas duas opções convêm aos deuses, pois a tese segundo a qual eles são impotentes para
exercer a providência os tornaria mais fracos que os humanos. No caso da segunda, consiste
na ação de um ser invejoso e negligente que recusa realizar atos louváveis mesmo sendo
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capaz de os fazer. Portanto, ambas atitudes são estranhas aos deuses porque eles desejam e
podem igualmente executar a providência.
Alexandre concorda com a afirmação de que deus não apenas se ocupa com o mundo
como também é causa (sabab) da sua existência e ordem a partir da reflexão e inteligência
(rawīa wal-ʻaql). Contudo, o autor discorda da extensão da providência a todos os seres, pois,
caso fosse assim, os acidentes que se aplicam a alguns indivíduos como, por exemplo, a
prosperidade dos homens maus e a desventura dos virtuosos seriam responsabilidade dos
deuses. Em Sobre o destino, o aristotélico levanta alguns argumentos a fim de questionar a
concepção de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν dos estóicos9 que, para Alexandre, está diretamente vinculada à
ausência da determinação do destino no âmbito das ações humanas 10. Deste modo, a
providência não se aplicaria ao que está em nosso poder. No parágrafo XIV (DE
AFRODISIA, 2008, p. 28-32), ele mostrará que há uma distinção entre a ação καϑ᾿ὁρμὴν e τὸ
ἐφ᾿ἡμῖν e que não é considerada pelos estóicos. Isto, pois o assentimento dado por impulso11 é
diferente do assentimento dado a partir de uma deliberação. No caso do primeiro, há uma
imediata adesão à fantasia que é apresentada, enquanto que, no segundo caso, esta fantasia é
submetida ao λόγος e ao julgamento (κρίσιν). Diferentemente dos animais, o homem possui
como sua quididade (τὸ ειναι) o λόγος que é o juiz das fantasias produzidas pela imaginação.
Portanto, deliberar é uma atividade segundo a qual o homem pode agir ora de um modo, ora
de outro sem que nada, além do seu próprio λόγος esteja envolvido na escolha. Ao contrário
de ser determinado por causas necessárias, o homem é causa e princípio das próprias ações.
Desconstruindo a concepção estóica de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν, Alexandre considera se afastar de qualquer
tipo de determinismo no âmbito ético.
Vigo, em seu artigo Alma, impulso e movimento segundo Alexandre de Afrodísia,
afirma que, mesmo não aceitando as concepções de providência e de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν dos estóicos,
Alexandre introduz inovações no esquema aristotélico assimiladas do estoicismo, como o
reconhecimento da existência de uma capacidade de caráter impulsivo. Embora Aristóteles já
tenha elencado, no conjunto das faculdades sensitivas, a capacidade de gerar desejos de
9 Cf. BRENNAN, Tad. A vida estóica. Trad. Marcelo Consentino, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2010, pp.
246-250.
10 Sobre a 'liberdade' no âmbito das ações humanas cf. ZINGANO, Marco. Ação, caráter e determinismo
psicológico em Alexandre de Afrodisias. Journal of Ancient Philosophy vol.I, 2007.
11 Segundo a leitura que Alexandre de Afrodisia fornece dos estóicos, para eles o fato de que os animais ajam
por impulso significa que a ação está sob o poder deles. É contra essa concepção que o filósofo argumentará. Cf.
DE AFRODISIA, A. Du destin. Trad. de José Molina e Ricardo Salles. Promanuscrito, 2008, 181.5 - 182.14, pp.
26-28.
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diversos tipos que está diretamente vinculada à capacidade de gerar fantasias, isto não o leva a
reconhecer a existência independente de uma capacidade impulsiva (τὸ ὁρμητικόν) não
fundida com a faculdade sensitiva. Deste modo, segundo Vigo, Aristóteles não atribui a
produção de movimento exclusivamente a uma faculdade, mas ora atribui à alma como um
todo12, ora à capacidade desiderativa13, ora à faculdade sensitiva14. Acerca da incorporação,
por parte de Alexandre, de uma capacidade impulsiva, afirma o autor:
Do ponto de vista histórico, não pode haver dúvidas sobre o fato, já assinalado, de
que com sua incorporação de uma capacidade impulsiva, Alexandre está levando a
cabo uma estratégia de integração de aspectos centrais da influente e diferenciada
concepção desenrolada pelos estóicos no âmbito da psicologia da ação. É certo que a
atribuição aos estóicos da introdução de uma capacidade impulsiva ou bem de uma
alma impulsiva (ψυχὴ ὁρμητική) não encontra maior respaldo textual do que uma
indicação de Aécio que atribui a adoção da noção aos estóicos e aos epicuristas. No
entanto, o papel central que assume a noção de impulso na teoria estóica das funções
anímicas vitais, em geral e muito particularmente, em conexão com a explicação da
origem do movimento voluntário e da ação, deve ser visto, sem dúvida, como um
dos elementos que influenciam decisivamente na reformulação da concepção
aristotélica que Alexandre leva a cabo (VIGO, 2009, p. 258-9).
Vigo desenvolve uma discussão detalhada acerca do modo pelo qual esta capacidade
impulsiva se relaciona com as outras faculdades no âmbito tanto da alma sensitiva quanto da
intelectiva. Contudo, como esta discussão escapa aos propósitos deste trabalho, sublinharei
apenas o fato de que não se deve compreender o agir por impulso como aquilo que determina
que a ação está em nosso poder. Embora Alexandre incorpore, em sua explicação da produção
do movimento tanto dos animais quanto dos homens, diferentes formas de impulso, no caso
do homem, o que marca a sua quididade é a ação de deliberar, ou seja, de poder agir de um
modo ou segundo seu contrário. Que ele assuma a existência da capacidade impulsiva, não
significa que ela seja a fonte característica das ações humanas, mas o λόγος.
Outro ponto em Sobre a providência a fim de contradizer a doutrina estóica é a
distinção entre as coisas cuja existência é necessária (al-wajwdha darwrī) daquelas cuja
existência é não-necessária. Deste modo, há um grupo de coisas para as quais é impossível
existir em um certo momento. Os exemplos fornecidos por Alexandre são (DE AFRODISIA,
2003, p. 94): a diagonal não pode ser comensurável com o lado do quadrado, a díade não pode
ser inferior à unidade, três não pode ser igual a quatro, as cores não podem ser entendidas, os
12 Cf. ARISTÓTELES. De anima I 2, 404b27-28
13 Cf. ARISTÓTELES. De anima III 10, 433b10-28; De motu animalium 6, 700b17-701a6
14 Cf. ARISTÓTELES. De anima III 9, 432b19-26; II 2, 413b2-4; II 3, 415a6-7
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sons não podem ser vistos e os deuses não podem ser mortais. A partir de tais exemplos, o
autor pretende mostrar que, ao defenderem que deus se dedica a tudo, os estóicos caem em
contradição, pois tornam possíveis as coisas que são, por natureza, impossíveis já que elas se
transformariam em possíveis pelo fato de deus se dedicar a elas. Sobre isto:
No mais, a tese segundo a qual os deuses escolhem, dentre as coisas, o possível é
muito mais racional do que a tese segundo a qual o impossível é possível para os
deuses. Pois, segundo a primeira tese, tudo é possível e é isto que entra na vontade
de deus; e apenas entram na vontade de deus as coisas que podem existir nele e que
são criadas à exclusão de outras, pois deus é sábio acerca da natureza do possível e
do impossível em todas as coisas (DE AFRODISIA, 2003, p. 95).
Decorre do posicionamento estóico dois contra-sensos: ou o que é impossível para nós
também é impossível para os deuses e, assim, eles teriam o mesmo grau de limitação que os
seres humanos; ou o que é impossível para nós é possível para os deuses e o impossível
assume dois valores de verdade já que pode ser tanto impossível quanto possível15.
Para Alexandre, tendo em vista que é impraticável, tanto por parte dos homens quanto
dos deuses, dedicar a reflexão (rawīa) e a atenção (intibāh) a muitas coisas boas (ashīāʼ
kathīra) ao mesmo
tempo pelo
fato
de
ser impossível
representá-las
(īaṣwr)
contemporaneamente, os deuses não podem se dedicar a mais de um ser e, caso o façam, não
conseguem contemplar a todos visto serem infinitos. Neste momento, a argumentação visa
excluir tais possibilidades: que a providência divina se volte para todos os seres ao mesmo
tempo ou que ela se dedique a cada um deles individualmente. Caso, ainda se insista que isto
é válido para os deuses, seria indigno atribuir a eles uma ocupação contínua que é “estranha
aos modos de agir dos indivíduos bem educados” (DE AFRODISIA, 2003, p. 98). Assim,
como tal conduta não convém ao homem que leva uma vida temperante (iʻtidāla), e tendo em
vista que os deuses são temperantes e sábios, igualmente não conviria a eles já que implica
preocupação. Defender que não há nada mais nobre e mais grandioso nos atos divinos que a
administração (idāra) do mundo é afirmar que deus existe porque sua solicitude com respeito
a estes seres é o objetivo visado e o seu fim. No entanto, porque tudo que é em vista de outra
coisa é inferior a ela, deus seria inferior às coisas em favor das quais ele exerce sua
providência.
15 Este segundo contra-senso se baseia em uma impossibilidade lógica dada pelo princípio aristotélico do
terceiro excluído. Este determina que a mesma coisa não pode possuir dois valores de verdade ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto (A v ~A).
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A Providência em Alexandre de Afrodísia
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4 Teoria de Aristóteles acerca da Providência segundo Alexandre de Afrodísia
Segundo Alexandre, para Aristóteles, a geração (kāun) do mundo e sua manutenção
(salāma) não estão desprovidas da providência divina. É a potência originada (al-quwa almanabaʻata) do Sol, da Lua e dos astros a causa da geração e da conservação (ḥifẓ) das coisas
que existem por natureza, por meio da ordem dos movimentos e da proporção das suas
distâncias com respeito às coisas sublunares. O argumento em favor da influência dos astros é
que, se a distância entre o Sol e a Terra fosse diferente da que existe ou se seu movimento de
translação não fosse sobre a órbita inclinada (falak māʼil), nós não apenas seríamos privados
de todas as coisas existentes como também não haveria possibilidade da geração dos animais,
das plantas nem dos corpos simples que se asseguram devido ao movimento regular. Deste
modo, se a distância do Sol fosse menor, a superfície da Terra se aqueceria de modo a tornar
inviável a vida, como acontece com algumas partes que são inabitadas por causa do excessivo
calor ou frio produzidos pelo afastamento ou proximidade do Sol. Portanto, a moderação
(iʻtidāl) na distância entre o Sol e a Terra é a causa da manutenção das coisas que existem
sobre ela, devendo-se aos movimentos regulares das estações do ano determinados pela
posição do Sol.
Isto também se aplica à Lua, pois caso ela estivesse mais próxima do que está, ela
impediria a acumulação e a permanência das nuvens e da água pelo fato de os vapores
ascendentes se dispersarem. Porque sua atual posição é oposta ao sol, as noites de inverno se
tornam, graças a ela, quentes, pois sua posição corresponde, nesta época, à altura do Sol no
verão; enquanto que em algumas épocas as noites são mais frias pelo fato de a Lua estar
voltada para as extremidades da Terra. De modo geral, não haveria qualquer aproveitamento
de sua função se ela não tivesse o movimento e a distância que possui.
Ao contrário do que foi afirmado pelos atomistas, a causa da geração deve-se não ao
acaso e ao espontâneo (bakht wa taliqāʻ nafshu), mas ao movimento e à perpetuidade (ḥaraka
wa dawām) dos corpos divinos. De acordo com Alexandre, a tese de que a geração dos corpos
recebe sua perfeição (tatimm) dos deuses refuta a ideia atomista de que eles não se dedicam a
nós, pois é conveniente ao deus realizar os atos que lhe são próprios por estarem de acordo
com sua essência (ḍāthu) e não pelo fato de terem como fim ou objetivo a conservação das
coisas sublunares, tendo em vista que os atos mais nobres não possuem um fim outro que eles
mesmos. Ou seja, a razão divina estima que suas ações se dêem em acordo com seu ser,
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contudo, nenhuma delas parte do princípio de ser útil. Deus é útil para os seres apenas na
medida em que eles são capazes de participar do bem. Assim, a providência divina, segundo o
aristotélico, pode ser dividida em dois tipos (ḍarbīn): uma é a solicitude (iʻtināʼ) que vem dos
deuses para os seres que são, por natureza, segundo a intenção primeira (al-qaṣd al-awwl),
i.e., os corpos celestes; e a providência com respeito às coisas que estão abaixo da esfera da
Lua. O primeiro modo de providência mantém uma relação com o segundo pelo fato de a
ordem do mundo sublunar corresponder à ordem dos movimentos dos corpos divinos.
Alexandre chega a afirmar que estes corpos são a causa da ação divina com respeito àquele. A
providência voltada para o mundo sublunar não se exerce segundo a intenção primeira porque
ela não é tal que seus atos particulares se direcionem (naḥw) às coisas mesmas. Caso assim o
fosse, ela seria inferior a elas, pois tudo que é em vista de uma coisa é inferior e mais vil que
esta; a existência dos deuses teria como finalidade a assistência dos indivíduos singulares.
Portanto, não é verdadeiro que a ação que pertence a eles segundo a intenção primeira é a
ordem e a conservação do mundo sublunar. O autor fornece uma analogia com o fogo a fim de
explicar a relação entre deus e as coisas:
Do mesmo modo que isto que é quente em sua natureza tem como efeito natural
aquecer o que está em sua vizinhança e que possui a capacidade para receber esta
influência, sem nada fazer para isto, a não ser perseverar e conservar o ato de sua
natureza própria, do mesmo modo isto que está, por natureza, em uma tal condição –
a saber esta na qual está Deus – resulta como conseqüência de todas as coisas que a
ele são vizinhas, de qualquer modo que isto seja, e que possui nelas a capacidade de
participar na sua potência, participam na medida em que há nelas a capacidade para
receber este bem. Nisto, elas são comparáveis aos objetos que se aquecem devido à
vizinhança com a coisa que é quente (DE AFRODISIA, 2003, p. 117).
Portanto, é esta aptidão dos corpos vizinhos a deus para participarem da bondade
divina que faz com que suas capacidades em potência (bil-quwa) se atualizem, pois torna-se
inteligente aquilo que está em condição de participar da inteligência e se torna animado o que
se predispõe a isto, de modo a aperfeiçoar sua natureza. Esta é a potência divina que mantém
e estrutura os seres segundo uma certa proporção e ordem, sem deliberar e sem refletir sobre
cada um, pois a natureza (ṭabiʻ) é desprovida de razão.
Os seres particulares e separados são corruptíveis e passíveis à geração por causa das
diferenças que existem entre os indivíduos das espécies. Por exemplo, as diferenças pelas
quais Sócrates e Platão são distintos não resultam de uma intenção primeira natural, mas elas
são acidentes necessários da matéria que realiza a função de substrato para a forma comum à
espécie. Logo, a universalidade apenas subsiste nos indivíduos devido a incorruptibilidade da
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A Providência em Alexandre de Afrodísia
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espécie dada pela sucessão de seres não eternos.
A fim de corroborar sua interpretação da doutrina aristotélica, Alexandre de Afrodísia
se vale de duas passagens, uma do De caelo16 e outra da Metafísica17. Com respeito à primeira
obra, o autor recorre à ideia dos corpos divinos se moverem circularmente e de modo
perpétuo, dos quais depende a existência das outras coisas. Embora haja um tipo de
providência, deus não opera no mundo sublunar tendo em vista que estes corpos já são
divinos e possuem a perfeição advinda do movimento circular que é incorruptível. No caso da
Metafísica, ele recorre ao livro Λ no qual Aristóteles trata da causa primeira e dos tipos de
movimento que advém dos corpos divinos. A partir dele, Alexandre considera que a causa do
movimento e alteração dos seres sublunares é o movimento eterno e contínuo dos corpos
movidos circularmente graças à potência que aqueles possuem. Ao recorrer a estas obras,
Alexandre não apenas aponta que há um modo de providência com respeito aos corpos
celestes, como também, por meio deles, deus exerce sua providência indireta e essencial no
âmbito sublunar. Diz-se essencial porque, por exemplo, caso sejam alterados o movimento e a
distância entre a Terra e o Sol ou a Lua, alteram-se as condições de geração e corrupção dos
seres sublunares.
Ross coloca que, nas Quaestiones18, Alexandre de Afrodísia defende que tudo que está
de acordo com o destino (καθ᾿ εἱμαρμένην) também está de acordo com a providência (κατὰ
πρόνοιαν).19 Um ponto desta obra que se assemelha ao Sobre a providência é “a extensão do
âmbito da providência para além dos céus” (ROSS, 2009, p. 193). Segundo Ross, a postura do
aristotélico defendida nos textos que tratam da providência é que a ação dos deuses não se
limita a ação eterna de mover o céu como também se estende, não acidentalmente, ao mundo
sublunar. Deste modo, Alexandre tentaria descartar a possibilidade de que o Primeiro Motor
se relacione κατὰ συμβεβηκός com o que está abaixo da esfera da Lua como se ele fosse causa
da eternidade da série de gerações e corrupções na medida em que realiza sua atividade
principal de motor celeste. Em Sobre a providência, há uma ênfase no fato de a providência se
estender ao mundo sublunar se valendo do movimento dos corpos celestes para manter a série
infinita de geração e corrupção e a conservação das espécies.
16 ARISTÓTELES. De caelo I 9, 279a25-30.
17 ARISTÓTELES. Metafísica Λ 7.
18 Cf. DE AFRODISIA, A. Quaest. 1.4, 10.32-11.1.
19 O que se estende unicamente ao âmbito físico já que o destino não se aplica às ações humanas, mas apenas ao
que se realiza por meio das causas naturais no mais das vezes.
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Neste ponto, portanto, encontra-se um dos contrastes mais fortes da postura de
Alexandre com a filosofia aristotélica, pois, nesta última, não é fácil fazer a mesma
redução dos princípios explicativos (natureza, destino e providência). Não apenas a
leitura tradicional de Met. XII contrasta com a posição de Alexandre como também
a ideia mesma de natureza proposta por Aristóteles. Com efeito, a definição de
natureza como princípio intrínseco de movimento e repouso não apenas parece ter
sido formulada por Aristóteles para distinguir o mundo natural do artificial, como
também para estabelecer uma distância entre sua própria concepção de natureza com
a de Platão. Para Aristóteles, deus – ou o Primeiro Motor – não é causa de nada mais
que da eternidade do movimento. De modo que, se a leitura tradicional de Met. XII
que foi referida anteriormente está correta, há uma descontinuidade forte entre o
posicionamento aristotélico com o de Alexandre no que concerne ao tema da
assimilação do natural ao que é segundo o destino e à providência (ROSS, 2009, p.
194).
Um dos aspectos importantes deste trecho é o reconhecimento da posição de
Alexandre no que diz respeito ao âmbito de atuação da providência divina, embora se deva ter
em mente que a teoria exposta em Sobre a providência distingui-se, em pontos importantes,
da posição de Aristóteles. Como sugere Ross, Alexandre estabelece uma correlação entre
natureza, destino e providência que possui origem no pensamento aristotélico, pelo fato de se
basear em trechos das suas obras dedicadas à física e à metafísica, embora não tenha sido
elaborada por Aristóteles. Um exemplo disto, é a distinção entre a providência que se exerce
segundo a intenção primeira no caso dos corpos celestes, determinando, para eles, o
movimento perpétuo e incorruptível e a exercida de modo secundário, direcionando-se aos
corpos sublunares na medida em que a geração e a manutenção deles é condicionada pela
posição e movimentos dos corpos divinos.
Considerações Finais
Conclui-se, portanto, que Alexandre de Afrodísia, em sua obra Sobre a providência,
após negar a posição atomista que exclui a possibilidade de qualquer tipo de intervenção
divina na ordem, tanto sublunar quanto supralunar, tendo em vista que os males no mundo
não são obras de deus, fornece o primeiro passo na construção da sua teoria. Assim, a fim de
elaborar aquela que, segundo ele, é a doutrina aristotélica, o autor, inicialmente assume,
contra os atomistas, a existência dos deuses e um modo de providência exercido por eles, o
qual será refinado ao longo do texto.
O segundo passo de Alexandre é, ao questionar a doutrina estóica, negar que haja uma
intervenção divina direta que se dedicaria aos corpos sublunares. Isto, pois a divindade
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enquanto o ser mais perfeito, não pode ter como fim a ordem e a manutenção da vida destes
seres, a partir do princípio enunciado pelo autor de que aquilo que existe em vista de algo é
inferior e mais vil que o seu objeto.
Portanto, concordar com o fato de o fim e objetivo divinos consistirem no bem-estar
dos seres inferiores é colocar deus em uma posição abaixo deles. O outro problema em
defender este tipo de intervenção direta é com respeito à presença do mal no mundo. Atribuise a responsabilidade pelos atos vis não àquele que realiza a ação, mas ao deus que, podendo
intervir, não o fez.
Assim, após os momentos de afirmação da providência e negação da interferência
direta, Alexandre, recorrendo ao De caelo, mostra como há a providência no âmbito dos
corpos celestes segundo a intenção primeira e, valendo-se da Metafísica, resolve o problema
da interferência direta ao considerar que a providência divina com respeito ao mundo sublunar
ocorre através do movimento e da ordem dos corpos celestes. Isto não de modo acidental, pois
qualquer alteração neles implica em uma mudança nas condições de vida da Terra, como
ilustra as considerações acerca da distância entre a ela e o Sol.
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Submetido em: 01/07/2012
Aceito em: 25/11/2012
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