A Providência em Alexandre de Afrodísia The Providence in Alexander of Aphrodisias Meline Costa Sousa1 – Universidade Federal de Minas Gerais Resumo: A existência da providência divina e os modos pelos quais ela se realiza são discutidos por Alexandre de Afrodísia em sua obra Sobre a providência. O autor busca apontar as incongruências das doutrinas atomistas e estóicas que assumem posições distintas com relação a doutrina aristotélica, da qual ele se considera defensor. Um dos pontos centrais da argumentação de Alexandre de Afrodísia é defender, contra o atomismo, que existe um cuidado divino para com o mundo sublunar que se realiza de acordo com uma intenção segunda. Assim, resolver-se-ia o problema de atribuir o mal existente no mundo à divindade. Palavras-chave: Alexandre de Afrodísia, Destino, Providência. Abstract: The existence of the divine providence and the ways that comes about are discussed by Alexander of Aphrodisias in his work On providence. The author seeks to point out the inconsistencies of the Atomist and Stoic doctrines which defend different positions compared with the Aristotelian doctrine, he considers himself a defender. The argument's central point against the Atomism is the divine care for the sublunar region according to a second intention. Therefore, it would be solve the problem about the evil's attribution to the gods. Keywords: Alexander of Aphrodisias, Fate, Providence. Introdução O objetivo deste artigo é explicitar os argumentos que Alexandre de Afrodísia utiliza para apontar as incongruências das doutrinas atomista e estóica acerca da providência na defesa daquela que seria, segundo ele, a teoria de Aristóteles. Também estabelecerei uma comparação entre a leitura que Alexandre faz destas teorias com outros testemunhos a fim de reconhecer em que medida ele se aproxima e se afasta das outras interpretações, tendo em vista que parte importante da sua obra Sobre a providência é dedicada a estas doutrinas, a seu modo, apresentadas. É importante salientar que a presença de outras fontes estóicas e 1 Mestranda pela UFMG / Bolsista do CNPq / e-mail: [email protected] Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -182- epicuristas aqui não visa nenhum tipo de reconstrução histórica das doutrinas destas duas escolas. Parte, apenas, do meu interesse secundário em identificar pontos em comum entre os testemunhos que serão apresentados, já que meu interesse primário é analisar o Sobre a providência de Alexandre de Afrodisia. Sendo assim, este artigo se divide em três grandes momentos que acompanham a estrutura da obra, na qual, primeiramente, ele propõe uma crítica às posições atomista e estóica sobre a providência, encerrando com a exposição da doutrina aristotélica que, como veremos, distingue-se daquela encontrada nos textos de Aristóteles. A primeira parte deste estudo será dedicada ao levantamento de algumas considerações epicuristas acerca dos deuses e da providência, partindo dos testemunhos de Cícero, Diógenes Laércio e Lucrécio, acompanhado da crítica feita por Alexandre às concepções não só de Epicuro, mas de outros atomistas como Leucipo e Demócrito. Como será mostrado, o aristotélico discorda da afirmação atomista de que deus não se dedica ao mundo, chegando a afirmar que eles negariam sua existência. Na segunda parte, abordarei a doutrina do estóico Crisipo baseada nos fragmentos de Von Arnim seguida pela exposição dos pontos contra os quais Alexandre de Afrodísia desenvolve seu raciocínio na tentativa de levantar as incongruências dos autores que defendem a intervenção direta dos deuses nos eventos mundanos, os quais determinariam não apenas o domínio físico, mas também o ético. Por fim, tratarei da teoria aristotélica sobre a providência sugerida por Alexandre de Afrodísia recorrendo a dois textos citados por ele: o De caelo e a Metafísica. Buscarei apontar as considerações fundamentais sobre as quais se funda a concepção de que há uma providência divina indireta que se realiza em benefício dos seres sublunares através do movimento circular e incorruptível dos corpos celestes. Dizer que ela se dá indiretamente é retirar a atribuição da responsabilidade pela existência do mal no mundo à divindade. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -183- 1 Teoria de Epicuro acerca dos Deuses2 e a Crítica de Alexandre de Afrodísia à Doutrina Atomista Segundo Cícero em A natureza dos deuses, Epicuro, em primeiro lugar, afirma que os deuses existem porque foi a natureza mesma que imprimiu tal noção no animus3 de todos os indivíduos. Assim, todos os povos, mesmo aqueles que não receberam nenhum tipo de doctrina, possuem um conhecimento antecipado deles e a isto Epicuro nomeia de πρόληψιζ, i.e., um tipo de representação (informationem) formada no intelecto sem a qual nada pode ser conhecido (intellegi) ou procurado. Esta crença (opinio) na existência dos deuses não é estabelecida nem pelo costume nem por leis, mesmo que pressuponha um consenso unânime. Deste modo, tendo em vista uma crença acerca da qual todos os homens estão por natureza de acordo, faz-se necessário admitir a existência dos deuses. De acordo com Epicuro, porque isto é igualmente aceito não apenas pelos filósofos, como também pelos incultos, reconhece-se que nós temos um conhecimento antecipado ou uma pré-concepção (praenotionem). Para confirmar a crença na existência de deus, nosso intelecto se interroga (anquirit) acerca da sua forma (formam) e do seu modo de vida. Sobre a forma, nós recebemos esta informação das indicações da natureza e dos ensinamentos da razão (ratio docet): porque se reconhece que os deuses são os mais felizes, que uma pessoa não pode ser feliz sem a virtude e que a virtude não pode se estabelecer sem a razão a qual se encontra no homem, deve-se admitir que os deuses têm uma forma humana. No entanto, esta forma não é um corpo, mas um tipo de corpo, nem um sangue, mas um tipo de sangue4. É a partir deste conhecimento racional que os indivíduos os concebem como bem-aventurados (beatos) e imortais, pois a natureza que formou em nós a representação divina também gravou em nosso intelecto tais crenças. Diz Cícero: 2 Para tal, usarei Diógenes Laércio, Lucrécio e a Natureza dos deuses de Cícero. A ordem de exposição daquilo que estes autores testemunham acerca de Epicuro não será cronológica, tendo em vista que este trabalho não tem como objetivo a reconstrução de nenhuma das doutrinas aqui expostas, mas apenas um vislumbre dos testemunhos que dizem respeito a elas. 3 Não é uma boa opção traduzir animus como espírito, pois este é o termo utilizado para traduzir πνεῦμα que, para os estoicos consiste em uma substância dinâmica responsável pela coesão dos objetos materiais, pela organização dos seres vivos, pela percepção, pela vontade nos animais e, no homem, pela cognição e entendimento. Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A Phýsis como fundamento do sistema filosófico estoico. Kriterion [online]. 2010, vol.51, n.121, pp. 173-193. ISSN 0100-512X. 4 “Idem facit in natura deorum: dum individuorum corporum concretionem fugit, ne interitus et dissipatio consequatur, negat esse corpus deorum, sed tamquam corpus, nec sanguinem, sed tamquam sanguinem” CICERO. De natura deorum, I, 71. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -184- se, em efeito, é assim, é verdade que Epicuro disse esta famosa máxima: isto que é bem-aventurado e eterno não experimenta ele mesmo nenhuma preocupação e não causa nenhuma a outro; também não sentem nem cólera nem benevolência, pois tais sentimentos são manifestações de fraqueza (CÍCERO, 2010, p. 759). A cólera e a benevolência são incompatíveis com a natureza imortal dos deuses, os quais não padecem das paixões que nos afligem. Em primeiro lugar, o que caracteriza sua natureza é o fato de eles não serem percebidos pelos sentidos (sensu), mas pelo intelecto (mente) devido às imagens (imaginibus) percebidas graças à similaridade e à frequência. Ele tenderia verso estas imagens compostas de átomos inumeráveis que seguem um fluxo contínuo e nossa inteligência (intellegentiam) conceberia (capere) com um grande prazer este ser que é bem-aventurado e eterno, cuja vida é a mais honrosa, plena de bens de toda ordem (CÍCERO, 2010, p. 768). Deus nada faz e nenhuma ocupação o obstrui. Caso se ocupasse com o mundo, com os astros, com o retorno das estações ou com a sucessão de todas as coisas a fim de salvaguardar a vida humana, tratar-se-ia de um deus cuja vida seria realizar tarefas penosas. O argumento que Cícero expõe para corroborar esta tese epicurista é de que, para nós, a bondade consiste na tranquilidade da alma e na ausência de qualquer fardo. Sendo assim, Epicuro, ao contrário da posição adotada pelos estóicos, que será apresentada na parte dedicada à crítica de Alexandre de Afrodísia ao estoicismo, discorda da existência de uma providência por meio da sucessão necessária de causas e do fato de os deuses se dedicarem à vida dos seres tanto sublunares quanto supralunares. Na Carta à Meneceu, segundo Diógenes Laércio, Epicuro, direcionando-se à Meneceu, expõe que, sendo o deus incorruptível e bem-aventurado, conforme à noção comum, não se deve acrescentar a ele nada que seja estranho à sua incorruptibilidade e inapropriado à sua bondade. Na sequência do texto, o filósofo reafirma a existência dos deuses, embora aponte para o fato de eles não serem como muitos os consideram 5. Para Epicuro, são ímpios aqueles que atribuem aos deuses o que advém das suposições falsas como, por exemplo, que os maiores males assolam os homens maus por causa dos deuses a ponto de defenderem uma interferência divina no curso dos acontecimentos. Nas Máximas Capitais, Epicuro também salienta que os atributos divinos, como a incorruptibilidade e a bem-aventurança, determinam que a divindade não se concebe vinculada a qualquer 5 O que parece uma contradição com o testemunho de Cícero. Isto, pois um dos argumentos utilizados para se acreditar nos deuses é, justamente, a noção comum compartilhada tanto pelos filósofos quanto pelos homens incultos. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -185- dificuldade, pois ela não está submetida nem à cólera nem à complacência para com os outros. Caso fosse assim, tratar-se-ia de um ser falível, pois estas preocupações são características dos entes corruptíveis. Lucrécio no De rerum natura, expondo a doutrina do mestre Epicuro, na altura do verso 148, aponta que a natureza divina está muito longe dos nossos sentidos (sensibus), tendo em vista que apenas se apresenta a nós por meio do intelecto (mente) pelo fato de não podermos sentir o que não pode ser sentido. Em sua análise das superstições populares, diz Lucrécio: aquela causa espalhou (peruulgarit) entre as grandes nações (magnas gentis) a ideia do divino e encheu (compleuerit) de altares (ararum) as cidades e fez instituir ritos solenes (sollemnia sacra) que ainda hoje levam a cabo eventos insólitos e de onde provêm aos mortais o temor (horror) que sobre toda a terra faz se elevarem novos templos aos deuses (delubra noua) (LUCRÉCIO, 2004, p. 177-8). A crítica do epicurista exposta nos versos citados se direciona aos indivíduos que consideram os deuses não apenas como criadores de todas as coisas no mundo tanto sublunar quanto supralunar, como também responsáveis por intervenções na sua ordem. E, como nada disto procede, pois o que há são causas naturais, realizam em vão cultos e sacrifícios religiosos a fim de agradecer pelos benefícios alcançados. Segundo Case em A religião de Lucrécio, o epicurista rejeita a religião caso a entendamos como a crença nos deuses acompanhada da prática de ritos empregados em sua adoração. Assim compreendida, ela deve ser abolida da vida humana. Para isto, Lucrécio nega este modo de existência dos deuses6 e atribui à matéria a completa responsabilidade pelos eventos naturais. Para a comentadora, o sentimento de repulsa pela religião pode ser melhor apreciado se se compreende as práticas cotidianas da vida em Roma. Tanto a vida privada quanto a pública eram dominadas pela crença na adivinhação e pela preocupação com aquilo que seria o desejo dos deuses. Case cita autores contemporâneos de Lucrécio como Políbio e Ápio que realizavam a manutenção da superstição e do temor aos deuses de modo a incentivar a piedade e as crenças religiosas. Sendo assim, a proposta com a qual nos deparamos no De rerum natura vincula-se à aceitação do mundo dos sentidos em seu valor de face, i.e., a experiência cognitiva não deve ser entendida como uma concessão divina por fazermos parte 6 É importante sublinhar que Lucrécio não nega a existência dos deuses, mas apenas uma certa concepção divina. No livro V do De rerum natura, depara-se com a crítica do modo pela qual os homens tomaram os deuses. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -186- de um λόγος maior, mas como uma interação natural com o mundo: [...] a ideia religiosa de que os mais importantes itens do conhecimento foram adquiridos pela arte da adivinhação, pela experiência do êxtase, pela consulta dos livros sagrados e por outras formas de revelação, pode também ser ignorada. Assim, o ponto de vista epicurista não concedeu lugar para nenhum tipo de revelação. Por um simples processo mecânico e natural, o homem adquire todo tipo de conhecimento pelo exercício dos sentidos físicos (CASE, 1915, p. 103). Tanto a constituição humana quanto a realização de suas ações se devem aos átomos, como, por exemplo, a sensação e a intelecção. Os deuses, ao contrário de se dedicarem à ordem do mundo e à manutenção das atividades dos corpos sublunares, seriam livres de qualquer tipo de cuidado, gozando de uma perfeita felicidade. Segundo Case, é essencial na compreensão da doutrina epicurista o fato de os deuses estarem absolutamente livres de qualquer relação íntima com o nosso mundo. Na visão de Alexandre de Afrodísia em Sobre a providência, a tese atomista compartilhada por Leucipo, Demócrito e Epicuro nega que os deuses se dediquem a cuidar dos seres. Isto, pois se a providência (ʻināya) fosse uma reflexão (rawīa) das divindades, a partir da qual se produziria todas as coisas que se produzem por natureza (bi-thabiʻ) no mundo, então, nada do que é produzido (hhudut) existe a partir da providência, tendo em vista que não possui sua existência a partir da opinião (raʼī) e da reflexão (rawīa) divinas, mas por acaso (bakht) e de modo espontâneo (taliqāʼ nafshu). Deus, na concepção destes autores, não se dedicaria a tal ação, i.e., ao cuidado com os existentes, já que todos os seres que se produzem por natureza, fazem-no através de causas (asbāb) naturais; o que se dá devido ao movimento contínuo e não circular dos átomos, associando-se e entrelaçando-se mutuamente por acaso. Deste modo, os corpos compostos (ajsād murakkab) são engendrados e combinados por uma associação de átomos cujo contato produziria o clínamem (al-dawar). Sendo assim, a diferença entre os seres proviria da diferença entre a configuração dos átomos que se unem e formam um arranjo (tartīb) já que nada é idêntico quanto à ordem e à posição dos átomos7. São vários os argumentos que o autor utiliza a fim de explicitar as contradições daqueles que compartilham desta doutrina, como é o caso de Epicuro. O ponto de partida de Alexandre contra os atomistas é a negação da afirmação do espontâneo e do acaso como 7 Esta explicação a partir da configuração dos átomos também se aplica à sensação. É interessante notar que, no caso da visão e dos outros sentidos, as qualidades sensíveis próprias como a cor, o som, a rugosidade, dentre outras, não existem no mundo, mas graças à configuração que toma os átomos ao entrarem em contato com o órgão do sentido. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -187- causas dos eventos, reconhecendo tal causa em deus, e não no movimento dos corpos inanimados (ajsād mutanaffas). Caso se afirmasse a tese contrária, o que eles fazem, assumirse-ia que seres que não possuem um λόγος/ʻaql são os responsáveis pela origem de tudo. Contudo, o aristotélico assume que o mundo provém da reflexão e da inteligência (rawīa walʻaql) de um ser separado, ou seja, o mundo provém do que é mais complexo e não, como desejam os atomistas, do mais simples. Segundo Alexandre de Afrodísia, um outro ponto no qual eles se apoiariam para negar a providência é o fato de nós testemunharmos os homens mais vis sempre alcançarem os bens, enquanto que os virtuosos e melhores dentre eles vivem em uma situação oposta por se encontrarem sempre em dificuldade. O aristotélico radicaliza dizendo que “estes negadores da providência chegam até mesmo a negar absolutamente a existência de deus” (DE AFRODISIA, 2003, p. 93). Tendo em vista os testemunhos expostos, pode-se dizer, acerca do posicionamento de Alexandre, que é mais meticuloso na crítica aos estóicos, que seus argumentos visam apontar as dificuldades de se negar a providência divina como, por exemplo, o fato de não fornecerem uma resposta para as questões em torno da existência do mal no mundo. Compreende-se que, ao negarem a intervenção divina, retiram dos deuses a responsabilidade pelos males que assolam os homens, embora não fique claro se a origem do mal se deve ao acaso e ao espontâneo. Nos testemunhos de Cícero, Diógenes Laércio e Lucrécio não encontramos uma negação da existência dos deuses, mas apenas da intervenção em favor dos seres sublunares. Deste modo, Alexandre leva ao extremo a posição atomista a ponto de afirmar que ela defende a inexistência dos deuses, embora não se diferencia dos outros testemunhos na medida em que todos apontam para a ausência de providência. 3 Teoria de Crisipo acerca da Providência8 e Crítica de Alexandre de Afrodísia ao Estoicismo Segundo o fragmento 1107 de Crisipo, a providência divina é responsável por dar 8 A teoria que explicitarei aqui é baseada nos fragmentos recolhidos por von Arnim acerca da providência dos deuses defendida por Crisipo. Os fragmentos de Galeno e Clemente de Alexandria também foram retirados da mesma obra de Von Argin. Cf. VON ARNIM, H. Stoici antichi, tutti frammenti. Trad. Roberto Radice. Milão: Bombiane, 2002. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -188- forma à matéria da realidade a partir da qual tudo subsiste, realizando todos os seus desejos por meio da matéria de modo a não expender nenhum esforço. Esta providência faz parte de um único λόγος que a informa, possuindo como causa uma lei divina que é deus ele mesmo. Na ausência deste motor do universo, nada poderia se mover no mundo. Deus é considerado bom e beneficia a todos os seres com a sua bondade e, com respeito ao mal, não se trata de não querer cometê-lo, mas ele simplesmente não o pode fazer. É necessário que, se os deuses existem, não apenas são dotados de alma (animantis), mas também de razão (rationis) e estão unidos entre eles em uma sociedade e em uma associação enquanto regem o cosmos (mundum) unitariamente como se fosse um estado comum, uma cidade (urbem). Disto deriva que a sua razão (ratio) não se diferencie daquela que compartilha o gênero (genere) humano e que, para nós e para eles, vale a mesma verdade e a mesma lei (VON ARNIN, 2002, p. 931). A diferença entre a razão que se encontra nos homens e a que é possuída pelos deuses consiste no fato de eles a possuírem em maior grau e a usarem de modo a realizar as melhores ações como, por exemplo, o ordenamento do cosmos. Sendo assim, tanto eles, quanto a natureza e os homens são razão (λόγος) já que todos são partes constituintes da mesma unidade. A analogia com a cidade, no trecho citado, deve-se à ideia de que o cosmos é composto por membros que, no caso dos homens e dos deuses, vivem sob um único direito e uma mesma lei. Quando se fala em natureza (φύσις), Crisipo a entenderia como um princípio gerador e motor dos seres terrestres, conduzindo à existência tudo que dela deriva. Segundo os fragmentos 1133 e 1134 de Galeno e Clemente de Alexandria (VON ARNIN, 2002, p. 933), ela é o fogo criador (πῦρ τεχνικὸν) que se move por obter, em si, a energia necessária. Com respeito à criação do mundo, ele foi criado por deus em seu benefício e dos seres animados que fazem uso da razão. É obra da providência que o mundo seja esférico porque esta é a mais veloz e movediça dentre as figuras e também é a mais necessária dado que todas as suas partes tendem ao centro, impedindo que o mundo se disperse no vazio. Conforme Galeno acerca da relação entre o νοῦς e o mundo: quem não está convencido da existência de um νοῦν dotado de um poder (δύναμιν) extraordinário que, penetrando a terra, está difuso em todas as partes? De fato, é visto nascerem animais, todos possuidores de uma constituição excelente. Há, talvez, uma outra parte do cosmos que seja menos privilegiada do que a terrestre? E, todavia, aqui parece refletir um certo intelecto proveniente dos corpos mais elevados, tanto é verdadeiro que se alguém os contempla, subitamente é tomado pela beleza da sua natureza: em primeiro lugar e sobretudo pela beleza do sol, depois daquela da lua e, em seguida, por aquela dos astros. Com efeito, tanto mais é pura a Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -189- substância corpórea dos astros quanto mais é privilegiado e refinado o intelecto que há nela se comparado com aquele dos seres terrestres. Pensando nestas coisas, tomame a crença de que também no ar que nos circunda se estenda um tal intelecto. Se este, por natureza, não participasse do esplendor do sol, não participaria nem mesmo do seu poder (VON ARNIN, 2002, p. 941). Sobre a relação entre a providência e a existência do mal no mundo, Crisipo defende no fragmento 1169 que apenas podem haver bens se também existem males, caso contrário não teríamos parâmetro para classificar um evento como bom ou mal. Ambos, assim, existem em recíproca oposição como, por exemplo, a justiça e a injustiça, sendo que um ato apenas pode ser considerado justo se sabemos o que é um ato injusto e o diferenciamos deste. Os males podem ser, erroneamente, considerados uma punição divina pelos homens que desconhecem a finalidade deste evento dentro do contexto de uma ordem maior. Tratando-se, então, de uma ignorância com respeito à economia universal (τὰ ὅλα οικονομίαν) e os fins da natureza. Segundo Alexandre de Afrodísia, os estóicos julgaram que nenhuma das coisas que existem (īakwn) escapa à providência e todas estão plenas de deus, o qual penetra os seres cuja formação se deve à sua vontade (ikhtīār) já que ele administra cada um deles. Eles estenderiam a noção de necessidade não apenas ao mundo supralunar, como também ao mundo sublunar, pois, como não há distinção entre deus e o mundo, tudo está tomado pela providência. O argumento dos estóicos contra a afirmação atomista de que tudo se dá por acaso e espontaneamente é que nada disto existe de modo definido, mas se apresenta diferente a cada momento. Ou seja, há uma inconstância e uma sucessão variada na apresentação das coisas que se dão espontaneamente e por acaso. A existência das predições (inḍārāt) e dos oráculos (ḥukkām) é prova da constância advinda do cuidado e da providência dos deuses, pois, caso fosse por acaso que se dessem os acontecimentos, não seria possível nenhum tipo de previsão. Ao assumirem a providência direta, os estóicos inserem a necessidade das causas do destino conforme o qual os eventos no mundo acontecem. Assim, cabe aos deuses que estão no mais elevado grau de entendimento (fahm) determinarem os acontecimentos, possibilitando as práticas de adivinhação. Caso eles não o fizessem, seria ou porque eles não desejam (lā muḥībb) e igualmente não podem (lā qādir) ou porque eles podem (qādir), mas não desejam beneficiar o que existe. De acordo com a crítica de Alexandre, nenhuma destas duas opções convêm aos deuses, pois a tese segundo a qual eles são impotentes para exercer a providência os tornaria mais fracos que os humanos. No caso da segunda, consiste na ação de um ser invejoso e negligente que recusa realizar atos louváveis mesmo sendo Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -190- capaz de os fazer. Portanto, ambas atitudes são estranhas aos deuses porque eles desejam e podem igualmente executar a providência. Alexandre concorda com a afirmação de que deus não apenas se ocupa com o mundo como também é causa (sabab) da sua existência e ordem a partir da reflexão e inteligência (rawīa wal-ʻaql). Contudo, o autor discorda da extensão da providência a todos os seres, pois, caso fosse assim, os acidentes que se aplicam a alguns indivíduos como, por exemplo, a prosperidade dos homens maus e a desventura dos virtuosos seriam responsabilidade dos deuses. Em Sobre o destino, o aristotélico levanta alguns argumentos a fim de questionar a concepção de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν dos estóicos9 que, para Alexandre, está diretamente vinculada à ausência da determinação do destino no âmbito das ações humanas 10. Deste modo, a providência não se aplicaria ao que está em nosso poder. No parágrafo XIV (DE AFRODISIA, 2008, p. 28-32), ele mostrará que há uma distinção entre a ação καϑ᾿ὁρμὴν e τὸ ἐφ᾿ἡμῖν e que não é considerada pelos estóicos. Isto, pois o assentimento dado por impulso11 é diferente do assentimento dado a partir de uma deliberação. No caso do primeiro, há uma imediata adesão à fantasia que é apresentada, enquanto que, no segundo caso, esta fantasia é submetida ao λόγος e ao julgamento (κρίσιν). Diferentemente dos animais, o homem possui como sua quididade (τὸ ειναι) o λόγος que é o juiz das fantasias produzidas pela imaginação. Portanto, deliberar é uma atividade segundo a qual o homem pode agir ora de um modo, ora de outro sem que nada, além do seu próprio λόγος esteja envolvido na escolha. Ao contrário de ser determinado por causas necessárias, o homem é causa e princípio das próprias ações. Desconstruindo a concepção estóica de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν, Alexandre considera se afastar de qualquer tipo de determinismo no âmbito ético. Vigo, em seu artigo Alma, impulso e movimento segundo Alexandre de Afrodísia, afirma que, mesmo não aceitando as concepções de providência e de τὸ ἐφ᾿ἡμῖν dos estóicos, Alexandre introduz inovações no esquema aristotélico assimiladas do estoicismo, como o reconhecimento da existência de uma capacidade de caráter impulsivo. Embora Aristóteles já tenha elencado, no conjunto das faculdades sensitivas, a capacidade de gerar desejos de 9 Cf. BRENNAN, Tad. A vida estóica. Trad. Marcelo Consentino, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2010, pp. 246-250. 10 Sobre a 'liberdade' no âmbito das ações humanas cf. ZINGANO, Marco. Ação, caráter e determinismo psicológico em Alexandre de Afrodisias. Journal of Ancient Philosophy vol.I, 2007. 11 Segundo a leitura que Alexandre de Afrodisia fornece dos estóicos, para eles o fato de que os animais ajam por impulso significa que a ação está sob o poder deles. É contra essa concepção que o filósofo argumentará. Cf. DE AFRODISIA, A. Du destin. Trad. de José Molina e Ricardo Salles. Promanuscrito, 2008, 181.5 - 182.14, pp. 26-28. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -191- diversos tipos que está diretamente vinculada à capacidade de gerar fantasias, isto não o leva a reconhecer a existência independente de uma capacidade impulsiva (τὸ ὁρμητικόν) não fundida com a faculdade sensitiva. Deste modo, segundo Vigo, Aristóteles não atribui a produção de movimento exclusivamente a uma faculdade, mas ora atribui à alma como um todo12, ora à capacidade desiderativa13, ora à faculdade sensitiva14. Acerca da incorporação, por parte de Alexandre, de uma capacidade impulsiva, afirma o autor: Do ponto de vista histórico, não pode haver dúvidas sobre o fato, já assinalado, de que com sua incorporação de uma capacidade impulsiva, Alexandre está levando a cabo uma estratégia de integração de aspectos centrais da influente e diferenciada concepção desenrolada pelos estóicos no âmbito da psicologia da ação. É certo que a atribuição aos estóicos da introdução de uma capacidade impulsiva ou bem de uma alma impulsiva (ψυχὴ ὁρμητική) não encontra maior respaldo textual do que uma indicação de Aécio que atribui a adoção da noção aos estóicos e aos epicuristas. No entanto, o papel central que assume a noção de impulso na teoria estóica das funções anímicas vitais, em geral e muito particularmente, em conexão com a explicação da origem do movimento voluntário e da ação, deve ser visto, sem dúvida, como um dos elementos que influenciam decisivamente na reformulação da concepção aristotélica que Alexandre leva a cabo (VIGO, 2009, p. 258-9). Vigo desenvolve uma discussão detalhada acerca do modo pelo qual esta capacidade impulsiva se relaciona com as outras faculdades no âmbito tanto da alma sensitiva quanto da intelectiva. Contudo, como esta discussão escapa aos propósitos deste trabalho, sublinharei apenas o fato de que não se deve compreender o agir por impulso como aquilo que determina que a ação está em nosso poder. Embora Alexandre incorpore, em sua explicação da produção do movimento tanto dos animais quanto dos homens, diferentes formas de impulso, no caso do homem, o que marca a sua quididade é a ação de deliberar, ou seja, de poder agir de um modo ou segundo seu contrário. Que ele assuma a existência da capacidade impulsiva, não significa que ela seja a fonte característica das ações humanas, mas o λόγος. Outro ponto em Sobre a providência a fim de contradizer a doutrina estóica é a distinção entre as coisas cuja existência é necessária (al-wajwdha darwrī) daquelas cuja existência é não-necessária. Deste modo, há um grupo de coisas para as quais é impossível existir em um certo momento. Os exemplos fornecidos por Alexandre são (DE AFRODISIA, 2003, p. 94): a diagonal não pode ser comensurável com o lado do quadrado, a díade não pode ser inferior à unidade, três não pode ser igual a quatro, as cores não podem ser entendidas, os 12 Cf. ARISTÓTELES. De anima I 2, 404b27-28 13 Cf. ARISTÓTELES. De anima III 10, 433b10-28; De motu animalium 6, 700b17-701a6 14 Cf. ARISTÓTELES. De anima III 9, 432b19-26; II 2, 413b2-4; II 3, 415a6-7 Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -192- sons não podem ser vistos e os deuses não podem ser mortais. A partir de tais exemplos, o autor pretende mostrar que, ao defenderem que deus se dedica a tudo, os estóicos caem em contradição, pois tornam possíveis as coisas que são, por natureza, impossíveis já que elas se transformariam em possíveis pelo fato de deus se dedicar a elas. Sobre isto: No mais, a tese segundo a qual os deuses escolhem, dentre as coisas, o possível é muito mais racional do que a tese segundo a qual o impossível é possível para os deuses. Pois, segundo a primeira tese, tudo é possível e é isto que entra na vontade de deus; e apenas entram na vontade de deus as coisas que podem existir nele e que são criadas à exclusão de outras, pois deus é sábio acerca da natureza do possível e do impossível em todas as coisas (DE AFRODISIA, 2003, p. 95). Decorre do posicionamento estóico dois contra-sensos: ou o que é impossível para nós também é impossível para os deuses e, assim, eles teriam o mesmo grau de limitação que os seres humanos; ou o que é impossível para nós é possível para os deuses e o impossível assume dois valores de verdade já que pode ser tanto impossível quanto possível15. Para Alexandre, tendo em vista que é impraticável, tanto por parte dos homens quanto dos deuses, dedicar a reflexão (rawīa) e a atenção (intibāh) a muitas coisas boas (ashīāʼ kathīra) ao mesmo tempo pelo fato de ser impossível representá-las (īaṣwr) contemporaneamente, os deuses não podem se dedicar a mais de um ser e, caso o façam, não conseguem contemplar a todos visto serem infinitos. Neste momento, a argumentação visa excluir tais possibilidades: que a providência divina se volte para todos os seres ao mesmo tempo ou que ela se dedique a cada um deles individualmente. Caso, ainda se insista que isto é válido para os deuses, seria indigno atribuir a eles uma ocupação contínua que é “estranha aos modos de agir dos indivíduos bem educados” (DE AFRODISIA, 2003, p. 98). Assim, como tal conduta não convém ao homem que leva uma vida temperante (iʻtidāla), e tendo em vista que os deuses são temperantes e sábios, igualmente não conviria a eles já que implica preocupação. Defender que não há nada mais nobre e mais grandioso nos atos divinos que a administração (idāra) do mundo é afirmar que deus existe porque sua solicitude com respeito a estes seres é o objetivo visado e o seu fim. No entanto, porque tudo que é em vista de outra coisa é inferior a ela, deus seria inferior às coisas em favor das quais ele exerce sua providência. 15 Este segundo contra-senso se baseia em uma impossibilidade lógica dada pelo princípio aristotélico do terceiro excluído. Este determina que a mesma coisa não pode possuir dois valores de verdade ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto (A v ~A). Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -193- 4 Teoria de Aristóteles acerca da Providência segundo Alexandre de Afrodísia Segundo Alexandre, para Aristóteles, a geração (kāun) do mundo e sua manutenção (salāma) não estão desprovidas da providência divina. É a potência originada (al-quwa almanabaʻata) do Sol, da Lua e dos astros a causa da geração e da conservação (ḥifẓ) das coisas que existem por natureza, por meio da ordem dos movimentos e da proporção das suas distâncias com respeito às coisas sublunares. O argumento em favor da influência dos astros é que, se a distância entre o Sol e a Terra fosse diferente da que existe ou se seu movimento de translação não fosse sobre a órbita inclinada (falak māʼil), nós não apenas seríamos privados de todas as coisas existentes como também não haveria possibilidade da geração dos animais, das plantas nem dos corpos simples que se asseguram devido ao movimento regular. Deste modo, se a distância do Sol fosse menor, a superfície da Terra se aqueceria de modo a tornar inviável a vida, como acontece com algumas partes que são inabitadas por causa do excessivo calor ou frio produzidos pelo afastamento ou proximidade do Sol. Portanto, a moderação (iʻtidāl) na distância entre o Sol e a Terra é a causa da manutenção das coisas que existem sobre ela, devendo-se aos movimentos regulares das estações do ano determinados pela posição do Sol. Isto também se aplica à Lua, pois caso ela estivesse mais próxima do que está, ela impediria a acumulação e a permanência das nuvens e da água pelo fato de os vapores ascendentes se dispersarem. Porque sua atual posição é oposta ao sol, as noites de inverno se tornam, graças a ela, quentes, pois sua posição corresponde, nesta época, à altura do Sol no verão; enquanto que em algumas épocas as noites são mais frias pelo fato de a Lua estar voltada para as extremidades da Terra. De modo geral, não haveria qualquer aproveitamento de sua função se ela não tivesse o movimento e a distância que possui. Ao contrário do que foi afirmado pelos atomistas, a causa da geração deve-se não ao acaso e ao espontâneo (bakht wa taliqāʻ nafshu), mas ao movimento e à perpetuidade (ḥaraka wa dawām) dos corpos divinos. De acordo com Alexandre, a tese de que a geração dos corpos recebe sua perfeição (tatimm) dos deuses refuta a ideia atomista de que eles não se dedicam a nós, pois é conveniente ao deus realizar os atos que lhe são próprios por estarem de acordo com sua essência (ḍāthu) e não pelo fato de terem como fim ou objetivo a conservação das coisas sublunares, tendo em vista que os atos mais nobres não possuem um fim outro que eles mesmos. Ou seja, a razão divina estima que suas ações se dêem em acordo com seu ser, Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -194- contudo, nenhuma delas parte do princípio de ser útil. Deus é útil para os seres apenas na medida em que eles são capazes de participar do bem. Assim, a providência divina, segundo o aristotélico, pode ser dividida em dois tipos (ḍarbīn): uma é a solicitude (iʻtināʼ) que vem dos deuses para os seres que são, por natureza, segundo a intenção primeira (al-qaṣd al-awwl), i.e., os corpos celestes; e a providência com respeito às coisas que estão abaixo da esfera da Lua. O primeiro modo de providência mantém uma relação com o segundo pelo fato de a ordem do mundo sublunar corresponder à ordem dos movimentos dos corpos divinos. Alexandre chega a afirmar que estes corpos são a causa da ação divina com respeito àquele. A providência voltada para o mundo sublunar não se exerce segundo a intenção primeira porque ela não é tal que seus atos particulares se direcionem (naḥw) às coisas mesmas. Caso assim o fosse, ela seria inferior a elas, pois tudo que é em vista de uma coisa é inferior e mais vil que esta; a existência dos deuses teria como finalidade a assistência dos indivíduos singulares. Portanto, não é verdadeiro que a ação que pertence a eles segundo a intenção primeira é a ordem e a conservação do mundo sublunar. O autor fornece uma analogia com o fogo a fim de explicar a relação entre deus e as coisas: Do mesmo modo que isto que é quente em sua natureza tem como efeito natural aquecer o que está em sua vizinhança e que possui a capacidade para receber esta influência, sem nada fazer para isto, a não ser perseverar e conservar o ato de sua natureza própria, do mesmo modo isto que está, por natureza, em uma tal condição – a saber esta na qual está Deus – resulta como conseqüência de todas as coisas que a ele são vizinhas, de qualquer modo que isto seja, e que possui nelas a capacidade de participar na sua potência, participam na medida em que há nelas a capacidade para receber este bem. Nisto, elas são comparáveis aos objetos que se aquecem devido à vizinhança com a coisa que é quente (DE AFRODISIA, 2003, p. 117). Portanto, é esta aptidão dos corpos vizinhos a deus para participarem da bondade divina que faz com que suas capacidades em potência (bil-quwa) se atualizem, pois torna-se inteligente aquilo que está em condição de participar da inteligência e se torna animado o que se predispõe a isto, de modo a aperfeiçoar sua natureza. Esta é a potência divina que mantém e estrutura os seres segundo uma certa proporção e ordem, sem deliberar e sem refletir sobre cada um, pois a natureza (ṭabiʻ) é desprovida de razão. Os seres particulares e separados são corruptíveis e passíveis à geração por causa das diferenças que existem entre os indivíduos das espécies. Por exemplo, as diferenças pelas quais Sócrates e Platão são distintos não resultam de uma intenção primeira natural, mas elas são acidentes necessários da matéria que realiza a função de substrato para a forma comum à espécie. Logo, a universalidade apenas subsiste nos indivíduos devido a incorruptibilidade da Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -195- espécie dada pela sucessão de seres não eternos. A fim de corroborar sua interpretação da doutrina aristotélica, Alexandre de Afrodísia se vale de duas passagens, uma do De caelo16 e outra da Metafísica17. Com respeito à primeira obra, o autor recorre à ideia dos corpos divinos se moverem circularmente e de modo perpétuo, dos quais depende a existência das outras coisas. Embora haja um tipo de providência, deus não opera no mundo sublunar tendo em vista que estes corpos já são divinos e possuem a perfeição advinda do movimento circular que é incorruptível. No caso da Metafísica, ele recorre ao livro Λ no qual Aristóteles trata da causa primeira e dos tipos de movimento que advém dos corpos divinos. A partir dele, Alexandre considera que a causa do movimento e alteração dos seres sublunares é o movimento eterno e contínuo dos corpos movidos circularmente graças à potência que aqueles possuem. Ao recorrer a estas obras, Alexandre não apenas aponta que há um modo de providência com respeito aos corpos celestes, como também, por meio deles, deus exerce sua providência indireta e essencial no âmbito sublunar. Diz-se essencial porque, por exemplo, caso sejam alterados o movimento e a distância entre a Terra e o Sol ou a Lua, alteram-se as condições de geração e corrupção dos seres sublunares. Ross coloca que, nas Quaestiones18, Alexandre de Afrodísia defende que tudo que está de acordo com o destino (καθ᾿ εἱμαρμένην) também está de acordo com a providência (κατὰ πρόνοιαν).19 Um ponto desta obra que se assemelha ao Sobre a providência é “a extensão do âmbito da providência para além dos céus” (ROSS, 2009, p. 193). Segundo Ross, a postura do aristotélico defendida nos textos que tratam da providência é que a ação dos deuses não se limita a ação eterna de mover o céu como também se estende, não acidentalmente, ao mundo sublunar. Deste modo, Alexandre tentaria descartar a possibilidade de que o Primeiro Motor se relacione κατὰ συμβεβηκός com o que está abaixo da esfera da Lua como se ele fosse causa da eternidade da série de gerações e corrupções na medida em que realiza sua atividade principal de motor celeste. Em Sobre a providência, há uma ênfase no fato de a providência se estender ao mundo sublunar se valendo do movimento dos corpos celestes para manter a série infinita de geração e corrupção e a conservação das espécies. 16 ARISTÓTELES. De caelo I 9, 279a25-30. 17 ARISTÓTELES. Metafísica Λ 7. 18 Cf. DE AFRODISIA, A. Quaest. 1.4, 10.32-11.1. 19 O que se estende unicamente ao âmbito físico já que o destino não se aplica às ações humanas, mas apenas ao que se realiza por meio das causas naturais no mais das vezes. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -196- Neste ponto, portanto, encontra-se um dos contrastes mais fortes da postura de Alexandre com a filosofia aristotélica, pois, nesta última, não é fácil fazer a mesma redução dos princípios explicativos (natureza, destino e providência). Não apenas a leitura tradicional de Met. XII contrasta com a posição de Alexandre como também a ideia mesma de natureza proposta por Aristóteles. Com efeito, a definição de natureza como princípio intrínseco de movimento e repouso não apenas parece ter sido formulada por Aristóteles para distinguir o mundo natural do artificial, como também para estabelecer uma distância entre sua própria concepção de natureza com a de Platão. Para Aristóteles, deus – ou o Primeiro Motor – não é causa de nada mais que da eternidade do movimento. De modo que, se a leitura tradicional de Met. XII que foi referida anteriormente está correta, há uma descontinuidade forte entre o posicionamento aristotélico com o de Alexandre no que concerne ao tema da assimilação do natural ao que é segundo o destino e à providência (ROSS, 2009, p. 194). Um dos aspectos importantes deste trecho é o reconhecimento da posição de Alexandre no que diz respeito ao âmbito de atuação da providência divina, embora se deva ter em mente que a teoria exposta em Sobre a providência distingui-se, em pontos importantes, da posição de Aristóteles. Como sugere Ross, Alexandre estabelece uma correlação entre natureza, destino e providência que possui origem no pensamento aristotélico, pelo fato de se basear em trechos das suas obras dedicadas à física e à metafísica, embora não tenha sido elaborada por Aristóteles. Um exemplo disto, é a distinção entre a providência que se exerce segundo a intenção primeira no caso dos corpos celestes, determinando, para eles, o movimento perpétuo e incorruptível e a exercida de modo secundário, direcionando-se aos corpos sublunares na medida em que a geração e a manutenção deles é condicionada pela posição e movimentos dos corpos divinos. Considerações Finais Conclui-se, portanto, que Alexandre de Afrodísia, em sua obra Sobre a providência, após negar a posição atomista que exclui a possibilidade de qualquer tipo de intervenção divina na ordem, tanto sublunar quanto supralunar, tendo em vista que os males no mundo não são obras de deus, fornece o primeiro passo na construção da sua teoria. Assim, a fim de elaborar aquela que, segundo ele, é a doutrina aristotélica, o autor, inicialmente assume, contra os atomistas, a existência dos deuses e um modo de providência exercido por eles, o qual será refinado ao longo do texto. O segundo passo de Alexandre é, ao questionar a doutrina estóica, negar que haja uma intervenção divina direta que se dedicaria aos corpos sublunares. Isto, pois a divindade Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 A Providência em Alexandre de Afrodísia -197- enquanto o ser mais perfeito, não pode ter como fim a ordem e a manutenção da vida destes seres, a partir do princípio enunciado pelo autor de que aquilo que existe em vista de algo é inferior e mais vil que o seu objeto. Portanto, concordar com o fato de o fim e objetivo divinos consistirem no bem-estar dos seres inferiores é colocar deus em uma posição abaixo deles. O outro problema em defender este tipo de intervenção direta é com respeito à presença do mal no mundo. Atribuise a responsabilidade pelos atos vis não àquele que realiza a ação, mas ao deus que, podendo intervir, não o fez. Assim, após os momentos de afirmação da providência e negação da interferência direta, Alexandre, recorrendo ao De caelo, mostra como há a providência no âmbito dos corpos celestes segundo a intenção primeira e, valendo-se da Metafísica, resolve o problema da interferência direta ao considerar que a providência divina com respeito ao mundo sublunar ocorre através do movimento e da ordem dos corpos celestes. Isto não de modo acidental, pois qualquer alteração neles implica em uma mudança nas condições de vida da Terra, como ilustra as considerações acerca da distância entre a ela e o Sol. Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 SOUSA, Meline Costa -198- Referências ACCATINO, P. Alejandro de Afrodisia intérprete del De anima de Aristóteles. Estud. Filos [online]. 2009, n.40, p. 53-77. ARISTOTELES. De anima. Trad. 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