Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 35 O riso dos anjos e o riso dos demônios considerações sobre O humor na obra de Milan Kundera Betzaida Mata Machado Tavares UFMG Resumo: Os romances de Milan Kundera, muito frequentemente, se desenrolam a partir de narrativas que expõem a fragilidade de representações harmônicas e totalizantes da realidade em suas mais diversas situações. Este artigo busca analisar como crenças, ideologias e comportamentos que pretendem ocultar imperfeições e contradições humanas são desfeitos na narrativa de Kundera por meio do humor e da ironia. Palavras-chave: Milan Kundera, humor, riso. A obra de Milan Kundera, em seu conjunto, é marcada por uma profunda desconfiança nas representações harmônicas e totalizantes da reali dade. Tudo o que busca ocultar contradições e imperfeições humanas é tratado com repulsa nos romances do autor, seja por meio das personagens e situações apresentadas, seja nas intervenções do narrador que, em seus romances, ao mesmo tempo em que narra, assume uma postura reflexiva diante do enredo e das figuras humanas que nele se envolvem1. 1 A narrativa de Kundera apresenta, muitas vezes, uma “voz autoral”. Em outras palavras, o próprio autor insurge no texto e, de forma metalingüística, tece suas considerações sobre o romance que escreve e reflete, a partir do enredo, sobre questões existenciais e elementos de sua própria biografia. Tavares, Betzaida Mata Machado 36 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera Na narrativa de Kundera, o humor costuma ser o meio privilegiado pelo qual se desfazem crenças, ideologias e comportamentos que sugerem uma totalidade harmônica, sem conflitos nem contradições. Antes de partirmos para a nossa análise, convém deixar claro o que se entende por pelo termo “humor”. É o próprio Kundera, em coro com Otávio Paz, quem nos dá a chave para a compreensão do humor em sua obra: O humor não é o riso, a caçoada, a sátira, mas um tipo especial de comicidade que, segundo Paz (e é a chave para compreender a essência do humor), “torna ambíguo tudo o que atinge”.2 Dessa maneira, o humor, para que seja compreendido e provoque o riso, pressupõe a suspensão de um julgamento moral. O que não significa imoralidade, mas uma moral que se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente sem compreender 3. Por isso mesmo, desfaz toda verdade preexistente e toda idéia absoluta de bem e de mal: O humor: centelha divina que descobre o mundo na sua ambigüidade moral e o homem em sua profunda incompetência para julgar os outros. O humor: embriaguez da relatividade das coisas humanas; estranho prazer nascido da certeza de que não há certezas.4 Vejamos, então, como o humor nas obras de Milan Kundera evidencia essa ambigüidade moral presente nas relações humanas. Em seus romances é comum a presença de personagens que parecem não vacilar nunca, como se o mundo se apresentasse como um todo coerente e fosse moldado às suas próprias convicções. Munidos de suas certezas, essas personagens são duras e inflexíveis. Em geral, é a partir delas que o humor se faz presente na narrativa, dissolvendo a rigidez da armadura com que se apresentam e revelando 2 KUNDERA, Milan. Os testamentos traídos: ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 5. 3 Idem. p. 7. 4 Idem. p. 30. Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 37 uma personalidade frágil, contraditória e sujeita a se expor ao ridículo. O riso provém daí, de uma inflexibilidade que, de repente, confrontada com uma situação à qual não pode se adaptar, mostra-se subitamente desajeitada: Se, pois, quisermos definir aqui a comicidade, aproximando-a de seu contrário, caberia opô-la à graça mais do que à beleza. É mais rigidez que fealdade.5 Por meio do narrador, de outra personagem ou de uma situação posta, o humor se apresenta como um punhal que rasga a cortina de uma realidade rígida, coerente e plasticamente perfeita, evidenciando sua fragilidade e escancarando o ridículo daquilo que pretende se impor. Sua lâmina não poupa ideologias políticas, religiões, sequer a própria idéia de Deus. Em um dos capítulos de A Insustentável Leveza do Ser, o narrador tece considerações sobre a existência de um Deus que cria o homem à sua imagem e semelhança. Interessante observar como, partindo desse pressuposto, tudo o que há de sagrado e sublime na idéia de divindade é esvaziado, Deus é trazido para o plano do baixo corporal: Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus e então Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele. (...) A merda é um problema teológico mais espinhoso que o mal. Deus deu liberdade ao homem e, portanto, podemos admitir que ele não seja responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, e somente a ele.6 Essa imagem rabelaisiana, que põe lado a lado Deus e a merda, rebaixando o que pertence ao plano do sublime, acaba por expor aquilo que se pretende esconder, uma vez que qualquer idéia de perfeição precisa encobrir e negar aquilo que destoa do modelo harmônico para que se sustente: Das duas uma: ou a merda é aceitável (e nesse caso não precisamos nos trancar no banheiro!) ou a maneira como fomos criados é inadmissível. 5 BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 21. 6 KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. São Paulo:Cia das Letras, 1999. p. 278. Tavares, Betzaida Mata Machado 38 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera Segue-se que o acordo categórico com o ser tem por ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde cada um se comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch. (...) o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda, tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.7 O riso aqui, mais reflexivo que alegre, é provocado por aquilo que a idéia tem de grotesco: degrada o que é sublime, rebaixa, traz para a terra, para o baixo corporal aquilo que se impõe por uma elevação. 8 Nessa obra, como em outras de Milan Kundera, a imagem do grotesco é um elemento fundamental para exibir o que a existência humana tem de inaceitável e provocar um riso irônico, incrédulo, que desconfia dos arranjos homogêneos. Em outras palavras, é o riso, como foi descrito por Bergson, que se dirige à inteligência pura e necessita que haja uma insensibilidade momentânea: O riso não tem maior inimigo que a emoção. (...) Numa sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso.9 É a presença desse riso na obra de Milan Kundera, um riso provocado por um distanciamento emocional que denuncia os artifícios dos arranjos sociais, que será analisada neste artigo. Especificamente, buscaremos entender como o humor em sua obra produz uma fenda nos sentidos unívocos, lineares e homogêneos que são construídos em diferentes instâncias da vida social, tais como obras literárias, projetos políticos, visões religiosas e concepções filosóficas. 7 Idem. p. 281. 8 Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais. 3. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1993. 9 BERGSON, H., op. cit. p.3. Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 39 Como ponto de partida e chave de compreensão da presença do riso na obra de Milan Kundera tomaremos a sexta parte de O livro do riso e do esquecimento intitulada “Os anjos”. Nela, o autor apresenta duas formas distintas, na verdade antagônicas, de se rir. Na origem, encontra-se o riso do diabo: aquele que introduz a incongruência, que quebra a ordem esperada das coisas. O riso do anjo seria uma reação a essa forma de rir do diabo: ao compreender que esse riso [o do diabo] era dirigido contra Deus e a dignidade de sua obra10, resolveu imitar seu adversário emitindo os mesmos sons entrecortados, descontínuos, em intervalos acima de seu registro vocal. O sentido daqueles sons, porém, era outro: o riso do anjo é o riso que se alegra com as coisas serem exatamente como elas são. De um lado, o riso em acordo com o sentido das coisas, que reforça ele próprio esse sentido dando-lhe leveza e harmonia. De outro, o riso que subverte a ordem, que apresenta o mundo como um nonsense onde as coisas perdem sua estabilidade e segurança, mas ao mesmo tempo, tornam-se mais leves e menos temíveis: [No riso do diabo] existe alguma coisa de mal (as coisas de repente se revelam diferentes daquilo que pareciam ser), mas existe nele também uma parte de alívio salutar (as coisas são mais leves do que pareciam ser, elas nos deixam viver mais livremente, deixam de nos oprimir sob sua austera seriedade).11 Mais uma vez é o riso que segue a tradição rabelaisiana. Um riso ambivalente que ao inverter a ordem das coisas promove um esvaziamento do que há de terrível e ameaçador em nossa condição humana: a morte, as desgraças, as catástrofes. Ao mesmo tempo, um riso que representa a resignação diante do inevitável: Uma grande gargalhada à beira do precipício, eis o que Rabelais nos oferece. Esse riso, ele o oferece, de início, a seus contemporâneos, como antídoto aos terrores e à angústia: se tudo se reduz a um monte de borra, nossos medos são vãos e é melhor rir deles.12 10 KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 74. 11 Idem. 12 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003. p. 281. Tavares, Betzaida Mata Machado 40 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera O riso em Milan Kundera tem esse caráter ambivalente. Cético, avesso a qualquer idealismo ou utopia que nos redima, é ao mesmo tempo profundamente compassivo com as imperfeições humanas. Esperamos que neste artigo se possa evidenciar não apenas o caráter cortante de seu humor, como também sua compaixão com as personagens humanas que ele cria em suas narrativas, e que, subitamente, mostram-se ridículas. Escolhemos aqui situações extraídas de três romances do autor: O livro do riso e do esquecimento, A brincadeira e A lentidão. Apresentaremos primeiro a realidade harmônica das situações, para posteriormente analisarmos como o autor, por meio da ironia e do humor, provoca uma fissura nessa perfeição plástica, evidenciando as deformidades e absurdos de cada uma das situações e criando um efeito cômico. Em outras palavras, primeiro apresentaremos o riso dos anjos, depois, o riso dos demônios. I – OS ANJOS Marketa é uma jovem estudante que vive sob o regime socialista da Tchecoslováquia no final da década de 1940. De uma credulidade ingênua, que leva tudo a sério, está, conforme define o narrador, em perfeita consonância com o “espírito da sua época”. Seu riso expressa a alegria de quem está satisfeita com a vitória da classe trabalhadora, uma alegria grave, uma alegria ascética e solene, em outras palavras, a Alegria.13 Sua inocência, ao mesmo tempo em que reforça sua fidelidade à causa, em alguns momentos representa um entrave às atividades de seus companheiros, sobretudo quando a moça presencia alguma prática política decorrente da máxima “o fim justifica os meios”. Por esse motivo, seus companheiros nas seções de crítica e autocrítica, concluíram que seu ardor deveria ser consolidado com um conhecimento de estratégia e tática do movimento revolucionário. Marketa, então, foi encaminhada em suas férias para um estágio de formação do Partido. Do estágio, envia uma carta a seu namorado Ludvik transbordando de aprovação sincera a tudo que estava vivendo: KUNDERA, M. A brincadeira. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 40. 13 Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 41 (...) tudo a encantava, inclusive os quinze minutos de ginástica matinal, os relatórios, as reuniões de discussão, as cantigas; escreveu que lá reinava um “espírito sadio”; e, por zelo, acrescentou que a revolução no Ocidente não tardaria.14 *** Gabrielle e Michèle são duas jovens americanas que estudam teatro num curso de férias em uma pequena cidade na costa mediterrânea. A professora, Mme Raphael, tem predileção pelas duas moças que sempre a olham atentamente durante sua exposição e anotam todas as suas observações. Por isso, escolhe-as para preparem uma exposição sobre a peça Rinoceronte, de Eugène Ionesco. As duas moças caminham e discutem o sentido de todas as personagens, na peça, transformarem-se em rinocerontes. “É antes de tudo um símbolo”, diz Michèle; “Você não acha que é um símbolo fálico?”, propõe Gabrielle. Eis que, em meio à discussão compenetrada, Michèle apresenta sua idéia como um grande insight: “O autor quis criar um efeito cômico!”. Essa idéia cativa Gabrielle que diminui o passo. Sua amiga a acompanha na desaceleração da marcha até que as duas, por fim, estancam. As duas moças se olharam, felizes com a própria audácia, e o canto de suas bocas se estremecia de orgulho. Depois, de repente, elas começaram a emitir sons agudos, curtos, descontínuos, muito difíceis de descrever com palavras.15 Em outras palavras, elas riram o riso dos anjos. *** Chechoripsky, ou o “sábio tcheco” como o narrador o apelidou, era diretor de uma seção do Instituto de Entomologia e, em 1968, quando o exército russo tomou seu país, consentiu que adversários do regime utilizassem uma sala de sua seção para reuniões clandestinas. Por esse motivo, foi expulso do Instituto e passou a trabalhar como operário em seu prédio até o fim da 14 15 Idem. p. 43. KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 68. Tavares, Betzaida Mata Machado 42 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera ocupação russa em 1989. Seis meses depois, foi convidado para proferir uma palestra em um Congresso de Entomologistas na França. Orgulhoso da sua condição de perseguido, o sábio tcheco põe-se a discursar. Desculpa-se pela emoção que sente por depois de quase vinte anos poder se dirigir a uma assembléia de pessoas movidas pela mesma paixão que o anima. Conta que vem de um país onde as pessoas eram privadas do próprio sentido de sua vida apenas por dizerem o que pensa. Fala sobre sua experiência como operário (não há nada de humilhante nisso, ressalta), mas lamenta ter sido privado do contato com a ciência (uma paixão e um privilégio que lhe foi recusado durante vinte anos). O sábio tcheco emociona-se, emociona a platéia e volta ao seu lugar: (...) sabe que está vivendo o maior momento de sua vida, o momento de glória, sim, de glória, por que não dizer essa palavra, sente-se grande e belo, sente-se célebre e deseja que sua caminhada e até a cadeira seja longa e nunca termine.16 *** Três situações em que as personagens são profundamente convictas de suas idéias e orgulhosas de sua própria condição: orgulhosa do grupo ao qual pertence, no caso de Marketa; da maneira como são capazes de pensar e interpretar suas leituras e de como estão em consonância com o que Mme Raphael espera delas, no caso de Gabrielle e Michèle ou, por fim, no episódio do “sábio tcheco”, orgulhoso por aquilo que sofreu no passado e por conseguir a cumplicidade da platéia à qual se dirige. Os três casos acima têm em comum a harmonia entre o pensar e o agir das personagens e, podemos ir mais longe, uma harmonia em relação à própria resposta que a realidade externa dá às suas ações, ao menos na forma como as personagens entendem essa realidade externa: no estágio de formação do Partido tudo é encantador, as amigas conseguem encontrar a chave de interpretação da peça “Os rinocerontes” e o sábio tcheco emociona a platéia à qual ele se dirige. Contudo, nesses três casos serão inseridos elementos que quebram a 16 KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. p. 55. Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 43 harmonia da ordem. Mais do que isso: elementos que rasgam o cenário estabelecido evidenciando uma ordem que, na verdade, não é tão harmônica assim. É o momento da narrativa em que se apresenta o riso dos demônios. II – OS DIABOS Ludvik, como Marketa, vive o espírito de sua época, ou seja, a Tchecoslováquia pós 1948: participa dos círculos de estudos da faculdade, compartilha, com seu considerável senso lúdico, da alegria revolucionária, e chega mesmo a acreditar na Revolução na Europa Ocidental. Contudo, nas seções de crítica e autocrítica promovidas pelos círculos de estudos seus companheiros repreendem certos resíduos de individualismo presentes em sua personalidade. Repreendem também sua ironia e seu sorriso que “sorri como se pensasse em alguma coisa que não quer contar”. Ludvik, com seu “considerável senso lúdico”, é dado às pilhérias, ao deboche. Nisso ele destoa do “espírito de sua época”: Faltava aos meus gracejos um pouco de seriedade, e a alegria contemporânea não suportava as pilhérias, nem a ironia.17 Quando sua namorada é convocada para fazer um estágio de formação do Partido durante as férias, Ludvik se aborrece, já que ele havia planejado passar esse período a sós com Marketa. Contudo, o que o mais o irrita é a empolgação da moça com o curso: fiquei morto de ciúmes ao ver que Marketa não participava da minha aflição, não se irritava em absoluto com o estágio e, pior ainda, teve coragem de me dizer que se alegrava antecipadamente! 18 Por esse motivo, e apenas por isso, Ludvik ao receber o cartão-postal de Marketa, “para feri-la, chocá-la, desnorteá-la”, respondeu-lhe com as seguintes palavras: O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trotski! Ludvik. O espírito da época, que não suportava forma alguma de ironia, foi implacável ao punir Ludvik. Tendo seu cartão-postal rastreado pelos organizadores do estágio de formação, Ludvik passou por uma série de julgamentos que culminaram com sua condenação ao trabalho nas minas de carvão em Ostrava. 17 KUNDERA, M. A brincadeira. p. 40. 18 Idem. p. 43. Tavares, Betzaida Mata Machado 44 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera *** Para falar sobre a peça Rinoceronte, Gabrielle e Michèle encaixaram um tubo de papelão no nariz que imitava o chifre de um rinoceronte. Assim, faziam sua exposição sobre a peça sacudindo os chifres postiços. A professora, que não escondia sua preferência pelas duas alunas, estava maravilhada. Os outros alunos sentiam uma espécie de compaixão constrangida diante daquela apresentação que era, no mínimo, desajeitada. Eis que Sarah, uma moça judia que “detestava cordialmente” a dupla, levantou-se de seu assento e dirigiu-se para onde estavam as duas estudantes. Solenemente, tomou impulso e deu um pontapé no traseiro, primeiro de Michèle e em seguida de Gabrielle. A turma irrompeu numa gargalhada e Sarah voltou para seu banco. O efeito cômico da peça de Ionesco acabara de ser demonstrado, não por meio do que Michèle e Gabrielle haviam preparado, mas pela humilhação delas próprias que vertiam lágrimas pelos olhos e se contorciam “como se tivessem câimbras no estômago” enquanto seus colegas riam. *** Pouquíssimos instantes depois de se emocionar com a fala proferida pelo “sábio tcheco” e de aplaudi-lo efusivamente, a platéia, num extremo constrangimento, silencia-se. Chechoripsky, imerso demais em sua glória, não se dá conta do que ocorreu: o silêncio emocionado tinha-se convertido em silêncio embaraçado. Na verdade, o “sábio tcheco”, estava tão absorvido pela sua condição de perseguido político que se esquecera de proferir sua palestra a respeito de novas moscas, razão pela qual fora convocado para aquele Congresso. O constrangimento pouco a pouco deu lugar ao riso, não aquele que está em consonância com a situação, mas o riso que desestrutura a cena. O herói que comovera a platéia havia se transformado em figura risível num intervalo de pouquíssimos segundos. *** O cômico decorrente das situações apresentadas tem um duplo caráter: de destruição e de revelação. De um lado, nos três casos, o riso é provocado por um fator que desarranja uma cena posta: a galhofa no bilhete de Ludvik, o chute desferido nos traseiros de Michèle e Gabrielle e a constatação de que “o sábio tcheco”, apesar de uma bela fala, não havia proferido a palestra que era justamente a Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 45 razão pela qual havia sido convidado para aquele congresso. Portanto, em cada uma das cenas, o elemento cômico desmancha uma dada ordem das coisas. Contudo, o riso que decorre dessas três situações não tem um caráter apenas de destruição. Ao desmanchar o arranjo das coisas estabelecidas, acaba por revelar tanto a fragilidade da ordem quanto os elementos que ela pretende ocultar, mas que, na verdade, estão lá, presentes nas relações entre pessoas nas mais diversas instâncias sociais. Como afirma Alberti, o riso revela que o não normativo, o desvio e o indizível fazem parte da existência: O riso e o cômico são indispensáveis para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade plena. Sua positivação é clara: o nada ao qual o riso nos dá acesso encerra uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem estabelecida.19 Dessa forma, o riso, ao mesmo tempo em que desfaz a ordem estabelecida, é capaz de transcendê-la, dando a ver uma realidade que o instituído e o ordenado não são capazes de apreender. Por exemplo, dentro da lógica do “espírito da época” de Ludvik e Marketa, ou seja, dentro da ordem instituída em que vivem, o estágio de férias, com todas as suas atividades, é revestido de nobreza e elevação, já que se destina a preparar ou aprimorar o espírito revolucionário dos jovens. Assim, tudo o que ali acontece, até mesmo as ginásticas matinais, é iluminado pela áurea otimista do espírito revolucionário. A brincadeira de Ludvik, embora extremamente despretensiosa, pois não tem nenhum caráter conspirador, é repreendida com violência justamente por retirar do Partido e de suas atividades a atmosfera sagrada com o que o discurso estabelecido pretendia revesti-lo. Considerações finais: o riso que redime O riso dos anjos é o riso de quem dança em círculo. Para Kundera, o círculo ao mesmo tempo em que representa unidade e harmonia (a roda iguala a todos), tem a forma fechada. Por isso, exclui, ignora e expulsa qualquer um 19 ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 12 Tavares, Betzaida Mata Machado 46 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera que não for adequado à sua conformação. Assim, o formato do círculo representa todo ideal que, perfeito e harmônico em sua forma, despreza e coloca para fora de sua lógica imperfeições e incongruências humanas. É a vontade de integrar-se a um círculo, mais que qualquer convicção racional, que leva as pessoas a aderirem a ideologias, a abraçarem causas e a participarem de movimentos: Mme. Raphael (...) também gostaria de dançar numa roda. Durante toda a vida procurou um círculo de homens e mulheres aos quais ela pudesse dar a mão para dançar em círculo. Procurou primeiro na Igreja Metodista (seu pai era fanático religioso), depois no partido comunista, depois no partido trotskista, depois no trotskista dissidente, depois no movimento contra o aborto (a criança tem direito à vida!), depois no movimento pela legalização do aborto (a mulher é dona do seu corpo!) (...)20. Após passar pelos mais diversos círculos, Mme Raphael busca ficar em perfeita harmonia com seus alunos e com eles constituir uma unidade: o que significa que ela os obriga sempre a pensar e a dizer a mesma coisa que ela. Porque o círculo, em sua forma perfeita, não admite a dissidência e, se, de um lado, iguala a todos em sua forma horizontal e integradora, de outro, é implacável com quem questiona essa forma (lembremos que Ludvik foi condenado a trabalhar nas minas de carvão por causa de uma brincadeira despretensiosa que fez com sua namorada). É interessante porque justamente no episódio de Mme Raphael é evocada a peça de Eugène Ionesco em que as pessoas de uma pequena cidade, paulatinamente, vão se transformando em animais truculentos. Nessa peça, as pessoas se transformam em rinocerontes por opção e apresentam argumentos para tal transformação: voltar à pureza original, viver de acordo com os instintos, “reconstituir a base da vida”, “voltar à integridade primordial.”21 Examinemos um pouco melhor como isso ocorre em O rinoceronte. 20 KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 76 21 Esses termos são utilizados pelo personagem Jean, no momento em que inicia sua transformação em Rinoceronte. Cf. IONESCO, Eugène. O rinoceronte. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 155 Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 47 Eles estão rodando em volta da casa. Estão brincando! Crianças grandes! 22. Essa é a exclamação do personagem Dudard ao observar os animais pouco antes dele próprio converter-se em um deles. A transformação das pessoas em rinocerontes na peça de Ionesco nos remete à roda de Kundera que, em sua forma fechada e homogênea, iguala a todos, suprime todas as diferenças e restabelece a inocência e a pureza supostamente perdidas. O desejo de fazer parte da roda e, assim, igualar-se aos outros é também o medo da solidão do indivíduo que, por não ser parte de um todo, sente-se ameaçado pela realidade externa. É esse medo que leva as pessoas a perderem suas idiossincrasias e se transformarem em animais que, embora truculentos e desajeitados, podem se reconhecer em seus pares e se integrarem aos outros. O abandono e o desespero de quem não se integra a essa roda são expressos no final da peça por meio da fala de Bérenger, o único personagem que não aderiu à transformação: Ah! Como eu me arrependo. Devia ter seguido todos eles enquanto era tempo. Agora é tarde demais. (...) Infelizmente nunca serei um rinoceronte, nunca, nunca! (...) Como sou feio! Infeliz daquele que quer conservar sua originalidade!23 *** “Eu também dancei em roda”. Essa afirmação, feita pelo próprio Kundera, dá um significado próprio à ironia presente em sua obra em relação aos projetos harmônicos e totalizantes. Ao afirmar que também dançou em roda, não é possível pensar em um narrador que, colocando-se fora das questões humanas que apresenta, destrói com seu humor modelos, pensamentos e personagens mantendo-se, ele próprio neutro e incólume. Ao contrário disso, ele compromete-se o tempo inteiro com seu enredo, com suas personagens e com as reflexões existenciais que apresenta. Vejamos de forma mais detalhada o que diz o autor: Eu também dancei em roda. Isso foi em 1948, os comunistas acabavam de triunfar em meu país (...) e eu segurava pela mão 22 IONESCO, E., op. cit. p. 195. 23 IONESCO, E., op. cit. p. 236. Tavares, Betzaida Mata Machado 48 O riso dos anjos e o riso dos demônios: considerações sobre o humor na obra de Milan Kundera ou pelos ombros outros estudantes comunistas. (...) Depois, um dia, eu disse alguma coisa que não devia dizer, fui expulso do partido e tive que sair da roda. Foi então que compreendi a significação mágica do círculo. Quando nos afastamos da fila, ainda podemos voltar a ela. A fila é uma formação aberta. Mas o círculo torna a se fechar e nós o deixamos sem retorno.24 A partir daí, seu humor apresenta-se carregado de profunda humanidade: o narrador não se exclui daquilo que provoca o riso e, ao afirmar que também dançou em roda, chega mesmo a criar uma cumplicidade com as personagens que, fechadas em seus círculos, são de repente expostas a uma situação ridícula. Mas “o riso do diabo” presente na obra de Kundera representa mais que isso. É o riso de quem, jogado para fora da roda, ao mesmo tempo em que percebe a fragilidade de seu arranjo, sente nostalgia do tempo em que integrava o círculo: Não é por acaso que os planetas se movem em círculo e que a pedra que se desprende de um deles afasta-se inexoravelmente, levada pela força centrífuga. Semelhante ao meteorito arrancado de um planeta, eu saí do círculo e, até hoje, não parei de cair. Existem pessoas a quem é dado morrer no turbilhão e existem outras que se arrebentam no fim da queda. E estes outros (entre os quais estou) guardam sempre consigo uma tímida nostalgia da roda perdida, porque somos todos habitantes de um universo onde todas as coisas giram em círculo.25 Dessa maneira, o riso que desmancha a forma do círculo e expõe suas incongruências é ao mesmo tempo a redenção daqueles que, jogados para fora da roda, sentem nostalgia de um passado em que era possível integrar-se aos anjos e encontram no riso o lenitivo para suportar a permanente queda em que se lançaram no momento em que saíram do círculo. O riso do diabo, portanto, seria, ao mesmo tempo, a desforra e o consolo de quem foi expulso do paraíso. 24 KUNDERA, M. O livro do riso e do esquecimento. p. 78. 25 KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. p. 78-79. Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura e humor, no 37, p. 35-49, 2º sem. 2008 49 The laughter of the angels and the laughter of the devils: considerations on humor in the novels of Milan Kundera Abstract: The novels of Kundera frequently reveal the fragility of representations of a harmonious and totalizing reality. This article discusses how the beliefs, ideologies and behaviors that hide human imperfections and contradictions are destroyed by Kundera through humor and irony. Key-words: Milan Kundera, humor, laughter. Recebido em: 10/06/2008 Aprovado em: 14/10/2008