TUBERCULOSE
SAÚDE
Uso da biotecnologia para o desenvolvimento de uma vacina de DNA que previne e cura a doença
Célio Lopes Silva
Professor Titular de Imunologia
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
[email protected]
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a sua marcha desafiadora a tuberculose atingiu,
nos tempos atuais, 10 milhões de casos novos e 3
milhões de mortes por
ano, sendo 18,5% de todas as mortes em adultos entre 15/59
anos - a fase mais produtiva da população mundial. Cerca de metade dos doentes nunca tiveram tratamento. Segundo a Organização Mundial da Saúde
(OMS), 32% da população mundial está
infectada com o bacilo de Koch (Mycobacterium tuberculosis) e, portanto, com
maior risco de adoecer por reativação e,
também, por infecção exógena. Entre
1850 e 1950 um bilhão de pessoas
morreram de tuberculose. Na corrente
década, 1990-1999, 300 milhões de novas pessoas estão sendo infectadas, 90
milhões de novos casos da doença estão
aparecendo e 30 milhões morrendo.
Mais pessoas morreram de tuberculose
em 1996 do que em qualquer ano da
história.
Devido à gravidade da situação e a
facilidade da proliferação, já que o bacilo contamina pelo ar, a OMS decretou,
em abril de 1993, Emergência Global
contra a Tuberculose, e desde então
vem desenvolvendo políticas para conter o crescimento de casos. De acordo
com o relatório publicado, que também
criticou a falta de estratégias para o
controle da doença, mais da metade dos
novos casos registrados em 1997 ocorreu em países do sul da Ásia, África e
América Latina.
Apesar de haver drogas eficientes
para o combate à tuberculose, a vacinação representa ainda a melhor alternativa para a proteção dos indivíduos contra
essa doença. A vacina BCG (Bacilo Calmette-Guérin), uma vacina viva baseada
em Mycobacterium bovis atenuada foi
introduzida para uso humano em 1921.
Embora venha sendo amplamente utili-
zada, sua eficácia permanece controversa. Tem sido demostrado, por meio de
estudos clínicos, que o nível de proteção
alcançado em diferentes populações varia de 0 a 75%; além disso, a utilização de
uma importante ferramenta de diagnóstico, o teste de hipersensibilidade cutânea,
é dificultado em indivíduos que foram
vacinados com BCG. No que concerne à
segurança do BCG existe uma preocupação crescente do uso de organismos
vivos em indivíduos imunocomprometidos, fato especialmente agravante se considerarmos que no caso da tuberculose a
co-infecção pelo HIV têm se tornado
cada vez mais comum. Por todos os
motivos acima expostos, a procura por
uma alternativa de imunização mais segura e eficaz têm nos levado a investir no
desenvolvimento de nova vacina contra
tuberculose
Felizmente, na última década, os avanços na tecnologia de desenvolvimento de
vacinas permitiu a introdução de novas
estratégias para a obtenção e produção
de antígenos, assim como foram otimizadas novas maneiras de se administrar e
apresentar esses antígenos para as células do sistema imunológico. Estas estratégias abriram caminho para inovações,
particularmente no contexto do desenvolvimento de vacinas mais seguras, eficazes e polivalentes. Entre estas estão as
vacinas gênicas ou de DNA, consideradas
de terceira geração (Silva 1997, Silva
1998, Silva e Lima 1998).
A vacina de DNA, que está revolucionando o campo, é baseada num pedaço
do código genético do agente causador
da doença. Aplicado por meio de injeção
intramuscular, esse DNA cria condições
para a produção da proteína antigênica
pelas próprias células do indivíduo vacinado. Essa vacina é hoje a maior esperança para o combate a doenças infecciosas
para as quais ainda não se tem prevenção
segura, como herpes, Aids, malária, he-
patite, esquistossomose,
infecção, os trabaVantagens da vacina gênica
dengue e a tuberculose.
lhos foram direcioOs genes que são •
nados visando o
Previne o estabelecimento da infecção e da doença
responsáveis pelo códiuso dessa mesma
•
Elimina a infecção causada pelo bacilo da tuberculose
go genético para síntese
vacina no combate
Cura casos crônicos e doença disseminada
das proteínas antigêni- •
direto à infecção já
Resolve casos de tuberculose causada por bactérias altamente
cas hsp65, hsp70, •
estabelecida, como
resistentes aos medicamentos usados no combate à doença
MPT83, ESAT6, ML36,
se fosse um agente
Impede a reativação da doença quando os animais são
MT38 e ML10, do bacilo •
terapêutico ou uma
da tuberculose foram
droga antimicobacsubmetidos a uma imunodepressão pelo tratamento com drogas
clonados e ligados a
teriana. Este novo
imunossupressoras
outros fragmentos de •
enfoque surgiu das
Permite que o período de tratamento efetivo contra a tuberculose
DNA denominados plasseja encurtado de 8 para 2 meses pela administração concomitante dificuldades acima
mídeos (Lowrie et al,
apresentadas e do
de medicamentos e aplicação da vacina
1994). Os plasmídeos
fato de que entre
usados em vacinas gênium terço e metade
cas possuem outras sequências de DNA
de um trabalho extremamente delicado e
da população mundial já estar infectada
que são necessárias para: (i) seleção e
que leva de seis a oito meses para o teste
com o bacilo da tuberculose. Em torno de
replicação em bactérias; (ii) promotores
de cada antígeno.
5 a 10 % desses indivíduos desenvolvem
especiais para processos de transcrição e
Do ponto de vista científico, a revelaa doença. Nessas condições, o uso de
tradução; (iii) genes que conferem resisção dos resultados no encontro de 1994
uma vacina não como preventiva da
tência a antibióticos; e (iv) sequências
representou um enorme êxito. O próxiinfecção mas que tenha atividade teraespecíficas que permitem a expressão
mo passo agora seria experimentar a
pêutica contra indivíduos infectados segênica em células de mamíferos ou ouvacina em outros modelos animais, como
ria a solução.
tras bactérias. Os plasmídeos, contendo
cobaias, coelhos e macacos. Depois desOs resultados mostraram que a admiseparadamente cada um dos genes closes experimentos a vacina poderia ser
nistração da vacina gênica em animais
nados, foram introduzidos em uma bactestada em humanos em três fases distinpreviamente infectados com M. tubercutéria hospedeira denominada Escheritas. Na fase 1 (utilizando mais ou menos
losis virulenta previne o desenvolvimenchia coli, por um processo denominado
50 indivíduos) seria verificada a toxicidato da doença e elimina a infecção (figura
de transformação bacteriana. A nova bacde; na fase dois (em torno de 300) seriam
2) (Lowrie et al, 1999). Além disso, quantéria passou a produzir os plasmídeos em
observados os efeitos imunológicos; e na
do a vacina é administrada em estados
larga escala e após um processo de
fase 3 (com cerca de pelo menos 150.000
mais avançados da doença, ou mesmo
purificação a vacina de DNA estava pronpessoas) seria verificada a eficiência da
quando ela está disseminada por todo o
ta para ser usada (Silva 1997).
vacina numa determinada população sob
organismo do animal, ela também tem a
Os primeiros resultados positivos da
risco de tuberculose, e acompanhada por
propriedade de curá-los. A infecção por
vacina gênica brasileira contra tuberculopelo menos 12 anos. Ao todo esse proM. tuberculosis faz com que o sistema
se foram apresentados em 1994, em Gecesso poderia levar até 20 anos e os
imunológico dos animais passem a não
nebra, numa reunião da OMS específica
custos para a realização de todos os testes
responder contra o agente agressor e
sobre tuberculose (Lowrie et al., 1994), e,
seriam muito elevados.
permite o crescimento acelerado dos
desde então, os exbacilos e o estabeleperimentos foram
cimento da doença.
ampliados. De acorNessas condições a
do com os dados da
administração da vaépoca, camundoncina de DNA permigos foram vacinados
te uma mudança radurante 3 meses com
dical da resposta
quatro doses de 50
imunológica criando
microgramas de
condições de comDNA por via intrabater os bacilos e
muscular. Após duas
curar a doença, messemanas da ultima
mo sem a adminisimunização, foram
tração de quimioteinfectados com o
rápicos antimicobacagente etiológico da
terianos.
doença, o MycobacUm dos probleterium tuberculosis.
mas mais sérios relaO grupo que não
cionados com o conestava vacinado retrole da tuberculose
gistrou a presença de
é o aparecimento de
cerca de 1.200.000
bacilos que apresenbactérias por grama de tecido, enquanto
Apesar dos bons resultados obtidos,
tam resistência a vários dos medicameno vacinado oscilou de zero a 100 ou 1.000
as dificuldades acima apresentadas fizetos utilizados no tratamento como a isobactérias – um número considerado exram com que o grupo mudasse o seu alvo
niazida, pirazinamida, estreptomicina e
celente. A vacina que deu melhor resulpara o combate a tuberculose. Em vez de
rifampicina entre outros. Já foram isolatado foi o DNA hsp65 (figura 1). Trata-se
usar a vacina de DNA como preventiva da
dos bacilos que são resistentes não só
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contra um desses medicamentos como
também contra combinações de dois,
três e mesmo contra todos ao mesmo
tempo. Esses pacientes, denominados
multi-droga resistentes, contam com poucas alternativas de tratamento e às vezes
com nenhuma. O desenvolvimento dos
trabalhos mostrou que animais infectados com bacilos resistentes
a essas drogas
também são
curados pela
administração
da vacina gênica (Lowrie et
al, 1999).
Outro problema associado ao alto índice de indivíduos infectados
se correlaciona
com o alto grau
de adaptação
dos bacilos ao
homem. A infecção normalmente se estabelece após inalação dos
bacilos e entrada dos mesmos para
dentro das células de defesa do organismo. Dentro dos macrófagos, que são
células com alto potencial microbicida,
os bacilos tem a habilidade de desativar
os sistemas de defesa dessas células e
conseguem sobreviver e se multiplicar
no seu interior. O sistema de defesa
imunitário do homem toma conhecimento da presença dos bacilos e estabelece uma resposta contra os mesmos,
caracterizada
por uma reação
inflamatória
crônica denominada granuloma e que tem
a finalidade de
circunscrever e
delimitar a infecção. Nestas
condições os
bacilos podem
sobreviver por
anos em estado
de latência ou
dormência e o
indivíduo infectado pode não
manifestar a doença. A doença se manifesta quando há um desequilíbrio dessa
relação mútua e frequentemente está
associada com estados de depressão da
resposta imunológica. Os casos mais
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comuns de imunossupressão associados
com a tuberculose estão os indivíduos
com AIDS, estressados, que tomam drogas imunossupressoras, alcoólatras e desnutridos entre outros.
O problema do estado de latência ou
dormência das micobactérias que podem
sofrer uma reativação e manifestar a
doença em estados de imunossupressão
também foi analisado pelo tratamento
com vacina de DNA. Foi desenvolvido
um modelo experimental em camundongos que mimetiza as condições observadas no desenvolvimento da doença humana em imunodeprimidos (figura 3)
(Lowrie et al., 1999). Nos grupos de
animais controles, ou seja, que foram
nesta ordem: infectados, tratados com
drogas antibacterianas para estabelecer
um estado de latência; administrado corticosteróide para causar imunossupressão e que não foram vacinados, observou-se reativação da infecção e estabelecimento da doença. Nos grupos experi-
mentais que foram vacinados com a
vacina de DNA, não foram observadas
reativações e desenvolvimento da doença, principalmente quando foram administradas 3 doses da vacina. A eliminação das bactérias dormentes pela
vacina de DNA pode trazer benefícios
significativos para
o controle da tuberculose e mesmo até a sua erradicação.
O tratamento
da tuberculose
feito com drogas
antimicobacterianas é de longa duração - demora
pelo menos 6
meses. O uso contínuo dessas drogas, que normalmente são tóxicas
para os pacientes,
leva a uma alta
taxa de abandono de tratamento
e tem reflexos importantes no controle da doença e
aparecimento de bacilos resistentes. O
uso concomitante da vacina de DNA
juntamente com drogas antibacterianas
permitiu uma redução significativa do
período de tratamento dos animais infectados com M. tuberculosis. Isto também poderá trazer ganhos significativos, tanto no bem estar social dos
doentes e infectados tanto quanto nos
aspectos econômicos envolvidos no
controle da tuberculose.
A vacina gênica foi utilizada no
tratamento da doença, conceito diferente em relação
às vacinas convencionais, que são
utilizadas somente como prevenção à instalação da
doença. Essa vacina de DNA cura a
infecção, cura a
doença estabelecida e impede que
ocorra a reativação
da doença, e sem
perder a sua característica profilática (Lowrie et al.,
1999). Os benefícios práticos e estratégicos resultantes do desenvolvimento
dessa vacina com atividade terapêutica
contra a tuberculose são inúmeros. Ela
é segura, eficaz, pode ser dada numa
única dose, estimula amplamente a resposta imunológica, tem efeito protetor
duradouro e pode contribuir significativamente para a diminuição da incidência da tuberculose. Além disso, o custo
de produção em larga escala é baixo e
são estáveis à temperatura ambiente. Todos esses fatores facilitam o transporte, a
distribuição e o estabelecimento de amplos programas de
imunizações em regiões de difícil acesso e
absolutamente desejáveis no âmbito da
realidade brasileira.
A vacina de DNA,
administrada por via
intramuscular, leva a
mensagem genética
para o interior da célula, e lá dentro ocorre a síntese do antígeno como se fossem
proteínas virais. Os antígenos sintetizados dentro das células são processados
por várias enzimas e os fragmentos
resultantes, normalmente pedaços de
proteínas com 9 a 15 aminoácidos, são
levados para a superfície dessas células,
denominadas apresentadoras de antígenos, para serem reconhecidos por linfócitos T CD4, T CD8 e
linfócitos B. Portanto,
a vacina de DNA pode
estimular tanto a resposta imunológica celular (linfócitos T), que
tem a propriedade de
eliminar os patógenos
intracelulares, quanto
a humoral (linfócitos
B) para a produção de
anticorpos (figura 4)
(Silva 1995). Os linfócitos T são fundamentais para o controle da
tuberculose.
As análises imunológicas mostraram
que, dentre todas as células estimuladas
pela vacina de DNA, os linfócitos T CD8
exercem papel preponderante no controle da infecção (Bonato et al., 1998).
Esses linfócitos T CD8 estimulados pela
vacina gênica, são preferencialmente
do tipo citotóxicos, isto é, têm tanto a
capacidade de destruir as células que
albergam o bacilo da tuberculose em
seu interior, como secretam grânulos
enzimáticos que ajudam na eliminação
dos mesmos (figura 5). Além disso,
tanto os linfócitos T CD8 como os T CD4
secretam, em altas concentrações, as substâncias estimuladoras do sistema imunológico (interleucinas), como a IL-2, IL-12
e interferon gama. As interleucinas ajudam a manter ativados os sistemas micro-
bicidas dos macrófagos, que também são
usados para matar as micobactérias. Além
disso, a imunidade adquirida pela inoculação da vacina de DNA persiste por
longo período de tempo, devido tanto à
constante produção do antígeno dentro
da célula hospedeira como à capacidade
destes estimularem linfócitos de memória imunológica e, com isso, sendo desnecessárias as revacinações (Silva et
al.,1999).
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