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INTRODUÇÃO
Ensino de ciências e educação escolar indígena são concepções conhecidas no
Brasil. Porém, o fazer científico-pedagógico [grifo nosso], numa perspectiva
intercultural está, ainda, em construção. Esta, que acontece dos mais diferentes modos
entre os povos tradicionais da Amazônia, representa uma oportunidade para a inserção
de novos conhecimentos. É, também, uma maneira de dar novas respostas às questões
da ciência ocidental, em que os métodos vigentes são ineficazes para resolução de
problemas evidenciados no processo educativo das escolas indígenas. Para isto, a
interação entre os aspectos biossocioambientais, interculturais, políticos e econômicos é
condição primordial.
Para estabelecermos relação entre ciência, cultura, território e sustentabilidade
se faz necessário, compreendermos primeiramente o conceito de cada um deles, dada a
sua relevância para o desenvolvimento da temática. O esclarecimento destes conceitos
visa à inter-relação entre eles, apontando para a questão da sustentabilidade da educação
escolar indígena. Diante disto, apropriamo-nos de nossa experiência de vinte e cinco
anos de docência1 e de gestão escolar, para investigarmos acerca das dificuldades que
envolvem o processo ensino-aprendizagem e o cotidiano das práticas metodológicas de
ensino aplicadas em sala de aula, na escola indígena.
Por conseguinte, observamos experiências relevantes para a validação do
processo educacional, no território indígena do Alto Rio Negro. Algumas escolas
destacam-se neste contexto, porém, nos ateremos às experiências de ensino da Escola
Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali (EIBC-Pamáali) 2. A razão da escolha é o fato de
esta desenvolver uma metodologia de ensino das ciências com base na ciência do
concreto, na perspectiva da didática intercultural. E, também, por que considera as
práticas cotidianas e as tradições mitológicas Baniwa e Coripaco para a ressignificação
dos conceitos estudados.
Nessa perspectiva, construímos o enfoque do trabalho com base na perspectiva
metodológica qualitativa, a partir do campo de pesquisa. Organizamos o trabalho em
três capítulos, conforme descrito abaixo:
1
Estes 25 anos de experiência de ensino em todos os níveis, (Infantil ao Superior), tanto em instituições públicas
quanto privadas, nos rendeu um arcabouço prático, que nos respalda nesta discussão.
2
No decorrer da dissertação, usaremos o termo EIBC, Pamáali ou EIBC-Pamáali, para nos referirmos à escola
Baniwa e Coripaco.
15
No primeiro capítulo, na busca de relacionarmos teoria e prática
fundamentamos teoricamente o Ensino de ciências e educação intercultural, baseandonos nas concepções de ciências, interculturalidade, como um diálogo entre as diversas
culturas, a sustentabilidade, a territorialidade e a educação escolar indígena. Destacamos
as práticas pedagógicas na perspectiva da didática intercultural, a partir do cotidiano dos
Baniwa e Coripaco. Estes conceitos formaram uma tríade para a análise da ciência do
concreto relacionando com o etnoconhecimento.
Diante da temática, tomamos por referência os estudos de Vieira, Leff, Pinto,
Laplantine, Barreiros, Koch-Grünberg, Silva, RCNEI/ MEC, Tassinari, Freitas, Weigel,
Hennig, Ribeiro, Eliade e Lévi-Strauss, dentre outros.
Para possibilitar uma melhor compreensão do percurso, elaboramos o segundo
capítulo a Metodologia, com o tema Desafio para a construção de um caminho,
delineamos, a priori, a estrutura geral da pesquisa, estabelecendo a problemática, as
questões norteadoras, os objetivos, os sujeitos e o objeto da pesquisa. Neste sentido,
construímos o caminho da pesquisa, com uma abordagem qualitativa, no método
dedutivo, sendo um estudo de caso, com indícios da pesquisa etnográfica e etnológica,
detalhando o percurso da viagem pelo rio Içana, bem como a nossa estada na EIBCPamáali. Por ser de natureza qualitativa, recorremos para fins de coleta de dados, a
técnica de observação participante intensiva, aos instrumentos de entrevista com
professores e alunos, para análise dos processos conceptuais do ensino de ciências na
Pamáali. Foi necessário, dada às circunstâncias e impossibilidade de retornarmos ao
local da pesquisa, lançarmos mão em um último momento da carta eletrônica (e-mail), a
fim de obtermos algumas informações relevantes para a conclusão das análises dos
registros da pesquisa. Em última análise relatamos nossa experiência de mudança de
concepção quanto à educação escolar indígena e os espaços não formais de ensino.
Utilizamos a narrativa como uma modalidade da pesquisa qualitativa, pois
contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo outro, o ouvinte. Pois para
Triviños (1992), o pesquisador é sujeito participante da pesquisa, diretamente implicado
na relação pesquisador-pesquisado. Fundamentamos este capítulo nos estudos de Pires,
Teixeira, Marques, Kincheloe, Kaufmann, Haguette
e outros como suporte
metodológico.
O terceiro capítulo, denominado de Os saberes indígenas e a construção de
conceitos em Ciências Naturais destacamos uma proposta intercultural, bilíngue e
sustentável para o ensino de ciências naturais para a EIBC, como um diferencial na
16
educação escolar indígena no Alto Rio Negro. Analisamos as concepções de estudantes
e professores Baniwa e Coripaco na construção de conceitos em ciências naturais e, por
fim, a proposta de um recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e
bilíngue, ressaltando as vantagens e os passos deste fazer pedagógico. A finalidade
desta produção é que, após aprovada por todos os interessados, seja publicada e
utilizada como material didático na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino
Fundamental das comunidades, que oferecem estes níveis, ao redor da Pamáali.
Abordamos sobre os saberes indígenas na construção dos conceitos em
Ciências Naturais e sobre os temas contemporâneos contemplados no Projeto Político
Pedagógico da EIBC e explorados nas produções monográfica dos estudantes.
Destacamos o mito como estratégia de ensino para a sustentabilidade cultural e
científica, bem como as metodologias de ensino com pesquisa, visando à inter-relação
entre os saberes tradicionais indígenas e os conhecimentos científicos da cultura não
índia. Assim, nos referenciamos no PPP EIBC-Pamáali, em Wright, Pinto, Tassinari,
Weigel, Vygotsky, Viveiros de Castro, Lévi-Strauss e outros. Respaldamo-nos, também,
na experiência do campo, possibilitando um diálogo entre o teórico e o prático.
17
1 ENSINO DE CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
“Ciência é tudo o que praticamos: tomar banho cedo
para não envelhecer, não ficar com os cabelos
brancos, ficar forte e melhorar os anticorpos. É a
prática do dia a dia.”
Raul Brazão Baniwa
1.1. Ciência(s), Educação Intercultural e Sustentabilidade
A Ciência tem sua origem a partir das reflexões filosóficas, pois, a aquisição do
conhecimento científico se dá através da capacidade que temos de organizar e
reorganizar as informações em nossa mente.
Nesse sentido, Hennig (1998, p. 146) afirma que “Ciência é o processo de
simplificar e acumular conhecimentos [...], direcionando valores (pensamento, vivência
e cultura), proporcionando as condições para que o homem cumpra seu destino”. Isto
mostra que a Ciência e o conhecimento estão diretamente ligados formando uma base
para a Teoria do Conhecimento.
Com efeito, a objetividade é um elemento importante na Ciência para
possibilitar maior precisão na explicação dos fenômenos da natureza. Por esta razão, a
comunidade científica busca um método de conhecimento e compreensão que ofereça
maior confiança nos resultados da pesquisa. Com isto cada escrito histórico nas ciências
possui característica própria de seu período e que cada “historiador escreve com um
propósito em mente” (DEBUS, 2004, p. 15), que é o de tornar-se um propagador do seu
tempo histórico.
Os modelos filosóficos de aprendizagem predominantes que foram transferidos
para o ensino das ciências reforçam a memorização de conceitos. Contudo, estes
padrões sofreram reformas conceituais e conceptuais, isto é, teorias científicas foram
sendo ressignificadas, com vistas a atender às necessidades de aquisição do
conhecimento científico. Sobre essas mudanças Morin (2008, p. 16) corrobora
afirmando que “nossa ciência realizou gigantescos progressos de conhecimento, [...] que
desafia os nossos conceitos, nossa lógica, nossa inteligência”. Neste caso, o
conhecimento científico configura-se um desafio. Então, como desenvolvê-lo nos
trabalhos educativos de nossas escolas?
18
No entanto, a educação escolar indígena vem buscando este progresso
científico de modo significativo, principalmente após o estabelecimento de legislação
própria para este ensino. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96
(LDBEN) – artigos 26, parágrafo 1º e 2º; artigo 78 e 79 – e o Referencial Curricular
Nacional para a Educação Indígena (RCNEI) 3, que defendem a especificidade da escola
indígena representam um reconhecimento da necessidade de uma educação
diferenciada, específica e de qualidade para os povos tradicionais do país. Porém, ainda
por conta dos conceitos de ciências arraigados na sociedade envolvente, as contradições
ainda são desafios para professores e estudantes indígenas.
Acrescente-se que a LDBEN 9394/96, no art. 79, garante que serão
desenvolvidos “programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação
escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas”, com vistas a fortalecer as
manifestações sócio culturais de cada comunidade.
Arrematando, Silva (2001, p. 31) reforça que um dos avanços para a educação
indígena está na Constituição Brasileira/ 1988, pois “garante aos Índios uma educação
respeitosa de suas línguas e culturas, de seus modos próprios de viver e pensar, de
valorização de seus conhecimentos e dos processos próprios de sua produção e
transmissão”.
Nestes termos, o que estabelece a legislação garante o direito, então, o desafio
está na distância entre o previsto na lei e a realidade das escolas indígenas. Assim, a
implantação de um currículo que atenda a necessidade de cada comunidade tem sido a
luta dos professores indígenas.
Acrescente-se a esse comentário que independentemente da ação das
instituições de ensino superior, as lideranças indígenas, politicamente organizadas,
buscam alternativas que atendam aos anseios de sua população no que diz respeito à
formação dos professores e à criação de escolas de Ensino Fundamental e Médio com
proposta para uma educação escolar indígena sustentável.
É o caso do Alto Rio Negro, onde em 2003 foram instituídas Escolas Estaduais
de Ensino Médio Indígena nos distritos de Pari-Cachoeira, Taracuá e Assunção do Içana
com a participação de lideranças indígenas, coordenadas pela FOIRN. Em 2006, estas
escolas passaram a ter gestores indígenas. Este processo de mudança só foi possível
3
Nas próximas citações usaremos RCNEI.
19
com a realização da Oficina para elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos para o
Ensino Médio Indígena, em dezembro do ano de 2005. (MONJELÓ, 2007).
Assinale-se que, os professores indígenas reivindicam a elaboração de novas
propostas curriculares aplicáveis às suas escolas para substituir o modelo geral do
sistema educacional vigente. A razão, conforme registra o RCNEI/MEC (2002, p.11), é
que “tais modelos nunca corresponderam aos seus interesses políticos e às pedagogias
de suas culturas”.
Com base nesse pensamento, podemos dizer que os indígenas e, neste caso os
Baniwa e Coripaco, trabalham para uma educação que visa à sustentabilidade, no
sentido de manter suas lideranças, seus costumes e valores tradicionais.
Para tanto, utilizar a transversalidade constitui-se numa estratégia facilitadora
do trabalho do professor, porque favorece a discussão de questões educacionais e
sociais da cultura local e global. Além do mais, é uma proposta viável no contexto atual
da sala de aula, pois professores e alunos tornam-se construtores de uma prática
educativa para uma escola inclusiva e intercultural. E, reforçando essa inferência o
RCNEI (2002, p. 93) destaca os temas transversais como:
Um recurso de trabalho para o desenvolvimento de currículos mais
significativos e flexíveis, fazendo dos conteúdos acadêmicos estudados na
escola um instrumento para pensar questões socialmente relevantes para
aquele conjunto de pessoas.
Esses temas discutidos pela escola e por todos os sujeitos do processo
educativo permitem um elo de discussão entre as diversas áreas de estudo e, de acordo
com interesse do grupo, adquirem caráter de projeto social em benefício da comunidade.
Importa destacar que, as concepções de ensino construídas pelos povos indígenas
existem antes mesmo da introdução da escola formal no meio deles. Eles possuem uma
maneira própria de produzir, reproduzir, transmitir, elaborar, reelaborar e perpetuar os
conhecimentos, o que resulta num conjunto de concepções e conceitos científicos e
filosóficos bem harmonizados com a natureza.
Para os povos tradicionais a aquisição de conhecimentos é uma questão
existencial, pois representam a sua sobrevivência enquanto etnia. Neste particular, Pinto
(2008, p. 241) salienta sobre os saberes indígenas, que em
20
Um dado importante relativo a vários inventários do mundo natural e etnocultural que se realizaram [...], foi fundamental a contribuição e classificação
das espécies animais e vegetais, além de seus respectivos valores e sentidos
mágicos, medicinais, alimentares e econômicos.
Como vimos, o reconhecimento das contribuições dos povos tradicionais na
historiografia é premente para preencher lacunas que os métodos das ciências
convencionais não explicam. Assim, caminharemos para a utilização responsável e
consciente dos recursos naturais, para a relação de respeito com os elementos da
natureza e para o comprometimento em manter a cultura e a história mítica dos povos
tradicionais da Amazônia.
Portanto, diante desses pressupostos, a maneira como se utilizam os recursos
naturais determina os modelos de desenvolvimento e o modo de existência de diferentes
povos. Neste sentido, para o indígena, um elemento essencial na elaboração dos
conhecimentos é o direito ao seu território e aos recursos naturais existentes nele. Pois,
com a posse de seu território o Índio constrói sua história, sua identidade, suas
instituições políticas e sociais. Ele desenvolve concepções e alternativas de
sustentabilidade, que os configuram, como os verdadeiros trabalhadores (RCNEI 2002)
e, porque não dizer, “defensores da Amazônia”. (SILVA, 2003).
Nessa perspectiva, ainda segundo Silva (2001), para valorização da educação
escolar indígena e para implantação de políticas públicas neste seguimento educacional,
a participação dos etnólogos é fundamental para sistematização de concepções,
formulação de projetos e elaboração de legislações. São importantes também, para a
formação de professores indígenas, a implantação de escolas e a criação de associações.
Ademais, a etnologia possibilitou o reconhecimento de particularidades étnicas
até então vistas de maneira geral pela Antropologia. As crenças, os mitos, a cosmologia
e a relação do homem com a natureza, presente na visão dos povos ditos “primitivos”,
chamou a atenção do olhar científico. Por isso, a Ciência precisou de novas
metodologias de análises para compreender a complexidade das concepções indígenas,
quanto às relações entre pessoas, corpos, almas, espíritos e animais. (SILVA, 2001).
Consequentemente, a escola indígena ganha reconhecimento como um espaço
de reflexão e de pesquisa com vistas à implantação da escola diferenciada, baseada na
compreensão da realidade pesquisada. Para isso, o conhecimento acadêmico acumulado
21
a respeito dos povos indígenas e pelos povos indígenas é um patrimônio útil4 [Grifo
nosso] para fins de pesquisa científica. Sobre esta questão, Tassinari (2001, p. 46) infere
que
A escola indígena começa a ser vista também como espaço/momento
privilegiado para o aprofundamento das próprias pesquisas sobre
etnoconhecimentos, e os professores e alunos Índios, por sua vez, revelam-se
como pesquisadores e pesquisados no contexto local.
Porém, embora a escola indígena seja de fato um espaço privilegiado para a
pesquisa científica, é necessário que os pesquisadores tenham consciência de que este
mesmo espaço é local de construção existencial e de preservação étnica sustentável.
Assim, o ensino com pesquisa contribui para o processo de aquisição do
conhecimento, fazendo a interação entre teoria e prática e articulando, conforme diz
Leff (2008, p. 201), com os “sistemas ecológicos, tecnológicos e culturais, para
satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da população”.
Portanto, a exploração científica é integradora dos sistemas que envolvem os sujeitos
participantes do processo.
1.1.1 Sustentabilidade, territorialidade e educação escolar indígena
O tema sustentabilidade está diretamente ligado à preservação da espécie
humana. E, para o indígena a territorialidade possui estreita relação com
sustentabilidade, pois que assentado em seu território, este pode prover o alimento,
instalar a moradia e, repassar a história aos descendentes, visando o desenvolvimento
sustentável.
Porém, à medida que compreendemos os conceitos de desenvolvimento e de
sustentabilidade parece-nos quase utópico manter esta combinação. Incluir nesta ideia a
educação escolar indígena é ainda mais complexo. Entretanto, segundo Freitas (2001,
p.27) tem-se consolidado
4
Conhecimento que pode ser utilizado para discussões e aprofundamento dentro da pesquisa científica na temática
indígena.
22
As tendências de que as questionáveis metodologias utilizadas pelos grupos
econômicos e científicos, para agregar valor à natureza amazônica, [...]
(incluindo a flora e a fauna), terão que necessariamente incorporar o
componente societário, adquirindo feições políticas e nuançando parte das
contradições das relações da Região com o Estado e o Mundo.
Isso significa dizer que é necessário à formalização de parcerias e uma nova
mentalidade quanto às questões de sustentabilidade da nossa região. Com isto vamos
então compreender algumas definições de desenvolvimento e sustentabilidade. Em um
conceito simples diríamos que por um lado o termo desenvolvimento está diretamente
ligado ao crescimento econômico e progresso material, por outro o termo
sustentabilidade está relacionado aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e
culturais de uma determinada comunidade ou sociedade humana. (LEFF, 2008) Neste
caso, Coimbra (2004, p. 554) conclui que “tratar cientifica e tecnicamente a questão
ambiental significa uma verdadeira mobilização na construção do saber e na práxis,
visando modificar o modelo de relações hoje existentes entre sociedade humana e
mundo natural”.
Ancorados nessa perspectiva é importante considerar a ação do homem sobre a
natureza e o impacto dessas ações na preservação das espécies. Neste sentido o homem
deve se sentir parte integrante, como elemento da natureza, tal como os povos
indígenas, pois para eles, afirma Gray (1995), citado por Freitas (2001, p. 43), “existe
uma indissociabilidade entre as pessoas e a natureza, com as suas configurações sociais
condicionando e sendo condicionada pelo meio ambiente”.
Tal premissa significa a relação de interdependência entre homem e natureza.
Por esta razão, questionamos os modelos de desenvolvimento convencionais, para dar
lugar a um modelo sustentável de utilização dos recursos e, consequentemente da
qualidade de vida da população humana. Sobre esta questão Coimbra (2004, p. 525)
infere que “por isso os conceitos correntes e vulgares, quase sempre imprecisos e
simplistas, devem ceder espaço a uma conceituação cientifica que envolva várias
ciências, como as biológicas, as exatas e as humanas”.
Nesses termos, a contribuição das várias ciências na construção de uma nova
proposta de desenvolvimento sustentável será o diferencial nesse processo de combate a
degradação socioambiental. Proposta esta que aponte para um modelo não só de
desenvolvimento como também de preservação. Por esta razão, em 1983 a Organização
das Nações Unidas (ONU) criou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e
23
Desenvolvimento, com o fim de orientar pessoas e organizações na compreensão desses
problemas, incentivando-os a uma ação inovadora de integração das questões
econômicas e ambientais. Com esta integração poder-se-ia definir desenvolvimento
sustentável como “aquele que atende às necessidades dos presentes sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”.
(ALMANAQUE BRASIL SOCIOAMBIENTAL, 2008, p. 440).
Entretanto, para que essa proposta se cumpra, requer de nós uma mudança de
postura frente à utilização dos recursos naturais, pois não se trata apenas de preservação
material, mas trata-se principalmente de preservação de povos e culturas milenares que
deles dependem.
Acerca desse assunto Ramos (1988, p. 21) declara que a exploração “intensiva
e ininterrupta de um determinado sítio leva à rápida exaustão do solo e de outros
recursos naturais”. Isto é, a exploração desenfreada gera desequilíbrio ecológico e, na
Amazônia, dada a sua sociobiodiversidade, vislumbramos uma pluralidade de soluções
para o desenvolvimento sustentável na região. A este respeito, Silva (2001, p. 4 e 5)
assevera que somos “uma região complexa, com processos econômicos em curso [...],
composta de áreas e populações urbanas, rurais e indígenas, de ocupação secular,
milenar e contemporânea, e de reservas de proteção ao meio ambiente de manejo
tradicional e recente”.
Nesse sentido, a pluralidade amazônica é o desafio na construção de modelos
econômicos, sociais e educacionais sustentáveis. A educação escolar indígena se
constrói nesse processo de perspectiva sustentável partindo, conforme consta no
RCNEI/ MEC (2002, p. 22), das próprias “concepções indígenas do mundo e do homem
e das formas de organização social, política, cultural econômica e religiosa desses
povos”. Então, o desenvolvimento sustentável para a preservação do meio
socioambiental, não tem outra base que não seja educação, ciência e tecnologia, pois é
por meio desta sustentação que a sociedade intervém em questões sociais, econômicas e
culturais.
Agarrada aos ditames do contexto, Silva (2001, p. 7) destaca os condicionantes
políticos que alicerçam essas questões, sendo ora por
Fatores geográficos, ecológicos e institucionais adversos, ora na grandeza
física e na riqueza potencial da Amazônia, para reclamar prioridades de
24
intervenção na região sob a forma de infraestrutura social, cientifica e
tecnológica a fim de explorá-la.
Diante dessa realidade, o diferencial da educação escolar indígena está na
inserção da comunidade no processo pedagógico da escola, sendo esta participação
fundamental na definição dos objetivos, para uma educação específica e diferenciada e,
consequentemente sustentável.
Para o indígena os problemas relativos à territorialidade estão ligados à cultura.
Demarcação de terras, conforme afirma Gray (2004, p. 111) “significa reconhecimento
e respeito pelos direitos territoriais e culturais desses povos, permitindo que eles
assumam o controle do seu próprio destino”. Com esta autonomia, buscarão alternativas
econômica, social e política para o consumo sustentável dos recursos naturais em seu
território. Também para avaliação dos impactos da introdução de novas práticas
educativas e técnicas de ensino em seu ambiente escolar e cultural.
Agregue-se a esse comentário a experiência do campo, na narrativa do
professor Baniwa quanto à metodologia de ensino com pesquisa, para a construção de
conceitos. Ele esclarece que:
No inicio questionamos os livros, pois muitos alunos apresentavam
dificuldades, principalmente os de Educação Infantil. Os professores eram
de outra etnia, como Tukano e não eram Baniwa e isto dificultou a
aprendizagem. Os livros estavam fora da nossa realidade. Acreditamos que a
organização tem que ser de acordo com a realidade local e com os
problemas, pois desta maneira é mais viável ensinar porque não fecha o raio
de interesse do aluno e o professor é mais um orientador. Nossa ideia é que
toda a escola de Ensino Fundamental use essa metodologia, respeitando a
idade do aluno. Assim, a pesquisa iniciada no Fundamental precisava ser
aprofundada no Ensino Médio, destacando que a pesquisa intermediária com
os velhos na comunidade é muito importante. No futuro pretendemos
analisar as monografias e partir para intervenção. [Prof. Baniwa 1]
Nesse sentido, o ensino com pesquisa possibilita a construção de conceitos em
ciências naturais por meio das vivências do cotidiano, estando diretamente relacionado
com a valorização dos saberes dos povos indígenas Baniwa e Coripaco, com a
revitalização de sua cultura para sustentabilidade dos mitos às gerações futuras, com a
preservação do modo de vida dos Índios e, principalmente com garantia de
sustentabilidade dentro do próprio território.
25
Ainda nesse raciocínio, Weigel (2000, p. 207) afirma que “o ritmo das
atividades escolares é peculiar a essas condições: na época de plantar, ou de colher a
mandioca, ou no período de fazer cacori5, a escola para por uma ou duas semanas”, a
fim de garantir a sustentabilidade do professor na escola.
Como vimos, na educação indígena Baniwa e Coripaco, tudo se relaciona com
a terra e à preservação das espécies, à conservação dos animais e da floresta e, ao uso
que se faz dela. Silva (2004, p. 371) infere que se trata da relação “entre o individuo e o
patrimônio cultural do grupo a que pertence”. Para o Índio a forma como se relacionam
com o meio ambiente favorece a visão, as ações e os projetos que levem em conta a
sustentabilidade, harmonizando o homem e a terra ocupada por ele. Para reforçar Leff
(2008, p. 92) referenda que:
O desenvolvimento sustentável surge com o propósito de conseguir um
ordenamento racional do ambiente, sem exigir que o ambiente funde uma
nova racionalidade, que a degradação ambiental não se resolva com os
instrumentos da racionalidade econômica. Neste sentido, a questão ambiental
está ampliando o marco dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais.
Entretanto, não nos é desconhecida a grande dificuldade que existe em
construir um conhecimento partindo de uma realidade pouco conhecida por muitos,
como é o caso das comunidades indígenas do noroeste do Brasil, mas especificamente
os Baniwa e Coripaco. Comunidades estas definidas, na maioria das vezes, de modo
generalizado, sem observar as particularidades existentes em cada uma delas.
Ancorado na perspectiva da valorização de cada cultura, Bourdieu (1996)
afirma que a cultura e o conhecimento se firmam no interior das relações sociais, nos
grupos de interesse. Com isto abre-se uma possibilidade para pensar o ensino de
ciências contextualizado na realidade da escola indígena Baniwa e Coripaco. E neste
sentido, Freitas (2003, p. 219) compreende que:
A complexidade dos ecossistemas amazônicos em qualquer escala, tanto
quanto a compreensão de propostas para preservá-los, conservá-los ou
desenvolvê-los com modelos sustentáveis, não estão limitadas pela natureza
amazônica, mas pela cultura, ou por fatores que dela dependem.
5
Armadilha construída com galhos secos que serve para pegar peixes.
26
Portanto, nesse contexto, considerar a concepção cultural dos povos indígenas
Baniwa e Coripaco nesta construção é fundamental para a definição de uma política de
desenvolvimento sustentável. Além disso, Lévi-Strauss (1989) afirma que é preciso
compreender o que está subjacente na concepção dos indígenas sobre sua própria
educação. É preciso reconhecer as experiências de ensino das ciências por meio dos
saberes cotidianos para a construção concreta de conceitos e transformá-las em
conhecimento científico.
Sendo assim, fazer a interação entre as experiências do cotidiano Baniwa e
Coripaco com a construção do conhecimento científico, pode tornar-se um elemento de
constatação que o indígena faz ciência. É o que discutiremos a seguir.
1.2. Didática Intercultural: Práticas pedagógicas a partir das experiências
indígenas Baniwa e Coripaco
É preciso criar condições prévias para a construção do conhecimento científico,
considerando que as práticas em sala de aula reforçam e aumentam a consciência dos
estudantes sobre suas concepções de aprendizagem. Neste sentido, é necessário se
valorizar os saberes docentes, para então propor os recursos didáticos. Barreiros (2006,
p. 22) explica que quando se “reconhece os saberes docentes como plurais, estratégicos
e desvalorizados, abre-se um leque de alternativas para a compreensão do fazer
pedagógico ou docente”. Não se pode impor aos docentes novos saberes usando como
desculpa a visão do conhecimento dito científico.
Além do mais, na perspectiva de uma didática intercultural, o processo de
ensino e de aprendizagem é multidimensional e cheio de diversidade, sendo, portanto,
necessário considerar a dimensão cultural, que deve ser “um elemento construído no
interior da escola a partir deste mesmo cotidiano [escolar]”. (Idem). Mais ainda, “a
escola é também um mundo social, ou seja, um espaço que tem e desenvolve sua
própria cultura” (Ibidem, p. 23), com características próprias das culturas da cada
realidade.
Nessa acepção, Barreiras (2006, p. 23), traz a visão de Candau (1997) para
situar o cenário do cotidiano escolar e os processos constantes nele:
Globalização, multiculturalismo, questões de gênero e de raça, novas formas
de comunicação, manifestações culturais de adolescentes e jovens,
27
expressões de diferentes classes sociais, movimentos culturais e religiosos,
diversas formas de violência e exclusão social configuram novos e
diferenciados cenários sociais, políticos e culturais.
Decorrendo desse fato, a autora defende que a escola deve sair de sua postura
monocultural, através da articulação entre igualdade e diferença, questionando
estereótipos sociais e, que promova de fato um movimento de inter aprendizagem entre
as culturas, favorecendo assim, uma educação verdadeiramente intercultural.
A perspectiva da educação intercultural está diretamente ligada à seleção dos
conteúdos escolares, às estratégias de ensino, à relação professor-aluno, aluno-aluno, ao
sistema de avaliação, ao papel do professor, á organização da sala de aula, às atividades
extraclasses, à relação escola-comunidade, numa tentativa de ressignificação das
práticas pedagógicas.
Em síntese, a didática intercultural possibilita “enxergar a diversidade, a
diferença, a pluralidade de culturas como um dos componentes fundamentais da relação
pedagógica do cotidiano escolar no processo ensino-aprendizagem” (BARREIRAS,
2006, p. 28), pois ao considerar esta multidimensionalidade, se dá o primeiro passo para
a perspectiva intercultural, considerando também, no mesmo nível de importância a
contextualização da prática pedagógica e a análise de sua concretude.
Por essa razão, considerou-se as atividades cotidianas dos Baniwa e Coripaco,
como uma alternativa de aprendizagem representante da didática intercultural.
Tomemos como exemplo a caça, que, conforme Kock Grünberg (2005), não tem tanta
importância para aquisição do alimento como a pesca. Porém, além de ser praticada
como um esporte, seu equipamento é elaborado cuidadosamente e manuseado com
muita destreza. Dentre essas armas está a carauatana6. Sobre este apetrecho7 [Grifo
nosso] Kock Grünberg (2005, p. 121), nos dá uma aula de ensino de ciências e
matemática, numa descrição detalhada da construção deste objeto até sua utilização.
Vejamos:
O cano de 2,80m até 3m de comprimento é tomado de uma arrundinácea cuja
haste desde a raiz ergue-se reta como uma vela e sem nós, por uns quatro
metros ou mais, até que começa esgalhar-se. Secam-se cuidadosamente, ao
fogo e no sol, para que não se entorte. O cano cilíndrico, [...], levemente
6
“Arma principal dos indígenas do noroeste do Brasil para caçar aves e pequenos quadrúpedes, especialmente os
arborícolas” (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 121).
7
Expressão usada por KOCH-GRÜNBERG, 2005.
28
esfregado na parte externa com cera preta [...], para preservá-lo de estragos.
Enfiam [...] no tronco uma palmeira de paxiuba, [...] retirada a medula.
Ambas as partes devem adaptar-se exatamente uma à outra e ficam
calafetadas por meio do rolamento do líber.
Observamos nesse texto um conhecimento significativo acerca da utilidade de
cada elemento da natureza, sua finalidade específica, bem como sua propriedade de
eficácia. Apresenta-nos ainda conhecimentos matemáticos e geométricos necessários
para a confecção da arma. Esta descrição usada em sala de aula para a construção de
conceitos matemáticos facilitaria a apreensão destes conteúdos abstratos e de difícil
compreensão.
Na descrição da produção do veneno, chamado de curare, para ervar as
8
flechas [grifo nosso] a serem usadas na carauatana, revela-se a propriedade química
da planta e como ela age no organismo do animal atingido. Koch-Grünberg (2005, p.
125) descreve que o principal componente para produzir o curare é a casca de uma
trepadeira, denominada cientificamente de maukulipi. Para iniciar o processo, os
Baniwa
Secam a casca ao fogo, fervem na água, peneiram a decocção com uma
peneirinha finíssima, para separarem todos os componentes sólidos, e
cozinham o suco até que ele se torne de cor marrom-preto, mais grosso do
que xarope. Acrescentam ainda outros ingredientes, venenos e sucos
pegajosos de plantas, que devem fazer com que o veneno fique melhor
aderente à madeira. [...] A umidade faz o curare perder sua força. Por isso os
potinhos de veneno são conservados cuidadosamente fechados [...]. Assim, o
veneno conserva a sua eficácia durante anos. A eficácia do curare já foi
testada por muitas experiências. Se o curare penetra no sangue, paralisa logo
o movimento voluntário do músculo nesta localidade. Com o sangue que
circula, espalha-se o veneno e com ele a paralisação no corpo inteiro.
Percebemos que ao preparar tal veneno, o indígena Baniwa tem consciência do
que está fazendo e sabe que objetivos quer alcançar. Os saberes presentes nessa
descrição apontam para uma concepção alternativa acerca construção do conhecimento
cientifico, pois tenta superar, pela riqueza de detalhes observados nela, fontes também
alternativas, que gerem a informação inicial. No preparo do veneno estão presentes
informações da Química, como por exemplo, propriedades anestésicas, densidade
líquida, conservação das propriedades de uma substância; e da Biologia como
8
Expressão usada por Koch-Grünberg, para dizer que as flechas usadas na carauatana serão envenenadas com ervas.
29
circulação sanguínea e funcionamento de órgãos vitais. Neste caso, se usado como
aplicação para conteúdo de ensino, a produção desse veneno se transformaria em uma
ferramenta facilitadora para abstração destas informações.
Na sequência dessa explanação, a descrição do uso carauatana, o seu tamanho,
a habilidade e a força necessária para usá-la e ainda, a posição do corpo que possibilita
maior segurança para seu uso, dando maior impulso e velocidade para arremessar a
flecha, compreende vários conceitos da Física. Vejamos a seguir o detalhamento feito
por Koch-Grünberg (2005, p. 126), quando narra que:
Um homem forte pode arremessar a flechinha com tamanha força que ela
atinja eficazmente o alvo na distância de 30 ou 40m. [...]. Na distância de uns
20 ou 30m, segurando a carauatana horizontalmente, raras vezes deixaram
de acertar uma banana, que certamente é um alvo de pequenas dimensões.
O que fica evidente é que nessa descrição temos uma aula sequenciada,
trabalhando conceitos da Física, como força, movimento e distância entre dois pontos.
Se aplicado em sala de aula, este exemplo constitui-se em um instrumento de prática
pedagógica para proporcionar aprendizagem significativa aos estudantes.
A percepção dos Baniwa para capturar sua presa na hora e no local adequado é
mais uma aula de Biologia. Ele demonstra o conhecimento acerca dos hábitos
alimentares dos animais, da rotina destes em seu habitat natural e do momento mais
apropriado para a captura. Koch-Grünberg (2005, p. 125), mais uma vez, descreve a
respeito da caça a partir dos conhecimentos Baniwa e relata que “o indígena conhece os
segredos da sua selva [...]. Com perseverança tenaz ele persegue o fugitivo pela
confusão da brenha, até que chegue a disparar o tiro e matar a presa”.
Nessa afirmativa, constatamos conhecimentos de Biologia para a construção de
concepções de ensino de ciências nas escolas indígenas Baniwa e Coripaco do Alto Rio
Negro. A experiência do Índio Baniwa em suas atividades cotidianas e a maneira como
ele se apropria dos conhecimentos, evidencia a necessidade de uma escolarização
diferenciada, intercultural e específica, reiterando a relação entre Homem, Natureza e
Cultura.
Conforme já foi destacado, a valorização do modo como os Baniwa se
apropriam do conhecimento, para produzir educação formal, dá a ele oportunidade de
sobreviver material e culturalmente. Principalmente, se os conteúdos forem ensinados
30
na própria língua materna. Este pressuposto é reforçado pelo que Lévi-Strauss (1989)
advoga sobre a necessidade de compreender as diversas culturas, pois se constituem
num vasto patrimônio de diversidade para a humanidade. E Bazin (s/d, s/p) reitera esta
premissa, afirmando que,
Cada professor indígena e cada formador de professores indígenas precisa
convencer-se, pelo estudo e pela prática de uma pesquisa coletiva na
comunidade (...) [da existência de] uma riqueza própria em cada indivíduo e
em todo povo indígena, nos domínios chamados de “Matemática e Ciência”.
Cada povo, cada civilização, no mundo inteiro, criou sua própria maneira de
contar, de fazer medições de distâncias, áreas, volumes; de criar desenhos de
construções ou decorativos (de fazer "geometria"); de estabelecer regras e
"provas" para os mais variados jogos; de produzir superfícies e volumes a
partir de fibras entrelaçadas de maneiras muito bem definidas e classificáveis
(na cestaria).
É premente, portanto, compreendermos que o modo próprio de produção de
conhecimento de cada povo é um patrimônio cultural a preservar. Mesmo porque a
legitimação desse conhecimento produzido deve partir da crença dos próprios indígenas,
pois isto creditará maior respeito a cada povo, a cada cultura. Portanto, todo educador
indígena, que conhece sua cultura, usa os conhecimentos construídos por seus
ancestrais, como uma maneira própria de fazer matemática e ciência. Pois, percebe-se
estreita relação com a etnologia indígena, levando em consideração o plano cognitivo, o
simbolismo, a historicidade do sujeito e o conceito singular de Natureza. E isto
proporciona uma visão ampla sobre diversidade cultural de cada povo.
Ademais, Vidal & Silva (2004, p. 371) aferem que estas práticas de trabalho
pedagógico na educação escolar indígena – neste caso Baniwa e Coripaco - “indicam as
relações entre o individuo e o patrimônio cultural do grupo a que pertence”, apontando
assim, para projetos futuros. Isto representa uma tomada de consciência cada vez mais
crescente por parte de cada povo étnica e culturalmente representado na sociedade.
Por isso, a escola indígena Baniwa e Coripaco apresenta-se como um local de
aquisição do saber e de ensino para as crianças e para os jovens sobre o modo de vida na
comunidade. Os Baniwa e Coripaco, também ensinam sobre os conhecimentos
acumulados e repassados pelos mais velhos, sobre as propriedades medicinais das
plantas, sobre os mitos de sua origem e dos animais e, sobre as tradições culturais
necessárias para a preservação de sua etnia.
31
No entanto, historicamente falando, a escola dos não Índios se equivoca no
repasse da informação sobre o mito. O conceito é de que os mitos seriam “lendas
indígenas”, numa visão completamente errônea deste conceito que é fundamental para a
existência da cultura Baniwa e Coripaco e de outras tradicionais. (SILVA, 2004)
Para Laraia (2009), isso acontece por que cada povo toma como parâmetro sua
própria cultura, como sendo verdades absolutas e despreza as demais culturas. Este
comportamento demonstra a ausência de um conhecimento intercultural. Bem como a
necessidade de valorização das diferenças culturais.
Nesse sentido, é importante a interpretação da simbologia dos seres e sua
relação com os mitos e os ritos indígenas, neste caso dos Baniwa e Coripaco, para além
de uma simples análise formal. E, sobre esta questão de interpretação de simbologias,
Lévi-Strauss (1989, p. 62) sintetiza que:
Cada dia mais se percebe que para interpretar corretamente os mitos e os ritos
e, mesmo para interpretá-los de um ponto de vista estrutural (que não se teria
razão para confundir com simples análise formal) é indispensável a
identificação precisa das plantas e animais de que se faz menção ou que são
diretamente utilizados.
Essa afirmação está diretamente ligada à compreensão e reconhecimento do
mito como uma das principais forças para a preservação dos povos tradicionais. E, para
os Baniwa e Coripaco, as tradições são uma porta de sustentabilidade da cultura, do
mito de origem, centrada na territorialidade. Os povos Baniwa e Coripaco surgiram no
rio Ayari, um afluente do rio Içana. O mito relata que naquele tempo havia apenas dois
seres viventes no centro do mundo, eram Napirikoli e Dzooli, que fumaram seu
cachimbo, sopraram e a partir deles surgiram todos os ancestrais.
Segundo Eliade (1994) é preciso conhecer o mito de origem de uma planta para
se usar corretamente sua propriedade curativa, pois só haverá cura se o ritual mítico for
realizado como na primeira aparição, seguindo passo a passo a sequência do ritual e
com a mesma organização. Ele afirma também, que se a enfermidade for, por exemplo,
uma picada de cobra, aquele que vai realizar a retirada do veneno deve conhecer o mito
de origem da cobra, a fim de realizar o rito adequadamente.
Lévi-Strauss (1989) reforça quanto ao pensamento “primitivo”, que tanto os
“civilizados” quanto os “selvagens”, possuem igual comportamento emocional e,
32
mesmo nas sociedades onde predomina a cultura do saber científico, ele reforça, que a
racionalidade e o sentimento estão sobrepostos. Então, se por um lado o ritual mítico de
passagem do jovem indígena Baniwa e Coripaco para a vida adulta é significativo para
que se torne um guerreiro. Por outro, o rito de formatura (colação de grau) tem
significado mítico para o não indígena, significa um novo caminho. Portanto, os ritos e
os mitos representam a racionalidade e o sentimento tanto para os povos tradicionais,
quanto para os ocidentais.
Acrescente-se que, na visão de Silva (2004, p. 318), é de suma importância “a
comunicação e o convívio de povos, culturas, nações e grupos sociais diferentes entre si,
se dá em grau, extensão e intensidade nunca antes experimentados”, a fim de que haja
adaptação quanto às diferenças e, compreensão quanto à pluralidade cultural existente
em nosso país, caracterizando uma convivência para uma educação intercultural.
Agarrado aos ditames desse contexto, na educação escolar indígena Baniwa e
Coripaco, considera-se a realidade em volta da escola e valoriza-se os conhecimentos da
comunidade. Portanto, as atividades desenvolvidas e, inclusive o local onde a escola foi
construída favoreceu a proposta de currículo que valoriza o mito de origem e os
conhecimentos tradicionais dos povos Baniwa e Coripaco, pois, conforme afirmam
Vieira (2009, p. 5), como “tudo na cultura indígena, este local tem um significado de
caráter ancestral e mítico”, o que revela o respeito do povo Baniwa e Coripaco para com
suas raízes ancestrais.
Então, para que haja compreensão do significado mítico para os povos
indígenas é preciso: Partir da reflexão filosófica do mito; derrubar os tabus e mentiras a
respeito do mito; e tomar consciência da complexidade do mito, quanto às identidades,
concepções e práticas diversas constantes neles.
E, assim, segundo afirma Silva (2004, p. 320) “estaríamos, então, em melhores
condições para trabalhar os mitos em sua dupla dimensão, [...], como produtos da
reflexão humana sobre o mundo [...] e como criações originais, em suas especificidades,
de sociedades e culturas particulares” e, somente aí incluí-los como parte do currículo
das escolas não indígenas.
Cabe enfim recordar que o atual modelo de escola é uma criação ocidental e,
que os indígenas só passam a ter a necessidade [grifo nosso], após contato com os não
índios. Assim, em sua especificidade, a escola indígena torna-se objeto de pesquisa,
quanto às concepções, quanto ao funcionamento e quanto à repercussão no meio
educacional. A este respeito, Weigel (2000, p. 73) infere que:
33
É preciso, então, dar conta da contradição e do conflito produzidos nas
relações que fazem a escola indígena, os quais criam movimentos e tensões
entre continuidade/descontinuidade, reprodução/ruptura no processo
educativo, colocando para a escola indígena tanto a dimensão da reprodução,
quanto da transformação sociocultural.
Com efeito, as contradições reveladas no interior da escola indígena denotam
os processos de dominação causados pelas missões religiosas, preocupadas em
implantar sua visão de mundo religioso ocidental, ignorando os saberes tradicionais
desses povos, como se eles mesmos não fossem capazes de pensar sua realidade, suas
necessidades e sua história.
Em face disso, o resultado se revela em nossos dias, na dificuldade dos
professores indígenas para sair do modelo de escola que foi implantado por essas
missões, em décadas de dominação. Em alguns casos até preferem a estrutura atual, pois
desta forma se destacam no mundo ocidental. Nem percebem que desta maneira,
desvalorizam sua própria construção cultural. (WEIGEL, 2000).
Assim sendo, Cunha (2004, p. 131) assevera que “entender esses processos não
é somente importante para a definição de identidade étnica. Na realidade toda a questão
indígena [...] está eivada de semelhante reificações”, com a finalidade de levar os
indígenas a um estado de indiferença e alienação de sua cultura. Ao contrário disto, a
escola indígena deve estimular “o fluxo de conhecimentos, [...], numa direção
radicalmente oposta” (TASSINARI, 2001, p.65), para possibilitar ao Índio perguntar,
aprender técnicas, ouvir histórias, interpretá-las e utilizá-las da melhor forma possível,
construindo seu próprio conhecimento. E isto a escola Baniwa e Coripaco minifesta em
suas metodologias com ênfase na pesquisa.
É importante, portanto, a valorização das diferenças constantes em cada povo,
em cada cultura, a fim de se compreender que cada etnia possui sua riqueza e contribui
na construção da sociedade em todo o mundo, favorecendo a interculturalidade. Nesta
perspectiva, Grupione (2004, p. 485) destaca:
A humanidade é composta por uma rica variedade de grupos humanos. Todos
esses grupos humanos têm uma capacidade especifica para atribuir
significados a suas experiências de vida, a fenômenos da natureza ou da
realidade social, às condutas dos animais e também das pessoas. Os
significados atribuídos podem variar muito de grupo para grupo. O conjunto
de significados explicativos da realidade compõe um código simbólico, que é
próprio de cada cultura.
34
Então, em face do foi colocado, compreender a educação escolar numa
perspectiva intercultural ou ainda pluricultural é um exercício que deve ser praticado
tanto na escola indígena quanto na não indígena, para que se excluam os pré-conceitos
criados, principalmente em relação ao indígena.
Essa questão fica clara quando nos reportamos aos livros didáticos das escolas
de não índios. Estes apresentam os indígenas como coadjuvante de sua própria história,
sempre em função do colonizador europeu. Neste caso, é uma visão etnocêntrica que
gera a ideologia de que os Índios não são nossos contemporâneos. Reforçando a ideia de
que eles pertencem ao passado e que não existem mais. O módulo dos PCN’s dedicado
à Pluralidade Cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s EM/MEC, 2000,
p. 121), afirmam que,
As culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias,
na construção de suas formas de subsistência, na organização da vida social e
política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na produção de
conhecimentos etc. A diferença entre culturas é fruto da singularidade desses
processos em cada grupo social.
Certamente, cada grupo social preocupa-se em manter a cultura construída por
seus pares, a fim de subsistir às mudanças e manter as características do grupo. Nessa
perspectiva de país plural, o Brasil é formado por essa diversidade de povos, dada a sua
formação histórica de povoamento.
Com base nessa premissa, destacamos a importância de convivermos com a
diversidade cultural, respeitando as diferenças raciais, linguísticas e religiosas, pois isto
deve fazer parte do nosso cotidiano, nas escolas, nas comunidades, nos grupos sociais e
onde quer que estejamos nos relacionando dentro da sociedade.
Por conseguinte, é possível afirmar que cada sujeito possui seu lugar dentro da
sociedade. Weigel (2000, p. 176/7) compreende que:
As posições ocupadas por cada um desses atores sociais não são arbitrárias,
mas definidas pela distribuição de apropriação, social e historicamente
operadas, [...] legitimados e valorados nessa realidade social. [...] A
acumulação relativa de capitais sociais é, então, convertida em qualidades e
possibilidades aos indivíduos, as quais servem para criar/negar nexos e
proximidades entre as diferentes posições do espaço social.
35
Com base nesse pensamento, percebemos a riqueza presente na acumulação do
capital cultural, posto que cada cultura tem sua contribuição social, para o
desenvolvimento da humanidade. Tal contribuição se constitui num patrimônio
inestimável. Vieira (2009, p. 9) reforçam ao afirmar que
Uma educação indígena que se propõe diferenciada não tem problemas em
considerar as diferentes culturas como parceiras no processo de construção da
cidadania indígena. Através da interculturalidade, Brancos [não índios] e
Índios podem dialogar sem prejuízos assimilatórios, pois o contato com
diferentes etnias só tem reforçado a necessidade de reconhecimento das
diferenças. Mesmo dialogando com outras realidades culturais, o interesse do
Índio por sua história e cultura permanece aguçado, e é notável a revelação
dos saberes tradicionais em muitos aspectos de sua educação.
Essa afirmação nos mostra que os Baniwa e Coripaco estão abertos a novos
conhecimentos, porém não descartam os saberes conquistados por seus ancestrais com
muita luta e perseverança. Neste sentido visam à conquista da autonomia social, política
e educacional, para interação entre a tríade interculturalidade, ciência e sustentabilidade.
Agregue-se a este comentário que “há um esforço para conhecer a origem e a história de
tudo o que nos cerca: tanto a origem do sistema solar quanto a de uma instituição como
o matrimônio ou de um jogo infantil como a amarelinha”. (ELIADE, 1994, p. 73).
Nesse sentido, isso significa que tanto Índios quanto não índios têm
necessidade de conhecer suas origens culturais, num esforço para compreender fatos
ainda não compreendidos. Ao contrário, ignorando tais conhecimentos a Ciência
colabora para a extinção de boa parte da história da humanidade e, consequentemente, a
história da própria Ciência.
Sobre essa temática, D’Ambrósio (2004, p. 194) arremata o quanto “é essencial
entender o processo de aquisição do conhecimento”, pois neste processo a História da
Ciência com a história da humanidade interagem entre si, num movimento de
construção
dos
saberes,
recuperando,
segundo
Alfonso-Goldfarb
(1994)
os
“conhecimentos sobre a natureza que pareciam errados pelos critérios científicos [e
ainda recuperando] outras formas de ciência que a Ciência Moderna apagara”
(ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p.13). Esta postura representa uma superação da
Ciência em relação aos conceitos e as concepções sobre os saberes tradicionais
enquanto tema da pesquisa científica.
36
Nessa acepção, a reforma da religião e da ciência, busca uma nova
compreensão do mundo e do homem, isto é, o microcosmo dentro do macrocosmo,
onde, segundo afirma Debus (2004), “o homem como um verdadeiro mago natural,
deveria aprender sobre seu criador por meio do estudo da natureza criada por Deus”
(DEBUS, 2004, p. 15). Tal estudo teria por base a Química, ou seja, domínio total da
Química e da Alquimia, visando principalmente o benefício da medicina e a preparação
de novos medicamentos quimicamente testados, porém mantendo seu fundamento na
medicação simples, tradicional. (DEBUS, 2004)
Enfim, a compreensão da realidade cultural, é fundamental para que a
humanidade reconheça e respeite as diferenças entre os povos, seu modo de
sobrevivência e suas estratégias de sustentabilidade. No entanto, é importante
percebemos como acontece a concepção de ensino entre os indígenas, especificamente
neste caso, os Baniwa e Coripaco.
O ensino de ciências na escola indígena Baniwa e Coripaco é uma construção a
partir da realidade e do conhecimento concreto, pois a valorização do ambiente que os
cerca é um recurso pedagógico utilizado caracterizando um fazer ciência a partir do
concreto. Esta é a nossa abordagem a seguir.
1.3. Etnoconhecimento e ciência do concreto
“A dificuldade da pesquisa é ir em busca do que se
quer e da linguagem científica; pesquisa é
interessante e nos ajuda a construir um texto ‘bem
grande’.”
Abílio Brazão - Aluno do 1º Ano do EMII
O etno está diretamente ligado ao conceito antropológico de população ou
grupo social biológica, linguística e culturalmente homogênea, que compartilham
história e origem. O concreto está ligado à construção de conceitos por meio “da
observação daquilo que é vivido, e da teoria construída para dar conta dessa observação,
[...] do campo e do método”. (LAPLANTINE, 2007, p. 192).
Essa construção está diretamente ligada com os dados observados na realidade
em questão. Porém, o trabalho etnocientífico não se volta apenas para o estudo das
etnias ou grupos étnicos, mas sim, de microssistemas de um determinado campo.
Portanto, possui como objeto de estudo as várias formas de conhecimento e/ou saberes
37
humanos, pois, conforme confere Laplantine (2007) “trata-se de uma atividade
claramente teórica de construção de um objeto [...] que só pode ser empreendida a partir
de uma realidade concreta”. (Idem, p. 193/4).
Essa realidade concreta é o campo a ser pesquisado. Para tanto, um estudo
etnocientífico considera três fases distintas:
a) A primeira é a fase epistemológica - ligada diretamente ao modelo da
realidade em estudo;
b) A segunda é a fase ética - que se preocupa com a análise e discussão
ampliada e neutra da realidade e permite a comparação entre vários modelos culturais e,
por fim;
c) A terceira fase que se constitui na comparação entre as duas anteriores. Vale
ressaltar que o sistema ético de comparação entre culturas nem sempre existe, sendo
necessário muitas vezes construí-lo durante o processo de estudo.
Com base nessa definição, a dificuldade maior da etnociência, conforme afirma
Pinto (2008, p. 243) relaciona-se com o tipo de civilização implantada no Brasil que
sempre teve dificuldade
Em reconhecer a existência das culturas indígenas e muito mais em
reconhecer que todo o conhecimento que veio a ter do território, da zoologia,
da botânica, do uso medicinal das plantas, de boa parte da culinária, deve de
alguma maneira aos povos indígenas que possuíam, produziam e muitas
vezes ensinavam esses saberes.
Então, reconhecer as contribuições dos povos tradicionais é reconhecer a
etnociência como um campo do conhecimento em expansão. Pois possui abrangência
em áreas como: biologia, mitologia, teologia, epistemologia, cosmologia, antropologia,
meteorologia, agronomia, matemática, linguística entre outras, formando seu caráter
interdisciplinar e ético. Neste sentido, é possível que por força do crescimento de uma
nova visão de ciência, estejam nascendo subáreas de conhecimento.
Agregue-se a esse comentário que herdamos dos habitantes “primitivos” das
Américas, um saber a ser resgatado e, Ribeiro (2004, p. 199) acrescenta que
As principais plantas de que se alimenta, ou que utiliza industrialmente, a
humanidade foram descobertas e domesticadas pelos ameríndios. Tais são
38
entre as alimentícias: i) batata – Solanum tuberosum; ii) mandioca – Manihot
esculenta; iii) milho – Zea mays.
Certamente que essa herança cultural se firma na escola. O que implica para o
professor, a sensibilidade de captar o potencial investigativo dos estudantes, levando-os
a descobrir, redescobrir e autodescobrir, dentro da própria comunidade a riqueza
material e intelectual presente em cada cultura. Entretanto, Lévi-Strauss (1997, p. 33)
ressalta a existência de um intermediário para a construção do conceito a partir do
concreto e infere que
Entre a imagem e o conceito: [o que existe] é o signo, [...], como [mediador]
entre uma imagem e um conceito, que, na união assim estabelecida,
desempenham respectivamente os papéis de significante e significado. Assim
como a imagem, o signo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito
por seu poder referencial.
Confirmando tal inferência, isso significa dizer que não basta adquirir o
conhecimento, saber o “para quê” do conhecimento tem igual importância. E neste
sentido, Lévi-Strauss (1997) ratifica a necessidade de uma análise pormenorizada dos
fatos da realidade concreta, indo além das causas e efeitos, para o que está implícito
nelas. E Vygotsky (1998, p. 47) corrobora afirmando que “o uso de signos auxiliares
rompe com a fusão entre o campo sensorial e o sistema motor, tornando possível assim
novos tipos de comportamento”.
Nesse caso, percebemos que entre o saber e o fazer existe um mediador
concreto, o signo. Consequentemente, a tarefa de formar professores indígenas é
delicada. É, portanto, necessário encontrar juntamente com estes professores conteúdos
do seu interesse, para possibilitar a produção de conhecimentos significativos para a
sustentabilidade étnica, transmitidos na língua nativa e, conforme esclarece Silva &
Azevedo (2004, p. 156) garantindo “aos professores indígenas uma formação especifica,
atividades de atualização e capacitação periódica para seu aprimoramento profissional”.
De fato, para que isso ocorra os formadores precisam conhecer o contexto da
realidade em questão. Pois, tanto na formação dos professores, quanto na ministração do
conteúdo em sala de aula, quando não é contextualizado concretamente, estes se tornam
apenas conceitos formais sem nenhuma significação. E, serão de fato, se mais tarde os
sujeitos não o direcionarem para um fim específico.
39
Com efeito, as etnociências chamam a atenção, para sensibilização, tanto os
cientistas quanto a comunidade em geral. Pois, o potencial dos povos tradicionais na
utilização sustentável dos recursos naturais, também favorece a preservação das
culturas.
Por ser um campo interdisciplinarizado, ao estudar as relações existentes entre
as comunidades tradicionais e o mundo natural, as etnociências estabelecem uma
interação entre a lógica subjacente aos saberes humanos em cada população tradicional
e sua cultura. Em última análise, Pinto (2008, p. 243) infere que “a tendência é que as
etnociências adquiram uma força maior à proporção que os estudos antropológicos se
ampliem nas universidades da região [do Alto Rio Negro e em outras], pois afinal esse
seria um de seus campos de atuação prioritários”.
Assim, as etnociências trazem em sua essência a finalidade de utilizar os
etnoconhecimentos para promover os saberes e as culturas tradicionais, com vistas a
uma compreensão intercultural entre os povos, para a construção de um caminho com
vistas a um novo paradigma de desenvolvimento sustentável.
40
2 METODOLOGIA: O DESAFIO PARA CONSTRUÇÃO DE UM CAMINHO
2.1 Delineamento da pesquisa
“Ao andar se faz caminho e ao olhar para trás vê-se a
estrada que nunca voltar-se-á a pisar”.
Antonio Machado
O percurso metodológico é sempre um momento de muitas ponderações e
decisões por parte do pesquisador. Neste caso, o caminho percorrido trouxe como
resultado a visão e as concepções do professor e do aluno Baniwa e Coripaco a respeito
do ensino de ciências e dos conceitos básicos presentes nas práticas educativas. Trouxe,
ainda, a contribuição para a construção da aprendizagem científica dos estudantes do
Ensino Fundamental da EIBC Pamáali. Nesse processo de construção de conceitos em
Ciências Naturais, há uma interação entre os saberes Baniwa e Coripaco e os
conhecimentos ocidentais, possibilitando uma mudança de paradigma a respeito da
escola indígena.
A escolha do método, da abordagem, das técnicas e a contextualização do
trajeto da pesquisa dependem do objeto de pesquisa escolhido, pois de acordo com
Marques (2006, p. 22), é necessária “a aplicação de um conjunto de princípios que
tenham o status de científico”.
Com base no projeto idealizado para o desenvolvimento da pesquisa
delineamos a estrutura geral compreendendo a problemática, as questões norteadoras, os
objetivos geral e específicos, bem como os sujeitos e o contexto a ser pesquisado.
2.1.1 A Problemática
A delimitação do problema e o detalhamento da problemática é o primeiro
passo para se iniciar o trabalho de pesquisa. Dir-se-ia que este é o momento crucial para
o início dos trabalhos. “A formulação do problema aos chamados critérios de
delimitação, de modo que se inibam as tentativas de se ampliar demais o problema ou
restringi-lo além do ideal”. (MARQUES, 2006, p. 95).
Diante disso, consideramos importante a contextualização da problemática, a
fim de que possamos nos debruçar no percurso metodológico. No inicio tínhamos
apenas as leituras relacionadas à temática geral abordada e, somente quando fomos ao
campo é que definimos o objeto da problemática. A partir daí compreendemos que
41
historicamente, os povos “civilizados” vinham imprimindo o caráter de sua cultura aos
povos “primitivos”. Tal imposição ocidental caracteriza mais uma vez a invasão de
território dos povos tradicionais da floresta, que se repete em vários momentos na
historiografia. Na pesquisa de campo, nosso interesse cresceu, ao considerarmos a ideia
dos povos tradicionais sobre ciências e, ao acreditarmos no potencial da escola indígena
enquanto espaço de pesquisa científica, então decidimos pela explanação desse campo.
Por fim, tomamos como foco principal do problema o trabalho científico desenvolvido
no meio do povo Baniwa e Coripaco do Alto Rio Negro, na escola Pamáali, o que
despertou nosso interesse de investigar qual a concepção desses povos acerca do que é
ciência e como se dá, neste processo, o ensino de ciências naturais, levando em
consideração as experiências de ensino, os saberes, a territorialidade e o modelo mítico
dos Baniwa e Coripaco.
2.1.1.1 As Questões Norteadoras
Diante da contextualização da problemática foram levantadas algumas questões
que nortearam todo o nosso percurso. Na primeira buscamos saber quais as concepções
de Ciência presentes nas ações desenvolvidas pelos professores da Pamáali no Alto Rio
Negro? A resposta obtida nesta questão nos proporcionou uma visão clara das
concepções do fazer científico dos Baniwa e Coripaco. No segundo questionamento
investigamos quais as concepções de Ciência fundamentam as práticas de ensino?
Descobrir uma nova concepção de ciência fundamentando as práticas pedagógicas dos
Baniwa e Coripaco foi uma constatação surpreendente, do ponto de vista de que as
escolas de não índios estão aquém de alcançar tal concepção em suas salas de aula. A
terceira questão foi como acontece o Ensino de Ciência na prática de sala de aula?
Estar em contato com uma prática diferenciada nos acrescentou significativa satisfação,
visto que se tratou de uma primeira experiência e, ainda nos possibilitou a construção de
uma proposta de recurso pedagógico bilíngue para o ensino de ciências naturais. E por
fim, questionamos qual a relação entre a interculturalidade, a territorialidade e a
sustentabilidade para os processos de ensino e de aprendizagem? A percepção de uma
estreita relação entre estes conceitos na prática pedagógica Baniwa nos fez refletir que
para eles todo conhecimento adquirido é uma questão existencial.
42
2.1.1.2 Os Objetivos
Diante desse contexto nossos objetivos foram traçados para responder aos
questionamentos levantados dentro da proposta da pesquisa. Assim sendo,
estabelecemos:
2.1.1.2.1 Geral:
 Investigar as Concepções de Ensino de Ciências Naturais, numa perspectiva de
educação intercultural e sustentável, nas práticas de ensino Baniwa e Coripaco
da EIBC-Pamáali no Alto Rio Negro.
2.1.1.2.2 Específicos

Identificar as concepções sobre ciências, educação intercultural, sustentabilidade
e territorialidade na prática política e pedagógica dos professores Baniwa e
Coripaco da EIBC-Pamáali;

Analisar a formação dos saberes Baniwa e Coripaco e a construção de conceitos
nas ciências naturais;

Elaborar uma proposta de recurso pedagógico, como alternativa metodológica a
ser utilizada nos anos iniciais do Ensino Fundamental da educação escolar
Baniwa e Coripaco da EIBC-Pamáali.
2.1.2 Os sujeitos da pesquisa
Os sujeitos da pesquisa foram trinta e oito estudantes do Ensino Fundamental,
dezoito estudantes do Ensino Médio Integral e três professores, incluindo o
Coordenador da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali, fazendo um total de
sessenta e dois sujeitos diretamente envolvidos no processo da pesquisa.
A escola localizada no Médio Içana, rio afluente do Rio Negro foi escolhida
para que se pudesse dar continuidade a um processo de pesquisa já iniciado, que
analisou em linhas gerais, a metodologia com pesquisa desenvolvida ali. Nosso objeto
de pesquisa foi um olhar voltado especificamente para as concepções presentes nas
práticas do ensino de ciências naturais.
Os professores investigados são formados no Magistério indígena e dois deles
estavam cursando a Pedagogia Intercultural da Universidade do Amazonas. O professor
43
atuante no ensino de ciências naturais do Ensino Fundamental foi aluno da escola e
estava naquele momento como professor regente da turma. Para preservar a identidade
dos estudantes, os identificamos pelas siglas Fund/n° para Ensino Fundamental e
EMI/nº para Ensino Médio Integral. Também o nome dos estudantes autores das
monografias analisadas foi preservado, sendo estes identificados, no capítulo da análise,
na primeira tabela pela letra A+nº e nas tabelas seguintes AB+nº. E quando aparece a
fala dos professores são identificados como Prof. Fund. ou coordenador.
2.1.3 O objeto de estudo
Construir o objeto é uma expressão que se tornou corriqueira em sociologia.
Portanto, o emprego do termo é para dar sentido e clareza ao que se quer definir. O
objeto é separado do conhecimento comum e da percepção subjetiva do sujeito. Sobre
esta temática Kaufmann (1996) afirma que construímos como um artesão intelectual,
isto é, aquele que domina e personaliza os instrumentos tanto o método quanto a teoria
para um projeto concreto de pesquisa. Este artesão é tudo ao mesmo tempo: homem do
campo, da metodologia e da teorização e não se deixa dominar nem pelo campo, nem
pelo método nem pela teoria, pois deixar-se dominar assim é deixar de descobrir uma
nova roupagem na máquina do mundo.
Por isto não foi tarefa fácil delimitar o tema diante de uma imensidão de
opções que se apresentaram, mas como precisávamos superar a dicotomia entre a
contemplação e a ação [grifos nosso], partimos para o desenho que, para nossa surpresa
não se distanciou da nossa proposta inicial, isto é, espaço não formal [Idem].
Com base nessa premissa, identificamos as atividades da escola relacionadas
com o ensino de ciências e o trabalho desenvolvido pelo professor do Ensino
Fundamental. Então, para o ensino de ciências naturais são usados os conhecimentos
tradicionais do povo Baniwa e Coripaco e sua contextualização com os conhecimentos
da escola ocidental. [Foi o momento do insight!] A construção de conceitos em ciências
naturais por meio dos saberes tradicionais foi confirmada na sala de aula, na trilha das
ciências, na casa das ciências e nas narrações dos sujeitos.
Nesse sentido, a principal motivação para o ensino, reside na exploração dos
mitos do povo Baniwa e Coripaco. Esse fato é comprovado por meio das monografias
escritas pelos alunos do Ensino Fundamental/2004, que exploram os conhecimentos
44
míticos Baniwa e Coripaco, destacando a ideia de sustentabilidade cultural a partir da
exploração e do registro dos conhecimentos tradicionais de um povo.
2.1.4 A natureza da Pesquisa
“Nada é real, tudo é construção. Não há objetividade,
não há fatos, só interpretações”.
Nietzsche
Estabelecer um percurso metodológico de uma pesquisa desta natureza é uma
construção intelectual desafiadora. Pois, trata-se de uma experiência de aquisição de um
novo conhecimento, do relato da viagem pelo Rio Içana, no Alto Rio Negro e da
descoberta de um trabalho pedagógico significativo. É, também, um exemplo de
educação escolar sustentável que objetiva preservar a cultura do povo Baniwa e
Coripaco, interagindo com a ciência do índio e a ciência do não índio.
Com base nessa perspectiva, Pires (2009, p.57) afirma que não há observador
externo. Visto que, ao entrar em uma comunidade ou aldeia o pesquisador, com sua
presença, altera as condições do local da pesquisa, pois ele é participante da pesquisa e
se envolve como sujeito e como objeto da pesquisa. O autor reforça a afirmativa,
destacando que “o sociólogo, o antropólogo e o pesquisador em educação encontram-se
numa situação especial [...], [porque] têm a grande vantagem de dispor de um
laboratório natural, que não é outro senão a realidade que os cerca”, passando da
observação, para a explicação e para a análise da situação em questão. E é, portanto, na
passagem da descrição para a explicação dos fatos, que o pesquisador faz a transição da
etnografia para a etnologia. Deste modo, etnografia, etnologia e antropologia são etapas
necessárias na pesquisa sobre culturas.
Certamente que diante de um objeto complexo e com características
específicas, a adoção de uma metodologia de macrossistemas não favorece o caminho
da pesquisa. E para referendar essa premissa, Pires (2009) afirma que a pesquisa
etnográfica dentro das ciências sociais, especialmente nas ciências da educação, tem
aumentado significativamente. E arrematando, Lima, Dupas e Oliveira, (1996, p. 24)
apud Spradley (1979), afirmam que “etnografia é a descrição de um sistema de
significados culturais de um determinado grupo”, onde o objetivo é conhecer uma
realidade, mas, do ponto de vista de quem informa.
45
Nesse sentido, a descrição, a explicação e a interpretação são etapas
indispensáveis no momento da análise dos fatos da realidade e, fundamentais para o
aprofundamento da pesquisa.
Portanto, a escolha do método depende do tipo de abordagem, da representação
social e do tipo de conduta adotada pelo pesquisador. Por essa razão, adotamos o
método observacional, para estudo de caso, enquanto base técnica da pesquisa, pois se
fundamentou em procedimentos sensoriais como ver e ouvir, concentrada na ação dos
sujeitos dentro das condições concretas de sua realidade. O estudo de caso “consiste no
estudo de determinados indivíduos [...], grupos ou comunidades, com a finalidade de
obter generalizações.” (MARQUES, 2006, p. 55).
Nesse caso, o caminho traçado visou alcançar os objetivos, com base nos
pressupostos da pesquisa qualitativa, sem, no entanto, desconsiderarmos as informações
quantitativas, pois são complementares entre si. Contudo, Teixeira (2008) explica que a
linguagem dos sujeitos e suas práticas são a matéria-prima da abordagem qualitativa.
Para corroborar, Pires (2009) assinala que a importância da etnometodologia
para a etnologia está na compreensão dos significados de uma realidade específica para
a coletividade, ou seja, os significados vão além do interesse individual e prevalece o
interesse do grupo social. Portanto, a etnometodologia se justifica por analisar as
microestruturas, pois a sociedade se constitui por microprocessos, que segundo
Haguette (2001, p. 20) “em seu conjunto, configuram as estruturas maciças,
aparentemente invariantes, atuando e conformando inexoravelmente a ação social
individual”.
Lévi-Strauss (1997) destaca o papel do pesquisador na construção da
metodologia, com temas cujo objeto foi escolhido a partir da visita ao campo, como um
“bricoleur, [que] está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas [e] se
define por sua instrumentalidade, [onde] os elementos são recolhidos ou conservados
[representando] um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais” (p.
32/33).
Sobre essa questão Kincheloe (2004) infere que a bricolagem destaca a relação
entre o pesquisador e a maneira de ver um local social que pode ou não fazer parte de
sua história pessoal. Neste sentido, a bricolagem pode ser entendida como um processo
de emprego de estratégias metodológicas necessárias ao contexto para evolução da
investigação.
46
Portanto, com base nessa definição elaboramos nosso próprio caminho, a fim
de investigar a realidade do campo. E o valor de nossa caminhada está no significado de
cada momento vivido, cada fato explorado, cada narrativa escutada, como mérito do
pesquisador que vai ao campo, experimenta sensações e conhece uma realidade, “numa
relação ‘sui generis’” (Teixeira, 2008, p. 81), identificando-se com o objeto, para
finalmente iniciar o percurso metodológico.
Consequentemente, elegemos as técnicas e os instrumentos para a coleta de
dados que tem “a finalidade de gerar uma documentação ou acervo de dados”.
(MARQUES, 2006, p. 57). Então, optamos pela observação direta intensiva
participante, pelo uso da narrativa, pela entrevista não diretiva, pelo uso da carta
(eletrônica), registro fotográfico, fílmico, sonoro e, ainda a análise documental de fonte
primária (monografia dos estudantes que concluíram o Ensino Fundamental/ 2004), a
fim de coletarmos informações espontâneas, que interligasse ensino de ciências e
educação indígena.
2.1.5 As técnicas e instrumentos
“Esperando a chegada da nossa embarcação, pude
aproveitar muito bem o tempo estudando os
indígenas”.
Theodor Grünberg
2.1.5.1 Observação e narração
A aplicação de cada técnica da coleta de dados ocorreu em etapas e serão
detalhadas, no texto a seguir.
Estivemos na sala de aula para observar a atividade em desenvolvimento.
Ressalte-se que “a observação em pesquisa não é só olhar, significa um olhar específico
sobre o fenômeno que se quer conhecer” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e ÂNGELO,
2005, p. 718). O professor do Ensino Fundamental ministrava a disciplina de “Ciências
Naturais”, com os conteúdos conservação das plantas, cadeia alimentar, mamíferos e
nome dos seres vivos. Observamos que o professor se reportava aos estudantes na
língua Baniwa.
47
Figuras 01, 02, 03 e 04: Sala de aula Ensino Médio e sala de aula Ensino Fundamental
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: Grupo de Pesquisa Ensino de Ciência, cultura e sustentabilidade na Amazônia –
GPECCSA 9
Na sequência, como já estavam finalizando uma etapa de estudos, ele recolheu
as atividades concluídas e solicitou que os alunos escolhessem um tema, a partir dos
conteúdos propostos, para ser pesquisado na entre etapa (recesso escolar) em suas
comunidades. Em seguida o professor deu a explicação necessária para a pesquisa
chamada intermediária.
Após o encerramento da aula o professor relatou sua experiência. E ao me
mostrar o livro-texto que usa em sala de aula, cogitou a possibilidade de um livro nas
línguas Baniwa, Coripaco e Português, mas o livro estava apenas em Português. O
professor, em sua narrativa, revelou que foi estudante da escola e recebeu um convite
para assumir como professor do Ensino Fundamental. Ressaltou sua satisfação em
retornar à escola como professor e afirmou: “como estudante eu tinha mais trabalho,
pois ainda não conhecia a escola; como professor é mais fácil, já conheço a metodologia
da escola”. Em sua fala ele destacou um fato marcante em sua volta, que “a escola está
avançando, isto facilita o trabalho de professores e estudantes”. Quanto ao ensino de
Ciências, revelou: “praticamos ao voltar para as comunidades e ao aplicarmos o que
aprendemos para a sustentabilidade” e acrescentou que “o ensino sem pesquisa é difícil,
mas com pesquisa é diferente, pois mostra a habilidade do estudante e facilita o
desempenho tanto do professor quanto do estudante” e encerrou a narrativa.
2.1.5.1.1 Narrativa: o ensino com pesquisa
Nesta etapa ouvimos por amostragem, representantes dos dois principais
seguimentos da escola, isto é, estudante e professor, utilizando como instrumento de
coleta a narrativa, pois,
9
Nas próximas fotos usaremos apenas a sigla GPECCSA.
48
É, pela sua característica oral, aquela que mantém as tradições e as conserva
[...]. O narrador não “informa” sobre a sua experiência, mas conta sobre ela,
dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de acordo com a
sua interpretação (DUTRA, 2002, p. 373/4).
A narrativa a seguir é de um estudante do Ensino Médio Integrado da EIBC
Pamáali. Este estudante pertence à escola desde o 6° ano em 2006 e a narrativa foi
transcrita tal como ele expressou.
“Em 2006, vim para Pamáali e pertenço à comunidade de Tucumã. Essa
escola tem o objetivo de formar verdadeiros cidadãos Baniwa. Fiz as séries
iniciais na minha própria comunidade e temos, aqui, bons professores. Meu
interesse pela pesquisa é aprofundar conhecimentos. Nas aulas de Ciências,
nós estudamos primeiro a teoria e depois fazemos a prática para conhecer de
perto o funcionamento da natureza. Nós temos aulas práticas de Agronomia,
de Piscicultura. Nesta última, estudamos sobre alimentos alternativos para
os peixes. Podemos citar uma espécie de cupim e de fruta que se chama
dzeca, em Baniwa. É uma fruta verde que fica escura quando amadurece.
Ela sai da casca e cai direto na água, alimentando os peixes do viveiro.
Existe, também, outra fruta de cor negra chamada wiri-wiri. No viveiro tem
peixe aracu, pintado, jandiá, acará. Nós não criamos tucunaré porque ele é
predador das outras espécies. Esses peixes são consumidos na escola e nas
comunidades. No inverno e durante a piracema chega a uma quantidade de
mais ou menos cinco mil peixes por viveiro. Temos três viveiros. Às vezes
doamos para outras escolas e comunidades. A avicultura atualmente está
parada.
Figuras 05 e 06: Oficina de piscicultura
Fonte: Arquivo Pamáali
Nas oficinas nós aprendemos a cuidar dos peixes. Por exemplo: desenhamos,
descrevemos o peixe, aprendemos o nome cientifico, em Baniwa e em
Português. Tudo isto aprendemos com o engenheiro de pesca. Aqui nós já
catalogamos mais de duzentas espécies de pimenta da região e temos
produção de pimenta jiquitaia. O objetivo é também vendermos para
revertermos em recursos para a escola. Na escola também vendemos anéis,
colares para subsistência. Confeccionamos cestos de urutu10. Produzimos
10
Cesto confeccionado com fibra de arumã.
49
em parceria com empresas. Na casa das Ciências estudamos biologia e,
buscamos compreender a origem das plantas e dos animais. Na pesquisa
para a monografia a escolha é do próprio aluno, para ele descobrir a
própria formação. O professor deixa o aluno livre, pois não deve escolher o
tema do aluno. Eu escolhi “Doenças dos não índios no meio Baniwa e
Coripaco”. Fizemos uma oficina de Arquitetura aí construímos a casa das
pimentas, o lugar onde produzimos a pimenta, desde a plantação, colheita,
pilagem e tudo o mais. Aprendemos a fazer casa tradicional, de palha, não
de caranã, cercado de madeira da região, com cobertura por baixo da palha
para evitar mosquito, etc. A casa será construída pelos estudantes do Ensino
Médio e já temos material, só falta construir. O material foi comprado com
dinheiro do projeto da pimenta. Tivemos também oficina de Jornalismo, para
implantar jornal da escola, chamado “Pitsiro Pamáali”. Temos duas roças,
sendo que uma já está no fim. São 2,5km daqui até a roça e temos abacaxi,
pupunha, pimenta (8 a 10 tipos), caju, banana, cana, marí, macaxeira e
mandioca, cará. Não plantamos tomate, cebolinha e coentro, porque não se
adaptam a terra por isso não há interesse. [aluno1 fund.]
Então, desta maneira, evidenciamos a participação do estudante no processo de
construção do conhecimento e no processo político de formação cidadã. Tal é a riqueza
de informações contidas nesta narrativa, pois mostra que existe uma preocupação de
fato com a aprendizagem significativa para a sustentabilidade. A criticidade do
estudante é surpreendente e sua sensibilidade em relação às questões de sua realidade é
a prova material de que a pesquisa na escola indígena Pamáali é um fato e, porque não
dizer inquestionável, diante de tanta evidência.
2.1.5.1.2 Temas transversais na Ciência do Índio: “é a prática do dia a dia”
A narrativa do coordenador da escola, que em uma coletiva passou algumas
informações sobre temas transversais, sobre o que é ciência, sobre a estrutura da escola,
dentre outros assuntos, foi um momento de interação da pesquisa, onde as partes se
sentiram à vontade para falar sobre suas experiências.
Assim, professores e pesquisadores mantiveram um nível de interatividade que
favoreceu a aplicação do instrumento da pesquisa, isto é, a narrativa. Em seguida
transcrevemos sem alterações a narrativa do coordenador, relacionada aos diversos
temas abordados. À medida que sugeríamos o assunto, o coordenador (também
professor) discorria naturalmente respaldado pelos saberes de seus ancestrais.
Quanto aos temas transversais, são escolhidos de acordo com o objetivo da
pesquisa e direcionados conforme a necessidade, podendo ser voltado para
ética, sustentabilidade, etc. Discutimos para acompanhar o que está mais
50
atual e pode ser sobre questões econômicas, arquitetura, conhecimentos
tradicionais Baniwa, conhecimento sobre novas tecnologias. São vários
conceitos de ciências utilizados para criar uma concepção de ciência da
escola. O PPP da escola ainda é o mesmo. Possuímos 04 escolas de séries
iniciais e Educação Infantil.
As dificuldades enfrentadas são certamente as mesmas de qualquer escola
brasileira, porém, conforme a narrativa os Baniwa e Coripaco buscam soluções
coletivas, de interesse coletivo, com vistas a solucionar satisfatoriamente os problemas
que se apresentam. Em determinado momento naturalmente perguntamos ao professor:
O índio faz Ciência? Ao que ele respondeu:
Todos nós fazemos ciência. [E isto] para nós é atividade diária como ir à
roça, fazer a farinha, acordar cedo, tomar banho, ficar perto do fogo. Agora
sei o que é ciência através da pesquisa [porque] antes ciência estava somente
na água, na chuva. E agora entendo porque os mais velhos tentavam nos
mostrar e manter as artes e a cultura do Índio e não apenas permanecer nu e
fazer festas; Quanto aos Recursos Didáticos, ainda não temos material
produzido pela própria escola, mas há interesse em publicar, é uma ideia: o
Ensino Médio publica para o Ensino Fundamental e o Ensino Fundamental
nos anos finais publica para os anos iniciais e Educação Infantil. Nós já
temos quatro livros publicados em parceria; Quanto à Formação, a maioria
dos professores tem só Magistério Indígena. E sobre a licenciatura
intercultural da UEA não estou aprovando, gosto somente da parte da
linguística, produção de texto. Mesmo assim, o orientador não conhece a
realidade indígena. Há dificuldade na formação de formadores. Aqui na
escola temos seis professores com Magistério Indígena, um fazendo
Pedagogia Intercultural e um faz Licenciatura relacionada à
sustentabilidade.
Essa narrativa nos leva a perceber a dificuldade para implantação de uma
escola diversificada e plural. Porém, percebemos também a força do índio Baniwa e
Coripaco na busca de uma autonomia educacional. Para eles, vale a pena o esforço na
tentativa de conquistar seus ideais de uma educação escolar que reflita a vontade
coletiva de todo o povo. Assim, a narrativa é um instrumento que facilita a aquisição de
informações espontâneas e favorece o diálogo entre os sujeitos pesquisador-pesquisado.
2.1.5.2 Entrevistas com os estudantes
Nessa etapa sugerimos duas perguntas de respostas abertas, para os estudantes
do Ensino Fundamental e do Médio. Primeiramente realizamos uma dinâmica para
51
descontraí-los e obtermos melhor interação com eles naquele contato. Em seguida cada
estudante recebeu uma folha para registrar as perguntas, para responder e entregar até o
final daquele dia. Não houve direcionamento e cada um deu suas respostas de acordo
com suas experiências e conhecimentos. Os resultados das respostas das entrevistas
foram tabulados, analisados e expostos detalhadamente no capítulo 3 deste trabalho.
Neles constam as concepções de ciência, concepções científicas que permeiam as
práticas pedagógicas, bem como a relação entre interculturalidade, territorialidade e
sustentabilidade no processo de ensino e de aprendizagem para os Baniwa e Coripaco.
2.1.5.3 Registro e análise das atividades da sala de aula
Esse foi o momento de verificarmos os registros documentais, ou seja, as
atividades feitas em sala de aula e as monografias dos alunos concluintes do Ensino
Fundamental/ 2004. A importância desse instrumento de coleta de dados está no fato de
que tal
investigação confere um valor histórico ao documento a medida que o
pesquisador é capaz de superar os limites inerentes ao próprio material com
que trabalha e, ao mesmo tempo, reconhece serem sua postura e experiência
de vida composta por uma bagagem que é histórica (PIMENTEL, 2001, p.
193).
Isso confere ao pesquisador a característica de historiador transmitindo a
realidade do passado. Então, com a ajuda do professor, selecionamos as atividades
realizadas pelos estudantes do Ensino Fundamental, a fim de estudarmos a possibilidade
da proposta de publicação. Registramos as atividades dos estudantes através de
fotografia, enquanto o professor da turma e da disciplina, narrava a construção de cada
atividade. Durante a observação, registrávamos os momentos por meio de fotografias e
filmagens, ressaltando que, “a utilização [...] de vídeo [...] em Pesquisa Qualitativa
constitui [uma] escolha metodológica no sentido de apreender o fenômeno complexo
em que [...] as imagens são suas partes inerentes” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e
ÂNGELO, 2005, p. 720). O detalhamento das atividades está em texto específico no
capítulo 3 deste trabalho.
52
2.1.5.4 A carta (eletrônica): uma possibilidade na coleta de dados
Em um último momento, como alternativa para ampliação da compreensão de
alguns dados coletados, elegemos a carta como uma possibilidade para complementar
algumas informações, necessárias para a continuação da análise. Portanto, conforme
afirma Moraes (2006) a carta, que pode ainda ser chamada de missiva ou epístola, nos
permite uma comunicação com pessoas em grupo ou individualmente, que estejam
ausente ou distante do outro.
Embora não se trate da carta convencional, a carta por meio eletrônico é
também um recurso que o pesquisador pode lançar mão, com vista a alcançar seus
objetivos. Portanto, encontramos respaldo para esta afirmação no argumento de Demo
(1985) assegurando que a metodologia
É somente Instrumento para chegarmos lá. Discutimos os caminhos
possíveis, os já vigentes, os que já se superaram, e assim por diante. Não vale
a pena entreter-se de tal modo com questões metodológicas que não
cheguemos a fazer pesquisa (DEMO, 1985, p. 22).
Nesse sentido, ainda que a carta, seja ela a convencional ou por meio
eletrônico, ainda tenha sido pouco utilizada na pesquisa, é um instrumento bastante
eficaz que o pesquisador pode fazer uso.
2.6 EIBC-Pamáali e espaço não formal de ensino: experiência para uma nova
concepção
“Acredito que nos livros a gente aprende sim, mas
não 100%. Aprende mais vivendo no lugar”.
Juvêncio Cardoso - Baniwa
No nosso entendimento, não haveria possibilidade de explorar a temática
espaço não formal de ensino em uma escola indígena, porém, conhecer a realidade, em
particular da EIBC-Pamáali, trouxe para nossa experiência uma nova concepção.
Ao chegar a Pamáali a recepção que tivemos dos estudantes foi calorosa. Em
sua simplicidade nos receberam com música, cumprimentos cordiais e excelentes boas
vindas, nos dando ótima impressão do lugar. Após o primeiro momento da chegada, nos
instalamos em uma das casas e depois fomos conhecer um pouco o local.
53
Figuras 07, 08 e 09: EIBC-Pamáali
Fonte: Arquivo da EIBC – Foto 07: ISA; Fonte: pesquisa de campo/2009 – Fotos 08 e 09: GPECCSA
A Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali situada no Médio Rio Içana, um
dos principais afluentes do Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira –
Amazonas desenvolve uma metodologia de Ensino de Ciências com base na Ciência do
Concreto e valoriza as experiências vividas do dia a dia e as tradições mitológicas de
seu povo. Foi construída numa área de 03 (três) km², em terras indígenas demarcadas e
homologadas desde abril de 1998. O percurso de São Gabriel da Cachoeira até a sede da
escola é de aproximadamente 390 km. Em sua narrativa o coordenador explica sobre
esta questão da localização da Pamáali, destacando que a área da escola é de mais ou
menos 3 km². Ele faz referência também, à construção do PPP para reconhecimento do
Ensino Médio na escola e afirma:
O PPP do Ensino Médio ainda não está aprovado, por isso não podemos
fazer exigências. O que sabemos é que não queremos o modelo de Ensino
Médio da SEDUC. Com a construção do novo PPP, teremos mais
autonomia, ele está em processo de aprovação. O documento foi construído
coletivamente e logo após foi apresentado em Assembleia para avaliação dos
pais. Estamos com dificuldade de tempo para concluir, mas somente com a
conclusão do PPP poderemos reconhecer a Escola. A nossa Escola é
pensada pelo povo Baniwa e Coripaco, não por ninguém de fora. [ProfessorCoordenador]
O professor revela em sua narrativa a construção de uma escola indígena
democrática, com a participação de todos. Os obstáculos, não se constituem em motivo
de paralisação, pelo contrário, eles avançam em direção à escola dos Baniwa e
Coripaco. Pamáali conserva a estrutura de ocas com casas construídas com barro, traves
de madeira, piso de barro batido e cobertura de palha, o que dá um ar rústico ao local.
54
Figuras 10 e 11: Estrutura arquitetônica da Pamáali
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Em sua estrutura geral a escola possui: 03 salas de aula, casa dos professores,
casa dos pesquisadores, sala da coordenação com internet, biblioteca, (que por sinal
precisa ser revitalizada em seu acervo) casa das ciências, cozinha, campo de futebol e
área externa para reunião. Além disso, a escola possui a trilha das ciências, um
laboratório vivo para observação de várias espécies de plantas nativas, para fins
ornamentais e medicinais.
Figura 12: Biblioteca
Figura 13: Sala de aula
Figura 15: Trilha das ciências
Figura 14: Cozinha
Figura 16: Casa das ciências
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Em determinado momento do dia, reunimos com a coordenação que nos
apresentou a equipe: vice-coordenador, administrador, articulador e assessor
pedagógico. Uma equipe composta exclusivamente por homens.
Assim, depois de apresentadas as nossas intenções saímos para que eles (os
indígenas) discutissem entre si sobre o que tratamos e para que tomassem algumas
decisões. Enquanto esperávamos fomos à sala de aula, a fim de conhecermos o
55
ambiente e, conversamos com os estudantes do 1º ano do Ensino Médio. A turma possui
onze estudantes do sexo masculino. Vale ressaltar que, a participação das mulheres na
escola ainda é mínima e o domínio continua sendo dos homens, traço forte da cultura
indígena.
Os estudantes nos informaram que atualmente funcionam três salas de aula,
sendo uma de 1º ano, uma de 2º ano, ambas de Ensino Médio e uma de Ensino
Fundamental. Após alguns momentos, retornamos a conversa com os coordenadores,
que estabeleceram algumas condições para a equipe. Então, finalizada a reunião,
partimos para as próximas atividades. Ajustamos o tempo que ainda nos restava ali e,
realizamos entrevista com um estudante, na mesma noite; atividade de intervenção na
manhã seguinte; visita à trilha das ciências à tarde; e entrevista com coordenador e
professores, na outra noite.
Na manhã seguinte, conforme programado, fomos para a sala de aula realizar a
atividade proposta, que se deu em quatro etapas: 1) Dinâmica de descontração e
interação, 2) Observação e registro da atividade desenvolvida; 3) Registros fotográficos
das atividades nos cadernos; 4) Resposta a duas questões abertas para os estudantes do
Ensino Fundamental e Médio; 5) conversa informal com o professor do Ensino
Fundamental, durante a aula de ensino de Ciências Naturais. Observamos que na turma
do Ensino Fundamental havia meninas, tímidas que se destacam nas tarefas práticas de
limpeza, no preparo das refeições e outras desta natureza.
Ao visitar a Trilha das Ciências e, tivemos uma experiência incrível ao
verificarmos o laboratório vivo, a riqueza daquele local. A fauna e a flora dali
representam um verdadeiro Museu vivo da Amazônia. Realizamos entrevistas com os
coordenadores e professores da escola e, conhecemos suas concepções, sua vivência em
relação ao “fazer ciência” e ao ensino das ciências. Isto nos acrescentou um pouco mais
de subsídios importantes para a construção das nossas ideias e a delimitação do objeto
da pesquisa. A busca dessa relação entre ciência (s) e educação intercultural para a
sustentabilidade do processo de ensino e de aprendizagem Baniwa e Coripaco, visa, por
meio das práticas pedagógicas, a conservação do espaço territorial e a revitalização da
vertente mítica, como recurso de ensino. Na sequência desta explanação faremos a
análise dos dados coletados que será a comprovação prática dos nossos estudos.
56
3 OS SABERES INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS EM
CIÊNCIAS NATURAIS: UMA PROPOSTA INTERCULTURAL, BILÍNGUE E
SUSTENTÁVEL PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS
“A Escola é pensada pelo povo Baniwa, não por
ninguém de fora; a arte e a cultua do índio não é
apenas permanecer nu e fazer festas.”
Raul Brasão - Baniwa
3.1. EIBC-Pamáali: um diferencial da educação escolar indígena
A experiência na EIBC-Pamáali trouxe informações relevantes, em qualquer
seguimento que atuarmos dentro da Educação. A análise a seguir é um diferencial não
só para a Educação Escolar Indígena, como também para a Educação Escolar não
Indígena, pois se trata de um nível significativo de consciência acerca da importância da
Escola, que poderá se tornar referencial para aqueles que têm o compromisso com uma
Educação Escolar influenciadora na vida de crianças, adolescentes e jovens.
Figuras 17, 18, 19 e 20: Pesquisa na sala de aula e na trilha das ciências
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
De acordo com o relatório da Coordenação da Pamáali, a respeito da
construção monográfica da turma do Ensino Médio Integral de 2004, a ideia de produzir
trabalhos escritos para sistematizar os conhecimentos aprendidos durante os quatro anos
do curso, partiu dos próprios alunos. Para eles seria uma forma de validar as
informações recebidas e reconhecer o trabalho dos professores. O relatório monográfico
da Coordenação reforça que
A ideia surgiu com a participação ativa destes alunos na vida dos professores
Baniwa e Coripaco durante a formação no Magistério Indígena em 2001, que
realizaram pesquisa e desenvolveram uma monografia, com temas variados,
para conclusão do curso de magistério. (Relatório da Coordenação da EIBC
57
Pamáali, sobre as produções monográficas dos alunos do Ensino Médio
Integral 2004).
Diante disso, constatamos que Pamáali é uma escola que forma cidadãos
Baniwa, conforme declarou o aluno em sua narrativa no capítulo anterior.
Com base nessa premissa, destacamos que na primeira turma que concluiu o
Ensino Médio formaram 17 alunos e todos produziram sua monografia voltada para os
conhecimentos Baniwa e Coripaco. O mais interessante, conforme consta no relatório, é
que cada decisão tomada pela escola, pelos professores ou alunos são decisões com
propósito. Um exemplo disso é o fato de que apenas duas monografias foram escritas
em Baniwa, mas justifica-se pela busca da sustentabilidade cultural presente em cada
ação da Escola. O relatório das monografias esclarece que
As duas monografias escritas na língua Baniwa foram referentes ao tema
Meliponicultura, com a proposta clara dos alunos de produzir um material
bibliográfico que possibilitasse a compreensão de todos os Baniwa e
Coripaco sobre esta nova técnica iniciada dentro do rio Içana na Escola
Pamáali, já que existe uma considerável produção escrita sobre este tema em
Português (Idem).
Agregue-se a esse comentário que todas as ações desenvolvidas pela EIBC
estão sempre envolvidas num compromisso de dar significado e sentido aquela
atividade, para a formação de novos conceitos. Acerca deste comentário Vygotsky
(1998, p. 67) observa que “a formação de conceitos é um processo criativo, e não um
processo mecânico e passivo; [...] um conceito surge e se configura no curso de uma
operação complexa, voltada para a solução de algum problema”.
Figura 21 e 22: Oficina de meliponicultura
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
58
Portanto, vemos nesse processo de construção das monografias um exemplo de
autonomia de aprendizagem por parte dos estudantes na construção do próprio
conhecimento. Para entendermos melhor esta questão, com as informações constantes
no relatório de 2004, construímos tabelas reforçando esta afirmação, onde identificamos
os estudantes por letras e números.
Na Tabela 1 (abaixo), verificamos que, dez dos dezessete alunos que
terminaram o Ensino Fundamental escreveram sobre o conhecimento Baniwa. Tornar a
cultura conhecida é um objetivo presente nas produções acadêmicas da Escola. Nestes
termos, poderíamos considerar que a escola segue as tradições antigas para ensinar o
aluno a “ser Índio” 11 [grifo nosso], ou melhor, um Baniwa.
Tabela 1: Monografias que exploram o conhecimento Baniwa e Coripaco.
ALUNO
TEMA
ÁREA DE INTERESSE
SIGNIFICADO (MITO)
Organização
da
Tribo Dzawinai
Chegada de seus familiares
a Juivitera.
História do surgimento do povo
Dzawinai.
Grafismo
do
Artesanato
de
Arumã Baniwa Alguns
Significados.
Armindo é artesão;
Escolheu o tema de acordo
com os grafismos que sabe
fazer.
Origem do grafismo na mitologia
Baniwa.
Plantas
Tradicionais
Baniwa
Participação do pai, agente
indígena de saúde, do
projeto
de
Medicina
Tradicional Baniwa.
A educação tradicional
Baniwa
é
totalmente
diferente
da
educação
escolar.
Origem das Plantas Medicinais na
mitologia Baniwa.
A1
A2
A3
saber
dos
A4
Parto Tradicional
Baniwa
Uma preocupação pessoal.
A5
Origem do parto Baniwa, segundo
a mitologia.
A6
Doenças
Tradicionais
Baniwa
Levantamento cuidadoso de
20 doenças tradicionais
Baniwa.
Conta uma das histórias da
mitologia Baniwa de como as
Doenças Tradicionais aparecem
no mundo.
Instrumentos
Musicais do Povo
Baniwa
Envolveu vários alunos,
muitos colegas apoiaram o
autor pela curiosidade de
todos sobre os instrumentos
musicais.
“As flautas que as mulheres não
podem ver foi a grande dúvida do
aluno se podia ou não desenhar,
em reunião com os velhos
descobriu que não podia”.
A7
11
A valorização do
Baniwa mais velhos.
A
Educação
Indígena
Tradicional Baniwa
“Índio é todo aquele que se reconhece como pertencente a uma dessas comunidades e, é por ela reconhecido como
um de seus membros”. (Secretaria de Educação à Distância – MEC/ TV Escola, 2001, p. 31).
59
A arte que se faz
com o arumã
A8
Maapa Ikeñoaka
A9
Origens dos Povos
Baniwa e Coripaco
A10
Descrição cuidadosa do
processo da arte do
trançado de arumã, da
colheita ao acabamento dos
cestos, peneiras e balaios.
Trabalho escrito na língua
Baniwa, para dar acesso às
crianças que ainda não lêem
português.
Arte produzida com arumã;
Origem Baniwa do arumã.
Registrar e disponibilizar
para
pesquisa
o
conhecimento cultural dos
povos Baniwa e Coripaco.
Origem e a evolução dos povos
Baniwa e Coripaco, o território de
ocupação, a diferença lingüística e
quem são os Baniwa e Coripaco
hoje.
Origem das abelhas conforme a
mitologia Baniwa.
Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/2004.
A Tabela 1 (acima) mostra que os interesses pelos temas escolhidos estão
relacionados a uma questão existencial, que é a sustentabilidade científica e territorial,
por meio da sustentabilidade cultural. O coordenador em narrativa no capítulo II, afirma
que “pra morar aqui precisa de conhecimento de plantas medicinais, pesca e caça para
viver” (Narrativa do Coordenador da EIBC/2009). Portanto, além do interesse pessoal
ao desenvolver a temática, percebemos que em cada pesquisa está presente o relato de
um mito Baniwa e/ou Coripaco, explicando a origem das coisas e do mundo. Destaquese ainda o interesse específico voltado para as tradições do homem e da mulher, como é
o caso da aluna A5 que pesquisou em sua monografia sobre “O Parto Tradicional
Baniwa” e revela seu interesse pessoal pela questão ao declarar em seu trabalho que
“atualmente, existe um desrespeito de muitos jovens Baniwa, tanto faz mulher ou
homem, em cumprir as regras tradicionais de cuidado com o corpo para a garantia do
nascimento de crianças sem problemas”. Para ela, o registro dos conhecimentos Baniwa
vai ajudar os jovens valorizar e praticar as tradições.
Para reforçar, destacamos também o trabalho da aluna A3, que abordou em sua
monografia sobre as “Plantas Tradicionais Baniwa” e enfatiza a questão mitológica
presente na cultura do uso dessas plantas. Ela afirma que “as plantas medicinais foram
deixadas para o povo Baniwa pelos seres-espíritos no período em que não tinha humano
no mundo. Na saída de Hiipana cada povo recebeu junto com seus instrumentos de
trabalho, o território e as plantas medicinais”. Neste trecho fica muito clara a relação
entre a territorialidade e a sustentabilidade.
60
Figura 23, 24 e 25: Plantas da trilha das ciências
Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA
Outro ponto importante é a constatação de que as monografias que foram
escritas em Português foi resultado de uma conversa com os pais dos alunos mostrando
que a EIBC deveria também preparar os alunos para o bom domínio da Língua
Portuguesa [grifo nosso]. Isto mostra a relação entre interculturalidade e
sustentabilidade, ou seja, o domínio das duas línguas favorece a comunicação nas duas
realidades.
Na monografia do aluno AB1, (abaixo na Tabela 2) percebemos o nível de
consciência da Escola com as questões ambientais planetárias. O estudante declara a
respeito desta questão, que
Pareceu muitos materiais que chegaram na escola junto com a merenda, que
tudo era transformado em lixo depois de usar o alimento e também pilha,
vidros, papel e plástico utilizado pelos alunos e professores. Então, foi
decidido que o lixo deveria ser cuidado. Primeiramente foi separado o lixo
orgânico e inorgânico. Com o lixo orgânico os alunos fazem adubo, juntam
as cascas de frutas, maniwa e tudo mais que aparece e misturam com terra,
serragem, casa de cupim e folhas secas para servir de adubo nas plantas.
Com o lixo inorgânico, são escalados alunos que fazem a coleta do lixo em
cada casa e o que está no terreno da escola e levam até uma lata velha que
está toda furada para essa finalidade. Nesta lata é queimado o lixo e depois
cava um buraco e o lixo é enterrado (Monografia do aluno AB1 – etnia
Baniwa – clã Liedawiene, 2004, p. 13).
Os trabalhos pesquisados nesta linha mostram que, embora o foco maior seja a
cultura Baniwa e Coripaco, não se isentam do compromisso com as questões ambientais
emergentes que se manifestam em seu território. Eles têm consciência de que a sua
interação com a cultura ocidental causa alguns transtornos que precisam ser
administrados, como no caso do acumulo de lixo no Rio Içana.
Nesse sentido, poderíamos destacar nessas pesquisas uma nova concepção de
ciência, preocupada com a sustentabilidade ambiental. Visto que,
61
O surgimento do conceito de sustentabilidade, que vislumbra, sobretudo, a
harmonização das relações entre desenvolvimento e meio ambiente, insere-se
portanto, num contexto de profundas transformações históricas, indicadoras
da existência de um processo de transição paradigmática na esfera do
conhecimento.(SILVA, s/a, p. 04)
Assim, na Tabela 2 (abaixo), verificaremos que as três monografias
demonstram uma visão de Educação numa perspectiva harmônica da construção
científica intercultural.
Tabela 2: Conhecimento da Cultura Baniwa e da Cultura Ocidental
ALUNO
AB1
TEMA
ÁREA DE INTERESSE
SIGNIFICADO
O Lixo na região do
rio Içana
Preocupação atual, o autor
trouxe como tema de pesquisa
o lixo, problema que hoje é
enfrentado pelas comunidades
do rio Içana.
Tomada de decisão
coletiva na Escola
Pamáali
como
tentativa
de
solucionar
o
problema do lixo.
Origem da Chuva
Duas
concepções
surgimento da chuva.
Importância
da
origem da chuva na
tradição Baniwa.
A Piracema
Uma
compreensão
fenômeno
A escolha do tema Piracema
deve-se ao interesse de saber da
situação dos peixes da região
do Içana e a preocupação com
o futuro das comunidades.
AB2
AB3
Hoje:
nova
deste
de
História da Piracema
segundo a tradição
Baniwa.
Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/ 2004
A Tabela 2 (acima) mostra a preocupação em explorar as duas culturas
valorizando a contribuição de cada uma para a construção de uma concepção científica,
que faça a interação entre os dois conhecimentos, viajando entre as duas realidades,
indígena (Baniwa) e não indígena.
Abaixo a Tabela 3 apresenta outro grupo de trabalho com duas monografias na
linha de pesquisa Proposta de Formação na Escola Pamáali. Estes trabalhos discutem as
técnicas das atividades sustentáveis desenvolvidas no período dos quatro anos de
estudos. É interessante destacar que tanto a Piscicultura quanto a Meliponicultura fazem
parte do dia a dia da Escola e, que ao realizar estes estudos, os alunos trazem a
comprovação e validação da concepção de trabalho científico que os professores da
EIBC vêm desenvolvendo. Além disso, os conhecimentos construídos pelos alunos são
socializados, como é o caso do estudante abaixo citado no relatório monográfico da
coordenação afirmando que ao perceber
62
A dificuldade de muitos colegas em dominar os cálculos matemáticos
exigidos na técnica de piscicultura, realizou um trabalho detalhista sobre cada
cálculo utilizado no laboratório e nos viveiros de piscicultura, com o objetivo
de que este material sirva de apoio ao estudo deste tema na Escola Pamáali
(Relatório da Coordenação da EIBC Pamáali, sobre as produções
monográficas dos alunos do Ensino Médio Integral 2004).
Acrescente-se que, embora nosso foco não seja a matemática, queremos
destacar nesse exemplo (Tabela 3) a preocupação do estudante Baniwa e Coripaco em
publicar o conhecimento pesquisado com os seus pares, como alternativa de superação
das limitações conceituais numa postura interdisciplinar, pois
Independente da definição que cada autor assuma, a interdisciplinaridade está
sempre situada no campo onde se pensa a possibilidade de superar a
fragmentação das ciências e dos conhecimentos por elas produzido e onde,
simultaneamente, se exprime a resistência sobre um saber parcelado.
(Thiesen, 2007, p. 91).
Ademais, a concepção de ensino das ciências presente na atitude do estudante
Baniwa, em compartilhar o conhecimento, representa a concepção disseminada pela
Pamáali, baseada nas temáticas das monografias.
Tabela 3: Proposta de Formação na Escola Pamáali
AUTOR
TEMA
AB4
AB5
ÁREA DE INTERESSE
SIGNIFICADO
Prática de Matemática na
Piscicultura
Aprofundou seu estudo nesta
temática, participando de estágios
nas três estações de piscicultura
existente no Alto Rio Negro,
O objetivo é que este
material sirva de apoio
ao estudo deste tema na
Escola Pmáali.
Tawiñakaa
nhaaha
maapanai – Makawaliko
Para apresentar esta técnica baniwa
e Coripaco interessados na
proposta de criar abelhas sem
ferrão (abelha nativa).
Conteúdos aprendidos
em
duas
oficinas
realizada na Escola em
2003.
Fonte: Relatório da Coordenação EIBC-Pamáali/ 2004
Com efeito, a postura cima representa a convicção Baniwa de que todo
conhecimento adquirido é para sobrevivência. Chegam de fato a alcançar uma
consciência crítica, de modo que o desejo deles é transmitir o conhecimento adquirido,
para as próximas gerações, como no caso da monografia do aluno AB5 (Tabela 3), que
“decidiu escrever o seu trabalho na língua Baniwa, para que fosse acessível às crianças
que ainda não lêem português aprenderem a história do surgimento das abelhas de
63
acordo com a mitologia do povo Baniwa” (Monografia “Tawiñakaa nhaaha maapanai”
do aluno AB5/ 2004).
Portanto, a análise destas primeiras monografias mostra o trabalho científico
desenvolvido na Pamáali e revela que os estudantes têm consciência de quem são,
enquanto cidadãos Baniwa. É tanto que os estudantes do Ensino Fundamental da
Pamáali mostram maturidade intelectual ao produzir um trabalho deste nível, dentro das
normas técnicas, seguindo o padrão acadêmico exigido na escola de ensino superior
(graduação).
Por fim, a análise dos temas escolhidos pela turma de 2004, serviu de
referência para comprovarmos o compromisso da EIBC Pamáali com a Ciência do
Concreto por meio da construção de conceitos, com base na própria realidade Baniwa e
Coripaco. Esta afirmativa se constata na filosofia presente no Projeto Político da Escola
que é:
[a] formação de cidadãos conscientes e que valorizassem suas culturas, e, ao
mesmo tempo uma escola que ensinasse os conhecimentos da sociedade
ocidental que desse possibilidade de continuidade escolar para aqueles que
desejam seguir os estudos em nível de Ensino Médio e Terceiro grau. (PPP
EIBC-PAMÁALI/ 2005).
Essa filosofia é a validação de uma proposta intercultural e bilíngue, visto que
o PPP da Pamáali contempla não só teoricamente, mas também na produção
monográfica dos alunos e professores ao final do Ensino Fundamental, pois a
aprendizagem das duas culturas favorece essa formação cidadã proposta no PPP da
escola. Para reforçar esta premissa, apresentaremos a seguir a experiência de um
trabalho comprometido com a realidade local e com uma Educação diferenciada e
intercultural.
3.2 Concepções na construção de conceitos em ciências naturais
“Na pesquisa intermediária com os velhos
aprendemos a origem, o mito e depois socializamos
com os outros; a pesquisa tem objetivo de
sustentabilidade”.
Abilio Brasão – Baniwa
3.2.1 Concepções de ciência: teoria e na prática
64
As concepções presentes na filosofia da Pamáali quanto à construção de
conceitos de Ciências Naturais são observadas tanto nas atividades realizadas em sala de
aula, quanto nas respostas dos alunos. A finalidade é a percepção do que eles pensam
acerca do assunto e qual importância do ensino de ciências para eles.
A análise a seguir tem como pressuposto inicial três questões aplicadas aos
alunos do Ensino Fundamental e Médio da EIBC-Pamáali, sendo: a) O que é fazer
Ciência? b) Como o professor trabalha o Ensino de Ciências? c) O que o Ensino de
Ciências representou para você neste primeiro ano na Escola Pamáali?
Em face disso, tomamos por base as respostas atribuídas pelos alunos e os
registros das atividades de sala de aula. Assim, construímos nossa impressão acerca da
temática neste tópico. Então, para alcançar o objetivo do capítulo, aplicamos três
questões para 32 alunos do Ensino Fundamental e para 09 alunos do Ensino Médio.
Ademais, para contextualizar o perfil das turmas, vejamos algumas
informações importantes: Do total dos estudantes entrevistados no Fundamental, 69% é
do sexo masculino, isto representa 22 homens e apenas, 31% é do sexo feminino, ou
seja, 10 são mulheres. A faixa etária da turma varia entre 11 e 23 anos, sendo que a
maioria, cerca de 69%, é adolescente. É uma turma que equilibra adolescentes e jovens
na busca da identidade, enquanto cidadão Baniwa. A turma de Ensino Médio é 100%
masculina, não observamos a presença de mulheres nesta turma e a faixa etária não foi
identificada. Com base nesta premissa passemos a análise das respostas, de acordo com
cada pergunta feita.
3.2.1.2 Ciência é um conjunto de conhecimentos
Na busca de identificar a concepção de Ciência, fizemos algumas perguntas
para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio da EIBC. Aleatoriamente,
escolhemos algumas respostas dadas pelos alunos em ambos os níveis de ensino. Os
estudantes foram identificados pelas siglas Fund/ n° quando for Ensino Fundamental e
EMI/ nº quando for Ensino Médio Integral e, organizados em pequenos grupos para
melhor visualização das análises. A primeira pergunta foi: O que é fazer Ciência?
EMI/ 01- É estudar ou pesquisar um certo objeto e tentar explicar como é a
transformação; tudo o que aparece no dia a dia é uma ciência.
EMI/ 02- fazer ciência é mostrar tudo que existe na natureza de forma bem
detalhada, para que possamos saber o que existe em nossos arredores de
65
modo geral: animais, vegetais, solos, etc. Nela já entram outras matérias
como a Química, a Física e a Biologia.
EMI 03- É fazer estudo ou pesquisa sobre um objeto; a ciência é um
conjunto de conhecimentos sistematizados relativos a um determinado objeto
de estudo; estudo sistemático da natureza, por exemplo, estudar sobre o que
é habitat, no conhecimento ocidental e no conhecimento tradicional.
Ao iniciarmos a análise, a primeira verificação que fazemos é que todas as
respostas dos alunos estão ligadas às questões da natureza. A resposta de todos eles se
volta para a floresta e os seres vivos contidos nela. Verificamos também que 100% das
respostas afirmam que fazer ciência relaciona-se com estudo ou com pesquisa e, em
algumas respostas notamos expressões como explicar, detalhado e sistematizado. Estas
palavras aparecem respectivamente nas respostas dos alunos EMI/ 01, 02 e 03 o que
demonstra a seriedade com que os alunos concebem o fazer ciência. E neste caso, os
termos destacados revelam a questão da objetividade com o conhecimento científico,
pois para Morin (2010, p. 40) “a objetividade parece ser uma condição sine qua non,
evidente e absoluta, de todo o conhecimento científico”.
O autor afirma ainda que a Ciência embora deva ser considerada
Como uma atividade de investigação e de pesquisa, [...] não é só isso; [...] a
despeito de todos os interesses, a ciência continua sendo uma atividade
cognitiva. E, mesmo quando procuramos na atividade científica, fórmulas
para manipular, para o poder e para agir, a dimensão cognitiva ainda persiste.
(Idem, p. 57)
Além do mais, destacamos também a resposta do aluno EMI/04, que se reporta
que são necessários métodos para se fazer ciência.
EMI/ 04- Fazer ciência é realizar estudo sobre algo com métodos de
conhecimentos adquiridos por meio de observação e experimentos.
A respeito dessa questão Carvalho e outros (2004, p. 149), afirmam que
A importância do método, como ponto de abertura, significa percorrer o
corredor do conhecimento (Epistemologia), chegando na sua saída
66
transformado pelo conhecimento que recria o nosso ser (Ontologia). [...].
Nesse sentido, a pesquisa possibilita conhecimento e autoconhecimento.
O método nos garante o planejamento da investigação científica e se processa
através de técnicas, normas e regras que caracterizam e validam o fazer científico, pois
os alunos da escola Pamáali, compreendem o fazer científico de forma clara e crítica
para a construção dos conceitos.
Figura 26 e 27: Plantas da trilha das ciências e produção de texto no caderno
Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA
Outra evidência de que os alunos da EIBC desenvolvem com clareza o
conceito de ciência é o fato de que em suas respostas demonstram a consciência da
importância de integrar teoria e prática em suas pesquisas, isto é, a “busca na
transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade
histórica” (FRIGOTTO, 2002, p. 73).
Com isso, destacamos ainda a ideia do aluno Fund/01, que define fazer
ciência como um conjunto de conhecimentos [grifo nosso] trazendo o entendimento
que esse conjunto demonstra as noções da iniciação científica, as características próprias
e as propriedades essenciais para constituir o objeto do conhecimento.
Fund/01- É o conjunto de conhecimentos sobre um determinado assunto ou
objeto.
Na resposta acima, observamos como o aluno do Ensino fundamental ao
encerrar o curso, já possui a compreensão do processo criativo da formação de conceitos
científicos. Vygotsky (1998, p. 67) reforça que, “a formação de conceitos é um processo
criativo, e não um processo mecânico e passivo; [e] que um conceito surge e se
configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de algum
problema”.
67
Nesse caso, consciência de ser Índio, de ser cidadão Baniwa, de ser um
pesquisador e propagandista da história de seu povo, perpetuando o conhecimento para
acessibilidade das gerações futuras. Ademais, a resposta do aluno EMI/ 05 comprova a
presença do mito nas pesquisas, quando ele se refere a pesquisar o personagem das
plantas [grifo nosso]. “Fazer ciência é prática, é pesquisar o personagem das plantas.”
(EMI/ 05).
Quanto a isto Castro (1996, s/p) afirma que tal perspectiva conceptual rompe
com a dicotomia paradigmática
Que tradicionalmente se opõe sob os rótulos de ‘Natureza’ e ‘Cultura’:
universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e
instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e
espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos.
Enfim, a concepção de Ciência construída pela EIBC-Pamáali, comprova o
nível de consciência e o compromisso de professores e estudantes com o conhecimento.
Diante disto passemos à segunda questão aplicada aos alunos Baniwa.
3.2.1.3 O mito como estratégia de ensino e ciência sustentável
Ainda com o objetivo de identificar as concepções de ciências presentes nas
atividades de sala de aula e com o propósito conhecer as estratégias de ensino usadas
pelo professor, a segunda pergunta foi direcionada para os estudantes das duas
modalidades, que foram identificados através da sigla Fund/ nº, para o Ensino
Fundamental e EMI/ n°, para o Ensino Médio sendo a questão: b) Como o professor
trabalha o Ensino de Ciências?
Diante das respostas, observamos que 100% dos alunos referem-se ao ensino
com pesquisa e afirmam que os professores trabalham com temas de acordo com o
interesse de cada um deles. Porém, destacamos a resposta do estudante EMI/06, que
mostra o teor científico no modo de ensinar do professor, considerando a observação e o
experimento.
EMI/ 06- O professor trabalha o ensino de ciências por meio de pesquisas
levando em consideração observação e experiências.
68
A esse respeito Hennig (1998, p. 105) confirma que em tal concepção de
ciência “trata-se, basicamente, da incidência da autorreflexão sobre a natureza; sobre o
mundo ambiente físico-químico, animal, vegetal e sobre o próprio homem; sobre um
mundo misterioso, repleto de distorções e fatos difíceis de serem compreendidos”.
Tais fatos se processam a partir da escolha do tema pelos estudantes Baniwa e
Coripaco para a produção da monografia que começa nos primeiros anos do Ensino
Fundamental, quando os professores começam a trabalhar as áreas de interesses dos
alunos, a fim de que eles comecem a se identificar com os temas.
EMI/ 07- O professor trabalha o ensino de ciência na escola indígena
Baniwa e Coripaco Pamáali, através de assunto importante para os alunos.
Através de assunto abordado com professores que podemos desenvolver um
trabalho sobre que assunto se trata. Nós Baniwa sempre desenvolvemos
pesquisa na comunidade para aprender nome científico de objeto com os
velhos conhecedores de diversos objetos na língua indígena. É isso que
estudamos em ciência com o professor na sala de aula.
Sobre essa temática, Decroly (REVISTA COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p.
22) propõe como pressuposto básico “que a necessidade gera o interesse que é o
verdadeiro móvel em direção ao conhecimento”. E quando esse conhecimento desperta
ele se torna a base para suscitar no estudante a observação, a associação de informações
e, finalmente a expressão de materializar de forma concreta ou abstrata.
Diante desse pressuposto, percebemos, que o aluno Fund/ 02, afirma em sua
resposta que os conhecimentos produzidos pelos alunos servem de apoio e de fonte de
consulta para as gerações mais novas.
Fund/ 02- O professor trabalha com o ensino de ciências: pesquisa através
da observação, pesquisa no livro, na internet e depois com esse resultado da
pesquisa deixa como subsídio para a escola.
Nessa resposta está presente a ideia de revitalizar, através do registro, fatos
históricos que marcam a trajetória do povo Baniwa e Coripaco. Wright (2005, p. 34.)
destaca que “os nomes de lugares e de grupos étnicos são de grande interesse para a
69
história indígena” e, isto acontece quando os alunos catalogam plantas e detalham
espécies animais, seja na floresta, na trilha ou na comunidade.
As respostas dos alunos Fund/ 03 e 04 descrevem como se dá o processo de
investigação, durante as aulas de ciências naturais.
Fund/ 03- É assim: primeiro o professor deu um tema, o que se pode querer
aprender, ou que pode ser escolhido por si mesmo. Depois explica como
fazer seguindo o guia de pesquisa. Ex: sobre uma planta: Como a planta
aparece no mundo? Como se originou? Por que ela apareceu? A planta tem
vida? Como ela se alimenta? Como ela vive? Qual a terra que a planta gosta
de viver? Será que a planta oferece alimentação? Será que a planta oferece
remédio? Como se pode plantar? Quais são as morfologias? Mais ou menos
assim.
Fund/ 04- Na metodologia de trabalho com o ensino de ciências nesta escola
é dependendo com o orientador. Mas no que já vínhamos aprendendo é que
em primeiro lugar estudamos na teoria, após isso partimos pra prática, com
o objetivo de conhecer tal ser, como: cobra, vegetal e solos, assim em
sequência. E em cima disto comparamos as diferenças entre os livros e o
tradicional, conforme a nossa realidade. Cada animal ou árvore
interessante, a gente descreve todas as suas características, o seu habitat, se
é remédio, etc. Isto é para que o nosso conhecimento seja registrado em
nossos documentos, para não serem esquecidos por nós. Isso também é
facilitação de localização geográfica.
No entanto, o que nos chama à atenção na resposta do aluno Fund/ 03, é o
questionamento sobre o aparecimento da planta no mundo, sua origem, o porquê da sua
aparição, a consideração pela vida e pelo “gosto” da planta quanto à terra onde será
plantada. A vertente mitológica dos seres vivos (presente na resposta do estudante
Fund/ 03) está atrelada à construção dos conceitos, pelo fato de que isto representa
sustentabilidade das origens, relacionadas diretamente com as plantas e animais.
Nesta acepção Lévi-Strauss (1978, p. 15) infere que “as histórias de caráter
mitológico, são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de
tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte”. Então, como vimos a
concepção Baniwa da utilização dos mitos como recurso de ensino fundamenta-se no
fato de que o mito está presente em todos os elementos da natureza.
70
Figuras 28 e 29: Natureza e mito
Fonte: Pesquisa de campo/ 2009 – Fotos: GPECCSA
Na sequência dessa explanação, destacamos dois episódios da mitologia
Baniwa, constantes na obra de Wright (2005, p. 169/170), que retratam nitidamente essa
relação do Homem com a Natureza, na sua origem, pois
São vários os mitos sobre o pariká, mas o mais importante é um conjunto de
episódios em que Nhiãperikuli e seus irmãos encontram os poderes e
instrumentos dos pajés – poderes de ver e transformar, de fazer o trovão, um
colar de dentes de onça, e o pariká. O primeiro episódio dessa história
descreve como o irmão menor de Nhiãperikuli, querendo aprender a fazer
trovão, procura encontrar o gavião real, chamado Kamathawa. Este lhe dá
uma de suas penas e o manda cheirar; de repente, a visão dele “se abre” e ele
começa a “ver” como os pajés vêem hoje. Em seguida, o gavião lhe dá outra
pena de seu corpo e o manda cheirar e, com isso, ele ouve o som do trovão. A
ação do segundo episódio dirá em torno da derrubada de uma enorme árvore
chamada Kaali ka thadapa, que conectou dois níveis do primeiro universo e
que era a fonte primordial de todas as plantas no mundo. O pariká é uma
“fruta” que se encontrava dentro de um buraco no topo da árvore. A Grande
Árvore de Kaali é um dos símbolos centrais da unidade primordial, ou o
Todo-em-Um, da religião Baniwa. A derrubada da árvore quebrou a
unicidade deste símbolo primordial, para que a humanidade ficasse com as
numerosas plantas e frutas cultivadas que se multiplicaram e cobriram a terra.
Dizem que depois de sua derrubada, os povos do mundo inteiro vieram e
retiraram plantas (mandioca etc.) para colocar nas suas roças.
Com efeito, está presente, nas figuras da águia e da grande árvore, a estreita
relação entre a natureza e a existência do homem. Enfim, os Baniwa e Coripaco
associam a pesquisa científica à origem mitológica e à sustentabilidade, seja ela de
ordem econômica, social ou cultural.
Nessa abordagem de construção de conceitos em ciências naturais, a ideia de
sustentabilidade científica está diretamente atrelada à produção do conhecimento. A
educação escolar indígena Baniwa e Coripaco caracteriza-se pela produção de uma
ciência sustentável, com base na preservação dos mitos e na revitalização dos saberes
tradicionais. Em face disto, analisaremos a seguir as atividades desenvolvidas no sexto
71
ano do Ensino Fundamental da EIBC-Pamáali, considerando a perspectiva da relação
entre interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade, que foi a terceira questão
levantada na proposta da pesquisa.
Para tanto, nos apoiamos na narrativa do professor da turma do Ensino
Fundamental, descrita no capítulo da metodologia deste trabalho e, nas respostas dos
alunos descritas neste mesmo capítulo, comprovaremos então essa relação através da
análise das atividades trabalhadas nas aulas de ciências naturais.
As atividades abaixo envolvem os seguintes conteúdos: nome dos seres vivos,
cadeia alimentar, conservação das plantas e mamíferos. Nesta aula o professor explicou
as atividades na língua Baniwa e em seguida na língua Portuguesa, o que caracterizou
um ensino intercultural bilíngue. Após a explicação do professor, os estudantes
seguiram para o trabalho de campo, onde investigaram na natureza o conteúdo
explicado teoricamente. Em seguida, retornaram à sala de aula e produziram textos tanto
em Baniwa e Coripaco, quanto em Português, conforme observaremos nas atividades
abaixo:
Figuras 30, 31 e 32: Pesquisa na teoria e na prática
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Importa destacar que o professor Baniwa e Coripaco utiliza naturalmente os
espaços não formais no ensino de ciências naturais, sendo esta uma prática cotidiana,
pois na ótica indígena, este é para ele o espaço formal para o ensino. E os estudantes por
sua vez encaram a utilização destes recursos, como um processo natural para a produção
das atividades escolares diárias, numa inter-relação harmoniosa e equilibrada.
Além do mais, observamos nos textos produzidos pelos alunos, que ao se
reportarem aos elementos da natureza (plantas e animais), há uma preocupação com a
sobrevivência e com o período de reprodução dos mesmos. Isto demonstra o respeito do
indígena pelos seres vivos, pois considera a possibilidade de haver uma alma ancestral
“morando” em uma árvore ou em um animal.
72
A esse respeito Viveiros de Castro (1996, p. 03), afirma que a visão desses
povos é profundamente diferente do modo de ver do homem ocidental e sua reflexão
pauta-se nas
Numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma teoria indígena
segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras
subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às
vezes mesmo objetos e artefatos.
Essa teoria é o perspectivismo, que mostra o ponto de vista de indígenas e não
indígenas, em relação à condição espiritual dos seres presentes na natureza. O modo
como cada etnia enxerga natureza e cultura, é a principal reflexão dessa teoria. O ver
como [grifo nosso] representa a percepção de cada sujeito dentro de sua realidade étnica
e no pensamento ameríndio são os xamãs12, os responsáveis por administrar e
comunicar estas perspectivas, num cruzamento entre conceitos e intuições.
Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta
de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma forma
interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou
de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o
espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente
idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um
esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, p. 04).
Nesse sentido, captamos algumas imagens ao longo da trajetória da pesquisa de
campo, que representam com clareza essa teoria, mostrando o quanto a natureza é viva
para o povo Baniwa e Coripaco. As imagens captadas foram analisadas numa
perspectiva etnográfica e etnológica, a fim comprovar o valor do território para os
Baniwa e Coripaco por meio do respeito aos elementos da natureza.
12
Em sentido antropológico e etnológico, os xamãs são, entre certos povos, espécie de sacerdote que recorre à forças
ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc.(MONTEIRO, 2001)
73
Figura 33: Mito
Fonte: Pesquisa de campo/ 2009- Fotos: GPECCSA
Na figura 33 (acima) visualizamos uma imagem com o formato de um ser de
joelhos, mãos postas, como se fizesse uma oração. No entanto, para Lévi-Strauss (1978,
p. 28) “os mitos de uma determinada população só podem ser interpretados e entendidos
no quadro da cultura dessa mesma população”, portanto, dependendo do mito, este só
terá significado real para um povo específico.
Figura 34: Totemismo
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Na figura 34, as pedras são simetricamente duplicadas na água dando a
impressão de um totem. Segundo o dicionário Luft (1995, p. 605) totem ou tóteme
representa animal, vegetal, objeto ou fenômeno natural que certas sociedades primitivas
consideram como seus ancestrais e protetores, como uma representação material desse
animal, vegetal, objeto ou fenômeno totêmico, totemismo.
Segundo um dos professores Baniwa da Pamáali, isso significa
Que em todos os lugares (seja nas curvas de rio, em algum lugar na floresta,
ou outro tipo de ambiente, não importa sua localização ....) para os Baniwa
tudo tem nome, conceito, história e significado. Somente assim fica completa
a sua explicação em um contexto mais holístico. Por que em todos esses
espaços há seres vivos (material e espiritualmente) que se consideram como
74
“pessoas” convivendo nestes espaços e, esta determinação e classificação
depende da auto-percepção de cada um13.
Como observado no comentário acima há vida em cada canto da floresta ou em
cada curva do rio e, isto tem valor existencial para os Baniwa e Coripaco em cada
comunidade, de acordo com cada visão repassada ao longo da história de cada povo.
Portanto, para os ameríndios
A noção de espíritos "senhores" dos animais ("mães da caça", "mestres dos
queixadas" etc.) é, como se sabe, de enorme difusão no continente. Esses
espíritos-mestres, claramente dotados de uma intencionalidade análoga à
humana, funcionam como hipóstases das espécies animais a que estão
associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde
os animais empíricos não são espiritualizados. (VIVEIROS DE CASTRO,
1996, p. 05).
O texto refere-se à relação humano animal, enquanto seres que possuem uma
alma. Contudo, nem sempre se atribui almas aos indivíduos animais, há cosmologias
contrárias a que os animais pós-míticos tenham capacidade de consciência ou qualquer
espiritualidade. Porém, há um pensamento universal entre os ameríndios de que os
mitos possuem características intrínsecas de humanos e de animais, pois, “o tema maior
da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do
animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade.” (Idem).
Nesse sentido, na visão Baniwa, conforme depoimento do coordenador da
EIBC Pamáali, todas as coisas têm suas explicações. As figuras, por exemplo,
significam (em uma linguagem na forma de escrita dos primitivos) que aquele lugar é
habitado por agentes que podem causar (de acordo como for relacionamento com eles)
consequências positiva ou negativamente para vida.
A esse respeito, Viveiros de Castro faz a objetivação da natureza em três
momentos distintos, assim
O autor distingue três modos de objetivação da natureza: o totemismo, onde
as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar
13
Comentário do coordenador da EIBC-Pamáali, em resposta a um e-mail enviado no dia 14/07/2010.
75
logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre natureza
e cultura é de tipo metafórico e marcada pela descontinuidade (intra e
interséries); o animismo, onde as "categorias elementares da vida social"
organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais, definindo
assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e cultura,
fundada na atribuição de "disposições humanas e características sociais aos
seres naturais"; e o naturalismo, típico das cosmologias ocidentais, que supõe
uma dualidade ontológica entre natureza, domínio da necessidade, e cultura,
domínio da espontaneidade, regiões separadas por uma descontinuidade
metonímica. (DESCOLA, 1992, apud VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.
06).
Seguindo a mesma linha de análise, destacamos ainda a árvore conhecida como
“breu branco”, marcada pelo seguinte paradoxo: enquanto para os indígenas é um ser
sagrado, para os ocidentais é fonte de lucro e riqueza.
Figuras 35: Árvore do breu branco
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
O breu branco, é uma resina aromática da Amazônia, é conhecido dos povos
tradicionais e recebe o nome científico de “protium pallidum”. Ao ser golpeada, a
árvore libera um líquido branco e brilhante como defesa. Após um tempo este líquido
endurece e se transforma numa pedra com um agradável aroma e com propriedade
inflamável.
Nas comunidades da Amazônia, esse breu é utilizado para conserto de
embarcações, para remédio e para fazer defumação em outras plantas. Segundo o tuxaua
tucano Gabriel dos Santos Gentil14, os rituais utilizando perfumes possuem vários
significados, dentre eles podemos destacar: ficar mais bonito, ser sábio, se defender,
encantar mulheres, caçar e alegrar os deuses, ou seja, depende do objetivo. Ele afirma
ainda que,
Não podemos tirar nada enquanto ela dorme, porque quando a gente tira um
pedaço de árvore, do galho ou do fruto, ao acordar ela se tornará minha
14
Indígena Tukano entrevistado pelo Projeto Biodiversidade Brasil.
76
inimiga. Temos que tirar as coisas da mata da mesma forma que chegamos a
uma aldeia e pedimos a permissão para casar com uma mulher 15.
Nesse caso a floresta possui o mesmo valor que a família, pois o respeito pela
natureza é presente no cotidiano indígena. Assim, a ciência sustentável, construída pelo
povo Baniwa e Coripaco tem como base a seguinte premissa: a força da sustentabilidade
cultural por meio do mito somada à valorização dos saberes tradicionais que gera uma
ciência sustentável, com base na realidade concreta, servindo
De diagnóstico para o aprofundamento de estudos sobre o ambiente local
(potenciais hídricos, ecológicos, biológicos, arquelógicos, geológicos,
etnocientíficos, dentre outros problemas), possibilitando a realização de
projetos de pesquisa que possam efetivar alternativas sustentáveis para os
povos da região (VIEIRA, 2010, p. 145/146).
Ademais, as iniciativas sustentáveis possibilitam a continuidade das tradições
Baniwa e Coripaco, trazendo novo significado para o ensino de ciências.
3.2.1.4. Significado do ensino de ciências
Seguindo no mesmo objetivo de identificar as concepções presentes no ensino
de ciências da Pamáali, formulamos somente para os alunos do Ensino Fundamental, a
terceira pergunta. Identificamos os alunos com a sigla Fund/nº e categorizamos as
resposta com temas afins, com vistas a uma melhor compreensão da análise, sendo: c) O
que representou para você, o ensino de ciências, neste primeiro ano de Ensino
Fundamental?
Grupo 01 - Ensino de ciências como pesquisa e prática:
Fund/05- Durante três etapas estudamos sobre ciência, fazemos prática
sobre inseto, por exemplo, mosca, barata, cupim, lacraia, calango e outras
matérias como Português, Geografia, História, Espanhol, Agronomia, etc.
Fund/06- Em minha opinião, na aula de ciências aprendi muito mais do que
nunca na minha vida; na etapa passada nós tivemos prática de ciências lá na
comunidade de Tucumã sobre os insetos.
Fund/ 07- Com a matéria de ciência que o professor ensinou pra mim sair
pra campo, peguei prática lá sobre plantas, que espécie de planta, para que
15
Declaração do Índio Tukano Gabriel em entrevista ao artigo do Projeto Biodiversidade Brasil.
77
serve; se serve para remédio ou serve para construção e registramos nome
em Baniwa e coletei também anfíbios, insetos, répteis e ensinou mais sobre a
sobrevivência da planta. Depois eu fiz texto narrativo sobre eles contando
mais história neles em Baniwa e em Português.
Fund/ 08- Primeiro nós fizemos estudo por grupo e depois nós fomos para a
prática e pesquisar as características de bichinhos no campo, no rio, na
trilha e nós achamos borboleta, aranha, lacraia, peixes, etc.
Fund/ 09- Representou pesquisa; nós fizemos sobre práticas dos seres vivos
e também do ser humano. No ensino de ciências nós fizemos práticas.
O primeiro grupo formado pelos estudantes Fund/ 05 a 09, identificaram o
ensino de ciências na Pamáali como pesquisa e prática, destacando a própria experiência
da descoberta e construção do conhecimento. Nestes termos percebemos nas respostas
dos estudantes que o professor utiliza um método de investigação que possibilita o
domínio prático da natureza favorecendo aos homens e mulheres Baniwa e Coripaco o
desenvolvimento de pensamentos, habilidades e atitudes para aquisição de um
conhecimento verdadeiro. (HENNIG, 1998).
Grupo 02 – Ensino de ciências como dificuldade:
Fund/ 10- Nós alunos da escola Pamáali nós entendemos as muitas
dificuldades aqui na escola; trabalhamos dia de atividade e dia de aula; os
meus professores ensinam muito bem, eu entendo o que não conheço.
Fund/ 11- Representou muita dificuldade, mas mesmo assim consegui
entender algumas partes difícil da disciplina de ciências, é isso aprendi o
que não aprendi antes.
No segundo grupo observamos as dificuldades na busca do conhecimento. Os
estudantes sentem as mesmas dificuldades para construir os novos conceitos. São as
dificuldades de compreensão que todo estudioso enfrenta para a descoberta cientifica,
para explicar os fenômenos que se apresentam diante dele. Afinal, o cientista “é um
cidadão que lida com problemas; é pessoa [...] que observa e interpreta coisas e
fenômenos do ambiente, [...] através de estudo minucioso”. (Idem, p. 107).
Grupo 03 – Elementos da Natureza:
Fund/ 12 – Representa estudo dos seres vivos e dos seres humanos.
Fund/ 13- Durante nós ficarmos aqui na escola, nós aprendemos alguns
assuntos chamados bactéria e fungos, ar e água e suas características, etc; e
nós saímos para campo coletar insetos para fazer texto sobre eles.
78
Fund/ 14- Representou muitas coisas nas ciências, porque a ciência é muito
importante para nós, por exemplo, como são os artrópodes, quem já segurou
o camarão deve ter percebido logo que esse animal tem uma espécie de
“casca” rígida, essa casca é o esqueleto dos artrópodes, ao contrário do
nosso esqueleto que é interno.
Fund/ 15- Na primeira etapa estudamos sobre a fotossíntese e trabalhando
nas atividades de campo e também na segunda etapa pesquisa sobre as
plantas que produzem óleo, assim que estudamos em Pamáali.
No terceiro grupo, os estudantes definem o ensino de ciências na Pamáali como
uma experiência diretamente ligada aos elementos da natureza e seus processos. Vale
ressaltar que o Homem está incluído entre estes elementos, ou seja, ele não está
dissociado da Natureza. Quanto aos elementos destacados Alcântara (2010, p. 15) infere
que “Daí a ideia de se buscar no ambiente da floresta possibilidades pedagógicas a partir
da utilização dos elementos nela presente”, porém conservando-a para a
sustentabilidade.
Assim, ao observarmos as respostas acima, percebemos a importância da
Escola na vida de cada aluno e o quanto conhecer a natureza está ligada à questão
existencial individual e coletiva. Neste caso, de fato, a Escola possui a finalidade de
possibilitar uma formação integral para o aluno.
De acordo com Zabala (1998), é na escola, a partir das relações estabelecidas,
das experiências vividas, que se constroem as condições e os vínculos necessários para
se definir concepções a respeito de si mesmo e dos outros. É partindo de uma ação
reflexiva acerca da finalidade ideológica da Educação escolar que se pode conceber o
aluno como um cidadão, no contexto social em que está inserido. Por esta razão, “os
direitos dos Índios não são apenas para sua defesa, mas também para que tenham acesso
à cidadania plena” (MEC/ TV ESCOLA, 2001, p. 330), inclusive na escola.
Acompanhando a mesma lógica de argumentação, notamos que as respostas
dos estudantes são baseadas nos conteúdos estudados nas três etapas. Neste sentido, os
conteúdos sofrem uma ampliação em seu significado, pois não basta apenas ensinar é
preciso buscar o sentido do por que ensinar. E, por esse motivo devem ser definidos
coletivamente dentro do próprio ambiente da sala de aula.
79
Figuras 36, 37: Atividades de produção acadêmica no Fundamental
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Para os alunos da EIBC, coletar insetos, aprender o tempo de produção da
floresta e o tempo de reprodução dos animais, conforme a resposta do aluno Fund/ 13
se constitui num momento de aprendizado para a sobrevivência. Desse aprendizado
resulta sua condição existencial através do cultivo de plantas, da criação e da caça de
animais e da pesca de peixes para sua alimentação. Nestes termos, o conteúdo assume a
posição de envolver o indivíduo em todas as suas dimensões de aprendizagem, isto é, a
dimensão conceitual, procedimental e atitudinal, partindo das premissas o que, para que
e como aprender.
Figura 38, 39 e 40: Conteúdo significativo
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Ainda neste mesmo raciocínio, o aluno Fund/ 06 explica que eles pesquisaram
insetos em outra comunidade fora da escola, isto mostra que os professores sabem da
necessidade de diversificar o ambiente para se obter um ensino mais eficaz; que, para
ensinarmos é preciso termos referenciais do modo como o sujeito aprende, bem como
de suas limitações, de sua individualidade e de sua diversidade.
Uma boa metodologia precisa ter uma sequência ordenada e articulada de suas
atividades. Esta sequência se revela na resposta do aluno Fund/ 08, quando ele afirma
que primeiro há o estudo em grupo e depois saem para a prática. Para Zabala (1998), tal
sequência deve considerar as intenções educacionais no momento da definição dos
conteúdos de aprendizagem e qual o papel das atividades propostas pela escola. Pois
80
dessa forma se explicitam as intenções educativas para a formação de conceitos,
procedimentos e atitudes.
A Pamáali com esta metodologia de ensino com pesquisa estabelece
previamente os conhecimentos a serem aprendidos, tornando os conteúdos
significativos e funcionais para a superação de dificuldades. Podemos demonstrar tal
questão nas respostas dos alunos Fund/ 10 e Fund/ 11, que dizem ter tido dificuldades
que, no entanto, foram superadas durante o processo. Portanto, mesmo que haja
momentos de conflitos para aquisição de novos conhecimentos, eles sentem-se
motivados a aprender os conteúdos.
A metodologia utilizada proporciona novas habilidades e possibilita aos
estudantes o aprender a aprender, tornando-os autônomos em seus processos de
aprendizagem. Tal autonomia está presente nas respostas dos alunos Fund/ 14 e Fund/
15, quando explicam detalhadamente a aula sobre o esqueleto dos artrópodes e sobre as
espécies de plantas, respectivamente.
Para tanto, as relações estabelecidas em sala de aula representam um grande
valor no processo ensino-aprendizagem. Sintonia e interação entre professor, aluno e
conteúdos são fundamentais para o sucesso da metodologia aplicada. Professores e
alunos são partícipes deste processo, diferenciando-o do ensino tradicional. Neste
sentido, se estabelece a concepção construtivista do conhecimento, o que necessita da
diversificação de estratégias, com novos desafios, sempre atento ao ritmo de
aprendizagem dos alunos, numa interação direta com eles.
Figuras 41 e 42: Interação professor-aluno
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Confirmando tal inferência Decroly, afirma que “a criança [ou jovem] é o
ponto de partida do método” (REV. COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p. 23), diríamos
que o interesse do aluno é o ponto de partida para utilização do método [grifo
nosso].
81
Em última análise, os recursos metodológicos relacionam-se com a visão de
determinada sociedade, história ou cultura e, por esta razão estão carregados de
mensagens ideológicas. Portanto, o exercício da prática reflexiva pelo docente é
fundamental para o sucesso desse processo de produção do conhecimento, com o fim de
potencializar a autonomia do aluno, nesse construto científico.
3.3 Construção da proposta intercultural, bilíngue e sustentável para o ensino de
ciências naturais
“As dificuldades que vivemos para construir esta
escola diferenciada, é que não temos livros
diferentes.”.
Profª. Maria José -Xukuru
3.3.1 Recurso pedagógico: material didático Baniwa e Coripaco
Produzir material didático para estudantes e professores indígenas não é uma
tarefa simples, visto que tal produção deve ser algo funcional e aplicável. Não basta
produzir, é necessário uma utilização prática do que foi produzido, de modo que essa
utilidade esteja relacionada com a questão existencial dos povos tradicionais e com a
revitalização dos conhecimentos para a sobrevivência sustentável dos mesmos.
Embora a escola Pamáali já possua livros produzidos e publicados em parceria
com o MEC, nossa proposta em produzir um material didático surgiu no momento do
relato do professor de ciências naturais, acerca da escassez de material bilíngue para
ensinar as crianças indígenas nas séries iniciais.
Assim, a proposição de trabalhar materiais didáticos na perspectiva de uma
educação bilíngue sustenta a ideia de interculturalidade, pois
O tema da educação bilíngue e intercultural, no que concerne à educação
indígena, tem enriquecido durante as últimas décadas os debates
pedagógicos, antropológicos e políticos nos países americanos e europeus,
caracterizados por uma diversidade de contextos onde as demandas
educativas dos grupos linguística e culturalmente distintivos são diversas.
(GASCHÉ, 2008, p. 09).
82
Em tal perspectiva, propusemos o material didático bilíngue a ser produzido
pelos alunos do segundo seguimento do Ensino Fundamental, para ser utilizado pelas
crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
A Comissão Nacional de Apoio a Produção de Material Didático Indígenas
(CAPEMA/ MEC), conforme a Portaria n° 13 de 21/07/2005, através da Coordenação
Geral de Educação Escolar Indígena, elaborou vários livros didáticos e paradidáticos de
diversas etnias. Os Baniwa e Coripaco também tiveram uma participação com a
produção de livros na língua nativa, com o título Ikadzekatakadapha16.
Figura 43: Produções da Pamáali em parceria com o ISA
Fonte:Arquivo da Pamáali
Nesse sentido, uma maneira de construir uma educação diferenciada e
intercultural é através do uso de livros didáticos bilíngue. Em seu relato o professor de
ciências naturais no Ensino Fundamental (capítulo metodológico deste trabalho),
declarou que gostaria de dar aulas com um livro na língua Baniwa e na língua
Portuguesa. Decorrendo desse fato, optamos pela proposta de elaboração de um material
didático bilíngue, a partir das pesquisas realizadas pelos estudantes das séries finais do
Ensino Fundamental. Portanto, a condição básica para que isto aconteça está em
possibilitar efetivamente a inter-aprendizagem entre a sociedade indígena a não
indígena.
3.3.2 Vantagens do recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e
bilíngue
“O projeto de pesquisa é registrar e disponibilizar
para pesquisa o conhecimento cultural dos povos
Baniwa e Coripaco”.
Tiago Pacheco - Baniwa
16
Este livro, produzido em língua Baniwa e destinado à aquisição da lecto-escritura, foi elaborado pelas comunidades
Baniwa do médio rio Içana, Paitsipe (Juivitera), Poperianaa (Castelo Branco) e Escola Municipal Indígena Pamáali Baniwa e Coripaco, resultado do Projeto Educação Indígena no Alto Rio Negro, realizado pela parceria entre o
Instituto Socioambiental/ISA e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro-FOIRN.
83
Ao introduzirmos em nosso trabalho a ideia de uma educação intercultural e
bilíngue partimos do princípio de que interculturalidade é o relacionamento entre duas
ou mais culturas e, neste caso, incluindo-se a questão linguística. Ao incluirmos o
vocábulo bilíngue fica claro que estamos falando da relação entre duas culturas de
línguas maternas diferentes, precisamente do tronco linguístico Aruak (Baniwa e
Coripaco) e Português.
Acompanhando essa lógica de argumentação, defendemos ainda que o
reconhecimento
do
papel
histórico
e
social
da
escola
indígena
contribui
fundamentalmente para diminuir o conflito entre o que os modelos educativos
diferenciados deveriam ser partindo da aplicação das políticas educativas oficiais, que
regem as relações interculturais nos diferentes países do mundo, bem como o que
podem vir a ser, através do exercício do direito que têm estes povos de participar
ativamente no planejamento, na operação e na avaliação da educação que estes
reivindicam. Por esta razão é preciso que as manifestações interculturais e bilíngues
apresentem-se como políticas que vão além de uma classificação com critérios
antropológicos puramente ocidentais.
O respeito e a alteridade devem ser princípios presentes nas manifestações de
educação intercultural e bilíngue, pois considera diferenças, diversidade e valores
próprios de cada povo tradicional, bem como “a dificuldade e limitação conceitual de
seu espírito interpretativo, teórico, que lhes impedem de dar conta de suas propriedades
positivas em contraste com a sociedade nacional”. (GASCHÉ, 2010, p. 114).
Essa compreensão a respeito da educação indígena intercultural e bilíngue
possibilita melhor produção e melhor aplicação de recursos didático-pedagógicos, para
a escola indígena.
Sem dúvida alguma, quanto mais conhecida uma realidade maior a
possibilidade de se colocar no lugar do outro. Esta afirmação está intimamente ligada
com o fato de optarmos pela elaboração de um material didático que atenda aos
interesses do povo Baniwa e Coripaco, pois conforme afirma Zabala (1998, p. 29) os
recursos didáticos
São os instrumentos que proporcionam referências e critérios para tomar
decisões: no planejamento, na intervenção direta no processo de
ensino/aprendizagem e em sua avaliação. São meios que ajudam os
professores a responder aos problemas concretos que as diferentes fases dos
processos de planejamento, execução e avaliação lhes apresentam.
84
Neste sentido, fica evidente que os recursos didáticos utilizados pelo professor
são fundamentais para o alcance dos objetivos propostos durante a fase de
planejamento. E, que os estudantes são partícipes na elaboração do material a ser
utilizado, para despertar o interesse para a aprendizagem.
Por isso “revitalizar os
conhecimentos indígenas equivale, segundo essa visão, falar deles, divulgá-los na sala
de aula, expressá-los por escrito ou em desenhos”, (GASCHE, 2010, p. 116) de modo a
divulgar este saber.
Enfim, a maior vantagem da Educação intercultural e bilíngue esta no fato de
esta despertar o interesse dos alunos, visando provocar aos mesmos
Maior precisão nas descrições e inventários referentes aos conteúdos
explorados, maior aprofundamento na compreensão das relações entre os
objetos materiais, técnicos e naturais, vivos e inertes e maior liberdade na
imaginação e na interpretação do significado do mundo . (GASCHE, 2010, p.
125).
Em última análise, ao exercermos uma postura intercultural possibilitaremos a
valorização e a compreensão do outro em relação ao eu, pois ao adquirirmos essa
atitude de inter-aprendizagem como um dos conceitos centrais do planejamento,
assumiremos então a Pedagogia da Interculturalidade.
Tal pedagogia nos dá condições de acolher elementos, de recentes discussões
entre os pesquisadores, que consideram a aprendizagem como um conceito oposto ao
que comumente se tem entendido, onde a habilidade, competência e conhecimento de
ambos os partícipes (professor e aluno) se ampliam, se diversificam, se interagem e se
enriquecem.
Sem dúvida, essa prática educativa de inter-aprendizagem diverge do que é
propagado no meio escolar por ser uma ideia nova ainda em desenvolvimento e, que
ainda confronta com as ideias educativas vigentes na sociedade envolvente.
85
3.3.3 –Áanhee, –déenhi nheétte –dzeekáta:17 o passo a passo da construção didática
intercultural
O recurso didático idealizado é um construto vislumbrado a partir das
produções dos alunos do 6° ano da Escola Pamáali. O conhecimento produzido na
comunidade baseia-se em fontes originais do próprio povo Baniwa e Coripaco. Dentre
essas fontes podemos citar os velhos (Komu)18, os mitos de origem e os registros de
pesquisas feitas pelos estudantes da EIBC.
Conforme a narrativa do professor Baniwa19, a disciplina a que se destina este
recurso é inicialmente as ciências naturais. Porém, no decorrer da metodologia se
trabalhará outras disciplinas de modo interdisciplinar. Vale ressaltar que a EIBC possui
livros didáticos publicados, no entanto a construção não seguiu esta dinâmica.
Cabe lembrar que algumas informações contidas neste trabalho são parte da
prática diária na sala de aula da Pamáali e aqui foram apenas reforçadas, enquanto
passos de uma metodologia de construção de conceitos. Os passos para a elaboração do
material são:
a)
Pesquisa in lócus para observação da fauna e da flora conforme o
conteúdo explorado. Ex.: Seres Vivos terrestres – neste conteúdo o professor
orientará os estudantes a coletar um animal para observá-lo e registrar as
características, os hábitos alimentares e qual o habitat natural. Todas as
informações serão lançadas no caderno de pesquisa para serem discutidas em
sala de aula;
Figura 44 e 45: Pesquisa na trilha das ciências
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
b)
Na sala de aula, o professor orientará os estudantes para que registrem
por meio de desenhos, o animal pesquisado, retratando o máximo de informações
17
Fazer, produzir e construir – Ramirez (2001).
É o sábio da comunidade. É uma espécie arquivo das tradições indígenas. É também chamado de Pajé.
19
Narrativa constante no capítulo metodológico deste trabalho.
18
86
possíveis sobre o seu objeto de estudo. O estudante pesquisador desenhará a estrutura
física do animal, o lugar onde vive, os hábitos alimentares e até o modo de reprodução.
Neste momento da atividade, o trabalho artístico é fundamental para desenhar, colorir e
detalhar o visual do objeto explorado na pesquisa;
Figura 46, 47 e 48: Observação e registro de pesquisa
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
c)
As anotações feitas durante a pesquisa in lócus e registradas no caderno
se transformarão em um texto dissertativo, descritivo e/ou narrativo que traduzirá toda a
impressão do estudante a respeito do animal observado e se constituirá em fonte de
conhecimento a ser trabalhada com as crianças dos anos iniciais;
Figura 49 e 50: Caderno para registro da pesquisa
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
d)
O
professor
da
disciplina
disponibilizará
para
os
estudantes
pesquisadores, referências bibliográficas, tais como livros, artigos de revistas e de sites
da internet para possibilitar conhecimentos complementares àqueles observados
diretamente na realidade do animal. O estudante incluirá informações como o nome
científico do animal, a classificação biológica a que ele faz parte, a posição na cadeia
alimentar e o modo de reprodução;
Figura 51 e 52: Produção do texto da pesquisa
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
87
e)
Na entre etapa os estudantes pesquisadores entrevistarão o Komu de suas
comunidades para saber o mito de origem, a representação indígena e o lado sagrado de
cada animal pesquisado. Essas informações coletadas também comporão o texto
produzido pelos estudantes pesquisadores;
Figura 53: Texto descritivo montado em quadrinhos
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
f)
O mesmo texto dissertativo, descritivo ou narrativo produzido
inicialmente em Baniwa e Coripaco será traduzido ipsis literis para o Português,
oportunizando aos estudantes pesquisadores a familiarização com o texto nas três
línguas, com vistas a perceber a complexidade de construção gramatical de ambas, bem
como a produção do texto científico;
Figura 54 e 55: Transcrição do texto de Baniwa para Português
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Os alunos organizarão as produções, relacionando texto e desenho, com vistas
a facilitar a compreensão das crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais
do Ensino Fundamental;
Figura 56 e 57: Ligação entre textos e figuras
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
88
g)
Os textos serão organizados em forma de paisagem com o texto
descritivo logo abaixo do desenho ou ainda em forma de quadrinhos, dando ideia de
texto recreativo, onde se lê passo a passo as informações ilustradas;
Figura 58 e 59: Texto final para publicação de material didático
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
h)
O professor da disciplina inicial (Ciências Naturais) comporá um conselho com
os professores Português, Artes, História, Geografia e outros, com o fim de
revisar os textos construídos pelos estudantes pesquisadores, visando à
produção gráfica do material;
Figura 60: Conselho de professores para revisão do texto produzido
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
i)
O texto final produzido pelos estudantes pesquisadores será utilizado em
forma de livros didáticos pelas crianças indígenas das comunidades Baniwa e Coripaco,
matriculadas na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Figura 61 e 62: Finalização da proposta a ser utilizada
Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA
Por fim, as estratégias, as metodologias e os recursos didáticos usados para a
educação escolar do Indígena possuem as mesmas intencionalidades educativas de
89
qualquer civilização. O Indígena tal como outro cidadão, busca suas conquistas étnicas,
políticas, econômicas e ideológicas, contudo mantém o respeito pela natureza, que é a
origem de toda a vida, mantendo o foco na sustentabilidade, na territorialidade e na
preservação do mito. E isto é e será, sempre, para os povos indígenas uma questão
existencial.
90
CONSIDERAÇÕES: É PRECISO PONDERAR
As ponderações a seguir resultam de reflexões ao longo da pesquisa e contribuíram
significativamente para o nosso amadurecimento intelectual. O caminho trilhado para
realização deste trabalho, além de possibilitar crescimento intelectual, ampliou também
a nossa visão social, política e ideológica a respeito dos povos Baniwa e Coripaco,
representada analogicamente pelo diagrama abaixo:
Figura 63: Ciclo científico sustentável Baniwa e Coripaco
Fonte: Pesquisa de campo/2009
A figura acima foi denominada de ciclo científico sustentável [grifo nosso],
pois a relação dos Baniwa e Coripaco com o conhecimento está pautada na
sustentabilidade existencial. Desta inferência decorrem nossas considerações:

Os saberes tradicionais atravessam os séculos, gerando a sustentabilidade
histórica;

A força da narrativa do mito traz o tempo de origem da primeira aparição
do mesmo, para a sustentabilidade religiosa;

A ciência sustentável desenvolvida pelo Índio respeita o tempo do rio
(seca ou cheia), o tempo da chuva, o tempo do solo e o tempo da floresta, para
sustentabilidade territorial;

O conhecimento construído pelo indígena se renova de tempo em tempo
e se adapta a cada geração, fomentando a sustentabilidade existencial;

Os saberes indígenas se cruzam com os conhecimentos ocidentais, sem
perder a sua essência de origem, dando lugar a um modo alternativo de pensar à
construção de conceitos científicos, favorecendo, enfim, a relação entre a tríade
interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade.
91
Feitas essas considerações, ousamos ainda inferir que trabalhar as concepções
de ensino de ciências na educação escolar indígena numa perspectiva de
interculturalidade foi uma oportunidade de conhecer uma realidade ainda em
construção. Contudo, a inserção de novos conhecimentos e a possibilidade de aplicação
de novas concepções, como forma de responder aos problemas educacionais da
sociedade contemporânea, representa uma contribuição significativa para o processo da
educação escolar, tanto para o indígena quanto para o não indígena.
As experiências de ensino e de aprendizagem desenvolvidas pela EIBCPamáali, no Alto Rio Negro, configuram a construção da escola indígena diversificada e
plural. Elas reforçam, ainda, o princípio da autonomia necessária para que os saberes
produzidos nas comunidades tradicionais sejam legitimados enquanto conhecimento
científico.
As concepções de ciências e de ensino de ciências representadas nessa escola
indígena mostram as convicções e a força do Índio na produção de conhecimentos. O
indígena não abstrai um conhecimento apenas para cumprir uma exigência, mas ele sabe
da importância de cada informação para sua sobrevivência. Ele é antes de tudo um
protagonista do conhecimento, pois o constrói e sabe para que o construiu.
As práticas pedagógicas desenvolvidas na escola indígena é uma revitalização
dos saberes repassados de uma geração para outra. Ao considerar as experiências
produzidas e vivenciadas pelos alunos nas comunidades, como ferramenta para
elaboração de conceitos em sala de aula, o professor indígena mostra sua habilidade na
construção do conhecimento.
A força do mito, aliada à valorização dos saberes tradicionais, formam a
ciência do Índio. A síntese do conhecimento produzido pelos Baniwa e Coripaco, está
na concepção de uma ciência sustentável, que explora os recursos naturais oferecidos
pela floresta, harmonizando o Homem e a Natureza, saberes tradicionais e ocidentais,
num processo de inter aprendizagem e interculturalidade.
Por fim, a construção do conhecimento científico para os Baniwa e Coripaco
da Pamáali, ainda é somente um ensaio, embora a escola já exista há dez anos. Todavia,
já demonstra um potencial promissor, visto que esses saberes milenares que foram
tradicionalmente acumulados servem de base para o projeto de aprendizagem da escola,
ao mesmo tempo em que referenda a legitimidade do mito enquanto recurso de ensino.
Esta organização na e para a educação escolar indígena, favorece a implementação de
uma escola diferenciada, diversificada e plural.
92
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INTRODUÇÃO Ensino de ciências e educação escolar indígena são