14 INTRODUÇÃO Ensino de ciências e educação escolar indígena são concepções conhecidas no Brasil. Porém, o fazer científico-pedagógico [grifo nosso], numa perspectiva intercultural está, ainda, em construção. Esta, que acontece dos mais diferentes modos entre os povos tradicionais da Amazônia, representa uma oportunidade para a inserção de novos conhecimentos. É, também, uma maneira de dar novas respostas às questões da ciência ocidental, em que os métodos vigentes são ineficazes para resolução de problemas evidenciados no processo educativo das escolas indígenas. Para isto, a interação entre os aspectos biossocioambientais, interculturais, políticos e econômicos é condição primordial. Para estabelecermos relação entre ciência, cultura, território e sustentabilidade se faz necessário, compreendermos primeiramente o conceito de cada um deles, dada a sua relevância para o desenvolvimento da temática. O esclarecimento destes conceitos visa à inter-relação entre eles, apontando para a questão da sustentabilidade da educação escolar indígena. Diante disto, apropriamo-nos de nossa experiência de vinte e cinco anos de docência1 e de gestão escolar, para investigarmos acerca das dificuldades que envolvem o processo ensino-aprendizagem e o cotidiano das práticas metodológicas de ensino aplicadas em sala de aula, na escola indígena. Por conseguinte, observamos experiências relevantes para a validação do processo educacional, no território indígena do Alto Rio Negro. Algumas escolas destacam-se neste contexto, porém, nos ateremos às experiências de ensino da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali (EIBC-Pamáali) 2. A razão da escolha é o fato de esta desenvolver uma metodologia de ensino das ciências com base na ciência do concreto, na perspectiva da didática intercultural. E, também, por que considera as práticas cotidianas e as tradições mitológicas Baniwa e Coripaco para a ressignificação dos conceitos estudados. Nessa perspectiva, construímos o enfoque do trabalho com base na perspectiva metodológica qualitativa, a partir do campo de pesquisa. Organizamos o trabalho em três capítulos, conforme descrito abaixo: 1 Estes 25 anos de experiência de ensino em todos os níveis, (Infantil ao Superior), tanto em instituições públicas quanto privadas, nos rendeu um arcabouço prático, que nos respalda nesta discussão. 2 No decorrer da dissertação, usaremos o termo EIBC, Pamáali ou EIBC-Pamáali, para nos referirmos à escola Baniwa e Coripaco. 15 No primeiro capítulo, na busca de relacionarmos teoria e prática fundamentamos teoricamente o Ensino de ciências e educação intercultural, baseandonos nas concepções de ciências, interculturalidade, como um diálogo entre as diversas culturas, a sustentabilidade, a territorialidade e a educação escolar indígena. Destacamos as práticas pedagógicas na perspectiva da didática intercultural, a partir do cotidiano dos Baniwa e Coripaco. Estes conceitos formaram uma tríade para a análise da ciência do concreto relacionando com o etnoconhecimento. Diante da temática, tomamos por referência os estudos de Vieira, Leff, Pinto, Laplantine, Barreiros, Koch-Grünberg, Silva, RCNEI/ MEC, Tassinari, Freitas, Weigel, Hennig, Ribeiro, Eliade e Lévi-Strauss, dentre outros. Para possibilitar uma melhor compreensão do percurso, elaboramos o segundo capítulo a Metodologia, com o tema Desafio para a construção de um caminho, delineamos, a priori, a estrutura geral da pesquisa, estabelecendo a problemática, as questões norteadoras, os objetivos, os sujeitos e o objeto da pesquisa. Neste sentido, construímos o caminho da pesquisa, com uma abordagem qualitativa, no método dedutivo, sendo um estudo de caso, com indícios da pesquisa etnográfica e etnológica, detalhando o percurso da viagem pelo rio Içana, bem como a nossa estada na EIBCPamáali. Por ser de natureza qualitativa, recorremos para fins de coleta de dados, a técnica de observação participante intensiva, aos instrumentos de entrevista com professores e alunos, para análise dos processos conceptuais do ensino de ciências na Pamáali. Foi necessário, dada às circunstâncias e impossibilidade de retornarmos ao local da pesquisa, lançarmos mão em um último momento da carta eletrônica (e-mail), a fim de obtermos algumas informações relevantes para a conclusão das análises dos registros da pesquisa. Em última análise relatamos nossa experiência de mudança de concepção quanto à educação escolar indígena e os espaços não formais de ensino. Utilizamos a narrativa como uma modalidade da pesquisa qualitativa, pois contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo outro, o ouvinte. Pois para Triviños (1992), o pesquisador é sujeito participante da pesquisa, diretamente implicado na relação pesquisador-pesquisado. Fundamentamos este capítulo nos estudos de Pires, Teixeira, Marques, Kincheloe, Kaufmann, Haguette e outros como suporte metodológico. O terceiro capítulo, denominado de Os saberes indígenas e a construção de conceitos em Ciências Naturais destacamos uma proposta intercultural, bilíngue e sustentável para o ensino de ciências naturais para a EIBC, como um diferencial na 16 educação escolar indígena no Alto Rio Negro. Analisamos as concepções de estudantes e professores Baniwa e Coripaco na construção de conceitos em ciências naturais e, por fim, a proposta de um recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e bilíngue, ressaltando as vantagens e os passos deste fazer pedagógico. A finalidade desta produção é que, após aprovada por todos os interessados, seja publicada e utilizada como material didático na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental das comunidades, que oferecem estes níveis, ao redor da Pamáali. Abordamos sobre os saberes indígenas na construção dos conceitos em Ciências Naturais e sobre os temas contemporâneos contemplados no Projeto Político Pedagógico da EIBC e explorados nas produções monográfica dos estudantes. Destacamos o mito como estratégia de ensino para a sustentabilidade cultural e científica, bem como as metodologias de ensino com pesquisa, visando à inter-relação entre os saberes tradicionais indígenas e os conhecimentos científicos da cultura não índia. Assim, nos referenciamos no PPP EIBC-Pamáali, em Wright, Pinto, Tassinari, Weigel, Vygotsky, Viveiros de Castro, Lévi-Strauss e outros. Respaldamo-nos, também, na experiência do campo, possibilitando um diálogo entre o teórico e o prático. 17 1 ENSINO DE CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL “Ciência é tudo o que praticamos: tomar banho cedo para não envelhecer, não ficar com os cabelos brancos, ficar forte e melhorar os anticorpos. É a prática do dia a dia.” Raul Brazão Baniwa 1.1. Ciência(s), Educação Intercultural e Sustentabilidade A Ciência tem sua origem a partir das reflexões filosóficas, pois, a aquisição do conhecimento científico se dá através da capacidade que temos de organizar e reorganizar as informações em nossa mente. Nesse sentido, Hennig (1998, p. 146) afirma que “Ciência é o processo de simplificar e acumular conhecimentos [...], direcionando valores (pensamento, vivência e cultura), proporcionando as condições para que o homem cumpra seu destino”. Isto mostra que a Ciência e o conhecimento estão diretamente ligados formando uma base para a Teoria do Conhecimento. Com efeito, a objetividade é um elemento importante na Ciência para possibilitar maior precisão na explicação dos fenômenos da natureza. Por esta razão, a comunidade científica busca um método de conhecimento e compreensão que ofereça maior confiança nos resultados da pesquisa. Com isto cada escrito histórico nas ciências possui característica própria de seu período e que cada “historiador escreve com um propósito em mente” (DEBUS, 2004, p. 15), que é o de tornar-se um propagador do seu tempo histórico. Os modelos filosóficos de aprendizagem predominantes que foram transferidos para o ensino das ciências reforçam a memorização de conceitos. Contudo, estes padrões sofreram reformas conceituais e conceptuais, isto é, teorias científicas foram sendo ressignificadas, com vistas a atender às necessidades de aquisição do conhecimento científico. Sobre essas mudanças Morin (2008, p. 16) corrobora afirmando que “nossa ciência realizou gigantescos progressos de conhecimento, [...] que desafia os nossos conceitos, nossa lógica, nossa inteligência”. Neste caso, o conhecimento científico configura-se um desafio. Então, como desenvolvê-lo nos trabalhos educativos de nossas escolas? 18 No entanto, a educação escolar indígena vem buscando este progresso científico de modo significativo, principalmente após o estabelecimento de legislação própria para este ensino. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 (LDBEN) – artigos 26, parágrafo 1º e 2º; artigo 78 e 79 – e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena (RCNEI) 3, que defendem a especificidade da escola indígena representam um reconhecimento da necessidade de uma educação diferenciada, específica e de qualidade para os povos tradicionais do país. Porém, ainda por conta dos conceitos de ciências arraigados na sociedade envolvente, as contradições ainda são desafios para professores e estudantes indígenas. Acrescente-se que a LDBEN 9394/96, no art. 79, garante que serão desenvolvidos “programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas”, com vistas a fortalecer as manifestações sócio culturais de cada comunidade. Arrematando, Silva (2001, p. 31) reforça que um dos avanços para a educação indígena está na Constituição Brasileira/ 1988, pois “garante aos Índios uma educação respeitosa de suas línguas e culturas, de seus modos próprios de viver e pensar, de valorização de seus conhecimentos e dos processos próprios de sua produção e transmissão”. Nestes termos, o que estabelece a legislação garante o direito, então, o desafio está na distância entre o previsto na lei e a realidade das escolas indígenas. Assim, a implantação de um currículo que atenda a necessidade de cada comunidade tem sido a luta dos professores indígenas. Acrescente-se a esse comentário que independentemente da ação das instituições de ensino superior, as lideranças indígenas, politicamente organizadas, buscam alternativas que atendam aos anseios de sua população no que diz respeito à formação dos professores e à criação de escolas de Ensino Fundamental e Médio com proposta para uma educação escolar indígena sustentável. É o caso do Alto Rio Negro, onde em 2003 foram instituídas Escolas Estaduais de Ensino Médio Indígena nos distritos de Pari-Cachoeira, Taracuá e Assunção do Içana com a participação de lideranças indígenas, coordenadas pela FOIRN. Em 2006, estas escolas passaram a ter gestores indígenas. Este processo de mudança só foi possível 3 Nas próximas citações usaremos RCNEI. 19 com a realização da Oficina para elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos para o Ensino Médio Indígena, em dezembro do ano de 2005. (MONJELÓ, 2007). Assinale-se que, os professores indígenas reivindicam a elaboração de novas propostas curriculares aplicáveis às suas escolas para substituir o modelo geral do sistema educacional vigente. A razão, conforme registra o RCNEI/MEC (2002, p.11), é que “tais modelos nunca corresponderam aos seus interesses políticos e às pedagogias de suas culturas”. Com base nesse pensamento, podemos dizer que os indígenas e, neste caso os Baniwa e Coripaco, trabalham para uma educação que visa à sustentabilidade, no sentido de manter suas lideranças, seus costumes e valores tradicionais. Para tanto, utilizar a transversalidade constitui-se numa estratégia facilitadora do trabalho do professor, porque favorece a discussão de questões educacionais e sociais da cultura local e global. Além do mais, é uma proposta viável no contexto atual da sala de aula, pois professores e alunos tornam-se construtores de uma prática educativa para uma escola inclusiva e intercultural. E, reforçando essa inferência o RCNEI (2002, p. 93) destaca os temas transversais como: Um recurso de trabalho para o desenvolvimento de currículos mais significativos e flexíveis, fazendo dos conteúdos acadêmicos estudados na escola um instrumento para pensar questões socialmente relevantes para aquele conjunto de pessoas. Esses temas discutidos pela escola e por todos os sujeitos do processo educativo permitem um elo de discussão entre as diversas áreas de estudo e, de acordo com interesse do grupo, adquirem caráter de projeto social em benefício da comunidade. Importa destacar que, as concepções de ensino construídas pelos povos indígenas existem antes mesmo da introdução da escola formal no meio deles. Eles possuem uma maneira própria de produzir, reproduzir, transmitir, elaborar, reelaborar e perpetuar os conhecimentos, o que resulta num conjunto de concepções e conceitos científicos e filosóficos bem harmonizados com a natureza. Para os povos tradicionais a aquisição de conhecimentos é uma questão existencial, pois representam a sua sobrevivência enquanto etnia. Neste particular, Pinto (2008, p. 241) salienta sobre os saberes indígenas, que em 20 Um dado importante relativo a vários inventários do mundo natural e etnocultural que se realizaram [...], foi fundamental a contribuição e classificação das espécies animais e vegetais, além de seus respectivos valores e sentidos mágicos, medicinais, alimentares e econômicos. Como vimos, o reconhecimento das contribuições dos povos tradicionais na historiografia é premente para preencher lacunas que os métodos das ciências convencionais não explicam. Assim, caminharemos para a utilização responsável e consciente dos recursos naturais, para a relação de respeito com os elementos da natureza e para o comprometimento em manter a cultura e a história mítica dos povos tradicionais da Amazônia. Portanto, diante desses pressupostos, a maneira como se utilizam os recursos naturais determina os modelos de desenvolvimento e o modo de existência de diferentes povos. Neste sentido, para o indígena, um elemento essencial na elaboração dos conhecimentos é o direito ao seu território e aos recursos naturais existentes nele. Pois, com a posse de seu território o Índio constrói sua história, sua identidade, suas instituições políticas e sociais. Ele desenvolve concepções e alternativas de sustentabilidade, que os configuram, como os verdadeiros trabalhadores (RCNEI 2002) e, porque não dizer, “defensores da Amazônia”. (SILVA, 2003). Nessa perspectiva, ainda segundo Silva (2001), para valorização da educação escolar indígena e para implantação de políticas públicas neste seguimento educacional, a participação dos etnólogos é fundamental para sistematização de concepções, formulação de projetos e elaboração de legislações. São importantes também, para a formação de professores indígenas, a implantação de escolas e a criação de associações. Ademais, a etnologia possibilitou o reconhecimento de particularidades étnicas até então vistas de maneira geral pela Antropologia. As crenças, os mitos, a cosmologia e a relação do homem com a natureza, presente na visão dos povos ditos “primitivos”, chamou a atenção do olhar científico. Por isso, a Ciência precisou de novas metodologias de análises para compreender a complexidade das concepções indígenas, quanto às relações entre pessoas, corpos, almas, espíritos e animais. (SILVA, 2001). Consequentemente, a escola indígena ganha reconhecimento como um espaço de reflexão e de pesquisa com vistas à implantação da escola diferenciada, baseada na compreensão da realidade pesquisada. Para isso, o conhecimento acadêmico acumulado 21 a respeito dos povos indígenas e pelos povos indígenas é um patrimônio útil4 [Grifo nosso] para fins de pesquisa científica. Sobre esta questão, Tassinari (2001, p. 46) infere que A escola indígena começa a ser vista também como espaço/momento privilegiado para o aprofundamento das próprias pesquisas sobre etnoconhecimentos, e os professores e alunos Índios, por sua vez, revelam-se como pesquisadores e pesquisados no contexto local. Porém, embora a escola indígena seja de fato um espaço privilegiado para a pesquisa científica, é necessário que os pesquisadores tenham consciência de que este mesmo espaço é local de construção existencial e de preservação étnica sustentável. Assim, o ensino com pesquisa contribui para o processo de aquisição do conhecimento, fazendo a interação entre teoria e prática e articulando, conforme diz Leff (2008, p. 201), com os “sistemas ecológicos, tecnológicos e culturais, para satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da população”. Portanto, a exploração científica é integradora dos sistemas que envolvem os sujeitos participantes do processo. 1.1.1 Sustentabilidade, territorialidade e educação escolar indígena O tema sustentabilidade está diretamente ligado à preservação da espécie humana. E, para o indígena a territorialidade possui estreita relação com sustentabilidade, pois que assentado em seu território, este pode prover o alimento, instalar a moradia e, repassar a história aos descendentes, visando o desenvolvimento sustentável. Porém, à medida que compreendemos os conceitos de desenvolvimento e de sustentabilidade parece-nos quase utópico manter esta combinação. Incluir nesta ideia a educação escolar indígena é ainda mais complexo. Entretanto, segundo Freitas (2001, p.27) tem-se consolidado 4 Conhecimento que pode ser utilizado para discussões e aprofundamento dentro da pesquisa científica na temática indígena. 22 As tendências de que as questionáveis metodologias utilizadas pelos grupos econômicos e científicos, para agregar valor à natureza amazônica, [...] (incluindo a flora e a fauna), terão que necessariamente incorporar o componente societário, adquirindo feições políticas e nuançando parte das contradições das relações da Região com o Estado e o Mundo. Isso significa dizer que é necessário à formalização de parcerias e uma nova mentalidade quanto às questões de sustentabilidade da nossa região. Com isto vamos então compreender algumas definições de desenvolvimento e sustentabilidade. Em um conceito simples diríamos que por um lado o termo desenvolvimento está diretamente ligado ao crescimento econômico e progresso material, por outro o termo sustentabilidade está relacionado aos aspectos econômicos, sociais, ambientais e culturais de uma determinada comunidade ou sociedade humana. (LEFF, 2008) Neste caso, Coimbra (2004, p. 554) conclui que “tratar cientifica e tecnicamente a questão ambiental significa uma verdadeira mobilização na construção do saber e na práxis, visando modificar o modelo de relações hoje existentes entre sociedade humana e mundo natural”. Ancorados nessa perspectiva é importante considerar a ação do homem sobre a natureza e o impacto dessas ações na preservação das espécies. Neste sentido o homem deve se sentir parte integrante, como elemento da natureza, tal como os povos indígenas, pois para eles, afirma Gray (1995), citado por Freitas (2001, p. 43), “existe uma indissociabilidade entre as pessoas e a natureza, com as suas configurações sociais condicionando e sendo condicionada pelo meio ambiente”. Tal premissa significa a relação de interdependência entre homem e natureza. Por esta razão, questionamos os modelos de desenvolvimento convencionais, para dar lugar a um modelo sustentável de utilização dos recursos e, consequentemente da qualidade de vida da população humana. Sobre esta questão Coimbra (2004, p. 525) infere que “por isso os conceitos correntes e vulgares, quase sempre imprecisos e simplistas, devem ceder espaço a uma conceituação cientifica que envolva várias ciências, como as biológicas, as exatas e as humanas”. Nesses termos, a contribuição das várias ciências na construção de uma nova proposta de desenvolvimento sustentável será o diferencial nesse processo de combate a degradação socioambiental. Proposta esta que aponte para um modelo não só de desenvolvimento como também de preservação. Por esta razão, em 1983 a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e 23 Desenvolvimento, com o fim de orientar pessoas e organizações na compreensão desses problemas, incentivando-os a uma ação inovadora de integração das questões econômicas e ambientais. Com esta integração poder-se-ia definir desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades dos presentes sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”. (ALMANAQUE BRASIL SOCIOAMBIENTAL, 2008, p. 440). Entretanto, para que essa proposta se cumpra, requer de nós uma mudança de postura frente à utilização dos recursos naturais, pois não se trata apenas de preservação material, mas trata-se principalmente de preservação de povos e culturas milenares que deles dependem. Acerca desse assunto Ramos (1988, p. 21) declara que a exploração “intensiva e ininterrupta de um determinado sítio leva à rápida exaustão do solo e de outros recursos naturais”. Isto é, a exploração desenfreada gera desequilíbrio ecológico e, na Amazônia, dada a sua sociobiodiversidade, vislumbramos uma pluralidade de soluções para o desenvolvimento sustentável na região. A este respeito, Silva (2001, p. 4 e 5) assevera que somos “uma região complexa, com processos econômicos em curso [...], composta de áreas e populações urbanas, rurais e indígenas, de ocupação secular, milenar e contemporânea, e de reservas de proteção ao meio ambiente de manejo tradicional e recente”. Nesse sentido, a pluralidade amazônica é o desafio na construção de modelos econômicos, sociais e educacionais sustentáveis. A educação escolar indígena se constrói nesse processo de perspectiva sustentável partindo, conforme consta no RCNEI/ MEC (2002, p. 22), das próprias “concepções indígenas do mundo e do homem e das formas de organização social, política, cultural econômica e religiosa desses povos”. Então, o desenvolvimento sustentável para a preservação do meio socioambiental, não tem outra base que não seja educação, ciência e tecnologia, pois é por meio desta sustentação que a sociedade intervém em questões sociais, econômicas e culturais. Agarrada aos ditames do contexto, Silva (2001, p. 7) destaca os condicionantes políticos que alicerçam essas questões, sendo ora por Fatores geográficos, ecológicos e institucionais adversos, ora na grandeza física e na riqueza potencial da Amazônia, para reclamar prioridades de 24 intervenção na região sob a forma de infraestrutura social, cientifica e tecnológica a fim de explorá-la. Diante dessa realidade, o diferencial da educação escolar indígena está na inserção da comunidade no processo pedagógico da escola, sendo esta participação fundamental na definição dos objetivos, para uma educação específica e diferenciada e, consequentemente sustentável. Para o indígena os problemas relativos à territorialidade estão ligados à cultura. Demarcação de terras, conforme afirma Gray (2004, p. 111) “significa reconhecimento e respeito pelos direitos territoriais e culturais desses povos, permitindo que eles assumam o controle do seu próprio destino”. Com esta autonomia, buscarão alternativas econômica, social e política para o consumo sustentável dos recursos naturais em seu território. Também para avaliação dos impactos da introdução de novas práticas educativas e técnicas de ensino em seu ambiente escolar e cultural. Agregue-se a esse comentário a experiência do campo, na narrativa do professor Baniwa quanto à metodologia de ensino com pesquisa, para a construção de conceitos. Ele esclarece que: No inicio questionamos os livros, pois muitos alunos apresentavam dificuldades, principalmente os de Educação Infantil. Os professores eram de outra etnia, como Tukano e não eram Baniwa e isto dificultou a aprendizagem. Os livros estavam fora da nossa realidade. Acreditamos que a organização tem que ser de acordo com a realidade local e com os problemas, pois desta maneira é mais viável ensinar porque não fecha o raio de interesse do aluno e o professor é mais um orientador. Nossa ideia é que toda a escola de Ensino Fundamental use essa metodologia, respeitando a idade do aluno. Assim, a pesquisa iniciada no Fundamental precisava ser aprofundada no Ensino Médio, destacando que a pesquisa intermediária com os velhos na comunidade é muito importante. No futuro pretendemos analisar as monografias e partir para intervenção. [Prof. Baniwa 1] Nesse sentido, o ensino com pesquisa possibilita a construção de conceitos em ciências naturais por meio das vivências do cotidiano, estando diretamente relacionado com a valorização dos saberes dos povos indígenas Baniwa e Coripaco, com a revitalização de sua cultura para sustentabilidade dos mitos às gerações futuras, com a preservação do modo de vida dos Índios e, principalmente com garantia de sustentabilidade dentro do próprio território. 25 Ainda nesse raciocínio, Weigel (2000, p. 207) afirma que “o ritmo das atividades escolares é peculiar a essas condições: na época de plantar, ou de colher a mandioca, ou no período de fazer cacori5, a escola para por uma ou duas semanas”, a fim de garantir a sustentabilidade do professor na escola. Como vimos, na educação indígena Baniwa e Coripaco, tudo se relaciona com a terra e à preservação das espécies, à conservação dos animais e da floresta e, ao uso que se faz dela. Silva (2004, p. 371) infere que se trata da relação “entre o individuo e o patrimônio cultural do grupo a que pertence”. Para o Índio a forma como se relacionam com o meio ambiente favorece a visão, as ações e os projetos que levem em conta a sustentabilidade, harmonizando o homem e a terra ocupada por ele. Para reforçar Leff (2008, p. 92) referenda que: O desenvolvimento sustentável surge com o propósito de conseguir um ordenamento racional do ambiente, sem exigir que o ambiente funde uma nova racionalidade, que a degradação ambiental não se resolva com os instrumentos da racionalidade econômica. Neste sentido, a questão ambiental está ampliando o marco dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Entretanto, não nos é desconhecida a grande dificuldade que existe em construir um conhecimento partindo de uma realidade pouco conhecida por muitos, como é o caso das comunidades indígenas do noroeste do Brasil, mas especificamente os Baniwa e Coripaco. Comunidades estas definidas, na maioria das vezes, de modo generalizado, sem observar as particularidades existentes em cada uma delas. Ancorado na perspectiva da valorização de cada cultura, Bourdieu (1996) afirma que a cultura e o conhecimento se firmam no interior das relações sociais, nos grupos de interesse. Com isto abre-se uma possibilidade para pensar o ensino de ciências contextualizado na realidade da escola indígena Baniwa e Coripaco. E neste sentido, Freitas (2003, p. 219) compreende que: A complexidade dos ecossistemas amazônicos em qualquer escala, tanto quanto a compreensão de propostas para preservá-los, conservá-los ou desenvolvê-los com modelos sustentáveis, não estão limitadas pela natureza amazônica, mas pela cultura, ou por fatores que dela dependem. 5 Armadilha construída com galhos secos que serve para pegar peixes. 26 Portanto, nesse contexto, considerar a concepção cultural dos povos indígenas Baniwa e Coripaco nesta construção é fundamental para a definição de uma política de desenvolvimento sustentável. Além disso, Lévi-Strauss (1989) afirma que é preciso compreender o que está subjacente na concepção dos indígenas sobre sua própria educação. É preciso reconhecer as experiências de ensino das ciências por meio dos saberes cotidianos para a construção concreta de conceitos e transformá-las em conhecimento científico. Sendo assim, fazer a interação entre as experiências do cotidiano Baniwa e Coripaco com a construção do conhecimento científico, pode tornar-se um elemento de constatação que o indígena faz ciência. É o que discutiremos a seguir. 1.2. Didática Intercultural: Práticas pedagógicas a partir das experiências indígenas Baniwa e Coripaco É preciso criar condições prévias para a construção do conhecimento científico, considerando que as práticas em sala de aula reforçam e aumentam a consciência dos estudantes sobre suas concepções de aprendizagem. Neste sentido, é necessário se valorizar os saberes docentes, para então propor os recursos didáticos. Barreiros (2006, p. 22) explica que quando se “reconhece os saberes docentes como plurais, estratégicos e desvalorizados, abre-se um leque de alternativas para a compreensão do fazer pedagógico ou docente”. Não se pode impor aos docentes novos saberes usando como desculpa a visão do conhecimento dito científico. Além do mais, na perspectiva de uma didática intercultural, o processo de ensino e de aprendizagem é multidimensional e cheio de diversidade, sendo, portanto, necessário considerar a dimensão cultural, que deve ser “um elemento construído no interior da escola a partir deste mesmo cotidiano [escolar]”. (Idem). Mais ainda, “a escola é também um mundo social, ou seja, um espaço que tem e desenvolve sua própria cultura” (Ibidem, p. 23), com características próprias das culturas da cada realidade. Nessa acepção, Barreiras (2006, p. 23), traz a visão de Candau (1997) para situar o cenário do cotidiano escolar e os processos constantes nele: Globalização, multiculturalismo, questões de gênero e de raça, novas formas de comunicação, manifestações culturais de adolescentes e jovens, 27 expressões de diferentes classes sociais, movimentos culturais e religiosos, diversas formas de violência e exclusão social configuram novos e diferenciados cenários sociais, políticos e culturais. Decorrendo desse fato, a autora defende que a escola deve sair de sua postura monocultural, através da articulação entre igualdade e diferença, questionando estereótipos sociais e, que promova de fato um movimento de inter aprendizagem entre as culturas, favorecendo assim, uma educação verdadeiramente intercultural. A perspectiva da educação intercultural está diretamente ligada à seleção dos conteúdos escolares, às estratégias de ensino, à relação professor-aluno, aluno-aluno, ao sistema de avaliação, ao papel do professor, á organização da sala de aula, às atividades extraclasses, à relação escola-comunidade, numa tentativa de ressignificação das práticas pedagógicas. Em síntese, a didática intercultural possibilita “enxergar a diversidade, a diferença, a pluralidade de culturas como um dos componentes fundamentais da relação pedagógica do cotidiano escolar no processo ensino-aprendizagem” (BARREIRAS, 2006, p. 28), pois ao considerar esta multidimensionalidade, se dá o primeiro passo para a perspectiva intercultural, considerando também, no mesmo nível de importância a contextualização da prática pedagógica e a análise de sua concretude. Por essa razão, considerou-se as atividades cotidianas dos Baniwa e Coripaco, como uma alternativa de aprendizagem representante da didática intercultural. Tomemos como exemplo a caça, que, conforme Kock Grünberg (2005), não tem tanta importância para aquisição do alimento como a pesca. Porém, além de ser praticada como um esporte, seu equipamento é elaborado cuidadosamente e manuseado com muita destreza. Dentre essas armas está a carauatana6. Sobre este apetrecho7 [Grifo nosso] Kock Grünberg (2005, p. 121), nos dá uma aula de ensino de ciências e matemática, numa descrição detalhada da construção deste objeto até sua utilização. Vejamos: O cano de 2,80m até 3m de comprimento é tomado de uma arrundinácea cuja haste desde a raiz ergue-se reta como uma vela e sem nós, por uns quatro metros ou mais, até que começa esgalhar-se. Secam-se cuidadosamente, ao fogo e no sol, para que não se entorte. O cano cilíndrico, [...], levemente 6 “Arma principal dos indígenas do noroeste do Brasil para caçar aves e pequenos quadrúpedes, especialmente os arborícolas” (KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 121). 7 Expressão usada por KOCH-GRÜNBERG, 2005. 28 esfregado na parte externa com cera preta [...], para preservá-lo de estragos. Enfiam [...] no tronco uma palmeira de paxiuba, [...] retirada a medula. Ambas as partes devem adaptar-se exatamente uma à outra e ficam calafetadas por meio do rolamento do líber. Observamos nesse texto um conhecimento significativo acerca da utilidade de cada elemento da natureza, sua finalidade específica, bem como sua propriedade de eficácia. Apresenta-nos ainda conhecimentos matemáticos e geométricos necessários para a confecção da arma. Esta descrição usada em sala de aula para a construção de conceitos matemáticos facilitaria a apreensão destes conteúdos abstratos e de difícil compreensão. Na descrição da produção do veneno, chamado de curare, para ervar as 8 flechas [grifo nosso] a serem usadas na carauatana, revela-se a propriedade química da planta e como ela age no organismo do animal atingido. Koch-Grünberg (2005, p. 125) descreve que o principal componente para produzir o curare é a casca de uma trepadeira, denominada cientificamente de maukulipi. Para iniciar o processo, os Baniwa Secam a casca ao fogo, fervem na água, peneiram a decocção com uma peneirinha finíssima, para separarem todos os componentes sólidos, e cozinham o suco até que ele se torne de cor marrom-preto, mais grosso do que xarope. Acrescentam ainda outros ingredientes, venenos e sucos pegajosos de plantas, que devem fazer com que o veneno fique melhor aderente à madeira. [...] A umidade faz o curare perder sua força. Por isso os potinhos de veneno são conservados cuidadosamente fechados [...]. Assim, o veneno conserva a sua eficácia durante anos. A eficácia do curare já foi testada por muitas experiências. Se o curare penetra no sangue, paralisa logo o movimento voluntário do músculo nesta localidade. Com o sangue que circula, espalha-se o veneno e com ele a paralisação no corpo inteiro. Percebemos que ao preparar tal veneno, o indígena Baniwa tem consciência do que está fazendo e sabe que objetivos quer alcançar. Os saberes presentes nessa descrição apontam para uma concepção alternativa acerca construção do conhecimento cientifico, pois tenta superar, pela riqueza de detalhes observados nela, fontes também alternativas, que gerem a informação inicial. No preparo do veneno estão presentes informações da Química, como por exemplo, propriedades anestésicas, densidade líquida, conservação das propriedades de uma substância; e da Biologia como 8 Expressão usada por Koch-Grünberg, para dizer que as flechas usadas na carauatana serão envenenadas com ervas. 29 circulação sanguínea e funcionamento de órgãos vitais. Neste caso, se usado como aplicação para conteúdo de ensino, a produção desse veneno se transformaria em uma ferramenta facilitadora para abstração destas informações. Na sequência dessa explanação, a descrição do uso carauatana, o seu tamanho, a habilidade e a força necessária para usá-la e ainda, a posição do corpo que possibilita maior segurança para seu uso, dando maior impulso e velocidade para arremessar a flecha, compreende vários conceitos da Física. Vejamos a seguir o detalhamento feito por Koch-Grünberg (2005, p. 126), quando narra que: Um homem forte pode arremessar a flechinha com tamanha força que ela atinja eficazmente o alvo na distância de 30 ou 40m. [...]. Na distância de uns 20 ou 30m, segurando a carauatana horizontalmente, raras vezes deixaram de acertar uma banana, que certamente é um alvo de pequenas dimensões. O que fica evidente é que nessa descrição temos uma aula sequenciada, trabalhando conceitos da Física, como força, movimento e distância entre dois pontos. Se aplicado em sala de aula, este exemplo constitui-se em um instrumento de prática pedagógica para proporcionar aprendizagem significativa aos estudantes. A percepção dos Baniwa para capturar sua presa na hora e no local adequado é mais uma aula de Biologia. Ele demonstra o conhecimento acerca dos hábitos alimentares dos animais, da rotina destes em seu habitat natural e do momento mais apropriado para a captura. Koch-Grünberg (2005, p. 125), mais uma vez, descreve a respeito da caça a partir dos conhecimentos Baniwa e relata que “o indígena conhece os segredos da sua selva [...]. Com perseverança tenaz ele persegue o fugitivo pela confusão da brenha, até que chegue a disparar o tiro e matar a presa”. Nessa afirmativa, constatamos conhecimentos de Biologia para a construção de concepções de ensino de ciências nas escolas indígenas Baniwa e Coripaco do Alto Rio Negro. A experiência do Índio Baniwa em suas atividades cotidianas e a maneira como ele se apropria dos conhecimentos, evidencia a necessidade de uma escolarização diferenciada, intercultural e específica, reiterando a relação entre Homem, Natureza e Cultura. Conforme já foi destacado, a valorização do modo como os Baniwa se apropriam do conhecimento, para produzir educação formal, dá a ele oportunidade de sobreviver material e culturalmente. Principalmente, se os conteúdos forem ensinados 30 na própria língua materna. Este pressuposto é reforçado pelo que Lévi-Strauss (1989) advoga sobre a necessidade de compreender as diversas culturas, pois se constituem num vasto patrimônio de diversidade para a humanidade. E Bazin (s/d, s/p) reitera esta premissa, afirmando que, Cada professor indígena e cada formador de professores indígenas precisa convencer-se, pelo estudo e pela prática de uma pesquisa coletiva na comunidade (...) [da existência de] uma riqueza própria em cada indivíduo e em todo povo indígena, nos domínios chamados de “Matemática e Ciência”. Cada povo, cada civilização, no mundo inteiro, criou sua própria maneira de contar, de fazer medições de distâncias, áreas, volumes; de criar desenhos de construções ou decorativos (de fazer "geometria"); de estabelecer regras e "provas" para os mais variados jogos; de produzir superfícies e volumes a partir de fibras entrelaçadas de maneiras muito bem definidas e classificáveis (na cestaria). É premente, portanto, compreendermos que o modo próprio de produção de conhecimento de cada povo é um patrimônio cultural a preservar. Mesmo porque a legitimação desse conhecimento produzido deve partir da crença dos próprios indígenas, pois isto creditará maior respeito a cada povo, a cada cultura. Portanto, todo educador indígena, que conhece sua cultura, usa os conhecimentos construídos por seus ancestrais, como uma maneira própria de fazer matemática e ciência. Pois, percebe-se estreita relação com a etnologia indígena, levando em consideração o plano cognitivo, o simbolismo, a historicidade do sujeito e o conceito singular de Natureza. E isto proporciona uma visão ampla sobre diversidade cultural de cada povo. Ademais, Vidal & Silva (2004, p. 371) aferem que estas práticas de trabalho pedagógico na educação escolar indígena – neste caso Baniwa e Coripaco - “indicam as relações entre o individuo e o patrimônio cultural do grupo a que pertence”, apontando assim, para projetos futuros. Isto representa uma tomada de consciência cada vez mais crescente por parte de cada povo étnica e culturalmente representado na sociedade. Por isso, a escola indígena Baniwa e Coripaco apresenta-se como um local de aquisição do saber e de ensino para as crianças e para os jovens sobre o modo de vida na comunidade. Os Baniwa e Coripaco, também ensinam sobre os conhecimentos acumulados e repassados pelos mais velhos, sobre as propriedades medicinais das plantas, sobre os mitos de sua origem e dos animais e, sobre as tradições culturais necessárias para a preservação de sua etnia. 31 No entanto, historicamente falando, a escola dos não Índios se equivoca no repasse da informação sobre o mito. O conceito é de que os mitos seriam “lendas indígenas”, numa visão completamente errônea deste conceito que é fundamental para a existência da cultura Baniwa e Coripaco e de outras tradicionais. (SILVA, 2004) Para Laraia (2009), isso acontece por que cada povo toma como parâmetro sua própria cultura, como sendo verdades absolutas e despreza as demais culturas. Este comportamento demonstra a ausência de um conhecimento intercultural. Bem como a necessidade de valorização das diferenças culturais. Nesse sentido, é importante a interpretação da simbologia dos seres e sua relação com os mitos e os ritos indígenas, neste caso dos Baniwa e Coripaco, para além de uma simples análise formal. E, sobre esta questão de interpretação de simbologias, Lévi-Strauss (1989, p. 62) sintetiza que: Cada dia mais se percebe que para interpretar corretamente os mitos e os ritos e, mesmo para interpretá-los de um ponto de vista estrutural (que não se teria razão para confundir com simples análise formal) é indispensável a identificação precisa das plantas e animais de que se faz menção ou que são diretamente utilizados. Essa afirmação está diretamente ligada à compreensão e reconhecimento do mito como uma das principais forças para a preservação dos povos tradicionais. E, para os Baniwa e Coripaco, as tradições são uma porta de sustentabilidade da cultura, do mito de origem, centrada na territorialidade. Os povos Baniwa e Coripaco surgiram no rio Ayari, um afluente do rio Içana. O mito relata que naquele tempo havia apenas dois seres viventes no centro do mundo, eram Napirikoli e Dzooli, que fumaram seu cachimbo, sopraram e a partir deles surgiram todos os ancestrais. Segundo Eliade (1994) é preciso conhecer o mito de origem de uma planta para se usar corretamente sua propriedade curativa, pois só haverá cura se o ritual mítico for realizado como na primeira aparição, seguindo passo a passo a sequência do ritual e com a mesma organização. Ele afirma também, que se a enfermidade for, por exemplo, uma picada de cobra, aquele que vai realizar a retirada do veneno deve conhecer o mito de origem da cobra, a fim de realizar o rito adequadamente. Lévi-Strauss (1989) reforça quanto ao pensamento “primitivo”, que tanto os “civilizados” quanto os “selvagens”, possuem igual comportamento emocional e, 32 mesmo nas sociedades onde predomina a cultura do saber científico, ele reforça, que a racionalidade e o sentimento estão sobrepostos. Então, se por um lado o ritual mítico de passagem do jovem indígena Baniwa e Coripaco para a vida adulta é significativo para que se torne um guerreiro. Por outro, o rito de formatura (colação de grau) tem significado mítico para o não indígena, significa um novo caminho. Portanto, os ritos e os mitos representam a racionalidade e o sentimento tanto para os povos tradicionais, quanto para os ocidentais. Acrescente-se que, na visão de Silva (2004, p. 318), é de suma importância “a comunicação e o convívio de povos, culturas, nações e grupos sociais diferentes entre si, se dá em grau, extensão e intensidade nunca antes experimentados”, a fim de que haja adaptação quanto às diferenças e, compreensão quanto à pluralidade cultural existente em nosso país, caracterizando uma convivência para uma educação intercultural. Agarrado aos ditames desse contexto, na educação escolar indígena Baniwa e Coripaco, considera-se a realidade em volta da escola e valoriza-se os conhecimentos da comunidade. Portanto, as atividades desenvolvidas e, inclusive o local onde a escola foi construída favoreceu a proposta de currículo que valoriza o mito de origem e os conhecimentos tradicionais dos povos Baniwa e Coripaco, pois, conforme afirmam Vieira (2009, p. 5), como “tudo na cultura indígena, este local tem um significado de caráter ancestral e mítico”, o que revela o respeito do povo Baniwa e Coripaco para com suas raízes ancestrais. Então, para que haja compreensão do significado mítico para os povos indígenas é preciso: Partir da reflexão filosófica do mito; derrubar os tabus e mentiras a respeito do mito; e tomar consciência da complexidade do mito, quanto às identidades, concepções e práticas diversas constantes neles. E, assim, segundo afirma Silva (2004, p. 320) “estaríamos, então, em melhores condições para trabalhar os mitos em sua dupla dimensão, [...], como produtos da reflexão humana sobre o mundo [...] e como criações originais, em suas especificidades, de sociedades e culturas particulares” e, somente aí incluí-los como parte do currículo das escolas não indígenas. Cabe enfim recordar que o atual modelo de escola é uma criação ocidental e, que os indígenas só passam a ter a necessidade [grifo nosso], após contato com os não índios. Assim, em sua especificidade, a escola indígena torna-se objeto de pesquisa, quanto às concepções, quanto ao funcionamento e quanto à repercussão no meio educacional. A este respeito, Weigel (2000, p. 73) infere que: 33 É preciso, então, dar conta da contradição e do conflito produzidos nas relações que fazem a escola indígena, os quais criam movimentos e tensões entre continuidade/descontinuidade, reprodução/ruptura no processo educativo, colocando para a escola indígena tanto a dimensão da reprodução, quanto da transformação sociocultural. Com efeito, as contradições reveladas no interior da escola indígena denotam os processos de dominação causados pelas missões religiosas, preocupadas em implantar sua visão de mundo religioso ocidental, ignorando os saberes tradicionais desses povos, como se eles mesmos não fossem capazes de pensar sua realidade, suas necessidades e sua história. Em face disso, o resultado se revela em nossos dias, na dificuldade dos professores indígenas para sair do modelo de escola que foi implantado por essas missões, em décadas de dominação. Em alguns casos até preferem a estrutura atual, pois desta forma se destacam no mundo ocidental. Nem percebem que desta maneira, desvalorizam sua própria construção cultural. (WEIGEL, 2000). Assim sendo, Cunha (2004, p. 131) assevera que “entender esses processos não é somente importante para a definição de identidade étnica. Na realidade toda a questão indígena [...] está eivada de semelhante reificações”, com a finalidade de levar os indígenas a um estado de indiferença e alienação de sua cultura. Ao contrário disto, a escola indígena deve estimular “o fluxo de conhecimentos, [...], numa direção radicalmente oposta” (TASSINARI, 2001, p.65), para possibilitar ao Índio perguntar, aprender técnicas, ouvir histórias, interpretá-las e utilizá-las da melhor forma possível, construindo seu próprio conhecimento. E isto a escola Baniwa e Coripaco minifesta em suas metodologias com ênfase na pesquisa. É importante, portanto, a valorização das diferenças constantes em cada povo, em cada cultura, a fim de se compreender que cada etnia possui sua riqueza e contribui na construção da sociedade em todo o mundo, favorecendo a interculturalidade. Nesta perspectiva, Grupione (2004, p. 485) destaca: A humanidade é composta por uma rica variedade de grupos humanos. Todos esses grupos humanos têm uma capacidade especifica para atribuir significados a suas experiências de vida, a fenômenos da natureza ou da realidade social, às condutas dos animais e também das pessoas. Os significados atribuídos podem variar muito de grupo para grupo. O conjunto de significados explicativos da realidade compõe um código simbólico, que é próprio de cada cultura. 34 Então, em face do foi colocado, compreender a educação escolar numa perspectiva intercultural ou ainda pluricultural é um exercício que deve ser praticado tanto na escola indígena quanto na não indígena, para que se excluam os pré-conceitos criados, principalmente em relação ao indígena. Essa questão fica clara quando nos reportamos aos livros didáticos das escolas de não índios. Estes apresentam os indígenas como coadjuvante de sua própria história, sempre em função do colonizador europeu. Neste caso, é uma visão etnocêntrica que gera a ideologia de que os Índios não são nossos contemporâneos. Reforçando a ideia de que eles pertencem ao passado e que não existem mais. O módulo dos PCN’s dedicado à Pluralidade Cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s EM/MEC, 2000, p. 121), afirmam que, As culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo das suas histórias, na construção de suas formas de subsistência, na organização da vida social e política, nas suas relações com o meio e com outros grupos, na produção de conhecimentos etc. A diferença entre culturas é fruto da singularidade desses processos em cada grupo social. Certamente, cada grupo social preocupa-se em manter a cultura construída por seus pares, a fim de subsistir às mudanças e manter as características do grupo. Nessa perspectiva de país plural, o Brasil é formado por essa diversidade de povos, dada a sua formação histórica de povoamento. Com base nessa premissa, destacamos a importância de convivermos com a diversidade cultural, respeitando as diferenças raciais, linguísticas e religiosas, pois isto deve fazer parte do nosso cotidiano, nas escolas, nas comunidades, nos grupos sociais e onde quer que estejamos nos relacionando dentro da sociedade. Por conseguinte, é possível afirmar que cada sujeito possui seu lugar dentro da sociedade. Weigel (2000, p. 176/7) compreende que: As posições ocupadas por cada um desses atores sociais não são arbitrárias, mas definidas pela distribuição de apropriação, social e historicamente operadas, [...] legitimados e valorados nessa realidade social. [...] A acumulação relativa de capitais sociais é, então, convertida em qualidades e possibilidades aos indivíduos, as quais servem para criar/negar nexos e proximidades entre as diferentes posições do espaço social. 35 Com base nesse pensamento, percebemos a riqueza presente na acumulação do capital cultural, posto que cada cultura tem sua contribuição social, para o desenvolvimento da humanidade. Tal contribuição se constitui num patrimônio inestimável. Vieira (2009, p. 9) reforçam ao afirmar que Uma educação indígena que se propõe diferenciada não tem problemas em considerar as diferentes culturas como parceiras no processo de construção da cidadania indígena. Através da interculturalidade, Brancos [não índios] e Índios podem dialogar sem prejuízos assimilatórios, pois o contato com diferentes etnias só tem reforçado a necessidade de reconhecimento das diferenças. Mesmo dialogando com outras realidades culturais, o interesse do Índio por sua história e cultura permanece aguçado, e é notável a revelação dos saberes tradicionais em muitos aspectos de sua educação. Essa afirmação nos mostra que os Baniwa e Coripaco estão abertos a novos conhecimentos, porém não descartam os saberes conquistados por seus ancestrais com muita luta e perseverança. Neste sentido visam à conquista da autonomia social, política e educacional, para interação entre a tríade interculturalidade, ciência e sustentabilidade. Agregue-se a este comentário que “há um esforço para conhecer a origem e a história de tudo o que nos cerca: tanto a origem do sistema solar quanto a de uma instituição como o matrimônio ou de um jogo infantil como a amarelinha”. (ELIADE, 1994, p. 73). Nesse sentido, isso significa que tanto Índios quanto não índios têm necessidade de conhecer suas origens culturais, num esforço para compreender fatos ainda não compreendidos. Ao contrário, ignorando tais conhecimentos a Ciência colabora para a extinção de boa parte da história da humanidade e, consequentemente, a história da própria Ciência. Sobre essa temática, D’Ambrósio (2004, p. 194) arremata o quanto “é essencial entender o processo de aquisição do conhecimento”, pois neste processo a História da Ciência com a história da humanidade interagem entre si, num movimento de construção dos saberes, recuperando, segundo Alfonso-Goldfarb (1994) os “conhecimentos sobre a natureza que pareciam errados pelos critérios científicos [e ainda recuperando] outras formas de ciência que a Ciência Moderna apagara” (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p.13). Esta postura representa uma superação da Ciência em relação aos conceitos e as concepções sobre os saberes tradicionais enquanto tema da pesquisa científica. 36 Nessa acepção, a reforma da religião e da ciência, busca uma nova compreensão do mundo e do homem, isto é, o microcosmo dentro do macrocosmo, onde, segundo afirma Debus (2004), “o homem como um verdadeiro mago natural, deveria aprender sobre seu criador por meio do estudo da natureza criada por Deus” (DEBUS, 2004, p. 15). Tal estudo teria por base a Química, ou seja, domínio total da Química e da Alquimia, visando principalmente o benefício da medicina e a preparação de novos medicamentos quimicamente testados, porém mantendo seu fundamento na medicação simples, tradicional. (DEBUS, 2004) Enfim, a compreensão da realidade cultural, é fundamental para que a humanidade reconheça e respeite as diferenças entre os povos, seu modo de sobrevivência e suas estratégias de sustentabilidade. No entanto, é importante percebemos como acontece a concepção de ensino entre os indígenas, especificamente neste caso, os Baniwa e Coripaco. O ensino de ciências na escola indígena Baniwa e Coripaco é uma construção a partir da realidade e do conhecimento concreto, pois a valorização do ambiente que os cerca é um recurso pedagógico utilizado caracterizando um fazer ciência a partir do concreto. Esta é a nossa abordagem a seguir. 1.3. Etnoconhecimento e ciência do concreto “A dificuldade da pesquisa é ir em busca do que se quer e da linguagem científica; pesquisa é interessante e nos ajuda a construir um texto ‘bem grande’.” Abílio Brazão - Aluno do 1º Ano do EMII O etno está diretamente ligado ao conceito antropológico de população ou grupo social biológica, linguística e culturalmente homogênea, que compartilham história e origem. O concreto está ligado à construção de conceitos por meio “da observação daquilo que é vivido, e da teoria construída para dar conta dessa observação, [...] do campo e do método”. (LAPLANTINE, 2007, p. 192). Essa construção está diretamente ligada com os dados observados na realidade em questão. Porém, o trabalho etnocientífico não se volta apenas para o estudo das etnias ou grupos étnicos, mas sim, de microssistemas de um determinado campo. Portanto, possui como objeto de estudo as várias formas de conhecimento e/ou saberes 37 humanos, pois, conforme confere Laplantine (2007) “trata-se de uma atividade claramente teórica de construção de um objeto [...] que só pode ser empreendida a partir de uma realidade concreta”. (Idem, p. 193/4). Essa realidade concreta é o campo a ser pesquisado. Para tanto, um estudo etnocientífico considera três fases distintas: a) A primeira é a fase epistemológica - ligada diretamente ao modelo da realidade em estudo; b) A segunda é a fase ética - que se preocupa com a análise e discussão ampliada e neutra da realidade e permite a comparação entre vários modelos culturais e, por fim; c) A terceira fase que se constitui na comparação entre as duas anteriores. Vale ressaltar que o sistema ético de comparação entre culturas nem sempre existe, sendo necessário muitas vezes construí-lo durante o processo de estudo. Com base nessa definição, a dificuldade maior da etnociência, conforme afirma Pinto (2008, p. 243) relaciona-se com o tipo de civilização implantada no Brasil que sempre teve dificuldade Em reconhecer a existência das culturas indígenas e muito mais em reconhecer que todo o conhecimento que veio a ter do território, da zoologia, da botânica, do uso medicinal das plantas, de boa parte da culinária, deve de alguma maneira aos povos indígenas que possuíam, produziam e muitas vezes ensinavam esses saberes. Então, reconhecer as contribuições dos povos tradicionais é reconhecer a etnociência como um campo do conhecimento em expansão. Pois possui abrangência em áreas como: biologia, mitologia, teologia, epistemologia, cosmologia, antropologia, meteorologia, agronomia, matemática, linguística entre outras, formando seu caráter interdisciplinar e ético. Neste sentido, é possível que por força do crescimento de uma nova visão de ciência, estejam nascendo subáreas de conhecimento. Agregue-se a esse comentário que herdamos dos habitantes “primitivos” das Américas, um saber a ser resgatado e, Ribeiro (2004, p. 199) acrescenta que As principais plantas de que se alimenta, ou que utiliza industrialmente, a humanidade foram descobertas e domesticadas pelos ameríndios. Tais são 38 entre as alimentícias: i) batata – Solanum tuberosum; ii) mandioca – Manihot esculenta; iii) milho – Zea mays. Certamente que essa herança cultural se firma na escola. O que implica para o professor, a sensibilidade de captar o potencial investigativo dos estudantes, levando-os a descobrir, redescobrir e autodescobrir, dentro da própria comunidade a riqueza material e intelectual presente em cada cultura. Entretanto, Lévi-Strauss (1997, p. 33) ressalta a existência de um intermediário para a construção do conceito a partir do concreto e infere que Entre a imagem e o conceito: [o que existe] é o signo, [...], como [mediador] entre uma imagem e um conceito, que, na união assim estabelecida, desempenham respectivamente os papéis de significante e significado. Assim como a imagem, o signo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito por seu poder referencial. Confirmando tal inferência, isso significa dizer que não basta adquirir o conhecimento, saber o “para quê” do conhecimento tem igual importância. E neste sentido, Lévi-Strauss (1997) ratifica a necessidade de uma análise pormenorizada dos fatos da realidade concreta, indo além das causas e efeitos, para o que está implícito nelas. E Vygotsky (1998, p. 47) corrobora afirmando que “o uso de signos auxiliares rompe com a fusão entre o campo sensorial e o sistema motor, tornando possível assim novos tipos de comportamento”. Nesse caso, percebemos que entre o saber e o fazer existe um mediador concreto, o signo. Consequentemente, a tarefa de formar professores indígenas é delicada. É, portanto, necessário encontrar juntamente com estes professores conteúdos do seu interesse, para possibilitar a produção de conhecimentos significativos para a sustentabilidade étnica, transmitidos na língua nativa e, conforme esclarece Silva & Azevedo (2004, p. 156) garantindo “aos professores indígenas uma formação especifica, atividades de atualização e capacitação periódica para seu aprimoramento profissional”. De fato, para que isso ocorra os formadores precisam conhecer o contexto da realidade em questão. Pois, tanto na formação dos professores, quanto na ministração do conteúdo em sala de aula, quando não é contextualizado concretamente, estes se tornam apenas conceitos formais sem nenhuma significação. E, serão de fato, se mais tarde os sujeitos não o direcionarem para um fim específico. 39 Com efeito, as etnociências chamam a atenção, para sensibilização, tanto os cientistas quanto a comunidade em geral. Pois, o potencial dos povos tradicionais na utilização sustentável dos recursos naturais, também favorece a preservação das culturas. Por ser um campo interdisciplinarizado, ao estudar as relações existentes entre as comunidades tradicionais e o mundo natural, as etnociências estabelecem uma interação entre a lógica subjacente aos saberes humanos em cada população tradicional e sua cultura. Em última análise, Pinto (2008, p. 243) infere que “a tendência é que as etnociências adquiram uma força maior à proporção que os estudos antropológicos se ampliem nas universidades da região [do Alto Rio Negro e em outras], pois afinal esse seria um de seus campos de atuação prioritários”. Assim, as etnociências trazem em sua essência a finalidade de utilizar os etnoconhecimentos para promover os saberes e as culturas tradicionais, com vistas a uma compreensão intercultural entre os povos, para a construção de um caminho com vistas a um novo paradigma de desenvolvimento sustentável. 40 2 METODOLOGIA: O DESAFIO PARA CONSTRUÇÃO DE UM CAMINHO 2.1 Delineamento da pesquisa “Ao andar se faz caminho e ao olhar para trás vê-se a estrada que nunca voltar-se-á a pisar”. Antonio Machado O percurso metodológico é sempre um momento de muitas ponderações e decisões por parte do pesquisador. Neste caso, o caminho percorrido trouxe como resultado a visão e as concepções do professor e do aluno Baniwa e Coripaco a respeito do ensino de ciências e dos conceitos básicos presentes nas práticas educativas. Trouxe, ainda, a contribuição para a construção da aprendizagem científica dos estudantes do Ensino Fundamental da EIBC Pamáali. Nesse processo de construção de conceitos em Ciências Naturais, há uma interação entre os saberes Baniwa e Coripaco e os conhecimentos ocidentais, possibilitando uma mudança de paradigma a respeito da escola indígena. A escolha do método, da abordagem, das técnicas e a contextualização do trajeto da pesquisa dependem do objeto de pesquisa escolhido, pois de acordo com Marques (2006, p. 22), é necessária “a aplicação de um conjunto de princípios que tenham o status de científico”. Com base no projeto idealizado para o desenvolvimento da pesquisa delineamos a estrutura geral compreendendo a problemática, as questões norteadoras, os objetivos geral e específicos, bem como os sujeitos e o contexto a ser pesquisado. 2.1.1 A Problemática A delimitação do problema e o detalhamento da problemática é o primeiro passo para se iniciar o trabalho de pesquisa. Dir-se-ia que este é o momento crucial para o início dos trabalhos. “A formulação do problema aos chamados critérios de delimitação, de modo que se inibam as tentativas de se ampliar demais o problema ou restringi-lo além do ideal”. (MARQUES, 2006, p. 95). Diante disso, consideramos importante a contextualização da problemática, a fim de que possamos nos debruçar no percurso metodológico. No inicio tínhamos apenas as leituras relacionadas à temática geral abordada e, somente quando fomos ao campo é que definimos o objeto da problemática. A partir daí compreendemos que 41 historicamente, os povos “civilizados” vinham imprimindo o caráter de sua cultura aos povos “primitivos”. Tal imposição ocidental caracteriza mais uma vez a invasão de território dos povos tradicionais da floresta, que se repete em vários momentos na historiografia. Na pesquisa de campo, nosso interesse cresceu, ao considerarmos a ideia dos povos tradicionais sobre ciências e, ao acreditarmos no potencial da escola indígena enquanto espaço de pesquisa científica, então decidimos pela explanação desse campo. Por fim, tomamos como foco principal do problema o trabalho científico desenvolvido no meio do povo Baniwa e Coripaco do Alto Rio Negro, na escola Pamáali, o que despertou nosso interesse de investigar qual a concepção desses povos acerca do que é ciência e como se dá, neste processo, o ensino de ciências naturais, levando em consideração as experiências de ensino, os saberes, a territorialidade e o modelo mítico dos Baniwa e Coripaco. 2.1.1.1 As Questões Norteadoras Diante da contextualização da problemática foram levantadas algumas questões que nortearam todo o nosso percurso. Na primeira buscamos saber quais as concepções de Ciência presentes nas ações desenvolvidas pelos professores da Pamáali no Alto Rio Negro? A resposta obtida nesta questão nos proporcionou uma visão clara das concepções do fazer científico dos Baniwa e Coripaco. No segundo questionamento investigamos quais as concepções de Ciência fundamentam as práticas de ensino? Descobrir uma nova concepção de ciência fundamentando as práticas pedagógicas dos Baniwa e Coripaco foi uma constatação surpreendente, do ponto de vista de que as escolas de não índios estão aquém de alcançar tal concepção em suas salas de aula. A terceira questão foi como acontece o Ensino de Ciência na prática de sala de aula? Estar em contato com uma prática diferenciada nos acrescentou significativa satisfação, visto que se tratou de uma primeira experiência e, ainda nos possibilitou a construção de uma proposta de recurso pedagógico bilíngue para o ensino de ciências naturais. E por fim, questionamos qual a relação entre a interculturalidade, a territorialidade e a sustentabilidade para os processos de ensino e de aprendizagem? A percepção de uma estreita relação entre estes conceitos na prática pedagógica Baniwa nos fez refletir que para eles todo conhecimento adquirido é uma questão existencial. 42 2.1.1.2 Os Objetivos Diante desse contexto nossos objetivos foram traçados para responder aos questionamentos levantados dentro da proposta da pesquisa. Assim sendo, estabelecemos: 2.1.1.2.1 Geral: Investigar as Concepções de Ensino de Ciências Naturais, numa perspectiva de educação intercultural e sustentável, nas práticas de ensino Baniwa e Coripaco da EIBC-Pamáali no Alto Rio Negro. 2.1.1.2.2 Específicos Identificar as concepções sobre ciências, educação intercultural, sustentabilidade e territorialidade na prática política e pedagógica dos professores Baniwa e Coripaco da EIBC-Pamáali; Analisar a formação dos saberes Baniwa e Coripaco e a construção de conceitos nas ciências naturais; Elaborar uma proposta de recurso pedagógico, como alternativa metodológica a ser utilizada nos anos iniciais do Ensino Fundamental da educação escolar Baniwa e Coripaco da EIBC-Pamáali. 2.1.2 Os sujeitos da pesquisa Os sujeitos da pesquisa foram trinta e oito estudantes do Ensino Fundamental, dezoito estudantes do Ensino Médio Integral e três professores, incluindo o Coordenador da Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali, fazendo um total de sessenta e dois sujeitos diretamente envolvidos no processo da pesquisa. A escola localizada no Médio Içana, rio afluente do Rio Negro foi escolhida para que se pudesse dar continuidade a um processo de pesquisa já iniciado, que analisou em linhas gerais, a metodologia com pesquisa desenvolvida ali. Nosso objeto de pesquisa foi um olhar voltado especificamente para as concepções presentes nas práticas do ensino de ciências naturais. Os professores investigados são formados no Magistério indígena e dois deles estavam cursando a Pedagogia Intercultural da Universidade do Amazonas. O professor 43 atuante no ensino de ciências naturais do Ensino Fundamental foi aluno da escola e estava naquele momento como professor regente da turma. Para preservar a identidade dos estudantes, os identificamos pelas siglas Fund/n° para Ensino Fundamental e EMI/nº para Ensino Médio Integral. Também o nome dos estudantes autores das monografias analisadas foi preservado, sendo estes identificados, no capítulo da análise, na primeira tabela pela letra A+nº e nas tabelas seguintes AB+nº. E quando aparece a fala dos professores são identificados como Prof. Fund. ou coordenador. 2.1.3 O objeto de estudo Construir o objeto é uma expressão que se tornou corriqueira em sociologia. Portanto, o emprego do termo é para dar sentido e clareza ao que se quer definir. O objeto é separado do conhecimento comum e da percepção subjetiva do sujeito. Sobre esta temática Kaufmann (1996) afirma que construímos como um artesão intelectual, isto é, aquele que domina e personaliza os instrumentos tanto o método quanto a teoria para um projeto concreto de pesquisa. Este artesão é tudo ao mesmo tempo: homem do campo, da metodologia e da teorização e não se deixa dominar nem pelo campo, nem pelo método nem pela teoria, pois deixar-se dominar assim é deixar de descobrir uma nova roupagem na máquina do mundo. Por isto não foi tarefa fácil delimitar o tema diante de uma imensidão de opções que se apresentaram, mas como precisávamos superar a dicotomia entre a contemplação e a ação [grifos nosso], partimos para o desenho que, para nossa surpresa não se distanciou da nossa proposta inicial, isto é, espaço não formal [Idem]. Com base nessa premissa, identificamos as atividades da escola relacionadas com o ensino de ciências e o trabalho desenvolvido pelo professor do Ensino Fundamental. Então, para o ensino de ciências naturais são usados os conhecimentos tradicionais do povo Baniwa e Coripaco e sua contextualização com os conhecimentos da escola ocidental. [Foi o momento do insight!] A construção de conceitos em ciências naturais por meio dos saberes tradicionais foi confirmada na sala de aula, na trilha das ciências, na casa das ciências e nas narrações dos sujeitos. Nesse sentido, a principal motivação para o ensino, reside na exploração dos mitos do povo Baniwa e Coripaco. Esse fato é comprovado por meio das monografias escritas pelos alunos do Ensino Fundamental/2004, que exploram os conhecimentos 44 míticos Baniwa e Coripaco, destacando a ideia de sustentabilidade cultural a partir da exploração e do registro dos conhecimentos tradicionais de um povo. 2.1.4 A natureza da Pesquisa “Nada é real, tudo é construção. Não há objetividade, não há fatos, só interpretações”. Nietzsche Estabelecer um percurso metodológico de uma pesquisa desta natureza é uma construção intelectual desafiadora. Pois, trata-se de uma experiência de aquisição de um novo conhecimento, do relato da viagem pelo Rio Içana, no Alto Rio Negro e da descoberta de um trabalho pedagógico significativo. É, também, um exemplo de educação escolar sustentável que objetiva preservar a cultura do povo Baniwa e Coripaco, interagindo com a ciência do índio e a ciência do não índio. Com base nessa perspectiva, Pires (2009, p.57) afirma que não há observador externo. Visto que, ao entrar em uma comunidade ou aldeia o pesquisador, com sua presença, altera as condições do local da pesquisa, pois ele é participante da pesquisa e se envolve como sujeito e como objeto da pesquisa. O autor reforça a afirmativa, destacando que “o sociólogo, o antropólogo e o pesquisador em educação encontram-se numa situação especial [...], [porque] têm a grande vantagem de dispor de um laboratório natural, que não é outro senão a realidade que os cerca”, passando da observação, para a explicação e para a análise da situação em questão. E é, portanto, na passagem da descrição para a explicação dos fatos, que o pesquisador faz a transição da etnografia para a etnologia. Deste modo, etnografia, etnologia e antropologia são etapas necessárias na pesquisa sobre culturas. Certamente que diante de um objeto complexo e com características específicas, a adoção de uma metodologia de macrossistemas não favorece o caminho da pesquisa. E para referendar essa premissa, Pires (2009) afirma que a pesquisa etnográfica dentro das ciências sociais, especialmente nas ciências da educação, tem aumentado significativamente. E arrematando, Lima, Dupas e Oliveira, (1996, p. 24) apud Spradley (1979), afirmam que “etnografia é a descrição de um sistema de significados culturais de um determinado grupo”, onde o objetivo é conhecer uma realidade, mas, do ponto de vista de quem informa. 45 Nesse sentido, a descrição, a explicação e a interpretação são etapas indispensáveis no momento da análise dos fatos da realidade e, fundamentais para o aprofundamento da pesquisa. Portanto, a escolha do método depende do tipo de abordagem, da representação social e do tipo de conduta adotada pelo pesquisador. Por essa razão, adotamos o método observacional, para estudo de caso, enquanto base técnica da pesquisa, pois se fundamentou em procedimentos sensoriais como ver e ouvir, concentrada na ação dos sujeitos dentro das condições concretas de sua realidade. O estudo de caso “consiste no estudo de determinados indivíduos [...], grupos ou comunidades, com a finalidade de obter generalizações.” (MARQUES, 2006, p. 55). Nesse caso, o caminho traçado visou alcançar os objetivos, com base nos pressupostos da pesquisa qualitativa, sem, no entanto, desconsiderarmos as informações quantitativas, pois são complementares entre si. Contudo, Teixeira (2008) explica que a linguagem dos sujeitos e suas práticas são a matéria-prima da abordagem qualitativa. Para corroborar, Pires (2009) assinala que a importância da etnometodologia para a etnologia está na compreensão dos significados de uma realidade específica para a coletividade, ou seja, os significados vão além do interesse individual e prevalece o interesse do grupo social. Portanto, a etnometodologia se justifica por analisar as microestruturas, pois a sociedade se constitui por microprocessos, que segundo Haguette (2001, p. 20) “em seu conjunto, configuram as estruturas maciças, aparentemente invariantes, atuando e conformando inexoravelmente a ação social individual”. Lévi-Strauss (1997) destaca o papel do pesquisador na construção da metodologia, com temas cujo objeto foi escolhido a partir da visita ao campo, como um “bricoleur, [que] está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas [e] se define por sua instrumentalidade, [onde] os elementos são recolhidos ou conservados [representando] um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais” (p. 32/33). Sobre essa questão Kincheloe (2004) infere que a bricolagem destaca a relação entre o pesquisador e a maneira de ver um local social que pode ou não fazer parte de sua história pessoal. Neste sentido, a bricolagem pode ser entendida como um processo de emprego de estratégias metodológicas necessárias ao contexto para evolução da investigação. 46 Portanto, com base nessa definição elaboramos nosso próprio caminho, a fim de investigar a realidade do campo. E o valor de nossa caminhada está no significado de cada momento vivido, cada fato explorado, cada narrativa escutada, como mérito do pesquisador que vai ao campo, experimenta sensações e conhece uma realidade, “numa relação ‘sui generis’” (Teixeira, 2008, p. 81), identificando-se com o objeto, para finalmente iniciar o percurso metodológico. Consequentemente, elegemos as técnicas e os instrumentos para a coleta de dados que tem “a finalidade de gerar uma documentação ou acervo de dados”. (MARQUES, 2006, p. 57). Então, optamos pela observação direta intensiva participante, pelo uso da narrativa, pela entrevista não diretiva, pelo uso da carta (eletrônica), registro fotográfico, fílmico, sonoro e, ainda a análise documental de fonte primária (monografia dos estudantes que concluíram o Ensino Fundamental/ 2004), a fim de coletarmos informações espontâneas, que interligasse ensino de ciências e educação indígena. 2.1.5 As técnicas e instrumentos “Esperando a chegada da nossa embarcação, pude aproveitar muito bem o tempo estudando os indígenas”. Theodor Grünberg 2.1.5.1 Observação e narração A aplicação de cada técnica da coleta de dados ocorreu em etapas e serão detalhadas, no texto a seguir. Estivemos na sala de aula para observar a atividade em desenvolvimento. Ressalte-se que “a observação em pesquisa não é só olhar, significa um olhar específico sobre o fenômeno que se quer conhecer” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e ÂNGELO, 2005, p. 718). O professor do Ensino Fundamental ministrava a disciplina de “Ciências Naturais”, com os conteúdos conservação das plantas, cadeia alimentar, mamíferos e nome dos seres vivos. Observamos que o professor se reportava aos estudantes na língua Baniwa. 47 Figuras 01, 02, 03 e 04: Sala de aula Ensino Médio e sala de aula Ensino Fundamental Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: Grupo de Pesquisa Ensino de Ciência, cultura e sustentabilidade na Amazônia – GPECCSA 9 Na sequência, como já estavam finalizando uma etapa de estudos, ele recolheu as atividades concluídas e solicitou que os alunos escolhessem um tema, a partir dos conteúdos propostos, para ser pesquisado na entre etapa (recesso escolar) em suas comunidades. Em seguida o professor deu a explicação necessária para a pesquisa chamada intermediária. Após o encerramento da aula o professor relatou sua experiência. E ao me mostrar o livro-texto que usa em sala de aula, cogitou a possibilidade de um livro nas línguas Baniwa, Coripaco e Português, mas o livro estava apenas em Português. O professor, em sua narrativa, revelou que foi estudante da escola e recebeu um convite para assumir como professor do Ensino Fundamental. Ressaltou sua satisfação em retornar à escola como professor e afirmou: “como estudante eu tinha mais trabalho, pois ainda não conhecia a escola; como professor é mais fácil, já conheço a metodologia da escola”. Em sua fala ele destacou um fato marcante em sua volta, que “a escola está avançando, isto facilita o trabalho de professores e estudantes”. Quanto ao ensino de Ciências, revelou: “praticamos ao voltar para as comunidades e ao aplicarmos o que aprendemos para a sustentabilidade” e acrescentou que “o ensino sem pesquisa é difícil, mas com pesquisa é diferente, pois mostra a habilidade do estudante e facilita o desempenho tanto do professor quanto do estudante” e encerrou a narrativa. 2.1.5.1.1 Narrativa: o ensino com pesquisa Nesta etapa ouvimos por amostragem, representantes dos dois principais seguimentos da escola, isto é, estudante e professor, utilizando como instrumento de coleta a narrativa, pois, 9 Nas próximas fotos usaremos apenas a sigla GPECCSA. 48 É, pela sua característica oral, aquela que mantém as tradições e as conserva [...]. O narrador não “informa” sobre a sua experiência, mas conta sobre ela, dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de acordo com a sua interpretação (DUTRA, 2002, p. 373/4). A narrativa a seguir é de um estudante do Ensino Médio Integrado da EIBC Pamáali. Este estudante pertence à escola desde o 6° ano em 2006 e a narrativa foi transcrita tal como ele expressou. “Em 2006, vim para Pamáali e pertenço à comunidade de Tucumã. Essa escola tem o objetivo de formar verdadeiros cidadãos Baniwa. Fiz as séries iniciais na minha própria comunidade e temos, aqui, bons professores. Meu interesse pela pesquisa é aprofundar conhecimentos. Nas aulas de Ciências, nós estudamos primeiro a teoria e depois fazemos a prática para conhecer de perto o funcionamento da natureza. Nós temos aulas práticas de Agronomia, de Piscicultura. Nesta última, estudamos sobre alimentos alternativos para os peixes. Podemos citar uma espécie de cupim e de fruta que se chama dzeca, em Baniwa. É uma fruta verde que fica escura quando amadurece. Ela sai da casca e cai direto na água, alimentando os peixes do viveiro. Existe, também, outra fruta de cor negra chamada wiri-wiri. No viveiro tem peixe aracu, pintado, jandiá, acará. Nós não criamos tucunaré porque ele é predador das outras espécies. Esses peixes são consumidos na escola e nas comunidades. No inverno e durante a piracema chega a uma quantidade de mais ou menos cinco mil peixes por viveiro. Temos três viveiros. Às vezes doamos para outras escolas e comunidades. A avicultura atualmente está parada. Figuras 05 e 06: Oficina de piscicultura Fonte: Arquivo Pamáali Nas oficinas nós aprendemos a cuidar dos peixes. Por exemplo: desenhamos, descrevemos o peixe, aprendemos o nome cientifico, em Baniwa e em Português. Tudo isto aprendemos com o engenheiro de pesca. Aqui nós já catalogamos mais de duzentas espécies de pimenta da região e temos produção de pimenta jiquitaia. O objetivo é também vendermos para revertermos em recursos para a escola. Na escola também vendemos anéis, colares para subsistência. Confeccionamos cestos de urutu10. Produzimos 10 Cesto confeccionado com fibra de arumã. 49 em parceria com empresas. Na casa das Ciências estudamos biologia e, buscamos compreender a origem das plantas e dos animais. Na pesquisa para a monografia a escolha é do próprio aluno, para ele descobrir a própria formação. O professor deixa o aluno livre, pois não deve escolher o tema do aluno. Eu escolhi “Doenças dos não índios no meio Baniwa e Coripaco”. Fizemos uma oficina de Arquitetura aí construímos a casa das pimentas, o lugar onde produzimos a pimenta, desde a plantação, colheita, pilagem e tudo o mais. Aprendemos a fazer casa tradicional, de palha, não de caranã, cercado de madeira da região, com cobertura por baixo da palha para evitar mosquito, etc. A casa será construída pelos estudantes do Ensino Médio e já temos material, só falta construir. O material foi comprado com dinheiro do projeto da pimenta. Tivemos também oficina de Jornalismo, para implantar jornal da escola, chamado “Pitsiro Pamáali”. Temos duas roças, sendo que uma já está no fim. São 2,5km daqui até a roça e temos abacaxi, pupunha, pimenta (8 a 10 tipos), caju, banana, cana, marí, macaxeira e mandioca, cará. Não plantamos tomate, cebolinha e coentro, porque não se adaptam a terra por isso não há interesse. [aluno1 fund.] Então, desta maneira, evidenciamos a participação do estudante no processo de construção do conhecimento e no processo político de formação cidadã. Tal é a riqueza de informações contidas nesta narrativa, pois mostra que existe uma preocupação de fato com a aprendizagem significativa para a sustentabilidade. A criticidade do estudante é surpreendente e sua sensibilidade em relação às questões de sua realidade é a prova material de que a pesquisa na escola indígena Pamáali é um fato e, porque não dizer inquestionável, diante de tanta evidência. 2.1.5.1.2 Temas transversais na Ciência do Índio: “é a prática do dia a dia” A narrativa do coordenador da escola, que em uma coletiva passou algumas informações sobre temas transversais, sobre o que é ciência, sobre a estrutura da escola, dentre outros assuntos, foi um momento de interação da pesquisa, onde as partes se sentiram à vontade para falar sobre suas experiências. Assim, professores e pesquisadores mantiveram um nível de interatividade que favoreceu a aplicação do instrumento da pesquisa, isto é, a narrativa. Em seguida transcrevemos sem alterações a narrativa do coordenador, relacionada aos diversos temas abordados. À medida que sugeríamos o assunto, o coordenador (também professor) discorria naturalmente respaldado pelos saberes de seus ancestrais. Quanto aos temas transversais, são escolhidos de acordo com o objetivo da pesquisa e direcionados conforme a necessidade, podendo ser voltado para ética, sustentabilidade, etc. Discutimos para acompanhar o que está mais 50 atual e pode ser sobre questões econômicas, arquitetura, conhecimentos tradicionais Baniwa, conhecimento sobre novas tecnologias. São vários conceitos de ciências utilizados para criar uma concepção de ciência da escola. O PPP da escola ainda é o mesmo. Possuímos 04 escolas de séries iniciais e Educação Infantil. As dificuldades enfrentadas são certamente as mesmas de qualquer escola brasileira, porém, conforme a narrativa os Baniwa e Coripaco buscam soluções coletivas, de interesse coletivo, com vistas a solucionar satisfatoriamente os problemas que se apresentam. Em determinado momento naturalmente perguntamos ao professor: O índio faz Ciência? Ao que ele respondeu: Todos nós fazemos ciência. [E isto] para nós é atividade diária como ir à roça, fazer a farinha, acordar cedo, tomar banho, ficar perto do fogo. Agora sei o que é ciência através da pesquisa [porque] antes ciência estava somente na água, na chuva. E agora entendo porque os mais velhos tentavam nos mostrar e manter as artes e a cultura do Índio e não apenas permanecer nu e fazer festas; Quanto aos Recursos Didáticos, ainda não temos material produzido pela própria escola, mas há interesse em publicar, é uma ideia: o Ensino Médio publica para o Ensino Fundamental e o Ensino Fundamental nos anos finais publica para os anos iniciais e Educação Infantil. Nós já temos quatro livros publicados em parceria; Quanto à Formação, a maioria dos professores tem só Magistério Indígena. E sobre a licenciatura intercultural da UEA não estou aprovando, gosto somente da parte da linguística, produção de texto. Mesmo assim, o orientador não conhece a realidade indígena. Há dificuldade na formação de formadores. Aqui na escola temos seis professores com Magistério Indígena, um fazendo Pedagogia Intercultural e um faz Licenciatura relacionada à sustentabilidade. Essa narrativa nos leva a perceber a dificuldade para implantação de uma escola diversificada e plural. Porém, percebemos também a força do índio Baniwa e Coripaco na busca de uma autonomia educacional. Para eles, vale a pena o esforço na tentativa de conquistar seus ideais de uma educação escolar que reflita a vontade coletiva de todo o povo. Assim, a narrativa é um instrumento que facilita a aquisição de informações espontâneas e favorece o diálogo entre os sujeitos pesquisador-pesquisado. 2.1.5.2 Entrevistas com os estudantes Nessa etapa sugerimos duas perguntas de respostas abertas, para os estudantes do Ensino Fundamental e do Médio. Primeiramente realizamos uma dinâmica para 51 descontraí-los e obtermos melhor interação com eles naquele contato. Em seguida cada estudante recebeu uma folha para registrar as perguntas, para responder e entregar até o final daquele dia. Não houve direcionamento e cada um deu suas respostas de acordo com suas experiências e conhecimentos. Os resultados das respostas das entrevistas foram tabulados, analisados e expostos detalhadamente no capítulo 3 deste trabalho. Neles constam as concepções de ciência, concepções científicas que permeiam as práticas pedagógicas, bem como a relação entre interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade no processo de ensino e de aprendizagem para os Baniwa e Coripaco. 2.1.5.3 Registro e análise das atividades da sala de aula Esse foi o momento de verificarmos os registros documentais, ou seja, as atividades feitas em sala de aula e as monografias dos alunos concluintes do Ensino Fundamental/ 2004. A importância desse instrumento de coleta de dados está no fato de que tal investigação confere um valor histórico ao documento a medida que o pesquisador é capaz de superar os limites inerentes ao próprio material com que trabalha e, ao mesmo tempo, reconhece serem sua postura e experiência de vida composta por uma bagagem que é histórica (PIMENTEL, 2001, p. 193). Isso confere ao pesquisador a característica de historiador transmitindo a realidade do passado. Então, com a ajuda do professor, selecionamos as atividades realizadas pelos estudantes do Ensino Fundamental, a fim de estudarmos a possibilidade da proposta de publicação. Registramos as atividades dos estudantes através de fotografia, enquanto o professor da turma e da disciplina, narrava a construção de cada atividade. Durante a observação, registrávamos os momentos por meio de fotografias e filmagens, ressaltando que, “a utilização [...] de vídeo [...] em Pesquisa Qualitativa constitui [uma] escolha metodológica no sentido de apreender o fenômeno complexo em que [...] as imagens são suas partes inerentes” (PINHEIRO; KAKEHASHI; e ÂNGELO, 2005, p. 720). O detalhamento das atividades está em texto específico no capítulo 3 deste trabalho. 52 2.1.5.4 A carta (eletrônica): uma possibilidade na coleta de dados Em um último momento, como alternativa para ampliação da compreensão de alguns dados coletados, elegemos a carta como uma possibilidade para complementar algumas informações, necessárias para a continuação da análise. Portanto, conforme afirma Moraes (2006) a carta, que pode ainda ser chamada de missiva ou epístola, nos permite uma comunicação com pessoas em grupo ou individualmente, que estejam ausente ou distante do outro. Embora não se trate da carta convencional, a carta por meio eletrônico é também um recurso que o pesquisador pode lançar mão, com vista a alcançar seus objetivos. Portanto, encontramos respaldo para esta afirmação no argumento de Demo (1985) assegurando que a metodologia É somente Instrumento para chegarmos lá. Discutimos os caminhos possíveis, os já vigentes, os que já se superaram, e assim por diante. Não vale a pena entreter-se de tal modo com questões metodológicas que não cheguemos a fazer pesquisa (DEMO, 1985, p. 22). Nesse sentido, ainda que a carta, seja ela a convencional ou por meio eletrônico, ainda tenha sido pouco utilizada na pesquisa, é um instrumento bastante eficaz que o pesquisador pode fazer uso. 2.6 EIBC-Pamáali e espaço não formal de ensino: experiência para uma nova concepção “Acredito que nos livros a gente aprende sim, mas não 100%. Aprende mais vivendo no lugar”. Juvêncio Cardoso - Baniwa No nosso entendimento, não haveria possibilidade de explorar a temática espaço não formal de ensino em uma escola indígena, porém, conhecer a realidade, em particular da EIBC-Pamáali, trouxe para nossa experiência uma nova concepção. Ao chegar a Pamáali a recepção que tivemos dos estudantes foi calorosa. Em sua simplicidade nos receberam com música, cumprimentos cordiais e excelentes boas vindas, nos dando ótima impressão do lugar. Após o primeiro momento da chegada, nos instalamos em uma das casas e depois fomos conhecer um pouco o local. 53 Figuras 07, 08 e 09: EIBC-Pamáali Fonte: Arquivo da EIBC – Foto 07: ISA; Fonte: pesquisa de campo/2009 – Fotos 08 e 09: GPECCSA A Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali situada no Médio Rio Içana, um dos principais afluentes do Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas desenvolve uma metodologia de Ensino de Ciências com base na Ciência do Concreto e valoriza as experiências vividas do dia a dia e as tradições mitológicas de seu povo. Foi construída numa área de 03 (três) km², em terras indígenas demarcadas e homologadas desde abril de 1998. O percurso de São Gabriel da Cachoeira até a sede da escola é de aproximadamente 390 km. Em sua narrativa o coordenador explica sobre esta questão da localização da Pamáali, destacando que a área da escola é de mais ou menos 3 km². Ele faz referência também, à construção do PPP para reconhecimento do Ensino Médio na escola e afirma: O PPP do Ensino Médio ainda não está aprovado, por isso não podemos fazer exigências. O que sabemos é que não queremos o modelo de Ensino Médio da SEDUC. Com a construção do novo PPP, teremos mais autonomia, ele está em processo de aprovação. O documento foi construído coletivamente e logo após foi apresentado em Assembleia para avaliação dos pais. Estamos com dificuldade de tempo para concluir, mas somente com a conclusão do PPP poderemos reconhecer a Escola. A nossa Escola é pensada pelo povo Baniwa e Coripaco, não por ninguém de fora. [ProfessorCoordenador] O professor revela em sua narrativa a construção de uma escola indígena democrática, com a participação de todos. Os obstáculos, não se constituem em motivo de paralisação, pelo contrário, eles avançam em direção à escola dos Baniwa e Coripaco. Pamáali conserva a estrutura de ocas com casas construídas com barro, traves de madeira, piso de barro batido e cobertura de palha, o que dá um ar rústico ao local. 54 Figuras 10 e 11: Estrutura arquitetônica da Pamáali Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Em sua estrutura geral a escola possui: 03 salas de aula, casa dos professores, casa dos pesquisadores, sala da coordenação com internet, biblioteca, (que por sinal precisa ser revitalizada em seu acervo) casa das ciências, cozinha, campo de futebol e área externa para reunião. Além disso, a escola possui a trilha das ciências, um laboratório vivo para observação de várias espécies de plantas nativas, para fins ornamentais e medicinais. Figura 12: Biblioteca Figura 13: Sala de aula Figura 15: Trilha das ciências Figura 14: Cozinha Figura 16: Casa das ciências Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Em determinado momento do dia, reunimos com a coordenação que nos apresentou a equipe: vice-coordenador, administrador, articulador e assessor pedagógico. Uma equipe composta exclusivamente por homens. Assim, depois de apresentadas as nossas intenções saímos para que eles (os indígenas) discutissem entre si sobre o que tratamos e para que tomassem algumas decisões. Enquanto esperávamos fomos à sala de aula, a fim de conhecermos o 55 ambiente e, conversamos com os estudantes do 1º ano do Ensino Médio. A turma possui onze estudantes do sexo masculino. Vale ressaltar que, a participação das mulheres na escola ainda é mínima e o domínio continua sendo dos homens, traço forte da cultura indígena. Os estudantes nos informaram que atualmente funcionam três salas de aula, sendo uma de 1º ano, uma de 2º ano, ambas de Ensino Médio e uma de Ensino Fundamental. Após alguns momentos, retornamos a conversa com os coordenadores, que estabeleceram algumas condições para a equipe. Então, finalizada a reunião, partimos para as próximas atividades. Ajustamos o tempo que ainda nos restava ali e, realizamos entrevista com um estudante, na mesma noite; atividade de intervenção na manhã seguinte; visita à trilha das ciências à tarde; e entrevista com coordenador e professores, na outra noite. Na manhã seguinte, conforme programado, fomos para a sala de aula realizar a atividade proposta, que se deu em quatro etapas: 1) Dinâmica de descontração e interação, 2) Observação e registro da atividade desenvolvida; 3) Registros fotográficos das atividades nos cadernos; 4) Resposta a duas questões abertas para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio; 5) conversa informal com o professor do Ensino Fundamental, durante a aula de ensino de Ciências Naturais. Observamos que na turma do Ensino Fundamental havia meninas, tímidas que se destacam nas tarefas práticas de limpeza, no preparo das refeições e outras desta natureza. Ao visitar a Trilha das Ciências e, tivemos uma experiência incrível ao verificarmos o laboratório vivo, a riqueza daquele local. A fauna e a flora dali representam um verdadeiro Museu vivo da Amazônia. Realizamos entrevistas com os coordenadores e professores da escola e, conhecemos suas concepções, sua vivência em relação ao “fazer ciência” e ao ensino das ciências. Isto nos acrescentou um pouco mais de subsídios importantes para a construção das nossas ideias e a delimitação do objeto da pesquisa. A busca dessa relação entre ciência (s) e educação intercultural para a sustentabilidade do processo de ensino e de aprendizagem Baniwa e Coripaco, visa, por meio das práticas pedagógicas, a conservação do espaço territorial e a revitalização da vertente mítica, como recurso de ensino. Na sequência desta explanação faremos a análise dos dados coletados que será a comprovação prática dos nossos estudos. 56 3 OS SABERES INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS EM CIÊNCIAS NATURAIS: UMA PROPOSTA INTERCULTURAL, BILÍNGUE E SUSTENTÁVEL PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS “A Escola é pensada pelo povo Baniwa, não por ninguém de fora; a arte e a cultua do índio não é apenas permanecer nu e fazer festas.” Raul Brasão - Baniwa 3.1. EIBC-Pamáali: um diferencial da educação escolar indígena A experiência na EIBC-Pamáali trouxe informações relevantes, em qualquer seguimento que atuarmos dentro da Educação. A análise a seguir é um diferencial não só para a Educação Escolar Indígena, como também para a Educação Escolar não Indígena, pois se trata de um nível significativo de consciência acerca da importância da Escola, que poderá se tornar referencial para aqueles que têm o compromisso com uma Educação Escolar influenciadora na vida de crianças, adolescentes e jovens. Figuras 17, 18, 19 e 20: Pesquisa na sala de aula e na trilha das ciências Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA De acordo com o relatório da Coordenação da Pamáali, a respeito da construção monográfica da turma do Ensino Médio Integral de 2004, a ideia de produzir trabalhos escritos para sistematizar os conhecimentos aprendidos durante os quatro anos do curso, partiu dos próprios alunos. Para eles seria uma forma de validar as informações recebidas e reconhecer o trabalho dos professores. O relatório monográfico da Coordenação reforça que A ideia surgiu com a participação ativa destes alunos na vida dos professores Baniwa e Coripaco durante a formação no Magistério Indígena em 2001, que realizaram pesquisa e desenvolveram uma monografia, com temas variados, para conclusão do curso de magistério. (Relatório da Coordenação da EIBC 57 Pamáali, sobre as produções monográficas dos alunos do Ensino Médio Integral 2004). Diante disso, constatamos que Pamáali é uma escola que forma cidadãos Baniwa, conforme declarou o aluno em sua narrativa no capítulo anterior. Com base nessa premissa, destacamos que na primeira turma que concluiu o Ensino Médio formaram 17 alunos e todos produziram sua monografia voltada para os conhecimentos Baniwa e Coripaco. O mais interessante, conforme consta no relatório, é que cada decisão tomada pela escola, pelos professores ou alunos são decisões com propósito. Um exemplo disso é o fato de que apenas duas monografias foram escritas em Baniwa, mas justifica-se pela busca da sustentabilidade cultural presente em cada ação da Escola. O relatório das monografias esclarece que As duas monografias escritas na língua Baniwa foram referentes ao tema Meliponicultura, com a proposta clara dos alunos de produzir um material bibliográfico que possibilitasse a compreensão de todos os Baniwa e Coripaco sobre esta nova técnica iniciada dentro do rio Içana na Escola Pamáali, já que existe uma considerável produção escrita sobre este tema em Português (Idem). Agregue-se a esse comentário que todas as ações desenvolvidas pela EIBC estão sempre envolvidas num compromisso de dar significado e sentido aquela atividade, para a formação de novos conceitos. Acerca deste comentário Vygotsky (1998, p. 67) observa que “a formação de conceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico e passivo; [...] um conceito surge e se configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de algum problema”. Figura 21 e 22: Oficina de meliponicultura Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA 58 Portanto, vemos nesse processo de construção das monografias um exemplo de autonomia de aprendizagem por parte dos estudantes na construção do próprio conhecimento. Para entendermos melhor esta questão, com as informações constantes no relatório de 2004, construímos tabelas reforçando esta afirmação, onde identificamos os estudantes por letras e números. Na Tabela 1 (abaixo), verificamos que, dez dos dezessete alunos que terminaram o Ensino Fundamental escreveram sobre o conhecimento Baniwa. Tornar a cultura conhecida é um objetivo presente nas produções acadêmicas da Escola. Nestes termos, poderíamos considerar que a escola segue as tradições antigas para ensinar o aluno a “ser Índio” 11 [grifo nosso], ou melhor, um Baniwa. Tabela 1: Monografias que exploram o conhecimento Baniwa e Coripaco. ALUNO TEMA ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO (MITO) Organização da Tribo Dzawinai Chegada de seus familiares a Juivitera. História do surgimento do povo Dzawinai. Grafismo do Artesanato de Arumã Baniwa Alguns Significados. Armindo é artesão; Escolheu o tema de acordo com os grafismos que sabe fazer. Origem do grafismo na mitologia Baniwa. Plantas Tradicionais Baniwa Participação do pai, agente indígena de saúde, do projeto de Medicina Tradicional Baniwa. A educação tradicional Baniwa é totalmente diferente da educação escolar. Origem das Plantas Medicinais na mitologia Baniwa. A1 A2 A3 saber dos A4 Parto Tradicional Baniwa Uma preocupação pessoal. A5 Origem do parto Baniwa, segundo a mitologia. A6 Doenças Tradicionais Baniwa Levantamento cuidadoso de 20 doenças tradicionais Baniwa. Conta uma das histórias da mitologia Baniwa de como as Doenças Tradicionais aparecem no mundo. Instrumentos Musicais do Povo Baniwa Envolveu vários alunos, muitos colegas apoiaram o autor pela curiosidade de todos sobre os instrumentos musicais. “As flautas que as mulheres não podem ver foi a grande dúvida do aluno se podia ou não desenhar, em reunião com os velhos descobriu que não podia”. A7 11 A valorização do Baniwa mais velhos. A Educação Indígena Tradicional Baniwa “Índio é todo aquele que se reconhece como pertencente a uma dessas comunidades e, é por ela reconhecido como um de seus membros”. (Secretaria de Educação à Distância – MEC/ TV Escola, 2001, p. 31). 59 A arte que se faz com o arumã A8 Maapa Ikeñoaka A9 Origens dos Povos Baniwa e Coripaco A10 Descrição cuidadosa do processo da arte do trançado de arumã, da colheita ao acabamento dos cestos, peneiras e balaios. Trabalho escrito na língua Baniwa, para dar acesso às crianças que ainda não lêem português. Arte produzida com arumã; Origem Baniwa do arumã. Registrar e disponibilizar para pesquisa o conhecimento cultural dos povos Baniwa e Coripaco. Origem e a evolução dos povos Baniwa e Coripaco, o território de ocupação, a diferença lingüística e quem são os Baniwa e Coripaco hoje. Origem das abelhas conforme a mitologia Baniwa. Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/2004. A Tabela 1 (acima) mostra que os interesses pelos temas escolhidos estão relacionados a uma questão existencial, que é a sustentabilidade científica e territorial, por meio da sustentabilidade cultural. O coordenador em narrativa no capítulo II, afirma que “pra morar aqui precisa de conhecimento de plantas medicinais, pesca e caça para viver” (Narrativa do Coordenador da EIBC/2009). Portanto, além do interesse pessoal ao desenvolver a temática, percebemos que em cada pesquisa está presente o relato de um mito Baniwa e/ou Coripaco, explicando a origem das coisas e do mundo. Destaquese ainda o interesse específico voltado para as tradições do homem e da mulher, como é o caso da aluna A5 que pesquisou em sua monografia sobre “O Parto Tradicional Baniwa” e revela seu interesse pessoal pela questão ao declarar em seu trabalho que “atualmente, existe um desrespeito de muitos jovens Baniwa, tanto faz mulher ou homem, em cumprir as regras tradicionais de cuidado com o corpo para a garantia do nascimento de crianças sem problemas”. Para ela, o registro dos conhecimentos Baniwa vai ajudar os jovens valorizar e praticar as tradições. Para reforçar, destacamos também o trabalho da aluna A3, que abordou em sua monografia sobre as “Plantas Tradicionais Baniwa” e enfatiza a questão mitológica presente na cultura do uso dessas plantas. Ela afirma que “as plantas medicinais foram deixadas para o povo Baniwa pelos seres-espíritos no período em que não tinha humano no mundo. Na saída de Hiipana cada povo recebeu junto com seus instrumentos de trabalho, o território e as plantas medicinais”. Neste trecho fica muito clara a relação entre a territorialidade e a sustentabilidade. 60 Figura 23, 24 e 25: Plantas da trilha das ciências Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA Outro ponto importante é a constatação de que as monografias que foram escritas em Português foi resultado de uma conversa com os pais dos alunos mostrando que a EIBC deveria também preparar os alunos para o bom domínio da Língua Portuguesa [grifo nosso]. Isto mostra a relação entre interculturalidade e sustentabilidade, ou seja, o domínio das duas línguas favorece a comunicação nas duas realidades. Na monografia do aluno AB1, (abaixo na Tabela 2) percebemos o nível de consciência da Escola com as questões ambientais planetárias. O estudante declara a respeito desta questão, que Pareceu muitos materiais que chegaram na escola junto com a merenda, que tudo era transformado em lixo depois de usar o alimento e também pilha, vidros, papel e plástico utilizado pelos alunos e professores. Então, foi decidido que o lixo deveria ser cuidado. Primeiramente foi separado o lixo orgânico e inorgânico. Com o lixo orgânico os alunos fazem adubo, juntam as cascas de frutas, maniwa e tudo mais que aparece e misturam com terra, serragem, casa de cupim e folhas secas para servir de adubo nas plantas. Com o lixo inorgânico, são escalados alunos que fazem a coleta do lixo em cada casa e o que está no terreno da escola e levam até uma lata velha que está toda furada para essa finalidade. Nesta lata é queimado o lixo e depois cava um buraco e o lixo é enterrado (Monografia do aluno AB1 – etnia Baniwa – clã Liedawiene, 2004, p. 13). Os trabalhos pesquisados nesta linha mostram que, embora o foco maior seja a cultura Baniwa e Coripaco, não se isentam do compromisso com as questões ambientais emergentes que se manifestam em seu território. Eles têm consciência de que a sua interação com a cultura ocidental causa alguns transtornos que precisam ser administrados, como no caso do acumulo de lixo no Rio Içana. Nesse sentido, poderíamos destacar nessas pesquisas uma nova concepção de ciência, preocupada com a sustentabilidade ambiental. Visto que, 61 O surgimento do conceito de sustentabilidade, que vislumbra, sobretudo, a harmonização das relações entre desenvolvimento e meio ambiente, insere-se portanto, num contexto de profundas transformações históricas, indicadoras da existência de um processo de transição paradigmática na esfera do conhecimento.(SILVA, s/a, p. 04) Assim, na Tabela 2 (abaixo), verificaremos que as três monografias demonstram uma visão de Educação numa perspectiva harmônica da construção científica intercultural. Tabela 2: Conhecimento da Cultura Baniwa e da Cultura Ocidental ALUNO AB1 TEMA ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO O Lixo na região do rio Içana Preocupação atual, o autor trouxe como tema de pesquisa o lixo, problema que hoje é enfrentado pelas comunidades do rio Içana. Tomada de decisão coletiva na Escola Pamáali como tentativa de solucionar o problema do lixo. Origem da Chuva Duas concepções surgimento da chuva. Importância da origem da chuva na tradição Baniwa. A Piracema Uma compreensão fenômeno A escolha do tema Piracema deve-se ao interesse de saber da situação dos peixes da região do Içana e a preocupação com o futuro das comunidades. AB2 AB3 Hoje: nova deste de História da Piracema segundo a tradição Baniwa. Fonte: Relatório da Coordenação da EIBC-Pamáali/ 2004 A Tabela 2 (acima) mostra a preocupação em explorar as duas culturas valorizando a contribuição de cada uma para a construção de uma concepção científica, que faça a interação entre os dois conhecimentos, viajando entre as duas realidades, indígena (Baniwa) e não indígena. Abaixo a Tabela 3 apresenta outro grupo de trabalho com duas monografias na linha de pesquisa Proposta de Formação na Escola Pamáali. Estes trabalhos discutem as técnicas das atividades sustentáveis desenvolvidas no período dos quatro anos de estudos. É interessante destacar que tanto a Piscicultura quanto a Meliponicultura fazem parte do dia a dia da Escola e, que ao realizar estes estudos, os alunos trazem a comprovação e validação da concepção de trabalho científico que os professores da EIBC vêm desenvolvendo. Além disso, os conhecimentos construídos pelos alunos são socializados, como é o caso do estudante abaixo citado no relatório monográfico da coordenação afirmando que ao perceber 62 A dificuldade de muitos colegas em dominar os cálculos matemáticos exigidos na técnica de piscicultura, realizou um trabalho detalhista sobre cada cálculo utilizado no laboratório e nos viveiros de piscicultura, com o objetivo de que este material sirva de apoio ao estudo deste tema na Escola Pamáali (Relatório da Coordenação da EIBC Pamáali, sobre as produções monográficas dos alunos do Ensino Médio Integral 2004). Acrescente-se que, embora nosso foco não seja a matemática, queremos destacar nesse exemplo (Tabela 3) a preocupação do estudante Baniwa e Coripaco em publicar o conhecimento pesquisado com os seus pares, como alternativa de superação das limitações conceituais numa postura interdisciplinar, pois Independente da definição que cada autor assuma, a interdisciplinaridade está sempre situada no campo onde se pensa a possibilidade de superar a fragmentação das ciências e dos conhecimentos por elas produzido e onde, simultaneamente, se exprime a resistência sobre um saber parcelado. (Thiesen, 2007, p. 91). Ademais, a concepção de ensino das ciências presente na atitude do estudante Baniwa, em compartilhar o conhecimento, representa a concepção disseminada pela Pamáali, baseada nas temáticas das monografias. Tabela 3: Proposta de Formação na Escola Pamáali AUTOR TEMA AB4 AB5 ÁREA DE INTERESSE SIGNIFICADO Prática de Matemática na Piscicultura Aprofundou seu estudo nesta temática, participando de estágios nas três estações de piscicultura existente no Alto Rio Negro, O objetivo é que este material sirva de apoio ao estudo deste tema na Escola Pmáali. Tawiñakaa nhaaha maapanai – Makawaliko Para apresentar esta técnica baniwa e Coripaco interessados na proposta de criar abelhas sem ferrão (abelha nativa). Conteúdos aprendidos em duas oficinas realizada na Escola em 2003. Fonte: Relatório da Coordenação EIBC-Pamáali/ 2004 Com efeito, a postura cima representa a convicção Baniwa de que todo conhecimento adquirido é para sobrevivência. Chegam de fato a alcançar uma consciência crítica, de modo que o desejo deles é transmitir o conhecimento adquirido, para as próximas gerações, como no caso da monografia do aluno AB5 (Tabela 3), que “decidiu escrever o seu trabalho na língua Baniwa, para que fosse acessível às crianças que ainda não lêem português aprenderem a história do surgimento das abelhas de 63 acordo com a mitologia do povo Baniwa” (Monografia “Tawiñakaa nhaaha maapanai” do aluno AB5/ 2004). Portanto, a análise destas primeiras monografias mostra o trabalho científico desenvolvido na Pamáali e revela que os estudantes têm consciência de quem são, enquanto cidadãos Baniwa. É tanto que os estudantes do Ensino Fundamental da Pamáali mostram maturidade intelectual ao produzir um trabalho deste nível, dentro das normas técnicas, seguindo o padrão acadêmico exigido na escola de ensino superior (graduação). Por fim, a análise dos temas escolhidos pela turma de 2004, serviu de referência para comprovarmos o compromisso da EIBC Pamáali com a Ciência do Concreto por meio da construção de conceitos, com base na própria realidade Baniwa e Coripaco. Esta afirmativa se constata na filosofia presente no Projeto Político da Escola que é: [a] formação de cidadãos conscientes e que valorizassem suas culturas, e, ao mesmo tempo uma escola que ensinasse os conhecimentos da sociedade ocidental que desse possibilidade de continuidade escolar para aqueles que desejam seguir os estudos em nível de Ensino Médio e Terceiro grau. (PPP EIBC-PAMÁALI/ 2005). Essa filosofia é a validação de uma proposta intercultural e bilíngue, visto que o PPP da Pamáali contempla não só teoricamente, mas também na produção monográfica dos alunos e professores ao final do Ensino Fundamental, pois a aprendizagem das duas culturas favorece essa formação cidadã proposta no PPP da escola. Para reforçar esta premissa, apresentaremos a seguir a experiência de um trabalho comprometido com a realidade local e com uma Educação diferenciada e intercultural. 3.2 Concepções na construção de conceitos em ciências naturais “Na pesquisa intermediária com os velhos aprendemos a origem, o mito e depois socializamos com os outros; a pesquisa tem objetivo de sustentabilidade”. Abilio Brasão – Baniwa 3.2.1 Concepções de ciência: teoria e na prática 64 As concepções presentes na filosofia da Pamáali quanto à construção de conceitos de Ciências Naturais são observadas tanto nas atividades realizadas em sala de aula, quanto nas respostas dos alunos. A finalidade é a percepção do que eles pensam acerca do assunto e qual importância do ensino de ciências para eles. A análise a seguir tem como pressuposto inicial três questões aplicadas aos alunos do Ensino Fundamental e Médio da EIBC-Pamáali, sendo: a) O que é fazer Ciência? b) Como o professor trabalha o Ensino de Ciências? c) O que o Ensino de Ciências representou para você neste primeiro ano na Escola Pamáali? Em face disso, tomamos por base as respostas atribuídas pelos alunos e os registros das atividades de sala de aula. Assim, construímos nossa impressão acerca da temática neste tópico. Então, para alcançar o objetivo do capítulo, aplicamos três questões para 32 alunos do Ensino Fundamental e para 09 alunos do Ensino Médio. Ademais, para contextualizar o perfil das turmas, vejamos algumas informações importantes: Do total dos estudantes entrevistados no Fundamental, 69% é do sexo masculino, isto representa 22 homens e apenas, 31% é do sexo feminino, ou seja, 10 são mulheres. A faixa etária da turma varia entre 11 e 23 anos, sendo que a maioria, cerca de 69%, é adolescente. É uma turma que equilibra adolescentes e jovens na busca da identidade, enquanto cidadão Baniwa. A turma de Ensino Médio é 100% masculina, não observamos a presença de mulheres nesta turma e a faixa etária não foi identificada. Com base nesta premissa passemos a análise das respostas, de acordo com cada pergunta feita. 3.2.1.2 Ciência é um conjunto de conhecimentos Na busca de identificar a concepção de Ciência, fizemos algumas perguntas para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio da EIBC. Aleatoriamente, escolhemos algumas respostas dadas pelos alunos em ambos os níveis de ensino. Os estudantes foram identificados pelas siglas Fund/ n° quando for Ensino Fundamental e EMI/ nº quando for Ensino Médio Integral e, organizados em pequenos grupos para melhor visualização das análises. A primeira pergunta foi: O que é fazer Ciência? EMI/ 01- É estudar ou pesquisar um certo objeto e tentar explicar como é a transformação; tudo o que aparece no dia a dia é uma ciência. EMI/ 02- fazer ciência é mostrar tudo que existe na natureza de forma bem detalhada, para que possamos saber o que existe em nossos arredores de 65 modo geral: animais, vegetais, solos, etc. Nela já entram outras matérias como a Química, a Física e a Biologia. EMI 03- É fazer estudo ou pesquisa sobre um objeto; a ciência é um conjunto de conhecimentos sistematizados relativos a um determinado objeto de estudo; estudo sistemático da natureza, por exemplo, estudar sobre o que é habitat, no conhecimento ocidental e no conhecimento tradicional. Ao iniciarmos a análise, a primeira verificação que fazemos é que todas as respostas dos alunos estão ligadas às questões da natureza. A resposta de todos eles se volta para a floresta e os seres vivos contidos nela. Verificamos também que 100% das respostas afirmam que fazer ciência relaciona-se com estudo ou com pesquisa e, em algumas respostas notamos expressões como explicar, detalhado e sistematizado. Estas palavras aparecem respectivamente nas respostas dos alunos EMI/ 01, 02 e 03 o que demonstra a seriedade com que os alunos concebem o fazer ciência. E neste caso, os termos destacados revelam a questão da objetividade com o conhecimento científico, pois para Morin (2010, p. 40) “a objetividade parece ser uma condição sine qua non, evidente e absoluta, de todo o conhecimento científico”. O autor afirma ainda que a Ciência embora deva ser considerada Como uma atividade de investigação e de pesquisa, [...] não é só isso; [...] a despeito de todos os interesses, a ciência continua sendo uma atividade cognitiva. E, mesmo quando procuramos na atividade científica, fórmulas para manipular, para o poder e para agir, a dimensão cognitiva ainda persiste. (Idem, p. 57) Além do mais, destacamos também a resposta do aluno EMI/04, que se reporta que são necessários métodos para se fazer ciência. EMI/ 04- Fazer ciência é realizar estudo sobre algo com métodos de conhecimentos adquiridos por meio de observação e experimentos. A respeito dessa questão Carvalho e outros (2004, p. 149), afirmam que A importância do método, como ponto de abertura, significa percorrer o corredor do conhecimento (Epistemologia), chegando na sua saída 66 transformado pelo conhecimento que recria o nosso ser (Ontologia). [...]. Nesse sentido, a pesquisa possibilita conhecimento e autoconhecimento. O método nos garante o planejamento da investigação científica e se processa através de técnicas, normas e regras que caracterizam e validam o fazer científico, pois os alunos da escola Pamáali, compreendem o fazer científico de forma clara e crítica para a construção dos conceitos. Figura 26 e 27: Plantas da trilha das ciências e produção de texto no caderno Fonte: Pesquisa de campo /2009 – Fotos: GPECCSA Outra evidência de que os alunos da EIBC desenvolvem com clareza o conceito de ciência é o fato de que em suas respostas demonstram a consciência da importância de integrar teoria e prática em suas pesquisas, isto é, a “busca na transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica” (FRIGOTTO, 2002, p. 73). Com isso, destacamos ainda a ideia do aluno Fund/01, que define fazer ciência como um conjunto de conhecimentos [grifo nosso] trazendo o entendimento que esse conjunto demonstra as noções da iniciação científica, as características próprias e as propriedades essenciais para constituir o objeto do conhecimento. Fund/01- É o conjunto de conhecimentos sobre um determinado assunto ou objeto. Na resposta acima, observamos como o aluno do Ensino fundamental ao encerrar o curso, já possui a compreensão do processo criativo da formação de conceitos científicos. Vygotsky (1998, p. 67) reforça que, “a formação de conceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico e passivo; [e] que um conceito surge e se configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de algum problema”. 67 Nesse caso, consciência de ser Índio, de ser cidadão Baniwa, de ser um pesquisador e propagandista da história de seu povo, perpetuando o conhecimento para acessibilidade das gerações futuras. Ademais, a resposta do aluno EMI/ 05 comprova a presença do mito nas pesquisas, quando ele se refere a pesquisar o personagem das plantas [grifo nosso]. “Fazer ciência é prática, é pesquisar o personagem das plantas.” (EMI/ 05). Quanto a isto Castro (1996, s/p) afirma que tal perspectiva conceptual rompe com a dicotomia paradigmática Que tradicionalmente se opõe sob os rótulos de ‘Natureza’ e ‘Cultura’: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos. Enfim, a concepção de Ciência construída pela EIBC-Pamáali, comprova o nível de consciência e o compromisso de professores e estudantes com o conhecimento. Diante disto passemos à segunda questão aplicada aos alunos Baniwa. 3.2.1.3 O mito como estratégia de ensino e ciência sustentável Ainda com o objetivo de identificar as concepções de ciências presentes nas atividades de sala de aula e com o propósito conhecer as estratégias de ensino usadas pelo professor, a segunda pergunta foi direcionada para os estudantes das duas modalidades, que foram identificados através da sigla Fund/ nº, para o Ensino Fundamental e EMI/ n°, para o Ensino Médio sendo a questão: b) Como o professor trabalha o Ensino de Ciências? Diante das respostas, observamos que 100% dos alunos referem-se ao ensino com pesquisa e afirmam que os professores trabalham com temas de acordo com o interesse de cada um deles. Porém, destacamos a resposta do estudante EMI/06, que mostra o teor científico no modo de ensinar do professor, considerando a observação e o experimento. EMI/ 06- O professor trabalha o ensino de ciências por meio de pesquisas levando em consideração observação e experiências. 68 A esse respeito Hennig (1998, p. 105) confirma que em tal concepção de ciência “trata-se, basicamente, da incidência da autorreflexão sobre a natureza; sobre o mundo ambiente físico-químico, animal, vegetal e sobre o próprio homem; sobre um mundo misterioso, repleto de distorções e fatos difíceis de serem compreendidos”. Tais fatos se processam a partir da escolha do tema pelos estudantes Baniwa e Coripaco para a produção da monografia que começa nos primeiros anos do Ensino Fundamental, quando os professores começam a trabalhar as áreas de interesses dos alunos, a fim de que eles comecem a se identificar com os temas. EMI/ 07- O professor trabalha o ensino de ciência na escola indígena Baniwa e Coripaco Pamáali, através de assunto importante para os alunos. Através de assunto abordado com professores que podemos desenvolver um trabalho sobre que assunto se trata. Nós Baniwa sempre desenvolvemos pesquisa na comunidade para aprender nome científico de objeto com os velhos conhecedores de diversos objetos na língua indígena. É isso que estudamos em ciência com o professor na sala de aula. Sobre essa temática, Decroly (REVISTA COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p. 22) propõe como pressuposto básico “que a necessidade gera o interesse que é o verdadeiro móvel em direção ao conhecimento”. E quando esse conhecimento desperta ele se torna a base para suscitar no estudante a observação, a associação de informações e, finalmente a expressão de materializar de forma concreta ou abstrata. Diante desse pressuposto, percebemos, que o aluno Fund/ 02, afirma em sua resposta que os conhecimentos produzidos pelos alunos servem de apoio e de fonte de consulta para as gerações mais novas. Fund/ 02- O professor trabalha com o ensino de ciências: pesquisa através da observação, pesquisa no livro, na internet e depois com esse resultado da pesquisa deixa como subsídio para a escola. Nessa resposta está presente a ideia de revitalizar, através do registro, fatos históricos que marcam a trajetória do povo Baniwa e Coripaco. Wright (2005, p. 34.) destaca que “os nomes de lugares e de grupos étnicos são de grande interesse para a 69 história indígena” e, isto acontece quando os alunos catalogam plantas e detalham espécies animais, seja na floresta, na trilha ou na comunidade. As respostas dos alunos Fund/ 03 e 04 descrevem como se dá o processo de investigação, durante as aulas de ciências naturais. Fund/ 03- É assim: primeiro o professor deu um tema, o que se pode querer aprender, ou que pode ser escolhido por si mesmo. Depois explica como fazer seguindo o guia de pesquisa. Ex: sobre uma planta: Como a planta aparece no mundo? Como se originou? Por que ela apareceu? A planta tem vida? Como ela se alimenta? Como ela vive? Qual a terra que a planta gosta de viver? Será que a planta oferece alimentação? Será que a planta oferece remédio? Como se pode plantar? Quais são as morfologias? Mais ou menos assim. Fund/ 04- Na metodologia de trabalho com o ensino de ciências nesta escola é dependendo com o orientador. Mas no que já vínhamos aprendendo é que em primeiro lugar estudamos na teoria, após isso partimos pra prática, com o objetivo de conhecer tal ser, como: cobra, vegetal e solos, assim em sequência. E em cima disto comparamos as diferenças entre os livros e o tradicional, conforme a nossa realidade. Cada animal ou árvore interessante, a gente descreve todas as suas características, o seu habitat, se é remédio, etc. Isto é para que o nosso conhecimento seja registrado em nossos documentos, para não serem esquecidos por nós. Isso também é facilitação de localização geográfica. No entanto, o que nos chama à atenção na resposta do aluno Fund/ 03, é o questionamento sobre o aparecimento da planta no mundo, sua origem, o porquê da sua aparição, a consideração pela vida e pelo “gosto” da planta quanto à terra onde será plantada. A vertente mitológica dos seres vivos (presente na resposta do estudante Fund/ 03) está atrelada à construção dos conceitos, pelo fato de que isto representa sustentabilidade das origens, relacionadas diretamente com as plantas e animais. Nesta acepção Lévi-Strauss (1978, p. 15) infere que “as histórias de caráter mitológico, são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte”. Então, como vimos a concepção Baniwa da utilização dos mitos como recurso de ensino fundamenta-se no fato de que o mito está presente em todos os elementos da natureza. 70 Figuras 28 e 29: Natureza e mito Fonte: Pesquisa de campo/ 2009 – Fotos: GPECCSA Na sequência dessa explanação, destacamos dois episódios da mitologia Baniwa, constantes na obra de Wright (2005, p. 169/170), que retratam nitidamente essa relação do Homem com a Natureza, na sua origem, pois São vários os mitos sobre o pariká, mas o mais importante é um conjunto de episódios em que Nhiãperikuli e seus irmãos encontram os poderes e instrumentos dos pajés – poderes de ver e transformar, de fazer o trovão, um colar de dentes de onça, e o pariká. O primeiro episódio dessa história descreve como o irmão menor de Nhiãperikuli, querendo aprender a fazer trovão, procura encontrar o gavião real, chamado Kamathawa. Este lhe dá uma de suas penas e o manda cheirar; de repente, a visão dele “se abre” e ele começa a “ver” como os pajés vêem hoje. Em seguida, o gavião lhe dá outra pena de seu corpo e o manda cheirar e, com isso, ele ouve o som do trovão. A ação do segundo episódio dirá em torno da derrubada de uma enorme árvore chamada Kaali ka thadapa, que conectou dois níveis do primeiro universo e que era a fonte primordial de todas as plantas no mundo. O pariká é uma “fruta” que se encontrava dentro de um buraco no topo da árvore. A Grande Árvore de Kaali é um dos símbolos centrais da unidade primordial, ou o Todo-em-Um, da religião Baniwa. A derrubada da árvore quebrou a unicidade deste símbolo primordial, para que a humanidade ficasse com as numerosas plantas e frutas cultivadas que se multiplicaram e cobriram a terra. Dizem que depois de sua derrubada, os povos do mundo inteiro vieram e retiraram plantas (mandioca etc.) para colocar nas suas roças. Com efeito, está presente, nas figuras da águia e da grande árvore, a estreita relação entre a natureza e a existência do homem. Enfim, os Baniwa e Coripaco associam a pesquisa científica à origem mitológica e à sustentabilidade, seja ela de ordem econômica, social ou cultural. Nessa abordagem de construção de conceitos em ciências naturais, a ideia de sustentabilidade científica está diretamente atrelada à produção do conhecimento. A educação escolar indígena Baniwa e Coripaco caracteriza-se pela produção de uma ciência sustentável, com base na preservação dos mitos e na revitalização dos saberes tradicionais. Em face disto, analisaremos a seguir as atividades desenvolvidas no sexto 71 ano do Ensino Fundamental da EIBC-Pamáali, considerando a perspectiva da relação entre interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade, que foi a terceira questão levantada na proposta da pesquisa. Para tanto, nos apoiamos na narrativa do professor da turma do Ensino Fundamental, descrita no capítulo da metodologia deste trabalho e, nas respostas dos alunos descritas neste mesmo capítulo, comprovaremos então essa relação através da análise das atividades trabalhadas nas aulas de ciências naturais. As atividades abaixo envolvem os seguintes conteúdos: nome dos seres vivos, cadeia alimentar, conservação das plantas e mamíferos. Nesta aula o professor explicou as atividades na língua Baniwa e em seguida na língua Portuguesa, o que caracterizou um ensino intercultural bilíngue. Após a explicação do professor, os estudantes seguiram para o trabalho de campo, onde investigaram na natureza o conteúdo explicado teoricamente. Em seguida, retornaram à sala de aula e produziram textos tanto em Baniwa e Coripaco, quanto em Português, conforme observaremos nas atividades abaixo: Figuras 30, 31 e 32: Pesquisa na teoria e na prática Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Importa destacar que o professor Baniwa e Coripaco utiliza naturalmente os espaços não formais no ensino de ciências naturais, sendo esta uma prática cotidiana, pois na ótica indígena, este é para ele o espaço formal para o ensino. E os estudantes por sua vez encaram a utilização destes recursos, como um processo natural para a produção das atividades escolares diárias, numa inter-relação harmoniosa e equilibrada. Além do mais, observamos nos textos produzidos pelos alunos, que ao se reportarem aos elementos da natureza (plantas e animais), há uma preocupação com a sobrevivência e com o período de reprodução dos mesmos. Isto demonstra o respeito do indígena pelos seres vivos, pois considera a possibilidade de haver uma alma ancestral “morando” em uma árvore ou em um animal. 72 A esse respeito Viveiros de Castro (1996, p. 03), afirma que a visão desses povos é profundamente diferente do modo de ver do homem ocidental e sua reflexão pauta-se nas Numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos. Essa teoria é o perspectivismo, que mostra o ponto de vista de indígenas e não indígenas, em relação à condição espiritual dos seres presentes na natureza. O modo como cada etnia enxerga natureza e cultura, é a principal reflexão dessa teoria. O ver como [grifo nosso] representa a percepção de cada sujeito dentro de sua realidade étnica e no pensamento ameríndio são os xamãs12, os responsáveis por administrar e comunicar estas perspectivas, num cruzamento entre conceitos e intuições. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma "roupa") a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 04). Nesse sentido, captamos algumas imagens ao longo da trajetória da pesquisa de campo, que representam com clareza essa teoria, mostrando o quanto a natureza é viva para o povo Baniwa e Coripaco. As imagens captadas foram analisadas numa perspectiva etnográfica e etnológica, a fim comprovar o valor do território para os Baniwa e Coripaco por meio do respeito aos elementos da natureza. 12 Em sentido antropológico e etnológico, os xamãs são, entre certos povos, espécie de sacerdote que recorre à forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc.(MONTEIRO, 2001) 73 Figura 33: Mito Fonte: Pesquisa de campo/ 2009- Fotos: GPECCSA Na figura 33 (acima) visualizamos uma imagem com o formato de um ser de joelhos, mãos postas, como se fizesse uma oração. No entanto, para Lévi-Strauss (1978, p. 28) “os mitos de uma determinada população só podem ser interpretados e entendidos no quadro da cultura dessa mesma população”, portanto, dependendo do mito, este só terá significado real para um povo específico. Figura 34: Totemismo Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Na figura 34, as pedras são simetricamente duplicadas na água dando a impressão de um totem. Segundo o dicionário Luft (1995, p. 605) totem ou tóteme representa animal, vegetal, objeto ou fenômeno natural que certas sociedades primitivas consideram como seus ancestrais e protetores, como uma representação material desse animal, vegetal, objeto ou fenômeno totêmico, totemismo. Segundo um dos professores Baniwa da Pamáali, isso significa Que em todos os lugares (seja nas curvas de rio, em algum lugar na floresta, ou outro tipo de ambiente, não importa sua localização ....) para os Baniwa tudo tem nome, conceito, história e significado. Somente assim fica completa a sua explicação em um contexto mais holístico. Por que em todos esses espaços há seres vivos (material e espiritualmente) que se consideram como 74 “pessoas” convivendo nestes espaços e, esta determinação e classificação depende da auto-percepção de cada um13. Como observado no comentário acima há vida em cada canto da floresta ou em cada curva do rio e, isto tem valor existencial para os Baniwa e Coripaco em cada comunidade, de acordo com cada visão repassada ao longo da história de cada povo. Portanto, para os ameríndios A noção de espíritos "senhores" dos animais ("mães da caça", "mestres dos queixadas" etc.) é, como se sabe, de enorme difusão no continente. Esses espíritos-mestres, claramente dotados de uma intencionalidade análoga à humana, funcionam como hipóstases das espécies animais a que estão associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde os animais empíricos não são espiritualizados. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 05). O texto refere-se à relação humano animal, enquanto seres que possuem uma alma. Contudo, nem sempre se atribui almas aos indivíduos animais, há cosmologias contrárias a que os animais pós-míticos tenham capacidade de consciência ou qualquer espiritualidade. Porém, há um pensamento universal entre os ameríndios de que os mitos possuem características intrínsecas de humanos e de animais, pois, “o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade.” (Idem). Nesse sentido, na visão Baniwa, conforme depoimento do coordenador da EIBC Pamáali, todas as coisas têm suas explicações. As figuras, por exemplo, significam (em uma linguagem na forma de escrita dos primitivos) que aquele lugar é habitado por agentes que podem causar (de acordo como for relacionamento com eles) consequências positiva ou negativamente para vida. A esse respeito, Viveiros de Castro faz a objetivação da natureza em três momentos distintos, assim O autor distingue três modos de objetivação da natureza: o totemismo, onde as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar 13 Comentário do coordenador da EIBC-Pamáali, em resposta a um e-mail enviado no dia 14/07/2010. 75 logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre natureza e cultura é de tipo metafórico e marcada pela descontinuidade (intra e interséries); o animismo, onde as "categorias elementares da vida social" organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais, definindo assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e cultura, fundada na atribuição de "disposições humanas e características sociais aos seres naturais"; e o naturalismo, típico das cosmologias ocidentais, que supõe uma dualidade ontológica entre natureza, domínio da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões separadas por uma descontinuidade metonímica. (DESCOLA, 1992, apud VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 06). Seguindo a mesma linha de análise, destacamos ainda a árvore conhecida como “breu branco”, marcada pelo seguinte paradoxo: enquanto para os indígenas é um ser sagrado, para os ocidentais é fonte de lucro e riqueza. Figuras 35: Árvore do breu branco Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA O breu branco, é uma resina aromática da Amazônia, é conhecido dos povos tradicionais e recebe o nome científico de “protium pallidum”. Ao ser golpeada, a árvore libera um líquido branco e brilhante como defesa. Após um tempo este líquido endurece e se transforma numa pedra com um agradável aroma e com propriedade inflamável. Nas comunidades da Amazônia, esse breu é utilizado para conserto de embarcações, para remédio e para fazer defumação em outras plantas. Segundo o tuxaua tucano Gabriel dos Santos Gentil14, os rituais utilizando perfumes possuem vários significados, dentre eles podemos destacar: ficar mais bonito, ser sábio, se defender, encantar mulheres, caçar e alegrar os deuses, ou seja, depende do objetivo. Ele afirma ainda que, Não podemos tirar nada enquanto ela dorme, porque quando a gente tira um pedaço de árvore, do galho ou do fruto, ao acordar ela se tornará minha 14 Indígena Tukano entrevistado pelo Projeto Biodiversidade Brasil. 76 inimiga. Temos que tirar as coisas da mata da mesma forma que chegamos a uma aldeia e pedimos a permissão para casar com uma mulher 15. Nesse caso a floresta possui o mesmo valor que a família, pois o respeito pela natureza é presente no cotidiano indígena. Assim, a ciência sustentável, construída pelo povo Baniwa e Coripaco tem como base a seguinte premissa: a força da sustentabilidade cultural por meio do mito somada à valorização dos saberes tradicionais que gera uma ciência sustentável, com base na realidade concreta, servindo De diagnóstico para o aprofundamento de estudos sobre o ambiente local (potenciais hídricos, ecológicos, biológicos, arquelógicos, geológicos, etnocientíficos, dentre outros problemas), possibilitando a realização de projetos de pesquisa que possam efetivar alternativas sustentáveis para os povos da região (VIEIRA, 2010, p. 145/146). Ademais, as iniciativas sustentáveis possibilitam a continuidade das tradições Baniwa e Coripaco, trazendo novo significado para o ensino de ciências. 3.2.1.4. Significado do ensino de ciências Seguindo no mesmo objetivo de identificar as concepções presentes no ensino de ciências da Pamáali, formulamos somente para os alunos do Ensino Fundamental, a terceira pergunta. Identificamos os alunos com a sigla Fund/nº e categorizamos as resposta com temas afins, com vistas a uma melhor compreensão da análise, sendo: c) O que representou para você, o ensino de ciências, neste primeiro ano de Ensino Fundamental? Grupo 01 - Ensino de ciências como pesquisa e prática: Fund/05- Durante três etapas estudamos sobre ciência, fazemos prática sobre inseto, por exemplo, mosca, barata, cupim, lacraia, calango e outras matérias como Português, Geografia, História, Espanhol, Agronomia, etc. Fund/06- Em minha opinião, na aula de ciências aprendi muito mais do que nunca na minha vida; na etapa passada nós tivemos prática de ciências lá na comunidade de Tucumã sobre os insetos. Fund/ 07- Com a matéria de ciência que o professor ensinou pra mim sair pra campo, peguei prática lá sobre plantas, que espécie de planta, para que 15 Declaração do Índio Tukano Gabriel em entrevista ao artigo do Projeto Biodiversidade Brasil. 77 serve; se serve para remédio ou serve para construção e registramos nome em Baniwa e coletei também anfíbios, insetos, répteis e ensinou mais sobre a sobrevivência da planta. Depois eu fiz texto narrativo sobre eles contando mais história neles em Baniwa e em Português. Fund/ 08- Primeiro nós fizemos estudo por grupo e depois nós fomos para a prática e pesquisar as características de bichinhos no campo, no rio, na trilha e nós achamos borboleta, aranha, lacraia, peixes, etc. Fund/ 09- Representou pesquisa; nós fizemos sobre práticas dos seres vivos e também do ser humano. No ensino de ciências nós fizemos práticas. O primeiro grupo formado pelos estudantes Fund/ 05 a 09, identificaram o ensino de ciências na Pamáali como pesquisa e prática, destacando a própria experiência da descoberta e construção do conhecimento. Nestes termos percebemos nas respostas dos estudantes que o professor utiliza um método de investigação que possibilita o domínio prático da natureza favorecendo aos homens e mulheres Baniwa e Coripaco o desenvolvimento de pensamentos, habilidades e atitudes para aquisição de um conhecimento verdadeiro. (HENNIG, 1998). Grupo 02 – Ensino de ciências como dificuldade: Fund/ 10- Nós alunos da escola Pamáali nós entendemos as muitas dificuldades aqui na escola; trabalhamos dia de atividade e dia de aula; os meus professores ensinam muito bem, eu entendo o que não conheço. Fund/ 11- Representou muita dificuldade, mas mesmo assim consegui entender algumas partes difícil da disciplina de ciências, é isso aprendi o que não aprendi antes. No segundo grupo observamos as dificuldades na busca do conhecimento. Os estudantes sentem as mesmas dificuldades para construir os novos conceitos. São as dificuldades de compreensão que todo estudioso enfrenta para a descoberta cientifica, para explicar os fenômenos que se apresentam diante dele. Afinal, o cientista “é um cidadão que lida com problemas; é pessoa [...] que observa e interpreta coisas e fenômenos do ambiente, [...] através de estudo minucioso”. (Idem, p. 107). Grupo 03 – Elementos da Natureza: Fund/ 12 – Representa estudo dos seres vivos e dos seres humanos. Fund/ 13- Durante nós ficarmos aqui na escola, nós aprendemos alguns assuntos chamados bactéria e fungos, ar e água e suas características, etc; e nós saímos para campo coletar insetos para fazer texto sobre eles. 78 Fund/ 14- Representou muitas coisas nas ciências, porque a ciência é muito importante para nós, por exemplo, como são os artrópodes, quem já segurou o camarão deve ter percebido logo que esse animal tem uma espécie de “casca” rígida, essa casca é o esqueleto dos artrópodes, ao contrário do nosso esqueleto que é interno. Fund/ 15- Na primeira etapa estudamos sobre a fotossíntese e trabalhando nas atividades de campo e também na segunda etapa pesquisa sobre as plantas que produzem óleo, assim que estudamos em Pamáali. No terceiro grupo, os estudantes definem o ensino de ciências na Pamáali como uma experiência diretamente ligada aos elementos da natureza e seus processos. Vale ressaltar que o Homem está incluído entre estes elementos, ou seja, ele não está dissociado da Natureza. Quanto aos elementos destacados Alcântara (2010, p. 15) infere que “Daí a ideia de se buscar no ambiente da floresta possibilidades pedagógicas a partir da utilização dos elementos nela presente”, porém conservando-a para a sustentabilidade. Assim, ao observarmos as respostas acima, percebemos a importância da Escola na vida de cada aluno e o quanto conhecer a natureza está ligada à questão existencial individual e coletiva. Neste caso, de fato, a Escola possui a finalidade de possibilitar uma formação integral para o aluno. De acordo com Zabala (1998), é na escola, a partir das relações estabelecidas, das experiências vividas, que se constroem as condições e os vínculos necessários para se definir concepções a respeito de si mesmo e dos outros. É partindo de uma ação reflexiva acerca da finalidade ideológica da Educação escolar que se pode conceber o aluno como um cidadão, no contexto social em que está inserido. Por esta razão, “os direitos dos Índios não são apenas para sua defesa, mas também para que tenham acesso à cidadania plena” (MEC/ TV ESCOLA, 2001, p. 330), inclusive na escola. Acompanhando a mesma lógica de argumentação, notamos que as respostas dos estudantes são baseadas nos conteúdos estudados nas três etapas. Neste sentido, os conteúdos sofrem uma ampliação em seu significado, pois não basta apenas ensinar é preciso buscar o sentido do por que ensinar. E, por esse motivo devem ser definidos coletivamente dentro do próprio ambiente da sala de aula. 79 Figuras 36, 37: Atividades de produção acadêmica no Fundamental Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Para os alunos da EIBC, coletar insetos, aprender o tempo de produção da floresta e o tempo de reprodução dos animais, conforme a resposta do aluno Fund/ 13 se constitui num momento de aprendizado para a sobrevivência. Desse aprendizado resulta sua condição existencial através do cultivo de plantas, da criação e da caça de animais e da pesca de peixes para sua alimentação. Nestes termos, o conteúdo assume a posição de envolver o indivíduo em todas as suas dimensões de aprendizagem, isto é, a dimensão conceitual, procedimental e atitudinal, partindo das premissas o que, para que e como aprender. Figura 38, 39 e 40: Conteúdo significativo Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Ainda neste mesmo raciocínio, o aluno Fund/ 06 explica que eles pesquisaram insetos em outra comunidade fora da escola, isto mostra que os professores sabem da necessidade de diversificar o ambiente para se obter um ensino mais eficaz; que, para ensinarmos é preciso termos referenciais do modo como o sujeito aprende, bem como de suas limitações, de sua individualidade e de sua diversidade. Uma boa metodologia precisa ter uma sequência ordenada e articulada de suas atividades. Esta sequência se revela na resposta do aluno Fund/ 08, quando ele afirma que primeiro há o estudo em grupo e depois saem para a prática. Para Zabala (1998), tal sequência deve considerar as intenções educacionais no momento da definição dos conteúdos de aprendizagem e qual o papel das atividades propostas pela escola. Pois 80 dessa forma se explicitam as intenções educativas para a formação de conceitos, procedimentos e atitudes. A Pamáali com esta metodologia de ensino com pesquisa estabelece previamente os conhecimentos a serem aprendidos, tornando os conteúdos significativos e funcionais para a superação de dificuldades. Podemos demonstrar tal questão nas respostas dos alunos Fund/ 10 e Fund/ 11, que dizem ter tido dificuldades que, no entanto, foram superadas durante o processo. Portanto, mesmo que haja momentos de conflitos para aquisição de novos conhecimentos, eles sentem-se motivados a aprender os conteúdos. A metodologia utilizada proporciona novas habilidades e possibilita aos estudantes o aprender a aprender, tornando-os autônomos em seus processos de aprendizagem. Tal autonomia está presente nas respostas dos alunos Fund/ 14 e Fund/ 15, quando explicam detalhadamente a aula sobre o esqueleto dos artrópodes e sobre as espécies de plantas, respectivamente. Para tanto, as relações estabelecidas em sala de aula representam um grande valor no processo ensino-aprendizagem. Sintonia e interação entre professor, aluno e conteúdos são fundamentais para o sucesso da metodologia aplicada. Professores e alunos são partícipes deste processo, diferenciando-o do ensino tradicional. Neste sentido, se estabelece a concepção construtivista do conhecimento, o que necessita da diversificação de estratégias, com novos desafios, sempre atento ao ritmo de aprendizagem dos alunos, numa interação direta com eles. Figuras 41 e 42: Interação professor-aluno Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Confirmando tal inferência Decroly, afirma que “a criança [ou jovem] é o ponto de partida do método” (REV. COLEÇÃO EDUCATIVA, 2008, p. 23), diríamos que o interesse do aluno é o ponto de partida para utilização do método [grifo nosso]. 81 Em última análise, os recursos metodológicos relacionam-se com a visão de determinada sociedade, história ou cultura e, por esta razão estão carregados de mensagens ideológicas. Portanto, o exercício da prática reflexiva pelo docente é fundamental para o sucesso desse processo de produção do conhecimento, com o fim de potencializar a autonomia do aluno, nesse construto científico. 3.3 Construção da proposta intercultural, bilíngue e sustentável para o ensino de ciências naturais “As dificuldades que vivemos para construir esta escola diferenciada, é que não temos livros diferentes.”. Profª. Maria José -Xukuru 3.3.1 Recurso pedagógico: material didático Baniwa e Coripaco Produzir material didático para estudantes e professores indígenas não é uma tarefa simples, visto que tal produção deve ser algo funcional e aplicável. Não basta produzir, é necessário uma utilização prática do que foi produzido, de modo que essa utilidade esteja relacionada com a questão existencial dos povos tradicionais e com a revitalização dos conhecimentos para a sobrevivência sustentável dos mesmos. Embora a escola Pamáali já possua livros produzidos e publicados em parceria com o MEC, nossa proposta em produzir um material didático surgiu no momento do relato do professor de ciências naturais, acerca da escassez de material bilíngue para ensinar as crianças indígenas nas séries iniciais. Assim, a proposição de trabalhar materiais didáticos na perspectiva de uma educação bilíngue sustenta a ideia de interculturalidade, pois O tema da educação bilíngue e intercultural, no que concerne à educação indígena, tem enriquecido durante as últimas décadas os debates pedagógicos, antropológicos e políticos nos países americanos e europeus, caracterizados por uma diversidade de contextos onde as demandas educativas dos grupos linguística e culturalmente distintivos são diversas. (GASCHÉ, 2008, p. 09). 82 Em tal perspectiva, propusemos o material didático bilíngue a ser produzido pelos alunos do segundo seguimento do Ensino Fundamental, para ser utilizado pelas crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. A Comissão Nacional de Apoio a Produção de Material Didático Indígenas (CAPEMA/ MEC), conforme a Portaria n° 13 de 21/07/2005, através da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, elaborou vários livros didáticos e paradidáticos de diversas etnias. Os Baniwa e Coripaco também tiveram uma participação com a produção de livros na língua nativa, com o título Ikadzekatakadapha16. Figura 43: Produções da Pamáali em parceria com o ISA Fonte:Arquivo da Pamáali Nesse sentido, uma maneira de construir uma educação diferenciada e intercultural é através do uso de livros didáticos bilíngue. Em seu relato o professor de ciências naturais no Ensino Fundamental (capítulo metodológico deste trabalho), declarou que gostaria de dar aulas com um livro na língua Baniwa e na língua Portuguesa. Decorrendo desse fato, optamos pela proposta de elaboração de um material didático bilíngue, a partir das pesquisas realizadas pelos estudantes das séries finais do Ensino Fundamental. Portanto, a condição básica para que isto aconteça está em possibilitar efetivamente a inter-aprendizagem entre a sociedade indígena a não indígena. 3.3.2 Vantagens do recurso pedagógico na perspectiva didática intercultural e bilíngue “O projeto de pesquisa é registrar e disponibilizar para pesquisa o conhecimento cultural dos povos Baniwa e Coripaco”. Tiago Pacheco - Baniwa 16 Este livro, produzido em língua Baniwa e destinado à aquisição da lecto-escritura, foi elaborado pelas comunidades Baniwa do médio rio Içana, Paitsipe (Juivitera), Poperianaa (Castelo Branco) e Escola Municipal Indígena Pamáali Baniwa e Coripaco, resultado do Projeto Educação Indígena no Alto Rio Negro, realizado pela parceria entre o Instituto Socioambiental/ISA e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro-FOIRN. 83 Ao introduzirmos em nosso trabalho a ideia de uma educação intercultural e bilíngue partimos do princípio de que interculturalidade é o relacionamento entre duas ou mais culturas e, neste caso, incluindo-se a questão linguística. Ao incluirmos o vocábulo bilíngue fica claro que estamos falando da relação entre duas culturas de línguas maternas diferentes, precisamente do tronco linguístico Aruak (Baniwa e Coripaco) e Português. Acompanhando essa lógica de argumentação, defendemos ainda que o reconhecimento do papel histórico e social da escola indígena contribui fundamentalmente para diminuir o conflito entre o que os modelos educativos diferenciados deveriam ser partindo da aplicação das políticas educativas oficiais, que regem as relações interculturais nos diferentes países do mundo, bem como o que podem vir a ser, através do exercício do direito que têm estes povos de participar ativamente no planejamento, na operação e na avaliação da educação que estes reivindicam. Por esta razão é preciso que as manifestações interculturais e bilíngues apresentem-se como políticas que vão além de uma classificação com critérios antropológicos puramente ocidentais. O respeito e a alteridade devem ser princípios presentes nas manifestações de educação intercultural e bilíngue, pois considera diferenças, diversidade e valores próprios de cada povo tradicional, bem como “a dificuldade e limitação conceitual de seu espírito interpretativo, teórico, que lhes impedem de dar conta de suas propriedades positivas em contraste com a sociedade nacional”. (GASCHÉ, 2010, p. 114). Essa compreensão a respeito da educação indígena intercultural e bilíngue possibilita melhor produção e melhor aplicação de recursos didático-pedagógicos, para a escola indígena. Sem dúvida alguma, quanto mais conhecida uma realidade maior a possibilidade de se colocar no lugar do outro. Esta afirmação está intimamente ligada com o fato de optarmos pela elaboração de um material didático que atenda aos interesses do povo Baniwa e Coripaco, pois conforme afirma Zabala (1998, p. 29) os recursos didáticos São os instrumentos que proporcionam referências e critérios para tomar decisões: no planejamento, na intervenção direta no processo de ensino/aprendizagem e em sua avaliação. São meios que ajudam os professores a responder aos problemas concretos que as diferentes fases dos processos de planejamento, execução e avaliação lhes apresentam. 84 Neste sentido, fica evidente que os recursos didáticos utilizados pelo professor são fundamentais para o alcance dos objetivos propostos durante a fase de planejamento. E, que os estudantes são partícipes na elaboração do material a ser utilizado, para despertar o interesse para a aprendizagem. Por isso “revitalizar os conhecimentos indígenas equivale, segundo essa visão, falar deles, divulgá-los na sala de aula, expressá-los por escrito ou em desenhos”, (GASCHE, 2010, p. 116) de modo a divulgar este saber. Enfim, a maior vantagem da Educação intercultural e bilíngue esta no fato de esta despertar o interesse dos alunos, visando provocar aos mesmos Maior precisão nas descrições e inventários referentes aos conteúdos explorados, maior aprofundamento na compreensão das relações entre os objetos materiais, técnicos e naturais, vivos e inertes e maior liberdade na imaginação e na interpretação do significado do mundo . (GASCHE, 2010, p. 125). Em última análise, ao exercermos uma postura intercultural possibilitaremos a valorização e a compreensão do outro em relação ao eu, pois ao adquirirmos essa atitude de inter-aprendizagem como um dos conceitos centrais do planejamento, assumiremos então a Pedagogia da Interculturalidade. Tal pedagogia nos dá condições de acolher elementos, de recentes discussões entre os pesquisadores, que consideram a aprendizagem como um conceito oposto ao que comumente se tem entendido, onde a habilidade, competência e conhecimento de ambos os partícipes (professor e aluno) se ampliam, se diversificam, se interagem e se enriquecem. Sem dúvida, essa prática educativa de inter-aprendizagem diverge do que é propagado no meio escolar por ser uma ideia nova ainda em desenvolvimento e, que ainda confronta com as ideias educativas vigentes na sociedade envolvente. 85 3.3.3 –Áanhee, –déenhi nheétte –dzeekáta:17 o passo a passo da construção didática intercultural O recurso didático idealizado é um construto vislumbrado a partir das produções dos alunos do 6° ano da Escola Pamáali. O conhecimento produzido na comunidade baseia-se em fontes originais do próprio povo Baniwa e Coripaco. Dentre essas fontes podemos citar os velhos (Komu)18, os mitos de origem e os registros de pesquisas feitas pelos estudantes da EIBC. Conforme a narrativa do professor Baniwa19, a disciplina a que se destina este recurso é inicialmente as ciências naturais. Porém, no decorrer da metodologia se trabalhará outras disciplinas de modo interdisciplinar. Vale ressaltar que a EIBC possui livros didáticos publicados, no entanto a construção não seguiu esta dinâmica. Cabe lembrar que algumas informações contidas neste trabalho são parte da prática diária na sala de aula da Pamáali e aqui foram apenas reforçadas, enquanto passos de uma metodologia de construção de conceitos. Os passos para a elaboração do material são: a) Pesquisa in lócus para observação da fauna e da flora conforme o conteúdo explorado. Ex.: Seres Vivos terrestres – neste conteúdo o professor orientará os estudantes a coletar um animal para observá-lo e registrar as características, os hábitos alimentares e qual o habitat natural. Todas as informações serão lançadas no caderno de pesquisa para serem discutidas em sala de aula; Figura 44 e 45: Pesquisa na trilha das ciências Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA b) Na sala de aula, o professor orientará os estudantes para que registrem por meio de desenhos, o animal pesquisado, retratando o máximo de informações 17 Fazer, produzir e construir – Ramirez (2001). É o sábio da comunidade. É uma espécie arquivo das tradições indígenas. É também chamado de Pajé. 19 Narrativa constante no capítulo metodológico deste trabalho. 18 86 possíveis sobre o seu objeto de estudo. O estudante pesquisador desenhará a estrutura física do animal, o lugar onde vive, os hábitos alimentares e até o modo de reprodução. Neste momento da atividade, o trabalho artístico é fundamental para desenhar, colorir e detalhar o visual do objeto explorado na pesquisa; Figura 46, 47 e 48: Observação e registro de pesquisa Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA c) As anotações feitas durante a pesquisa in lócus e registradas no caderno se transformarão em um texto dissertativo, descritivo e/ou narrativo que traduzirá toda a impressão do estudante a respeito do animal observado e se constituirá em fonte de conhecimento a ser trabalhada com as crianças dos anos iniciais; Figura 49 e 50: Caderno para registro da pesquisa Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA d) O professor da disciplina disponibilizará para os estudantes pesquisadores, referências bibliográficas, tais como livros, artigos de revistas e de sites da internet para possibilitar conhecimentos complementares àqueles observados diretamente na realidade do animal. O estudante incluirá informações como o nome científico do animal, a classificação biológica a que ele faz parte, a posição na cadeia alimentar e o modo de reprodução; Figura 51 e 52: Produção do texto da pesquisa Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA 87 e) Na entre etapa os estudantes pesquisadores entrevistarão o Komu de suas comunidades para saber o mito de origem, a representação indígena e o lado sagrado de cada animal pesquisado. Essas informações coletadas também comporão o texto produzido pelos estudantes pesquisadores; Figura 53: Texto descritivo montado em quadrinhos Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA f) O mesmo texto dissertativo, descritivo ou narrativo produzido inicialmente em Baniwa e Coripaco será traduzido ipsis literis para o Português, oportunizando aos estudantes pesquisadores a familiarização com o texto nas três línguas, com vistas a perceber a complexidade de construção gramatical de ambas, bem como a produção do texto científico; Figura 54 e 55: Transcrição do texto de Baniwa para Português Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Os alunos organizarão as produções, relacionando texto e desenho, com vistas a facilitar a compreensão das crianças indígenas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental; Figura 56 e 57: Ligação entre textos e figuras Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA 88 g) Os textos serão organizados em forma de paisagem com o texto descritivo logo abaixo do desenho ou ainda em forma de quadrinhos, dando ideia de texto recreativo, onde se lê passo a passo as informações ilustradas; Figura 58 e 59: Texto final para publicação de material didático Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA h) O professor da disciplina inicial (Ciências Naturais) comporá um conselho com os professores Português, Artes, História, Geografia e outros, com o fim de revisar os textos construídos pelos estudantes pesquisadores, visando à produção gráfica do material; Figura 60: Conselho de professores para revisão do texto produzido Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA i) O texto final produzido pelos estudantes pesquisadores será utilizado em forma de livros didáticos pelas crianças indígenas das comunidades Baniwa e Coripaco, matriculadas na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Figura 61 e 62: Finalização da proposta a ser utilizada Fonte: Pesquisa de campo/2009 – Fotos: GPECCSA Por fim, as estratégias, as metodologias e os recursos didáticos usados para a educação escolar do Indígena possuem as mesmas intencionalidades educativas de 89 qualquer civilização. O Indígena tal como outro cidadão, busca suas conquistas étnicas, políticas, econômicas e ideológicas, contudo mantém o respeito pela natureza, que é a origem de toda a vida, mantendo o foco na sustentabilidade, na territorialidade e na preservação do mito. E isto é e será, sempre, para os povos indígenas uma questão existencial. 90 CONSIDERAÇÕES: É PRECISO PONDERAR As ponderações a seguir resultam de reflexões ao longo da pesquisa e contribuíram significativamente para o nosso amadurecimento intelectual. O caminho trilhado para realização deste trabalho, além de possibilitar crescimento intelectual, ampliou também a nossa visão social, política e ideológica a respeito dos povos Baniwa e Coripaco, representada analogicamente pelo diagrama abaixo: Figura 63: Ciclo científico sustentável Baniwa e Coripaco Fonte: Pesquisa de campo/2009 A figura acima foi denominada de ciclo científico sustentável [grifo nosso], pois a relação dos Baniwa e Coripaco com o conhecimento está pautada na sustentabilidade existencial. Desta inferência decorrem nossas considerações: Os saberes tradicionais atravessam os séculos, gerando a sustentabilidade histórica; A força da narrativa do mito traz o tempo de origem da primeira aparição do mesmo, para a sustentabilidade religiosa; A ciência sustentável desenvolvida pelo Índio respeita o tempo do rio (seca ou cheia), o tempo da chuva, o tempo do solo e o tempo da floresta, para sustentabilidade territorial; O conhecimento construído pelo indígena se renova de tempo em tempo e se adapta a cada geração, fomentando a sustentabilidade existencial; Os saberes indígenas se cruzam com os conhecimentos ocidentais, sem perder a sua essência de origem, dando lugar a um modo alternativo de pensar à construção de conceitos científicos, favorecendo, enfim, a relação entre a tríade interculturalidade, territorialidade e sustentabilidade. 91 Feitas essas considerações, ousamos ainda inferir que trabalhar as concepções de ensino de ciências na educação escolar indígena numa perspectiva de interculturalidade foi uma oportunidade de conhecer uma realidade ainda em construção. Contudo, a inserção de novos conhecimentos e a possibilidade de aplicação de novas concepções, como forma de responder aos problemas educacionais da sociedade contemporânea, representa uma contribuição significativa para o processo da educação escolar, tanto para o indígena quanto para o não indígena. As experiências de ensino e de aprendizagem desenvolvidas pela EIBCPamáali, no Alto Rio Negro, configuram a construção da escola indígena diversificada e plural. Elas reforçam, ainda, o princípio da autonomia necessária para que os saberes produzidos nas comunidades tradicionais sejam legitimados enquanto conhecimento científico. As concepções de ciências e de ensino de ciências representadas nessa escola indígena mostram as convicções e a força do Índio na produção de conhecimentos. O indígena não abstrai um conhecimento apenas para cumprir uma exigência, mas ele sabe da importância de cada informação para sua sobrevivência. Ele é antes de tudo um protagonista do conhecimento, pois o constrói e sabe para que o construiu. As práticas pedagógicas desenvolvidas na escola indígena é uma revitalização dos saberes repassados de uma geração para outra. Ao considerar as experiências produzidas e vivenciadas pelos alunos nas comunidades, como ferramenta para elaboração de conceitos em sala de aula, o professor indígena mostra sua habilidade na construção do conhecimento. A força do mito, aliada à valorização dos saberes tradicionais, formam a ciência do Índio. A síntese do conhecimento produzido pelos Baniwa e Coripaco, está na concepção de uma ciência sustentável, que explora os recursos naturais oferecidos pela floresta, harmonizando o Homem e a Natureza, saberes tradicionais e ocidentais, num processo de inter aprendizagem e interculturalidade. Por fim, a construção do conhecimento científico para os Baniwa e Coripaco da Pamáali, ainda é somente um ensaio, embora a escola já exista há dez anos. Todavia, já demonstra um potencial promissor, visto que esses saberes milenares que foram tradicionalmente acumulados servem de base para o projeto de aprendizagem da escola, ao mesmo tempo em que referenda a legitimidade do mito enquanto recurso de ensino. Esta organização na e para a educação escolar indígena, favorece a implementação de uma escola diferenciada, diversificada e plural. 92 REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, Maria Inez Pereira de. Elementos da floresta: recursos didáticos para o Ensino de Ciências na área rural amazônica. Manaus: UEA/ Escola Normal Superior/ PPGEECA, 2010. ALFONSO-GOLDFARB, A. M. O que é História da Ciência. São Paulo: Brasiliense, 1994. ALMANAQUE BRASIL SOCIOAMBIENTAL (2008). Uma nova perspectiva para entender a situação do Brasil e a nossa contribuição para a crise planetária. São Paulo: ISA, 2007. BARREIROS, Cláudia Hernandez. Da didática fundamental à didática intercultural: percurso de uma pesquisadora de campo. In: CANDAU, V. M. 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