O Ministério Público como fator de redução de conflitos e a construção da paz social, com as seguintes áreas: II - Áreas Cível e Especializada – Gestão de conflitos e paz social; O CRÉDITO E O EMPRÉSTIMO CONSIGNADO CIRO EXPEDITO SCHERAIBER Procurador de Justiça / CAOPCON/PR [email protected] __________________________________________________________________________________________ 1. INTRODUÇÃO – 2. REGULAMENTAÇÃO DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO – 3. CONSEQUÊNCIAS DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO - 4. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS E A CAPTAÇÃO DE CLIENTES - 5. CRÉDITO E EMPRÉSTIMO CONSIGNADO: OS JUROS INCONSTITUCIONAIS - 6. PUBLICIDADE DO DINHEIRO FÁCIL - 7. NECESSIDADE DE LIMITAÇÃO DOS JUROS NA OUTORGA DO EMPRÉSTIMO - 8. SUPERENDIVIDAMENTO – 9. CONCLUSÕES. Justificativa: O crédito tem sido o propulsor do consumo nos tempos modernos, notadamente com a revolução industrial em que a produção seriada recorre à necessidade de uma oferta massificada. Como no Brasil a regulamentação do empréstimo consignado intensificou a outorga forçada do crédito, o fenômeno do superendividamento se tornou realidade preocupante, até porque os bancos credenciados estão livres para a prática de juros à taxa de mercado, porque integrantes do sistema monetário nacional. A partir desse fenômeno, por trazer características deletérias à normalidade do mercado, é que se pretende com as conclusões propostas neste estudo, algumas alterações legislativas que proporcionem uma maior regularidade dessa atividade. _________________________________________________________________________________________ _ “A crise atual é um produto de um longo período de negligência quanto aos interesses dos consumidores nos mercados de crédito e de uma inadequada regulação dos fornecedores de serviços financeiros. Nos últimos vinte anos, nós testemunhamos o contínuo enfraquecimento da proteção do consumidor, em nome da chamada tutela da “eficiência” dos mercados “livres” (free and efficient markets). A falha desta maneira de abordar o problema, que foi adotada globalmente no mercado de crédito, é agora evidente e fala por si só. Esta não e uma crise nascido da oferta de crédito a pessoas com baixa renda, mas uma crise causada por lhes ter sido oferecido produtos e serviços de crédito de modo irresponsável, falhando-se na proteção dos seus interesses de longo prazo neste mercado”1. Excerto da “Declaração de Londres sobre a Crise Mundial de Crédito, expedida pela “Coalizão Européia para o Crédito Responsável” (European Coalition for Responsible Credit) e do “Dívidas Batem a Nossa Porta” (Debt on our Doorstep). 1 Versão livre e autorizada para o português realizada por Walter Moura, Secretário Geral do Brasilcon e Advogado em Brasília. Revisão de Claudia Lima Marques, Diretora do Brasilcon e Professora Titular da UFRGS, ”, in Revista de Direito do Consumidor, Ano 17, n. 68, out-dez/2008, RT, SP, p. 378). 1. INTRODUÇÃO. O Empréstimo Consignado, tido como necessário para o incremento da economia, alcançou importância ímpar, por atingir categorias e classes de pessoas no mercado de consumo induzindo-lhes ao acesso do crédito. Às instituições financeiras proporcionou segurança na concessão do crédito, por livrá-las dos riscos da inadimplência, já que os descontos são automática e peremptoriamente lançados nas contas salário, pensões ou proventos dos trabalhadores, dos aposentados e pensionistas do INSS. Para proporcionar efetividade à implementação dessa modalidade de crédito, houve aumento da malha de captação, com o credenciamento de outras pessoas jurídicas (correspondentes bancários) nos lugares mais distantes, alcançando um número cada vez maior de pessoas que oferecem condições de ingressar no sistema. Em contrapartida, contribuiu decisivamente para o surgimento do fenômeno recente, o chamado superendividamento dos consumidores, todavia, é indesculpável olvidar, todavia, do incremento do lucro fácil das empresas de finanças de outro. E isso fere o equilíbrio nas relações entre consumidor e entidades vinculadas ao sistema monetários nacional, pois os juros são ilimitados e, por isso, elevados, ofendendo a ordem econômica de “defesa do consumidor” de que trata a Constituição Federal. É nessa linha de análise que realizamos este estudo, perpassando pela principal conseqüência deletéria, o superendividamento, com proposições de medidas providenciais de caráter constitucional e legais que, se de um lado levariam à diminuição de lucro excessivo e fácil das financeiras e entidades bancárias, por outro dariam maior transparência e segurança aos consumidores desse serviço. 2. REGULAMENTAÇÃO DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. Inicialmente o desconto em folha de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil, possibilitado pela CLT, passou a ser regulado pela MP 130, de 17.09.03. Regulamentou tal MP o Decreto nº 4840, de 17.09.03. A Lei 10.820, de 17 de dezembro de 2003 resultou da conversão da MP130/03, e passou a regular e normatizar todo o sistema de desconto em folha de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil. A Lei nº 10.953, de 27.09.04, alterou a Lei 10.820/03, para permitir que o crédito consignado passasse a ser oferecido a aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Após, sobreveio o Decreto nº 5892, de 12.09.06, que acresceu parágrafo 7º-A ao artigo 4º do Decreto 4840/03, permitindo empréstimos referentes ao SFH, cujas prestações obedecerão ao contrato e as prestações podiam ser variadas . A Lei nº. 10.820/2003, regulamentada pelos Decretos nº. 4.840/2003 e nº. 5.892/2006, se refere aos conceitos de remuneração básica, descontos legais, remuneração disponível e descontos voluntários, como elementos de orientação à aplicação dos descontos dos empréstimos consignados. 3. CONSEQUÊNCIAS DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. Variadas conseqüências resultam do empréstimo consignado, mas a principal é a de favorecer as entidades financeiras que o operam, pois estarão, com certeza, angariando lucro seguro, além de elevado. Aquele propósito alhures pregado de reduzir os juros no contrato de mútuo por essa modalidade, em verdade se constitui em conseqüência natural da elevada garantia que lhe favorece, ou seja, ausência de inadimplemento, ou inadimplemento insignificante. Mas, se a entidade que concede o empréstimo não sofre risco importante do inadimplemento, não significa que o mutuário esteja infenso a se endividar, pois uma vez assinado o contrato, não pode mais revogálo, porque a lei o obriga de forma peremptória, mediante o desconto em folha. O consumidor bancário premido pelo comprometimento sem volta de seus vencimentos, é forçado a recorrer a outros meios de captação de dinheiro, inclusive sujeitando-se a agiotas e criminosos que, aproveitando-se da situação, aplicam os já chamados “golpes do dinheiro fácil”2. Há os que exaltam o benefício do Empréstimo Consignado como Newton Freitas3, no sentido de que “As operações de crédito mediante o desconto das prestações em folha de pagamento, criadas pela Medida Provisória nº 130, de 17 set. 2003, regulamentadas pelo Decreto nº 4.840, de 17 set. 2003, possibilitarão aos trabalhadores a reestruturação de suas contas, livrando-os da dívidas com o cheque especial, cartão de crédito e até mesmo de agiotas. A CUT vê essas operações como parte da discussão do próprio poder aquisitivo dos trabalhadores, avalia Luiz Marinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores – CUT (“Juros na mesa de negociação”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 02 dez. 2003, p. A3).” Ocorre que essa modalidade de crédito não operou esse lídimo propósito, pois tem carreado ao endividamento milhões de pessoas que tem emprego fixo e salário estável. O segundo objetivo importante do Empréstimo Consignado, de tão exploratório e induzidor, que sob esse prisma leva ao lucro fácil e seguro, em parte induz o consumidor à inadimplência, por não suportar tanta carga sobre seus vencimentos, que os alimentados desejos de aquisição no mercado de consumo de bens, às vezes se transformam em verdadeiros pesadelos, cuja saída se apresenta traumática. Nem sempre o consumidor cotidiano se reflete àquela situação da “Família Amorim” do quadro “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, que o Fantástico, da rede Globo, exibia aos domingos, em que uma adolescente pertencente à família consegue fazer com que seus membros saiam do sufoco proporcionado pelas dívidas, com acompanhamento técnico. Ao depois, pela exposição da mídia, a família se tornou objeto de peça publicitária de banco, estimulando o “crédito responsável”4. A lei, então, se por um lado traz a exigência, como cautela, do empregado “por contrato expresso” autorizar e só por esse meio o desconto em folha, por outra traz segurança, na verdade, à instituição financeira, até porque o empregador figura como responsável solidário pelo pagamento da prestação referente ao empréstimo, financiamento, etc. 2 O golpe é simples. O interessado telefona, o contato promete liberar o empréstimo e pede um pequeno depósito na conta da empresa. A pessoa deposita e nunca recebe o valor negociado. Às vezes, a empresa chega a fazer um depósito na conta do cliente, mas com cheque roubado, afirma Liáo. E a vítima só descobre o golpe depois de pagar a taxa de liberação. Extraído de http://www.aceguarulhos.com.br/content.php?m=20020913133544, com acesso em 06.10.08. 3 4 FREITAS, Newton. Extraído de http://www.newton.freitas.nom.br/artigos.asp?cod=139 , com acesso em 06.04.2009. Consulte-se o site seguinte a respeito do caso do endividamento e da participação da família em peça publicitária de Banco: http://www.adonline.com.br/ad2005/rapidinhas_detalhe.asp?id=16647, com acesso em 09.04.2009. É certo, acreditamos, que essa regulamentação do empréstimo consignado é uma das muitas medidas que o governo proporciona para beneficiar os bancos e financeiras. Tudo pelo lucro da instituição financeira, o chamado “spread”5, que se apresenta elevadíssimo. E veja que os bancos e financeiras tem um poder incomensurável, basta ver o que está ocorrendo com a chamada crise do setor financeiro, desencadeado pela quebradeira dos EUA. Praticamente no mundo inteiro as instituições bancárias são socorridas pelos governos que estão injetando dinheiro para manter ou conservar as empresas sadias, para que o caos não se instale no meio econômico, diante da chamada crise hipotecária. Isso porque o Estado não tem autonomia para operar nesse campo comercialmente, e se põe como um Estado fraco, refém do mercado. Faço referência ao pensamento de Claus Offe trazido por TRAUMANN, Thomas. "O Novo Poder", in Revista Veja, edição de 8 de abril de 1998, páginas amarelas em entrevista com o sociólogo. Refiro que “a política de orientação e de direção das relações de consumo, partindo do Estado, está concertada com o estudo do sociólogo alemão Claus Offe de que o Estado, a liberdade de mercado e as ONGs formarão uma nova ordem social, pondo fim às ideologias. Diz: "A diminuição do Estado pela diminuição do Estado é um dogma assim como a defesa cega do estatismo. Um Estado bom não é um Estado pequeno, mas aquele que atende com mais eficiência aos anseios dos cidadãos". Acrescenta, entretanto, que "o excesso de poder do mercado afeta a confiança na democracia. Um Estado fraco começa a fazer o que as empresas quiserem. As pessoas se perguntam então para que serve a democracia se as decisões estão sendo tomadas onde não temos influência6. O empréstimo consignado, assim como várias outras questões de responsabilidade dos governos, nos parece que é resultado de um Estado fraco para inibir o abuso dos empréstimos e do endividamento, que prefere, a despeito de acertar a atividade, normatizá-lo e garantir sua operosidade, já que sem forças não muito eficazes de inibição ou de prevenção. 4. CORRESPONDENTES BANCÁRIOS E A CAPTAÇÃO DE CLIENTES. A abertura legal da outorga do crédito tem levado ao aumento incomensurável da oferta do empréstimo consignado, por intermédio da utilização intensiva do marketing. O empréstimo se tornou automático, sem riscos (desconto em folha). Mas, para alcançar o maior número de pessoas, nos mais distantes lugares do país, abriu-se uma rede de captação, os chamados “correspondentes”, aqueles comerciantes ou prestadores de serviços utilizados como mini-agências, que funcionam como intermediários entre o consumidor-mutuário e a entidade mutuante, permitindo que os tentáculos da rede de empréstimo, em cada lugar mais recôndito que seja, alcance o alvo. 5 “Spread é uma palavra inglesa e, de tanto que os dicionaristas endividados a escutarão, provavelmente será aportuguesada em breve (aposte em algo como “esprede”, com e aberto). O spread é a diferença entre o que o banco paga ao aplicador para captar um recurso e o quanto o banco cobrará para emprestar esse mesmo dinheiro. Um estudo de Alberto Borges Matias, diretor da consultoria ABM Group, com base em dados do FMI, mostra que o Brasil chegou ao título de maior spread bancário do mundo com grande folga sobre o segundo colocado, a Rússia. No Brasil, a diferença encontrada entre as taxas de aplicação e de captação chega a 29,4 pontos percentuais. “O spread brasileiro é mais de 12 vezes o spread chileno”, assinala Matias, cujo levantamento enfrenta uma limitação apontada por técnicos do Banco Central – a falta de critérios homogêneos para cálculo do spread em diferentes países. Extraído de http://amanha.terra.com.br/edicoes/208/especial2.asp, com acesso em 30.09.2005.” 6 SCHERAIBER, Ciro Expedito. A economia e a política nacional das relações de consumo, in “Direito e Sociedade”, Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, Vol. 1, Número 1, Setembro/Dezembro 2000, Curitiba, p. 136. Os correspondentes bancários, autorizados por lei para operar como “delegatários” das financeiras, podem utilizar-se de marketing publicitário, o que contribui sobremaneira para o incremento da outorga de crédito irresponsável e de alto convencimento. A essas entidades dever-se-ia coibir a prática de intermediar empréstimos consignados e de praticar atos de convencimento, pela via da publicidade, restringindo-se às próprias entidades credenciadas do sistema monetário e em condições razoáveis e adequadas à legislação de proteção ao consumo. Geraldo de Faria Martins da Costa7, informa que, na França, a publicidade de crédito gratuito é proibida fora dos estabelecimentos de venda (art. 311-5, Code de La Consommation) e é passível de sanção penal. Gláucia Rezende Pereira diz: “Assim, a distribuição geográfica da rede de correspondentes bancários permite estar aonde o brasileiro vai, onde ele trabalha, onde mora, onde faz suas compras. Enfim, estar presente no seu dia-a-dia. Por se encontrar em pontos comerciais diversos, o novo modelo pode oferecer horário expandido, superior ao horário de operação dos bancos tradicionais, muitas vezes oferecendo serviços 24 horas. Esta é ainda a fórmula mais barata e completa de se aproximar dos clientes. Com uma estrutura enxuta, sem luxo, e com custo de implementação, desenvolvimento e manutenção inferior ao dos bancos tradicionais, os serviços oferecidos têm custo menor”8. Ora, se a empresa de finanças não tem condições de operar em determinados lugares, não se pode permitir que haja um credenciamento de outras pessoas jurídicas que pratiquem atos, mesmo que parciais, próprios de um banco. Tal possibilidade leva a uma indiscriminada prática de empréstimos que não atendem aos fins sociais que o sistema monetário teria que proporcionar. 5. CRÉDITO E EMPRÉSTIMO CONSIGNADO: OS JUROS INCONSTITUCIONAIS. Importa referir à divisão dada por Comparato, citada por Cláudia Lima Marques e Rosângela Lunardelli Cavallazzi9, em livro que coordenam, acerca da história econômica da humanidade em três idades: a da troca, a da moeda e, modernamente, a do crédito, para mostrar a importância deste último fenômeno no mercado de consumo. O crédito assumiu importância tal para o mundo moderno, que é tido como “mercadoria” de oferta por José Reinaldo Lima Lopes10, ao prefaciar a obra coordenada pelas juristas acima citadas. E isso ocorre pelo estímulo ao consumo massificado, como conseqüência natural da oferta intensiva, para dar vazão à produção industrial em série11. Se de um lado o crédito se dava com maior ou menor intensidade por algum segmento econômico, em que o consumidor recorria para alcançar bens de maior relevância, tal como um imóvel, hoje ele se dissemina de 7 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. RT, SP, 2002, p. 60-61.. 8 PEREIRA, Gláucia Rezende. A comunicação como fator determinante para apresentar um novo conceito de banco: Lemon Bank. Extraído de http://www.comtexto.com.br/convicomcaseglaucialemonbank.htm em 06.11.08. 9 MARQUES, Cláudia Lima. CAVALLAZZI, Rosângela Superendividamento e crédito. SP, RT, 2006, p. 13 10 11 Lunardelli (coord). Direitos do Consumidor Endividado: LOPES, José Reinaldo Lima. Ob. Cit. p. 06. SCHERAIBER, Ciro E. Mailing Lists e Direito do Consumidor , in “Direito e Internet”, Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo – ano 2 – vol 1 – nº 4, julho/2002, p. 151. Assim nos expressamos acerca do consumo massivo, proporcionado pelo marketing: “A complexidade da realidade e o atendimento ingente de necessidades similares proporcionou a chamada produção em série de produtos e a especialização da prestação de serviços. Em decorrência, novos métodos de comercialização, modernamente chamado de marketing, se tornaram instrumentos de colocação rápida e eficiente de produtos e serviços, donde a publicidade exerce papel destacado”. forma a que o consumidor o utilize para adquirir os mais comezinhos bens do dia a dia, até pelas facilidades de manejo nos dias atuais, a exemplo daqueles operados por cartões de crédito. O empréstimo consignado popularizou, por assim dizer, o empréstimo formal, regulado que foi pela Lei 10.820/03, e representa o carro chefe do dinheiro fácil, por intermédio de contratos de mútuos, em que os juros não são fixados prévia e legalmente, mas giram ao sabor da média praticada no mercado, já que as entidades do sistema financeiro não se vinculam às disposições que limitam o juro legal. E como se dá o mútuo, em ligeiro resumo, em nosso sistema jurídico? No aspecto jurídico, se opera de duas formas: ou pelo empréstimo de quem não tem autorização do Banco Central e o faz com dinheiro próprio, dentro das condições de juros legais que permite a Lei da Usura (Decreto-Lei 22623/33) e do Código Civil (art. 406, c/c 591, 592, I, II e III e 161, § 1º do Código Tributário Nacional), ou porque os mutuantes possuem autorização legal para operar como financeiras ou entidades bancárias, e aí operam com juros da taxa média do mercado, porque permite a Lei que trata do Conselho Monetário Nacional (Lei 4595/64). Mas no empréstimo consignado os juros praticados não são aqueles corriqueiramente pagos pelos bancos aos consumidores, quando tomam dinheiro do mercado, os juros chamados legais de até 1% ao mês, mas os de percentuais bem acima da taxa mensal do juro legal, ainda que às vezes praticados em patamares menores que os lançados nos mútuos convencionais. A partir do momento em que se admite que uma entidade financeira tenha garantias totais de adimplemento do empréstimo, pela consignação em folha de pagamento, de pensão ou dos proventos, não há motivo constitucional para a mantença de percentual acima daquele estipulado na ordem tributária (1% ao mês). Isso porque ressalta evidente o desequilíbrio econômico do contrato. À outorga do crédito não se pode somar os riscos por eventuais inadimplências, ou “calote” como costumam dizer os bancos, porque esse risco é zero. A justificativa, portanto, das entidades componentes do Sistema Monetário Nacional de operar juros livres, que atendam as variações da média do mercado, pelos riscos que operam e que possam repassar, em forma de compensação, alterando para mais ou para menos, conforme a inadimplência, não ocorre nessa modalidade. É certo que essa “variabilidade” de percentual de juros é possível por determinação do Banco Central, autorizado pelo artigo 164 da Constituição Federal que pode “regular a oferta de moeda ou a taxa de juros” com a compra e venda de títulos do tesouro. De tudo, e mirando que a “defesa do consumidor” é princípio da ordem econômica, previsto no artigo 170 “caput” e inciso “V” da Constituição Federal, o tratamento diferenciado, desproporcional e ofensivo à razoabilidade de não limitação de juros a modalidade de empréstimo consignado é inconstitucional, pelas razões já expostas de que não há riscos que justifique um tratamento privilegiado das entidades do sistema monetário. Isto, porque ressalta evidente desequilíbrio econômico do contrato de outorga de crédito, pairando um juro em torno de 5% ou mais ao mês sob responsabilidade do consumidor, enquanto que o risco pela outorga do crédito é zero, já que a Lei 10820/03 determina que a autorização em desconto em folha tem caráter “irrevogável e irretratável”. Essa impossibilidade do consumidor desvincular-se de sua obrigação guarda em si o referido desequilíbrio. Em condições outras, em que o risco total da atividade da outorga recai sobre a entidade do sistema monetário é que justifica a possibilidade de que se operem juros à média do mercado, conforme se componha a justa compensação dos ônus de eventuais inadimplências. Mas, a essência do crédito consignado não se coaduna com juros livres, pois, repita-se não se apresenta a motivação de um risco indeterminado na operação, já que de forma irrevogável e irretratável o devedor autoriza o desconto em folha de pagamento. Desatende, portanto, o princípio da ordem econômica a convenção (o empréstimo) que afronte lei de ordem pública e interesse social (artigo 1º do CDC), até pelo que dispõe o parágrafo único, do artigo 2.035, do Código Civil, que prevê: "Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos." Necessário se faz um limitador de juros no empréstimo consignado porque caracteriza o contrato o equilíbrio entre as garantias oferecidas pelo tomador e as entidades do sistema monetário, pois não poderia ser diferente ante o propósito do princípio de ordem econômica da “defesa do consumidor”, que tem como base os ditames da justiça social. Os juros nos percentuais livres, à medida do mercado, são desarrazoados e desproporcionais e, por isso, não se coadunam com os objetivos de justiça social, portanto. Essa evidente afronta ao princípio constitucional de “defesa do consumidor” deve ser argüido em ações civis públicas e merece ser conhecida em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, para o que deve o agente ministerial representar ao Procurador Geral da República objetivando que ingresse com Adin visando a declaração de que no empréstimo consignado é inconstitucional a possibilidade do exercício de percentuais livres de juros. 6. PUBLICIDADE DO DINHEIRO FÁCIL Mas, o que vem ocorrendo mesmo é o estímulo do empréstimo, dentro da “legalidade”, por empresas autorizadas pelo Banco Central que, utilizando-se de benesses legais – Lei 10.820/03 – tornam disponíveis dinheiro a pessoas em especial assalariadas, que procuram facilidades para obter o crédito. Aí vemos as situações do empréstimo consignado, o carro chefe do dinheiro fácil, nos dias atuais. E como o consumidor é alcançado? Pela recorrente publicidade intensiva. A oferta é convincente, realizada de forma ampla, intensa, generalizada e abrangente, e busca as classes que apresentam maior segurança à operação, tais como os assalariados, funcionários públicos, empregados e, não sem antes ressaltar a classe importante dos aposentados. É comum a oferta facilitada de empréstimos, sem consultas ao SERASA ou SPC, sem a exigência de maiores garantias. Segundo estudo de Casado12 o crédito é absolutamente necessário, a ponto das financeiras mudarem o seu enfoque publicitário, saindo de uma oferta mais contida para uma publicidade mais incisiva, popular mesmo, constatando que quanto mais as pessoas consomem, mais créditos necessitam, dizendo: “Os bancos deram-se conta deste paradoxo e começaram a anunciar crédito, notadamente nos intervalos de programas populares e mesmo através de práticas como o merchandising. Se o consumidor assiste ao anúncio de um produto e não tem como comprá-lo, fica feliz em saber que poderá adquiri-lo com as facilidades que os anúncios dos bancos expõem o crédito. O crédito é comparado a pizza em determinada publicidade. Entretanto, a publicidade de uma mercadoria tão nobre como o crédito, desta maneira, é assustadora.” Mas, se o empréstimo que ocorre dentro da lei em vigência, o acesso fácil ao dinheiro é provocado e as pessoas são induzidas a contratar sem maiores reflexões, porque se submetem a uma massificada publicidade agressiva, com a utilização dos diversos meios, em especial da mídia, e das facilidades que a rede mundial hoje proporciona. 12 CASADO, Marcelo Mello. Proteção do Consumidor de Crédito Bancário e Financeiro. RT, SP, 2000, p. 93. Segundo refere Geraldo de Faria Martins da Costa13, “O consumidor comum não é mais forte que Ulisses que se fez amarrar ao mastro de seu navio para não sucumbir ao canto das sereias. O charme da onipresente sereia publicitária é poderosíssimo. Somos estimulados a comprar cada vês mais. Comprar ‘tudo aquilo de que precisamos, tudo aquilo que desejamos, e mesmo às vezes aquilo de que nem precisamos, e nem desejamos’.”, ao referir-se a Luc Bihl, em seu Consommateur réveille-toi, Paris: Syros, 1992. A publicidade de outorga de crédito, na modalidade consignada, deve ser melhor regulamentada. Regulamentada, no sentido de que comporte maiores critérios que previnam uma oferta agressiva, e restritiva no sentido de informar que haja exclusividade da publicidade da outorga do crédito consignado às entidades de crédito autorizadas pelo Banco Central, quer dizer, que seja vedado o seu exercício por qualquer pessoa jurídica, seja de que maneira for, que não tenha essa condição, em especial pelos chamados “correspondentes bancários”. E mais, que sejam realizadas de forma a não ofender os consagrados princípios da boa-fé objetiva e da equidade, precavendo o consumidor de assumir comportamento inseguro. E tal se dá quando assina contrato em que inexoravelmente o leva ao comprometimento financeiro ou a um endividamento insuperável (v. artigos 37, § 2º; 51, incisos IV e XV, e § 1º, incisos I, II e III, todos do Código de Defesa do Consumidor), comprometendo sua tranqüilidade psíquica e sua qualidade de vida. 7. NECESSIDADE DE LIMITAÇÃO DOS JUROS NA OUTORGA DO EMPRÉSTIMO. Nesse rumo de análise, a dos juros cobrados pelas financeiras, é importante referir que há pretensão de restringir o empréstimo consignado aos bancos oficiais (federais e estaduais), justamente para coibir certos abusos praticados pelos bancos privados. Trata-se do Projeto de lei n. 226/07, de autoria do deputado Felipe Bornier (PHS-RJ), que assevera que a autorização para desconto em folha não reduz os juros, porque há abusos. Explica o deputado: os bancos privados não seguem essa regra e cometem "abusos na estipulação das taxas de juros e na cobrança de encargos adicionais, embutidos de forma camuflada nas prestações dos mutuários". A legislação atual determina ainda que o banco forneça informações aos clientes sobre o valor total financiado; a taxa mensal e anual de juros; os acréscimos tributários; e o valor e periodicidade das prestações. Os juros, no entanto, são praticados de forma elevadíssima, apesar da propalada redução do custo da operação. Não há limite para a estipulação da taxa de juros, já que as financeiras não estão vinculadas aos juros legais que o sistema de tributos impõe, agora aplicável ao sistema de contenção da usura. Logo, para o empréstimo consignado deveria haver uma limitação legal. Ao que vislumbramos, necessária seria a limitação aos juros legais de 1% ao mês, igualando-se a todo limite de juro que é exigido de pessoas físicas ou jurídicas alheias ao sistema monetário nacional. E para tanto deverá haver uma adequação legislativa, senão constitucional. E tal situação é perfeitamente viável, porque a segurança proporcionada pelo sistema legal do empréstimo consignado de desconto nos salários, proventos ou pensões é forte que outro índice só empenha ganho desnecessário das financeiras. 8. SUPERENDIVIDAMENTO. 13 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. RT, SP, 2002, p. 106. O superendividamento ou sobreendividamento é fato jurídico consumado que vem sendo objeto da atenção dos estudiosos, por se caracterizar como uma distorção do mercado, uma anomalia que contamina as boas relações comerciais e empece o consumo. A busca dos aposentados como clientela mais propensa ao crédito consignado tem impactado essa classe, de modo que as estatísticas acerca do fenômeno são robustas14. Veja o que refere o site15 sobre desemprego acerca do endividamento de aposentados: “Editoriais. Agiotagem oficial contra aposentados. Editor-chefe. O Brasil não tem pena de morte, mas o Governo Lula conseguiu uma forma simples e segura de enforcar velhinhos e velhinhas: juntou todos eles e os entregou, como manada, à sanha voraz dos bancos brasileiros. Até a semana passada, segundo “O Globo”, dois milhões de aposentados haviam tomado emprestados R$ 4,8 bilhões em 17 bancos, com taxas de juros anuais de 23% (bancos oficiais) e 40% (bancos privados), para pagamento certo e sem risco mediante desconto direto dos proventos creditados na rede bancária. Os empréstimos consignados de ativos e inativos foram apresentados como um grande programa social do Governo. Na verdade, até aqui, foi o único programa “social” deste Governo que deu certo quase automaticamente.” Aliás, a falta de compromisso com os efeitos do superendividamento é de tal importância que há o projeto de lei n. 27/06 de autoria do senador Paulo Paim, visando estender a concessão de empréstimo consignado aos beneficiários da prestação continuada, regulada pela Lei de Assistência Social. Visa, com isso, atingir as pessoas menos favorecidas, com rendas as mais baixas, a ponto de gozarem de programas assistenciais do poder público16. Finalmente, nestes dias, o Conselho Nacional de Previdência Social 17 elevou de 20% para 30% o índice de comprometimento da renda dos aposentados e pensionistas do INSS, em mais uma demonstração de que o fator endividamento não sensibiliza alguns segmentos sociais com poder de decisão. O superendividamento tem merecido estudos diversos. A atividade econômica baseada nos princípios da valorização do trabalho e da livre iniciativa, conforme estabelece o artigo 170 da Constituição Federal, almeja assegurar a todos existência digna com base em ditames da justiça social. E o recrudescimento das dívidas pessoais, a cujos fatores causais e consequenciais não cabem neste espaço, deve levar a um paradigma de comportamento de todos os elementos da relação de consumo, de cooperação, que implica num dever de renegociação. É o que prega Cláudia Lima Marques, ante o fenômeno do 14 “Segundo dados do Ministério, há cerca de 22 milhões de aposentados e pensionistas no Brasil, sendo que 14,9 milhões estão utilizando o crédito consignado. No fim de 2007, o INSS havia reduzido o limite do comprometimento em função do excesso de endividamento dos aposentados . Os empréstimos ficaram suspensos por quase um mês até serem liberados novamente em janeiro de 2008. Para compensar a redução, o governo também aumentou do prazo de financiamento de 36 meses (3 anos) para 60 meses (5 anos). Extraído de http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/economia/conteudo.phtml? tl=1&id=865616&tit=Aposentado-podera-comprometer-ate-30-da-renda-com-credito-consignado , com acesso em 11.03.2009. 15 Extraído de http://www.desempregozero.org.br/editoriais/agiotagem_oficial_contra_aposentados.php , com acesso em 06.11.08. 16 “Na prática, a proposta de Paim (PLS 27/06) poderá tornar o crédito acessível a um contingente de 2,4 milhões de brasileiros - o universo de idosos e pessoas com deficiência atendidos pelo BPC. No valor de um salário mínimo mensal, esse benefício é garantido aos idosos com mais de 65 anos e deficientes sem recursos para garantir a própria manutenção ou que também não possam ser mantidos pela família. Extraído de http://www.direito2.com.br/asen/2007/fev/6/cas-examinaraproposta-de-estender-credito-consignado-a-beneficiarios, em 12.04.2009. 17 Segundo o que foi extraído de http://www.estadao.com.br/noticias/economia,consignado-de-30-para-aposentados-volta-avigorar,348487,0.htm , com acesso em 12.04.2009, em reportagem de Isabel Sobral – Agência Estado, “ A partir de quintafeira, 2, os aposentados e pensionistas da Previdência Social voltam a estar autorizados a pedir empréstimos consignados em que podem comprometer até 30% da sua renda mensal. Até o início de março, estava em vigor uma norma que limitava a 20% da renda o comprometimento máximo com crédito consignado tradicional (depositado em conta corrente). Outra parcela de 10% da renda só podia ser comprometida se o empréstimo fosse feito por meio do cartão de crédito consignado.” superendividamento, com base em tendência de doutrina européia, mais especificamente alemã 18. Com base nessa tendência, o dever de lealdade e de cooperação, sustentada na boa-fé, tem o objetivo de manter a dignidade entre os parceiros contratuais. Aí se centram os deveres de não onerosidade excessiva e de não cobrança vexatória. Por tudo, o que se prega é a sobrevivência do consumidor leigo, vulnerável, como parceiro a ser resguardado. Inconcebível é a sua morte ou insolvência econômica. 9. CONCLUSÕES. a) Os órgãos de defesa do consumidor (PROCONS, MP, etc.) considerem abusiva a publicidade que oferte qualquer espécie de dinheiro a juros por parte de instituições bancárias ou financeiras na modalidade de empréstimo consignado que não sejam feitas por empresas do sistema monetário nacional, e que tal publicidade atenda ao sistema de proteção ao consumidor, tanto no que se refere à segurança contratual (equidade, boa-fé e equilíbrio) quanto de sua segurança psíquica; b) O Ministério Público, nas ações civis públicas, devem suscitar a inconstitucionalidade da aplicação dos índices médios de juros possibilitados pelo Conselho Monetário Nacional, nos empréstimos consignados que superem aqueles estipulados para a cobrança dos tributos, e representar ao Procurador-Geral da República para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade no mesmo sentido. c) Sugerir ao Congresso Nacional que promova a alteração da legislação pertinente para coibir a intermediação dos chamados “correspondentes bancários”, para que as operações de empréstimo consignado sejam realizadas diretamente pelas instituições bancárias, cerceando-se, com isso, o estímulo massivo da prática. ____________________________________________ 18 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 5ª edição, RT, SP, 2006, p. 1232.