IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos
do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho: Antropologias do sensível: diálogos entre etnografia,
cultura e imaginação
Título do Trabalho: Benzedeiras, saberes e oralidade: a cura através do
dom e da palavra
Lidiane Alves da Cunha - [email protected]
GECOM – UERN
Grupo de estudo sobre culturas populares - UFRN
BENZEDEIRAS, SABERES E ORALIDADE: A CURA ATRAVÉS DO DOM E
DA PALAVRA
Esta pesquisa parte do saber de mulheres que lidam cotidianamente com
o ofício de rezar e benzer e de como, a partir da memória e da poesia oral, as
mesmas resgatam seus conhecimentos e transmite-os através da voz,
construindo a poesia oral através da palavra, narrações e ensinamentos. A
construção desse saber leva em conta as experiências e vivências ao longo de
suas vidas até a presente maturidade. Assim, buscamos reconstruir a partir da
memória social, os saberes apreendidos cotidianamente formando o que
Anthony Giddens chama de guardiões, presentes na condição de duas
mulheres: uma benzedeira católica e uma mestra juremeira.
Por meio da memória destas guardiãs, esses saberes foram adquiridos,
transmitidos e reconstruídos. Isto porque, a transformação do dom em palavra
e, por sua vez em histórias (Clarisse Estés) guardam a gênese de um
aprendizado transmitido por diversas gerações, de uma mulher mais velha à
mais jovem e futura guardiã deste saber, partilhando de uma dinâmica
essencialmente instrutiva marcada pela oralidade.
Este artigo partiu de um projeto de pesquisa PIBIC – UERN, intitulado
Guardiãs do saber: memórias de mulheres sábias
Sabendo que na memória familiar estão contidas a memória social e do
grupo (Eclea Bosi), buscamos também analisar os instantes de transferência
desses saberes tradicionais, considerando que esse aprendizado está
intimamente ligado aos fazeres cotidianos a partir dos quais é construída a
autoridade destas. Assim, exercitando a metodologia de “escutadores infinitos”,
esperamos compreender a partir da memória destas mulheres como as mesmas
construíram esse saber a partir da vivência de sua religiosidade.
Diante de uma multiplicidade de significações simbólicas presentes na
cultura popular, destacam-se no universo feminino, figuras que são frutos da
hibridação cultural brasileira: as rezadeiras, as benzedeiras e as curandeiras.
Todas partilham da figura arquetípica da mãe e do dom de cuidar. Donas de um
conhecimento simbólico, mítico e mágico, elas habitam e participam uma
socialidade, simultaneamente, real e imaginária. Isso se afirma na medida em
que são procuradas pelos membros de sua comunidade para prestarem seus
serviços, apesar do eclipse existente sobre seus conhecimentos
Por meio da palavra ou por meio da memória destas guardiãs, esses
saberes foram adquiridos, transmitidos e reconstruídos. Isto porque, a
transformação do dom em palavra e, por sua vez, em cura, não muito diferente
de outras práticas como cordel e repente, materializam-se a partir do momento
em que são pronunciados. Assim, o instante
“é o verbo que se faz na boca do poeta; é a palavra que se
pronuncia a si mesma para se fazer comunicante por meio de
quem fala e ouve. É tão surpreendente que o próprio poeta,
geralmente,
se
encanta
com
o
que
ele
mesmo
diz
improvisadamente. A alegria de ser surpreendido pela própria
palavra que é falada“ (SIQUEIRA: 2010).
O objetivo é alcançarmos essa fonte de saber que, uma vez pronunciado,
passa a depender da memória do entorno para existir, mas que desprezados
pelos dados oficiais vem se extinguindo em nosso tempo, ao passo que
enriquecem a fonte que nunca seca: a memória.
Buscamos reconstruir nesta análise teórica, um método de aprendizado
típico dos mestres de ofício, em que o aprendiz partilha de experiências à medida
que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício num artesanato intelectual
que une experiência pessoal e reflexão (WRIGHT MILLS: 1975). Sabendo que
na memória familiar estão contidas a memória social e do grupo (ECLEA BOSI:
1987), buscamos também analisar os instantes de transferência desses saberes
tradicionais, considerando que esse aprendizado está intimamente ligado aos
fazeres cotidianos, diferentemente do nosso sistema oficial de ensino, e
construindo-se a partir da experiência e sociabilidade.
Interessa-nos não somente a memória ou o rezar, cuidar e curar, mas sim
sobre as memórias de mulheres que, como guardiãs desse saber, narram a
história social do grupo a que pertencem, muito embora saibamos que nos dias
de hoje, vêem decrescer a procura por esse saber, já que, tragicamente o
homem está perdendo o diálogo com os demais e o reconhecimento do mundo
que o rodeia, quando é nele que se dá o encontro, a possibilidade, gesto mais
supremo desse ser chamado homem (SABATO: 1995).
Queremos desvendar a essência existente por trás da palavra, pois mais
do que o significado literal, as palavras têm o poder de simplesmente encantar,
sem a necessidade de possuir uma função definida. O indizível, aqui, é mais
valorizado que uma frase que informa sem emocionar. As palavras, nas
memórias reinventadas (BARROS: 2008), voam livres sem obedecer a regras
que, por fim, podem assassinar seu encanto.
As perturbações/enfermidades/problemas que exigem o trabalho destas
mulheres não constam do rol da Medicina científica. As benzedeiras alegam que
existem “doenças de médicos” e “doenças de benzedeiras”. Essas doenças das
quais se ocupam são mais do que conjuntos de sintomas e de sinais físicos. Elas
se caracterizam por possuírem uma série de significados simbólicos –
psicológicos, sociais e morais – para os membros de grupos sociais específicos.
As doenças curadas pelas benzedeiras se configuram como perturbações
que atingem não apenas o corpo, a esfera física, mas estão relacionadas a
questões sociais, psicológicas e/ou espirituais que afetam a vida cotidiana como
um todo (SANTOS: 2007). Elas explicam seus serviços em termos culturais mais
amplos, mais familiares, envolvendo os aspectos social, psicológico e espiritual
da vida de seus pacientes - enquanto os médicos concentram-se principalmente
na doença física e nos patógenos ou nos comportamentos que supostamente
causam as doenças (AMORIM: 2000). A palavra, é portanto, o meio através do
qual realizam o dom, transformando-o em cura e transmitindo aos seus ouvintes.
Ao discutir os efeitos de práticas mágicas em diversas culturas, Claude
Lévi-Strauss debruça-se sobre a eficácia destas práticas. Aponta, entretanto,
que
a
eficácia
da
magia
implica
em
aspectos
interdependentes
e
complementares: a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; a crença do
enfermo no poder do feiticeiro e a confiança e as exigências do grupo social.
Relata três casos que embasam seu argumento:
1. Os nambikwara (acontecido no Brasil em 1938) – as duas versões para o
desaparecimento do feiticeiro (pp.195-198);
2. O menino-adolescente que é acusado de enfeitiçar e defende-se com
versões cada vez mais elaboradas do feitiço (Os Zuni do Novo México pp.199-202);
3. Quesalid – (pp.202-206) – de descrente a feiticeiro. Ainda aprendiz,
manutenção de uma atitude crítica. O sucesso junto a uma tribo vizinha e
o desespero dos xamãs estrangeiros, com as primeiras dúvidas de
Quesalid. O retorno à aldeia e o desafio vencido por Quesalid que implica
na morte do velho xamã de um clã vizinho. Quesalid prossegue na carreira
e torna-se menos radical no seu ceticismo, passando até a acreditar na
existência de xamãs verdadeiros.
Podemos portanto elencar, para Levi-Straus, três elementos que
compõem o complexo xamanístico de cura:
1. Os dois polos do complexo xamanístico (i. a experiência íntima do xamã;
ii. O consensus coletivo);
2. O espetáculo que o xamã oferece ao grupo: abreação (psicanálise);
A questão concentra-se na relação entre os pensamentos normal e
patológico e a necessária colaboração entre feiticeiro, doente e público para
estabelecer uma situação de equilíbrio em que se elabora uma estrutura, um
sistema de oposições. Os xamãs, do mesmo modo que seus colegas civilizados,
curam pelo menos uma parte dos casos de que cuidam por uma eficácia relativa.
Acreditamos nos médicos de hoje por causa de seu mana, sua reputação. O
xamã cura, segundo Strauss, porque é tido como um grande feiticeiro. Quesalid
não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, ele curava seus
doentes porque tinha se tornado um grande feiticeiro. Este é o polo coletivo do
sistema.
Para Lévi-Strauss, o par feiticeiro-doente encarna concretamente para o
grupo um antagonismo próprio a todo o pensamento. O paciente aparece como
passivo, alienado; o feiticeiro é atividade, extravasamento de si mesmo. A
relação entre estes dois pólos opostos vai ser a cura, assegurando a passagem
de um a outro, manifestando, numa experiência total, a coerência do universo
psíquico, este projeção do universo social. Nessa perspectiva, percebemos que
as interpretações divergentes não são evocadas pela consciência individual,
mas antes como fatores complementares de uma consciência coletiva. A magia
do processo readapta ao grupo problemas pré-definidos por intermédio do
doente.
De acordo com Luc Boltanski, um outro elemento vai também compor o
prestígio dos curadores, em particular, as benzedeiras, e passa pela proximidade
do modo de vida de seu paciente, apesar de sua especialidade para a cura.
Assim,
“de maneira mais geral, o que, aos olhos das classes populares,
confere ao curandeiro o essencial de seu valor é que mesmo
sendo o curandeiro um especialista qualificado para identificar e
curar a doença, ele é ainda assim um membro das classes
populares, de cujo modo de vida e de pensamento ele ainda
participa. E, de fato, contrariamente ao médico, o curandeiro
pertence à mesma classe que o doente, na maior parte do tempo
exerce como ele uma profissão manual, frequenta o mesmo
meio social, e é frequentemente recrutado dentro da família ou
do círculo de relações. Se os membros das classes populares
falam com admiração da ciência do curandeiro, insistindo ao
mesmo tempo no caráter inato de sua ciência, não sendo o
conhecimento deste, como o do médico, resultante de um
aprendizado escolar, mas a consequência de um “dom”, é
porque o curandeiro, sábio que nada aprendeu e que,
permanecendo no meio dos ignorantes, iguala ou ultrapassa o
médico, faz com isso uma espécie de vingança de classe:
fornece a prova de que o médico, e dá o exemplo de um profano
que, por uma espécie de virtude intrínseca ou escolha, tornouse dono do discurso médico” (1979:p.44).
No caso da benzedeira, esta aprende o ofício e acredita nos benzimentos
como meio de cura (ASSUNÇÃO: 2006). Seus cuidados transmitidos em
palavras envolvem e requerem atenção e toque, além de remédios e banhos à
base de plantas. O enfermo que a procura acredita que ela tem o “dom” de curar,
pois o recebeu de Deus. A opinião coletiva reforça a crença no poder de cura
das benzedeiras, pois a prática da benzeção faz parte das tradições culturais do
grupo e tem eficácia simbólica para seus membros, pois como lembra Halbwachs
(1990), fazem parte da memória coletiva destes indivíduos porque estão em suas
consciências coletivas.
Este trabalho diferencia-se dos demais trabalhos existentes justamente
por partir da palavra destas guardiãs como ofício, guardada na memória. Nas
poucas pesquisas existentes sobre essas práticas, quase sempre reforçam-se
os depoimentos dos adeptos (que mesmo compartilhando da visão dessas
mulheres sobre essas enfermidades/perturbações e práticas de cura, não são
em si os detentores desse saber) ou mesmo a oposição a tais práticas
(GOFFMAN: 1975). O discurso etnológico, segundo o qual um “objeto é mais um
discurso sobre a tradição, sobre a obra da voz do que a tradição e a voz que a
transmite (ZUMTHOR:2010, p. 43).”
Mesmo quando admitidas como donas do oficio, suas falas são sempre
transmitidas a partir da interpretação do pesquisador e servem muito mais para
corroborar hipóteses e argumentos do que ouvi-las como detentoras desse
saber. Daí a necessidade de fazermos, no dizer de Geertz (2002), uma pergunta
básica: “de quem é a vida afinal?”, atentando para o fato de estarmos ali e não
sermos o detentor deste saber, por mais familiar que nos seja.
Enquanto prática aparentemente em desuso, a memória seria o lócus
privilegiado desse saber transmitido. Em alguns trabalhos, estas sequer são
identificadas por seus nomes próprios, denunciando o preconceito inerente a
algumas áreas de conhecimento sobre essas práticas. Nesse sentido, a
originalidade de trabalhar a memória e a autobiografia destas mulheres atribui o
caráter de minimizarmos as interpretações de observadores de um dom que por
si só é a palavra proferida, que cura e acalenta. Buscamos a resiliência presente
nas palavra destas mulheres, em que, como lembra Boris Cyrulnik (2009), “no
fim da frase, já não somos como éramos antes”.
Neste sentido, é preciso compreender como a palavra falada por
mulheres com o ofício de rezar, benzer e curar podem acessar outros níveis de
realidade, de entendimento e atingir a dimensão do “milagre” na vida cotidiana.
Assim,
É na condição de resistência que a benzeção deve ser vista.
Não como um resquício de formas antiquadas de curar, algo já
superado pela ciência moderna. Mas como um ato de
resistência política e cultural feito como alguma coisa própria,
através de uma cultura que contesta e rejeita a linguagem da
opressão, da dominação e da exploração entre os homens.
Deve ser vista como uma singela contribuição para um novo
projeto de mundo. Contribuição vinda de um grupo de pessoas
que está ao lado dos oprimidos, identificando-se com a sua luta
e com os seus sofrimentos. E mais do que isso, dando a eles
uma explicação e um sentido próprio. Contribuição vinda de um
grupo de pessoas que ainda não passou pelo processo de
desumanização que acompanha o enriquecimento de bens
materiais numa sociedade hostil como é a nossa (Oliveira:
1983).
Compreender como essas mulheres tornaram-se guardiãs desses
saberes mágicos, míticos, orais, tradicionais numa sociedade caracterizada pela
técnica, pela informação e pelo conhecimento tecnológico é sem dúvida um
grande desafio, assim como observar o poder da palavra que é saber, é dom e
é memória a partir do ofício das quais são guardiãs. É preciso reconstruir a
aquisição das palavra-saber através da memória oral, haja visto que além da fé
e da confiança à elas destinadas, as orações constituem-se a partir da palavra.
A mensagem poética, para se integrar na consciência cultural do grupo, deve
recorrer à memória coletiva. “A oralidade interioriza assim, a memória, do mesmo
modo que a especializa. A mensagem transmitida pela boca é compreendida na
medida que se desenvolve concreta e progressivamente (ZUMTHOR:2010, p.
42)”. Podemos ver isto em algumas orações proferidas no ato do benzimento
pelas benzedeiras:
Benzer de quebrante
Todas às vezes em que for benzer alguém iniciar com as
orações do Pai Nosso e Ave Maria.
À Nossa Mãe Maria Santíssima e a Nossa Mãe Maria Virgem
pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Deus te fez, Deus te criou, Deus te batizou, Deus te crismou e
Deus te consagrou.
Deus te salve cruz bendita, lá no céu ta escrita (3x).
Deus te salve casa santa lá no céu foi escrita (3x).
Deus e a Jesus que cure seus filhos e suas filhas (nome da
pessoa)
Quero que Deus dá o poder de curar o mal ruim que está em
(nome da pessoa)
Ar da noite, ar do dia, ar das estrelas, ar da lua, ar do sol, ar do
dia, ar do tempo, ar das águas, ares preto, ares branco, ares
amarelo. Benzo (nome da pessoa) de quebrante, mal olhado e
vento virado.
Com dois eu lhe pus, com três eu lhe tiro, quando Deus pai,
Deus Filho, Deus espírito Santo. Amém.
Nossa Senhora saiu para o mundo curando três mal, curando
de feitiço, malefício, inveja, invição e olho ruim.
Com dois eu lhe pus, com três eu lhe tiro, com Deus Pai, Deus
Filho, para sempre e Amém. Jesus.
(Nome da pessoa) Em redor de _____________________ tem
três conquista: São Pedro, São Paulo, São João Batista que
defende do veneno, do feitiço, malefício, inveja, invição e olho
ruim.
Com Deus eu lhe pus, com três eu lhe tiro, com Deus Pai, Deus
Filho para sempre e Amém Jesus (3x). (Relatório de pesquisa
PIBIC UERN - 2012).
Observa-se que a benção é feita com galhos de guiné, alecrim ou ramo
verde, havendo também a indicação de banhos, chás e a utilização de outros
tipos de cura dependendo do mal atribuído, como por exemplo, espinhela caída
(arca caída), quando as benzedeiras usam fitas para constatar e posteriormente
executam gestos característicos para pôr o tal “ossinho” no lugar. Os chás e
banhos de ervas medicinais também são, muitas vezes, receitados. As ervas
podem ser benzidas, o que torna sua eficácia ainda maior. Um emplasto com
sumo folhas com sal é tiro e queda para destroncado; também pode-se tomar o
sumo da erva que age como anti-inflamatório. O chá de rosa branca é ótimo para
o útero e doenças relacionadas a essa parte do corpo da mulher. O chá de ervadoce é recomendado para espinhela caída e age, também, como calmante. Mas
mesmo com todos esse aparato, não se abdica da voz enquanto elemento
gerador da cura, através das orações.
A origem de muitas rezas pode ser puramente religiosa, ou fruto de um
hibridismo de religiões, ou mesmo de um misto entre conhecimento popular com
práticas religiosas. Em geral, as rezadeiras se dizem católicas, mas muitas
recebem influência de crenças espíritas, como as das religiões afro-brasileiras e
dos rituais indígenas. A cultura das rezadeiras, como é conhecida no Brasil, não
se trata apenas de uma tradição nacional. Ora, toda oralidade aparece como
sobrevivência, reemergência de um antes, de uma origem. Não há oralidade em
si mesma, mas diversas estruturas de manifestação simultâneas, mostrando
como o homem se situa em relação a si e em relação ao outro.
A reza, a oração, o ato de impor as mãos (providas ou não de objetos sagrados
como crucifixos, livros sagrados, ervas, entre uma imensa variedade de coisas)
é comum em muitas culturas ocidentais e orientais. Haja visto alguns rituais
budistas, hindus; e mesmo entre evangélicos a cultura das orações por meio da
imposição das mãos não deixou de existir. Também há a força da oralidade
presente na poética de suas orações. Prova disso é que a sonoridade da
pronuncia, quase sempre rimadas, confere um poder mágico, fruto da poesia
oral que carregam (ZUMTHOR: 2010). Embora gravadores modernos possam
restituir a autoridade da voz, perdem em performance, já que esta é “ação
complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora,
transmitida e percebida (Idem p.33). Une o locutor ao autor, situa a tradição.
A voz constitui no inconsciente humano uma forma arquetipal:
possibilidade que ativam e estruturam em nós as experiências primeiras,
pensamentos e sentimentos. É possibilidade simbólica aberta à representação
que constrói uma herança cultural transmitida e que faz vibrar e dizer “não
estamos sozinhos” (Jung apud Zumthor:2010, p.13). Como podemos ver nas
orações a seguir, “uma mensagem não se reduz ao seu conteúdo manifesto,
mas comporta um conteúdo latente, constituído pelo médium que o transmite
(Idem, p. 36)”:
Benzeção para dor de cabeça:
Jesus Cristo andando pelo mundo
encontrou São Clemente sentado numa pedra se lastimando
- O que sente, Clemente?
- Dor de cabeça, Senhor!
Assim como São Clemente não mente
essa dor de cabeça não há de ir em frente!
(Orações colhidas em entrevista à Benzedeira católica, Relatório
Pibic – UERN 2012).
Para além da rima, há um poder gerador presente na voz, algo que
nenhuma transcrição poderia transmitir, pois a voz ultrapassa a própria palavra,
diante da performance e da percepção doa ato em si que é cultura, é memória,
é o “sopro criador”. A repetição ritmada de suas orações, assim mesmo,
pronunciadas baixinho enquanto erguem seus ramos, nos conduzem há um
instante que vai além dos códigos linguísticos. Estes são impensáveis sem a
voz. Assim, para Paul Zumthor, “a voz não traz a linguagem: a linguagem nela
transita, sem deixar traço. Ora, a voz ultrapassa a linguagem”. Compreender a
poesia oral não é tarefa fácil, haja visto que só o instante, a presença, pode
instigar a observação desse poder. É portanto na oralidade que reside o poder
da benção, já que “cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a
energia deste sopro, com o otimismo da matéria, converte a questão em anúncio,
a memória em profecia (...) por isso a voz é palavra sem palavras (2010, p. 12).
Assim, aquilo que guardamos da experiência da benzeção é o ato simbólico que
a própria enunciação da palavra representa. A voz é exibição e dom,
performance e vocalização capaz de ligar interiormente, sem mediação, duas
existências. Na reza a seguir, pronunciada em primeira pessoa, unem-se o
desejo de quem benze e a graça a ser alcançada por quem a busca:
Sou perfeita alegre e forte,
tenho amor e muita sorte
sou feliz e inteligente, vivo positivamente
tenho paz, sou um sucesso, tenho tudo que eu peço.
Acredito firmemente
No poder de minha mente
Porque tenho Deus no subconsciente.
Assim seja!
(Relatório de pesquisa PIBIC UERN - 2012).
Da mesma forma, podemos considerar a voz e os gestos como símbolo
da energia vital necessária para restabelecer o doente, e que a benzedeira
experiente sabe transferir em seu ritual. Aproxima-se à definição de Juana Albein
dos Santos sobre a energia vital do sistema dinâmico do candomblé, no sentido
de que “é a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer
e o devir. É o princípio que torna possível o processo vital. É uma força que só
pode ser transmitida ou pela introjeção ou por contato” (2012, 40). As folhas são
também portadoras dessa energia e por isso estão presentes nestes rituais. Daí
a importância do conhecimento e do desenvolvimento dos dons de quem deseja
manipular essa energia, sobretudo para a cura. Por isso que além dos
conhecimentos das ervas e plantas e sua utilidade, essas mulheres são hábeis
no falar e desfrutam de status em suas comunidades.
Mesmo assim, existe um paradoxo da voz, que marca todos os trabalhos
que usam a oralidade como fonte: a voz, como um acontecimento do mundo
sonoro, escapa à captação sensorial. É necessário metodologia específica para
captar tais significados. Retomando Zumthor, podemos dizer que está na voz
dessas mulheres a manifestação do dom, do saber, da memória, a cura. Essa
voz é “consciência que será habitada pelas palavras, mas que verdadeiramente
não fala nem pensa; que simplesmente trabalha ‘por nada dizer’ (2010, p.14).
Essa imagem arquetipal, de um corpo vocal, reside nas fontes antropológicas do
imaginário. A voz se sujeita à linguagem, na busca de uma outra liberdade.
Simplesmente, “o simbólico vai invadir o imaginário (idem, p. 18)”.
Nesta primeira parte de nossa pesquisa, buscamos compreender este
universo partindo destas constatações, e com a continuidade, partimos para
colher as memórias deste ofício que demonstra-se mais complexo do que
costumamos observar, esperando encontrar ali a transmissão destes
conhecimentos e como se deu a iniciação destas como curadoras.
Afirmamos assim, que as benzedeiras executam os saberes da cultura
popular já não acessíveis a qualquer um, posto que cada vez mais distanciamonos dos saberes tradicionais. Para Jerusa Pires Ferreira, “o mestre de um ofício
é sempre um sabedor, é alguém bastante diferenciado que encarna um
semideus, um pactuante com o sobrenatural, um detentor de um tipo de
liderança, sobretudo por ser aquele que transforma, que inaugura um novo
estado cultural. É da sua memória que se projeta a construção do mundo (1996,
p. 103).
Assim, podemos defini-las como “Cientista popular e médica popular que
possui uma maneira muito peculiar de curar: combina os poderes místicos da
religião e os truques da magia aos conhecimentos da medicina popular.”
(OLIVEIRA: 1985).
Não se trata aqui de trabalharmos através de amostragem, mas de
usarmos a história de vida como um método através do qual reconstruímos a
trajetória dessas mulheres, analisando a construção de saberes dos quais são
guardiãs. Por isso, Eclea Bosi será a grande base do referencial metodológico,
posto que é através de seu trabalho “Lembranças de Velhos” que
mergulharemos na busca de técnicas que subvertem a relação sujeito e objeto.
Enquanto pesquisador, ao trabalhar a memória dessas narradoras, sou sujeito
quando procuro saber e sou objeto quando me coloco como meio para transmitir
suas memórias, que só se expressam quando contadas. Passamos a fazer parte
de uma condição diferente do início da pesquisa, porque ao entrarmos nas
memórias destas mulheres, partilhamos do que esta autora chama de
“comunidade de destino”, em que inevitavelmente somos levados a “sofrer de
maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino
dos sujeitos observados” (p. 38, 1995).
Mais que isso, procuramos ir além da ideia de voz subalterna (nativo), que
não recebeu a devida atenção. O desafio é buscar construir representações que
comportem o meu lugar e o do outro, com este problematizando-se,
reconstruindo e avaliando o exercício do pesquisador, partindo de uma base
comutativa de olhares em que acompanha-se a voz do outro e deixa-se que ele
teça sua própria história (CARVALHO: 1989).
Buscamos o método de Edgar Morin, na certeza de suas palavras quando
afirma: “A minha pesquisa de Método parte, não da terra firme, mas do solo que
desmorona” (1998). Assim, a pesquisa, com abordagem qualitativa, incluiu a
além da história oral e de vida como também a observação participante em rituais
de cura e entrevistas com benzedeiras e membros da comunidade. Lembramos
que a matéria de nossa pesquisa é essencialmente a fala, a autobiografia de
nossas narradoras e suas observações que pela própria condição de guardiãs
são tão penetrantes que não poderíamos suplantar em precisão numérica aquilo
que buscamos em profundidade. O método apontado não procura uma
amostragem, mas sim o corte temporal e a singularidade de seus ofícios. Não
são importantes somente em si, mas sobretudo pelo que elas tem em comum:
mulheres idosas que dedicaram a vida na construção desse ofício e no serviço
à vida em comunidade.
Não podemos esquecer que a linguagem se reproduz dentro do universo
da cultura, trazendo em si algo que vai além da palavra: a voz. A vocalidade é
oralizada e vai além do som, pois inclui o corpo. Assim, a palavra, o som e o
corpo irão compor a vocalidade. É neste sentido que a poesia oral é fala que
comunica e transmite a existência do mundo da cultura, sinônimo da exist6encia
e do mundo que comunico. A oralidade será aqui entendida como comunicação
poética que passa pela voz e ouvido. Interessa-nos não apenas os instrumentos
linguísticos, mas os elementos da cultura.
Sabemos, no entanto, que a poesia oral não é bem vista pela academia,
sendo tratada sempre como folclore ou cultura popular e quando é produzida por
populações tradicionais, ainda interessa aos etnólogos e folcloristas. No entanto,
a poesia oral não é sobrevivência ou reminiscência, mas é encontrada em todo
o mundo e em todas as épocas, ultrapassando a forma e tendo na voz, o universo
da cultura como fundo. A poesia oral está em constante transposição entre o oral
e o escrito, e não há o puro. Tanto que muitas orações, apesar da necessidade
de serem proferidas nos rituais de cura, são guardadas pelas benzedeiras
transcritas em cadernos ou mesmo em santinhos, que foram herdados ou
aprendidos com o tempo e que são cuidadosamente guardados em segredo. A
poesia reside não na expressão oral de um poema, mas sim o conteúdo que
produz a cultura do sujeito, que está em sua vida.
Para tanto, partiremos do ato primordial da pesquisa: o escutar. O ideal,
como nos diz Bosi, seria exercermos o dom de “escutadores infinitos” como
ferramenta principal de pesquisa. Em cada visita em Mossoró, Areia Branca e
Angicos, em suas casas (lugares onde sempre recebem suas dezenas de
afilhados, comadres, compadres, filhos de santos ou simplesmente vizinhos
procurando suas palavras mágicas e o universo encantado do saber ancestral),
executamos o que Roberto Cardoso de Oliveira (1998) chama de ofício de
Antropólogo, mas que deve ser estendido a todo pesquisador em Ciências
Humanas: olhar, ouvir e escrever.
Para que ferramentas de aparente simplicidade (BENJAMIM:1986), sejam
suficientemente eficazes é preciso a leitura e domínio de textos que abordam
essa discussão. Partiremos da incorporação desses saberes não só como
ilustração, mas como diálogo, buscando ser dialógicos. Sobretudo porque esses
saberes não foram cristalizados, já que a tradição permanece porque é passível
de transformação. É aquilo que se busca no passado para afirmar que ele existe
(CARVALHO:1989). Além disso, atentamos para o novo presente nessa
realidade, o convívio com a medicina ocidental, a busca por seus serviços na
atualidade. Isso porque não é possível compreender a tradição sem
compreender a inovação, já que esta é um conjunto de elementos simbólicos
que os grupos constroem a partir do presente para criar significados, dando
forma e vida ao passado (seleção). A tradição reificada pela experiência é
resultado da memória social e observamos isto no cotidiano das mulheres
entrevistadas na pesquisa.
Mas uma vez, pelo desafio da pesquisa interdisciplinar, não nos
restringimos a referências correlatas à determinadas linhas de raciocínio, mas
procuramos adotar leituras que treinassem nosso olhar para, diante de tão
sábias narradoras, darmos conta da tarefa de colhermos suas memórias, tarefa
que por si exige conhecimento e sensibilidade e uma relação explícita com esses
saberes já que, acreditamos, assim como José de Souza Martins, que
Só é possível entender o saber do povo através do compromisso
com a sua causa, com a sua luta, com a sua vida, com a sua
esperança. Só há objetividade quando há esse envolvimento
profundo e intenso, quando há um destino comum. O resto é
ilusão, ainda que bem elaborada pelo nosso treino profissional
para nos enganarmos a nós mesmos e nos justificarmos diante
daqueles
que
oprimimos,
fazendo-os
objeto
de
nosso
profissionalismo. Desinibição a gente precisa é para produzir
juízos de suposta realidade, que se baseiam em mal explicitados
cânones científicos, que falseiam e violentam a realidade social
excluindo a nós pesquisadores dessa mesma realidade,
produzindo a nossa esterilização ética, para criar em nós e nas
nossas vítimas a ilusão de que não somos deste mundo e que
por isso o que dizemos é verdadeiro." (MARTINS apud
BRANDÃO:1980, p. 13).
Assim, não procuramos esgotar a bibliografia sobre o tema posto que
envolvem múltiplos olhares, mas pensamos em referências que considerassem
o que o alerta que Clarissa Estes nos faz em “Mulheres que correm com Lobos”:
“uma bibliografia não deveria ser uma lista enfadonha. Ela não tem a intenção
de ensinar a uma pessoa como pensar, mas procura fornecer a cada uma temas
interessantes em que pensar, tentando mostrar-lhe o maior número possível de
ideias, portanto de opções e oportunidades. Uma boa bibliografia aspira a
oferecer imagens panorâmicas do passado e do presente que sugerem visões
claras para o futuro”.
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Lidiane Alves da Cunha
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