O conceito de Estado como orientação normativa da organização estrutural e
das relações de poder no Brasil republicano
Eduardo Barcellos1
Resumo
Este artigo deita atenção aos atores-autores que influenciaram diretamente a construção republicana brasileira,
formulando a normatividade que viria a informar a estrutura organizacional do Estado, direcionando as relações de
poder num determinado sentido, ainda atuante na política nacional. No intento de aprofundar a questão do Estado, o
conceito a ele relativo sustentado pelos atores-autores é exposto em síntese, contemplando as abordagens daqueles que
até o governo de Fernando Henrique Cardoso atuavam diretamente na elaboração da diretriz governamental. Veremos,
então, uma ideia de Estado incapaz de assumir os movimentos dinâmicos da sociedade, fechando a Política
exclusivamente no processo político, negando sua realidade fenomênica social – resultando em instituições
incompatíveis com a sociedade brasileira, impermeáveis à contemporaneidade.
Palavras-chave: Estado; sociedade; normatividade; relações de poder; República.
Introdução
Uma República, mesmo que incapaz de firmar um imaginário próprio na nação em processo
de construção2, buscava consolidação e legitimidade. Grupos diversos articulavam a estruturação
legal da nova ordem. Segundo interpretação de Carvalho (2005, p.120), era inviável tal
consolidação respeitando o requisito de legitimidade3, sendo a experiência da República Velha no
Brasil um caso original, ao passo que não tinha povo, sendo este “na maior parte hostil ou
indiferente ao novo regime”. Ausência de correspondente societário que as duas “linhagens”
principais do pensamento político brasileiro compartilhavam em entendimento, variando a leitura
sobre o problema.
1
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ver Carvalho, 1990.
3 Legitimidade perpassa toda a ordem estatal, não apenas os principais órgãos políticos de poder. Como coloca Faoro
(2007, pp.207 e 247), “a legitimidade [...] supõe que, por meio dela, atue a comunidade social, dotada de autoridades,
que atuam com o apoio dos governados, decisivo para a continuidade política nas horas de crise. É a legitimidade e não
a justificação do poder que resiste, renovando-se no retorno à consulta popular”.
2
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Essas linhagens foram caracterizadas por Oliveira Vianna como idealismo constitucional e
idealismo orgânico. Embora não haja um enrijecimento estanque entre linhagens, muitas vezes uma
flertando com a outra em aspectos específicos, por vezes metodológicos, elas se manifestam com
características particulares. Brandão (2007) defende que essas linhagens não se limitam aos
idealismos formulados por Vianna. Novos atores-autores surgiram ao longo da história,
dinamizados na consolidação de uma sociedade de consumo, ora revitalizando leituras ou
conservadoras ou liberais pré-existentes ora formatando novas leituras de caráter anti-aristocrático,
mesmo que em débito com análises anteriores. O autor pontua:
Embora idealismo orgânico” e “idealismo constitucional” sejam as mais antigas e
permanents, não são obviamente as únicas existentes: qualquer exame do conjunto do
desenvolvimento intelectual e ideológico não poderá ignorar aquelas socialmente
minoritárias – embora intelectualmente influentes – e marcadamente antiaristocráticas,
que só podiam ter sido produzidas em uma sociedade revolvida pela generalização do
trabalho assalariado, pela urbanização e pela industrialização. (Brandão, 2007, p.37)
Nada obstante, se assume aqui que há uma raiz dominante no pensamento político brasileiro,
que ainda pauta a normatividade estabelecida.4 Ela conjuga em si o que perpassa, através de
entrelaçamento por afinidade, ambos os idealismos – crença no poder da letra da lei e orientação
estatal, seja para fortalecer o Estado seja para limitá-lo. A formulação prática é de uma orientação
que acredita formar (ou mesmo criar) através de si a sociedade, com o auxílio do direito positivo.
Mantenho, portanto, a apresentação segundo as “linhagens” de Oliveira Vianna, que se fazem atores
na construção factual da organização estrutural do Estado republicano brasileiro.
A diferença principal entre os dois idealismos se dá na interpretação da questão social para
instrumentalização política. Comecemos pelo idealismo orgânico.
A “ausência de um povo” no transcorrer da edificação republicana5 foi argumentada por
Oliveira Vianna (1987) como sendo o resultado do método empregado na alteração da estrutura e da
mentalidade – o método liberal. Para o eficaz desenrolar deste, segundo o autor, uma sociedade
liberal seria elemento angular, tendo em vista a decorrente liberdade delegada ao povo em “executar
4
A pluralidade do pensamento não elimina eventual dominância de certa corrente e/ou agrupamento.
Desnecessária se faz a incursão pelo debate da supressão societária ante as instituições nos distintos momentos da
história político-social brasileira, tendo em vista o objetivo e limites do presente texto. Para um aprofundamento, ver,
entre outros, Carvalho (2003; 2006), Faoro (2001), Holanda (2006), Ribeiro (1995), Santos (1987), Souza (2000). O uso
da obra de Oliveira Vianna tem caráter instrumental para a linha argumentativa aqui desenvolvida.
5
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 ele mesmo, espontaneamente, a inovação pretendida pela política que o Estado adotou ou
planejou”6. O problema residiria na inexistência de tal sociedade na época, abrolhando “conflitos
culturais” enquanto persistisse o método escolhido. Nas palavras do autor, “nenhuma reforma social
ou política tem possibilidade de vingar e realizar-se praticamente se não tem base nas tradições do
povo-massa, ou se esta reforma obriga este povo-massa a uma atitude nitidamente contrária às
atitudes consagradas nos seus costumes”.7 O liberalismo não se fazia parte integrante da tradição,
nem dos costumes. Conforme coloca Carvalho (2003a, p.83), faltava “uma ampla sedimentação da
cultura da liberdade e da igualdade, que ancorasse o republicanismo na base da sociedade, e não
apenas no edifício institucional”. A solução prática para solucionar esse problema seria a criação de
tal sociedade pelo Estado forte e autoritário, gerando nova cultura e relações interindividuais,
respeitando os caracteres do país.
A proposta do idealismo constitucional se dava em outro sentido. O problema seria
justamente o Estado forte, que impedia a existência de uma sociedade liberal em função das
instituições viciadas, mal formatadas e mal normatizadas. A “boa lei” resolveria as questões sociais
ao edificar instituições virtuosas. A sociedade se realiza através da lei.
A ideia de Estado entre os atores-autores que formulavam teorias a serem postas em prática
na organização estatal praticamente excluía a sociedade da conceituação. O Estado era basicamente
estrutura, instituição, a ser criada do alto; por mais contraditório que isso possa parecer diante dos
idealismos. Em verdade, como veremos, na prática pouco importava os caracteres sociais, a não ser
para justificar a intervenção na elaboração da sociedade desejada ou projetada pelos atores-autores.
O fenômeno social, nessa perspectiva, servia apenas de parâmetro para a ação impositiva de um
sistema legal por parte do governo, e não como fonte de informação à regulação da ordem social e
legal. A imposição do arcabouço institucional como método perpassa ambos os idealismos.
Decorrência da interpretação relatada, haveria de ser criado um papel substitutivo ao da
sociedade, que apontasse princípios de governo e valores, já que dela não poderiam ser retirados, ou
melhor, traduzidos em normas para elaboração legal. Esse papel, conforme exposição de Maria
Rezende de Carvalho (2003a), coube aos intelectuais reformistas. Na lógica de criação positiva da
sociedade, os princípios de governo por eles elaborados informariam a intervenção estatal, que
formataria as instituições, que, por sua vez, agiriam sobre valores e práticas sociais.
6
7
Vianna, 1987, p. 103.
Idem, p. 106.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Importante frisar que apesar do idealismo orgânico advogar atenção aos caracteres sociais,
para que a lei corresponda aos complexos ideio-afetivos8, os caracteres não eram estimulados ou
trabalhados endogenamente, sendo sempre submetidos à “razão nacional”, exógena, trabalhados
pelo Estado desacoplado naturalmente da sociedade, conduzindo-a para o fim pré-determinado.
Além disso, deixava-se o predicado propriamente individual em segundo plano, no que tange
direitos e garantias; isto vem a se relacionar indiretamente à negação ao estímulo da cultura popular
no seio social como representação de mundo a ser absorvida pelo Estado. Em suma, o Estado
conduz a sociedade, formatando-a, ao invés de moldar-se ao que dela emana em rito, valores,
cultura, ética.
Mantenho, portanto, a apresentação segundo as linhagens que se fazem “atores” na
construção factual da organização estrutural do Estado brasileiro. Apesar de ser impossível
dissocia-las de uma relação dinâmica com outras forças ou linhagens, credito como sendo
dominantes no pensamento político brasileiro. Mais precisamente: o Estado constituído através da
verticalização do poder em detrimento da horizontalização do direito carrega uma conceptualização
vinculante, a qual entende o Estado com certa particularidade e, com isso, deita uma normatividade
específica às relações que se darão, condicionadas, embora não determinadas, pelo âmbito
institucional.
Os autores neste artigo abordados pensaram em teoria para aplicar na prática a organização
de um Estado. São atores-autores. Tomaram parte na construção do Estado republicano em
diferentes momentos – pós-golpe ante o Império; Estado Novo; e a nova República democrática,
pós-regime autoritário de 1964.
Nas portas inaugurais da República, um Estado-carapaça
Alberto Salles, ideólogo republicano, irmão de Campos Salles (presidente da Primeira
República brasileira durante o período 1898-1902), entendia que o distúrbio social ou a
incongruência das relações sociais seria dado pelo tipo de Estado reinante. Dependendo da fase em
que se encontrasse o seu desenvolvimento, haveria uma correspondente consciência por parte da
sociedade. Salles (1882, p.106) enxerga o desenvolvimento do Estado dividido em “tres phases
8
Vianna, 1987, pp.63-4.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 perfeitamente distinctas: á principio a consciencia do Estado é apenas instinctiva, depois incompleta
e finalmente reflexa”. Vejamos.
I. Instintiva: surgimento espontâneo do Estado, satisfazendo uma necessidade sentida
“institucionalmente”, sem ser percebida pelas diversas individualidades do
agrupamento social. Nesta primeira fase, a força que orienta o Estado é uma força
sobrenatural, encarnada nas capacidades sobre-humanas do chefe. A representação é
o próprio líder. Funções sociais rudimentares.
II. Incompleta: começa a ser esboçada sua caracterização como instituição humana,
baseando-se na “vontade do povo”. A representação é o corpo de cidadãos eleitos.
Funções sociais maiores, tendo em vista a complexificação do organismo social.
Como diria o autor (1882, p.107):
A consciencia que se forma então do Estado é mais perfeita do que a anterior,
porque deixa ele de ser fundado em uma vontade divina, para basear-se
inteiramente na vontade do povo; mas ainda é incompleta, porque não se reconhece
que é dessa mesma vontade popular que ele deve receber constantemente toda a
sua influencia. (grifo meu)
III. Reflexa: a consciência sobre Estado se aperfeiçoa. A representação é o povo, ou
melhor, a “soberania nacional” em acordo à vontade popular. Há delegação da
soberania. Daí as exigências de eleições livres, estabelecendo limites e
responsabilidades – ao Estado e seus agentes, e à sociedade.
O problema é o tipo de consciência-sobre advogado por Alberto Salles. É uma consciência
objetiva e prática, sobre o que há de manifesto na organização nacional – os órgãos de poder. Nessa
visão, a consciência “perfeita e reflexa” sobre a realidade social, que demanda arbítrio nas
interações dos membros, permitiria, nos termos do autor, a “organização científica” do Estado.
Conhecendo positivamente todos os escaninhos da realidade social, as condições para o pleno e
constante desenvolvimento das atividades humanas estaria dado, agindo, o Estado, nas relações
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 condicionais, facilitando a desimpedida manifestação da finalidade social, que Salles entende como
sendo o ‘progresso’ em si mesmo do organismo social, portanto tendo a sociedade um fim em si
mesma; e agindo, os indivíduos, nas relações voluntárias, facilitando o aprimoramento de suas
funções na sociedade, e o bem-estar pessoal, tendo, portanto, o indivíduo, um fim em si mesmo. Em
outras palavras, o conhecimento adquirido sobre a sociedade enquanto objeto e realidade seria a
chave de acesso ao bem comum, independente das mazelas humanas que por ventura persistissem
após a consagração do esclarecimento total; independente da vontade dos homens, os quais tornarse-iam recebedores privilegiados dos benefícios oriundos da ação dos líderes esclarecidos. Em
suma, Alberto Salles debate-se numa turva concepção das relações humanas, onde alguns aptos
detentores do conhecimento total assumiriam o sacerdócio ao descansarem por sobre seus corpos de
Narciso a veste litúrgica, e, assim engrandecidos pela branca túnica ou pela alinhada fatiota,
conduziriam o rebanho através da senda por eles aberta, estimulando em cada uma de suas ovelhas
a melhor maneira de ruminar, crentes de que elas são, em verdade, cabras – visto que na ânsia de
mapearem o terreno olvidaram de observar a constituição de seu rebanho, lhe tomando por
irrelevante.
Ao conceber o Estado como uma “consciência-sobre” objetiva e prática, naquilo que diz
respeito ao que de (mais) manifesto há no organismo coletivo, ou seja, seus órgãos de poder
(poderes Legislativo, Executivo e Judiciário), perde-se de vista os centros/plexos-nervosos,
fundamentais para o estabelecimento da vida complexificada. O Estado deixaria, conforme tal
visão, de embeber-se na vitalidade fornecida pelas centelhas que nele vibram em vida, atuam e dele
se desprendem (pois com ele não se confundem) – nós, agentes configuradores da realidade social
imediata, os indivíduos. Com isso, ignora-se a mentalidade em si da sociedade, ou melhor, do
grupamento humano agremiado sob a jurisdição dum ente que concentra em si, englobando o alémde-si, a mente e o corpo com todos os seus órgãos, dependência, complexidade e interações;
essencialmente formatado através da e vinculado à sociedade.
Se o Estado é tão-somente os seus órgãos manifestos em Constituição, ao debatermos os
governos e suas diretrizes estaremos a debater o próprio Estado em toda a sua dimensão/extensão, e
debatendo o Estado em toda a sua dimensão/extensão nestes termos deixamos de debater em
profundidade (debatendo-nos na superfície) a sociedade, o governo, a Justiça, os indivíduos...
acreditando que cada qual, principalmente a sociedade e o Estado, gravita em independência, sendo
que a realidade nos constrange a todos a assumir a relação de complementaridade, onde o Estado é
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 alma-espírito-corpo; sendo a alma as representações/ideais, o espírito a sociedade/ente-coletivo, e o
corpo os órgãos de poder e estrutura.9
O conceito (predominante) de Estado no pensamento político nacional
Em
função
da
hegemonia
no
pensamento
dos
que
construíram
política
e
organizacionalmente a nação, os governos pós-Império voltaram-se sempre à imposição de um
sistema legal positivista, com uma inclinação institucional específica a ele vinculada. Esse
idealismo foi pontuado com precisão por Oliveira Vianna quando abordando a mentalidade
(golpista) republicana. Muito embora a ela se referindo em específico, até mesmo distinguindo as
qualidades e características psíquicas e ideológicas dos constituintes do Império em relação aos
constituintes da Primeira República, o traço marcante que perpassa a história permanece. Eis o seu
componente:
O traço mais distinctivo dessa mentalidade era a crença no poder das formulas
escriptas. Para esses sonhadores, pôr em letra de forma uma idéia era, de si mesma,
realisal-a. Escrever no papel uma Constituição era fazel-a para logo cousa viva e
actuante: as palavras tinham o poder magico de dar realidade e corpo ás idéias por
ellas representadas.
[Há, pois,] dous preconceitos do velho idealismo republicano: o preconceito do
poder das formulas escriptas e o preconceito das reorganizações politicas só
possíveis por meios políticos. (VIANNA, 1927, p.25 e p.68)
Partindo do princípio de que as ideias extravasam para a prática, é importante apontar a
justeza da colocação de Vianna em face da representação conceitual de Estado compartilhada pelos
intelectuais brasileiros “práticos” daquela conjuntura bem como da contemporaneidade. Dito
“prático”, pois Reale (1972, p.33-4) havia afirmado que “em virtude do próprio dinamismo da vida
social e política brasileira, rica de mutações bruscas e surpreendentes, jamais vingou entre nós, nos
domínios da Teoria do Estado, qualquer doutrina de caráter puramente técnico-jurídico”.
9
Nessa complementaridade, podemos debater o governo e suas atribuições e limites de ação sem debater o Estado, sem
querer atribuir-lhe, imprevidentemente, limites, campo, deveres (pertencentes estes aos órgãos de poder), com isso
tornando mais humana a dimensão política da vida em sociedade.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Alberto Salles, como vimos, entendia o Estado como uma consciência organizacional. Seria
o elemento que forma, sustenta e regula a sociedade, sobrepondo a esta mecanismos jurídicoinstitucionais, através da vontade do homem. Seria o Estado, numa suposta “noção científica”, o
“órgão especial do direito [...] que tem por fim applica-lo e desenvolve-lo em toda a sua
intensidade” (SALLES, 1882, p.113). O pensador republicano (1891, p.177) criticava os juristas por
apresentarem “uma concepção puramente subjectiva, já preconcebida, influenciada pela
imaginação, mas nunca real e positiva, como deveria ser se por ventura surgisse da contemplação
histórica”. Tal contemplação ele de fato tentou fazer, como vimos na abertura deste artigo, dispondo
em três fases distintas e sequenciais a “evolução” do Estado. Tentou, de igual monta, associar a
perspectiva social à realidade estatal, apontando o ‘ente’ Estado como sendo uma verdadeira
instituição social e política, revestido de certa soma de autoridade. Não à toa, em seu Politica
Republicana, à página 139, dizia que é “preciso não se perder de vista antes de tudo que a
organisação politica de um povo é um simples prolongamento da sua organisação social”.
Lendo especificamente o capítulo IV da obra recém citada, evidencia-se no que se degenera
a formulação de Estado proposta por Alberto Salles. A “forma exterior do Estado”, título do
capítulo em questão, força a confusão Estado-governo-instituição-comportamento político. Isto põe
em contradição a exposição do autor, visto que ele se esforça em salientar o papel central da
sociedade na configuração do Estado tanto no que diz respeito às instituições quanto aos “anseios”
sociais, só que o anulando, o papel central da sociedade, (i) no instante em que utiliza a
contemplação histórica para forjar uma simples faseologia linearmente evolutiva, a qual adequar-seia a todos os casos nacionais que se viesse a observar, (ii) além de enxergar no fenômeno social
simples parâmetro para a ação impositiva de um sistema legal por parte do governo, apesar de
reclamar às instituições políticas “esse gráo de elasticidade de que precisam para collocar-se de
harmonia com as successivas modificações do estado social”, como consta na página 167, o que
sugere direção contrária à quista pelo autor, isto é, tendo o fenômeno social como parâmetro para
tal imposição, e não como fonte de informação à regulação da ordem, social e legal. Ignora aquilo
que Oliveira Vianna (1987) veio a levantar como bandeira – análise da cultura, dos costumes e dos
hábitos da sociedade como um todo, em específico do “povo-massa”. A elasticidade serviria aos
propósitos do governo alheio à sociedade, já que o Estado não seria produto desta; acreditando,
Alberto Salles (1891, p.177), que o Estado é quem fornece “vida e alento” à sociedade nacional, não
o inverso.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Deve ficar clara a questão da imposição. Há uma grave diferença entre utilizar o fenômeno
social como parâmetro para impor um arcabouço institucional, legal e normativo, e como parâmetro
para estimular através da elaboração institucional, legal e normativa o que de latente há no
organismo social. A primeira intencionalidade, da imposição, não aprende com a História, acabando
por ignorar sua construção num dado país; apenas observa objetivamente a sociedade ou, como quer
o autor, “positivamente”, para remediar, deixando à sua própria sorte, por contraditório que pareça,
a resolução de quando expandir as associações voluntárias, intra-societárias. Eis aí a contradição do
autor enfocado no tocante à sua crítica aos que não pensam a história. A segunda intencionalidade,
da estimulação, volta os olhos ao passado para captar o não-evidente sob a exteriorização evidente,
isto é, a manifestação multiforme da fenomenologia social.
A proposta de Ciência Política feita por Alberto Salles responde pela contensão da
amplitude do Estado. Se não cabe à esta ciência refletir sobre os “phenomenos da vida
superorganica do corpo nacional”, por serem “dominio de outros ramos da sociologia”10, quando
pensa o Estado ela forçosamente abdica de pensar a sociedade (como, então, fazer com que a
organização política seja um prolongamento da organização social?), e portanto, cai no mesmo erro
criticado daqueles que pensam o Estado como ente abstrato in totum – perder-se na imaginação
sem atentar-se para a realidade do organismo social, interconectado, este, em órgãos, sistemas,
especializações etc. Sem pensar os fenômenos aqueles, não há como apreender os elementos
constitutivos do Estado, da vida em sociedade, e assim, anula-se de largada a possibilidade dos
diagnósticos acerca das mazelas sociais e das urgências relativas, por estar a se fazer uma anamnese
ou apenas das enfermidades do corpo, sua história distante da mente, ou apenas das construções
mentais, sua história dissociada do veículo corpóreo. O autor desconsidera, portanto, outros
aspectos fundamentais, seja da vida em sociedade, seja do fenômeno político.
A trilha por ele seguida foi percorrida por muitos outros. Alberto Torres, por exemplo,
também reconhece o Estado como sensível ao organismo coletivo, mas igualmente separa o Estado
da sociedade. Separa de tal modo que ao Estado é concedida a missão de organizá-la; só que
novamente impondo. Sendo ela uma coisa x e o Estado uma coisa y, deve ele rearranjá-la na ordem
alfabética. O Estado seria o órgão de ação sobre o qual o instrumento que direciona a sociedade, a
10
Note-se que aqui fica evidenciada a inclinação do autor, quebrando o vínculo sociológico e histórico na representação
conceitual de Estado, restando a dimensão política, subordinada, a seu turno, aos princípios técnico-jurídicos
fundamentais na formulação e aplicação das leis; leis que o Estado, ainda segundo Salles, forja para intervir nas
relações condicionais da sociedade, aplicando e desenvolvendo o princípio jurídico “em toda a sua intensidade”. A
Política, em verdade, só entra na elucubração do autor por ser o centro gravitacional dos órgãos de poder do Estado.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 política, age. Mesmo Torres (1982, p.37) aceitando que sociedade e Estado possam “organizar-se,
reciprocamente, por um processo mútuo de formação e de educação”, deixa subentendido que o
Estado pode ser organizado antes de existir uma sociedade; organização estatal informada
juridicamente – o que mostra a contradição interna do pensamento do autor, já que este defende
consideração ao conteúdo social que informa o sistema legal.
Azevedo Amaral, por sua vez, tenta solucionar este dilema da seguinte maneira
(relembrando, aqui, que os autores apreciados pensavam conceitualmente o Estado com os olhos
postos na realidade nacional para a ação política). Afirmava, Amaral (1935, p.21), que longe
de confirmar a noção de que o Estado se apresenta invariavelmente como
organização politica e com finalidades tambem precipuamente politicas, a
experiencia histórica e a propria observação de factos contemporaneos [à sua
conjuntura] nos mostram ser antes uma exepção o que habitualmente se nos afigura
constituir regra invariavel.
Seria, o Estado essencialmente político, apenas uma das “formas” de Estado, sendo este o
“apparelho de coordenação e de orientação do dynamismo de uma collectividade”. Segundo o autor,
este aparelho possui além de formas, tipos diversos, característicos à constituição psicológica de
determinado grupamento humano, ou na sua terminologia, característicos ao sentido sociogênico
decorrente da afirmação no grupo de um dos instintos fundamentais do psiquismo humano – o
instinto de conservação, correspondendo ao Estado militar; o instinto de nutrição, correspondendo
ao Estado econômico; e o instinto de domínio, correspondendo ao Estado político. Cada instinto e
cada forma/tipo de Estado carregam um significado específico que não serão abordados neste
artigo.11 O que ponho em relevo é o trato relativo ao Estado. Amaral assume a coexistência de todos
esses instintos do psiquismo humano (diga-se: por ele concebidos) em toda e qualquer sociedade,
havendo, entretanto, prevalência de um sobre os demais. A história dada de um povo desvendaria
qual o instinto prevalente. Ao revelar-se, caberia aos homens de Estado adequar o maquinário no
intento de promover o avanço da nação, alterando à favor do Estado, somente possível se ajustados
os caracteres do “apparelho de coordenação e de orientação”.
11
Não diz respeito a este artigo adentrar nas hipóteses conceituais apresentadas por Azevedo Amaral, por mais curiosas
que possam vir a ser. Remeto, para apreciação devida das ideias e teorias de Amaral, a Alcântara, 1967.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Em Azevedo Amaral, portanto, o Estado perde sua carga jurídica, já que o direito é o próprio
Estado; perde sua carga sociológica, já que todo fenômeno social decorre da hereditariedade, presa,
a sociedade, no determinismo da ancestralidade, servindo como matéria-prima aos ditames do
Estado – a sociedade a ele se conforma, não o contrário; e perde sua carga política, já que o “gênio
político” teria como característica essencial o domínio do homem sobre o homem, necessariamente
envolvendo a divisão da sociedade, fechando, assim, o horizonte aos acertos, à coordenação, ao
entendimento de interesses conflitantes. Fica nítido, então, por que a razão autoritária seria para o
autor mais do que viável, sendo, especialmente no caso brasileiro, imperiosa.12
A representação que informa e guia o Estado provém, em Azevedo Amaral, do “Estado”
mesmo – para ele, do corpo de cidadãos que ocupam sua estrutura e o gerenciam, dada a
incapacidade da sociedade em esboçar um ideal todo seu. É útil, aqui, comparar com a faseologia de
Alberto Salles – o Estado ideal de Azevedo Amaral insere-se na fase “incompleta”. Inexiste uma
“consciência-sobre” o Estado. Ouso afirmar que o ideal de Estado do regime militar tecnocrático
inaugurado em 1964, ecoando até os dias de hoje, encontra na passagem que segue, escrita por
Amaral (1935, p.71), sua representação, seu ideal:
Finalmente o Estado economico, tendo todo o seu dynamismo promanado do
exercicio de actividades orientadas precipuamente por conhecimentos technicos, é
por todos esses motivos inclinado á formação do meio adequado á investigação da
realidade objectiva e á analyse dos phenomenos naturaes de um ponto de vista
realistico e relativista que, através da evolução social, se váe definindo
progressivamente pela racionalidade dos seus methodos, até assumir a forma
caracteristica do verdadeiro espirito scientifico.
Conhecimento técnico, método racional-cientificista, certeza científica, formação e
condução da sociedade, elaboração do meio.
Já Nestor Duarte reage e apresenta configuração oposta a esse pensamento dominante. O
Estado, segundo o autor, “do ponto de vista conceitual, que corresponde aliás ao historico e social,
[...] é o fenomeno politico diferenciado” (DUARTE, 1939, p.33). Ele enxerga com tanta intensidade
o Estado como fenômeno político puro, que assinala como sendo sua finalidade governar e conduzir
através do mando pela força social. O Estado é para ele uma organização, um grupo ou uma ordem,
que dirige os grupos menores que o constituem. Nas palavras de Duarte (cit., p.35), “dirije-se, por
assim dizer, ao geral, á generalidade, cuja expressão mais propria e justa é o termo res publica, a
12
Ver Amaral (1981) para maior aprofundamento e mais ampla compreensão de seu argumento.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 coisa publica, que ele traduz e representa”. Veja bem: quem representa politicamente não é o
governo, é o Estado. Quem traduz a República é o grupo maior que dirige, governa e conduz os
grupos menores. Assim coloco, porque não fica nítida a maneira pela qual o grupo maior, que seria
o Estado, traduziria o ideal de sociedade emanado da própria sociedade. Em assim sendo, pode-se
concluir que Duarte segue a trilha dos autores até aqui contemplados: por um sobrenaturalismo
qualquer, numa espécie de revelação mística, aqueles que dirigem o Estado (sublinhe-se – Estado e
não governo, pois ambos se misturam no entender de todos os autores analisados) conceberiam o
melhor para a sociedade, dirigindo-a através dos tempos, informando-a sobre quais são as suas
vontades, necessidades, desejos. Na faseologia de Salles, apesar de aparentar diferença gritante a
Amaral, o Estado de Nestor Duarte inserir-se-ia na categoria de incompleto. Diz Duarte na obra
citada, à página 34, que o Estado é a “organização do poder para o poder mesmo”, não exercendo o
poder “por uma consequencia de outra função ou atividade social”. O poder de mando, de governo,
não teria, pois, um fim social. Bastar-se-ia em si mesmo. De onde, então, vem o Estado? O
engendramento estatal viria da necessidade “de governo da comunidade nacional, para que se
expresse e se exerça melhor o poder de governo da sociedade”. É um ciclo sem fim fechado em si
mesmo; talvez por isso “extreme dessa ou daquela ideologia ou teoria que o conceba dessa ou
daquela forma”, como quer o autor (1939, p.35) – o tal do “conceito puro”.
O ciclo começa a se fechar ainda mais com Maria do Carmo Campello de Souza, autora
importante para o desenvolvimento da ciência política brasileira. Ela credita às formas de Estado a
“maior ou menor eficácia no desempenho das funções representativas e governativas pelos
agrupamentos partidários”, ao mesmo tempo em que “indica”, o desempenho, a forma (SOUZA,
1990, p.31). O Estado é entendido, pela autora (cit., p.27), “basicamente, como organização de
governo, como mecanismo para a tomada de decisões”. Fecha o Estado numa concepção
processual, onde o processo político em si determina o conteúdo estatal.
Finalmente é colocado em explícito por um autor, dentre os revistos, que Estado se confunde
com governo que se confunde com comportamento político que se confunde com desempenho de
governo que se confunde com a história mesma. Confunde-se com a história mesma, porque a
natureza política duma sociedade faria variar a estrutura do Estado independente da carga histórica
do todo-social – o essencialmente político (a história política e o processo) é que determina o
Estado. O Estado é o processo político e sua dimensionalidade. Quase o “fenômeno político
diferenciado”, “puro”, de Nestor Duarte. As características sociais do país são desconsideradas,
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 apreciadas tão-somente quando entra em cena a representação política; porém, apreciadas em parte,
pois é dada atenção tão-somente à sociedade política.
Até agora, tudo está muito disperso. É preciso que se faça uma síntese criativa, resumindo e
retocando o disforme. Luiz Carlos Bresser-Pereira será o ator-autor responsável. Isto, pois esteve
presente nos governos anteriores aos de Lula, que (re)formularam o Estado republicano brasileiro
após o fim do último regime militar; defendendo uma peculiar reforma administrativa do Estado.
Vejamos suas adições para que logo mais se revele o conceito predominante de Estado no
pensamento político nacional.
Sintetizando o conceito predominante de Estado no pensamento político nacional
Bresser apara alguns excessos persistentes, quebrando a simplista identificação entre
governo e Estado. Não obstante, mantém a ideia de que o Estado é uma instituição política pura,
atuando conjuntamente com a sociedade civil nas democracias modernas. As suas formas, papéis e
maneiras de se relacionar acabariam por produzir a governança democrática da modernidade
avançada. Importante pontuar o conceito por ele utilizado de sociedade civil.
Segundo Bresser-Pereira (2009, p.15), sociedade civil é “a sociedade organizada
politicamente, fora da organização do Estado; é o conjunto de cidadãos que atuam na vida política,
equipados com o poder oriundo da organização, do conhecimento e da riqueza”. Diferentemente do
conceito de povo, onde todos os cidadãos são iguais, na sociedade civil distinguem-se aqueles que
se munem de capacidade interventora direcionada, agregando informações, conexões, meios
materiais de chantagem, através de ação organizada entre os membros. É levado em consideração o
“peso” de cada cidadão.
A razão jurídica de Estado não diria respeito, para o autor, ao Estado em si, mas ao Estadonação, onde são absorvidos no seu conjunto o Estado e a sociedade; assim como na sociedade são
absorvidos no seu conjunto o povo e a sociedade-civil. O Estado-nação, segundo Bresser, é o país, a
“entidade politicamente abrangente dotada de poderes soberanos”.
O Estado, conceitualmente dissociado daquela “unidade política abrangente” que é o
Estado-nação, possui, conforme Bresser-Pereira, dois sentidos. Um amplo e um estrito. Isto se dá,
pois o Estado é assumido como “entidade abstrata” por excelência, tal como a “pessoa artificial” de
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Thomas Hobbes. Eis aqui um elemento novo entre os autores abordados – o Estado carrega um
aspecto abstrato na sua configuração, fugindo da objetividade extremada, tal como reclamada por
Azevedo Amaral, Alberto Salles, Alberto Torres, e outros.
Bresser-Pereira (2009, pp.15-6) discorre:
O Estado é [em sentido estrito], a organização ou o aparelho formado por políticos
e servidores públicos dotados de poderes monopolistas para definir e fazer cumprir
a lei sobre os indivíduos e as organizações de um dado território nacional. Em
sentido amplo, o Estado, além de ser essa organização burocrática que é a única
dotada de poder “extroverso”13, é a soma das instituições, partindo da constituição
nacional e definindo o sistema jurídico, o sistema de direitos e obrigações ou as
regras do jogo social. A cada forma de Estado nesse sentido amplo corresponde um
sistema político ou um regime político.
É curiosa a explanação de Bresser. Se voltarmos à faseologia de Salles, veremos que
nenhum ator-autor, até agora, atingiu a fase reflexa, visto que a representação provinha ou do
colégio de cidadãos eleitos, ou do chefe. Em Bresser não é diferente.
Nas democracias avançadas o Estado não é independente da sociedade, nem está
acima da sociedade, mas é uma expressão da sociedade civil – uma expressão de
poderes relativos que os indivíduos detêm por controlarem as organizações da
sociedade civil, os recursos econômicos ou de capital, e o conhecimento.
(BRESSER-PEREIRA, 2009, p.17 – grifo meu)
A representação de Estado é, pois, a representação de mundo da sociedade civil – aquele
restrito círculo de indivíduos organizados que por disporem de instrumentos facilitadores de acesso
às comportas do Estado, ocupam-no e perseguem o seu ideal de sociedade.
Alguns problemas surgem. Se o Estado é uma entidade abstrata, por que seria o monopólio
de poder nas mãos de servidores públicos e de políticos o garantidor da aplicação/execução
consensual das leis? Apenas o monopólio é insuficiente. Necessário, no mundo moderno avançado,
principalmente se submetido a regime democrático de governo, uma legitimidade para que isso se
dê. A lei só se completa como legítima e possuidora de alguma soma de autoridade quando requer
algo mais do que a legalidade do processo, e algo mais do que a força reclamada pelos weberianos.
13
O poder é extroverso porque alcança todos os indivíduos que residem no território nacional, indo para além da
organização do Estado.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Partindo, contudo, de seu panorama teórico, Bresser-Pereira vai então defender uma nova
disposição gerencial de Estado, por uma “nova governança democrática”. Tudo se dando pelas
mãos daquela sociedade civil organizada, direcionando o povo para onde bem-entender. Se
trocarmos, por ventura, o termo ‘sociedade civil’ por ‘Estado’ (afinal, é isso mesmo o que se torna –
visto que é dela que emana a representação que direciona o Estado) e ‘povo’ por ‘sociedade’, eis
que volta à cena um Azevedo Amaral, um Duarte, um Alberto Torres.
A particularidade do Estado republicano propugnado pelo autor14 reside tão-só na maior
responsabilidade dos políticos e dos funcionários públicos, atingida por meio das organizações ou
conselhos de controle/responsabilização-social, estas, guardadas pelas republicanas mãos da
sociedade civil embebida no espírito republicano. O povo seria beneficiado pelo respeito efetivo e
verdadeiro aos direitos que cada cidadão tem, e pela garantia do bom uso do patrimônio público –
destinado, finalmente, para fins públicos. Eis no que chega, no meu entender, o conceito amarrado
pelo autor. Um pórtico de exigências éticas seculares, voltadas à esfera pública, sem, contudo, haver
um arcabouço teórico distinto que respalde nas ideias, bem como numa nova concepção de vida em
sociedade (e, em assim sendo, numa diversa conceituação de Estado, envolvendo a dinâmica
indivíduo-sociedade-organização), o modelo proposto. Ou por outras, fica preso na disposição já
dada de ideias acerca do conteúdo Estado, acreditando firmemente que basta uma nova consciência
por parte da sociedade civil e uma correspondente republicana gestão administrativa do aparelho
burocrático estatal (este o diferencial maior ante os outros autores revisados) para que a razão
republicana contemporânea afirme o reino das virtudes e da boa governança entre os povos
integrados na globalização; nada sendo exigido da sociedade como um todo (sociedade, para o
autor, lembremos, que absorve a sociedade civil e o povo), dado que exige tão-somente um trato
administrativo, dispensando uma nova diretriz governamental. Em suma, uma nova gestão pública
dispensaria o exercício de repensar a dinâmica da vida em sociedade contemplando todos os
elementos que a compõe; com isso, acaba por obstaculizar, ou mesmo impedir, o questionamento
sobre a legitimidade do estado de coisas.
Devemos, agora, apontar uma síntese, ao menos figurativa, do conceito predominante de
Estado no pensamento político brasileiro, jungido pela peneira da revisão até aqui ousada; coligindo
os apontamentos e tentativas de conceptualização; o conceito mais bem acabado desta tradição que
comunga pontos e visões, e que responde pelo norte normativo dado aos homens de ação que
14
Ver Bresser-Pereira, 2009, capp. 2, 8, 10 e 11.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 gravitam na órbita política do Estado – dimensão central da vida nacional organizada, no caso
brasileiro.
Figura. O conceito (predominante) de Estado no pensamento teórico nacional
ESTADO
(ente abstrato; hobbesiana “pessoa artificial”)
Sentido Amplo
Sentido Estrito
Soma das instituições, tendo por
base uma Constituição
definidora do sistema legal e das
normas
Organização ou aparelho formado
para definir e fazer cumprir a lei
num dado território nacional
Poder introverso
(constitui e orienta a
organização)
Poder extroverso
(constituída e orientada a
organização, age na “unidade
política abrangente” - o país)
A “sociedade civil” é o elemento
plásmico, que induz o poder
extroverso
O “povo” é o elemento receptor
das formas plasmadas pelo poder
introverso, constrangido pelo
poder extroverso
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Reforcemos: Bresser-Pereira dá um passo adiante em comparação com os autores que o
precederam. Dissocia Estado de governo15. Sublinha a razão abstrata. Compartilha da necessidade
de observância histórica e sociológica. Vagamente nos lembra da intencionalidade jurídica. Diz que
não se pode ignorar as instituições. Nem a organização social. Por meios transversos, referencia a
questão da representação de Estado (indiretamente, ao apontar sua “simbiose” com a sociedade
civil, ou melhor, o inverso). E, por fim, deixa no ar um item importantíssimo para que possamos
pensar o Estado – transitando por vias inversas, menciona uma nova consciência; para ele,
neorrepublicana.
Contudo, o conceito de Estado ainda fica preso à institucionalidade, o que redunda,
contemporaneamente,
no
aprisionamento
ao
direito
positivo
racionalista,
influenciando
sobremaneira a normatividade que informa as relações de poder. Em última instância, impede que a
Política seja percebida na sua fenomenologia social, e assim, impedida de alterar as bases em que
sustenta significado e significante, presa a uma construção dissociada da realidade cultural da nação
brasileira. Com isso, o governo fica condenado a uma mesma diretriz, incapaz de compreender os
novos movimentos societários que tomam o mundo de hoje.
A centralidade do Estado para o estudo sócio-político da realidade nacional
Essas leituras esboçadas sobre a realidade social são marcadas pela insuficiência referente
aos desafios lançados a nossa frente. Ignoram a necessidade de ressignificação.
A teoria não se recicla. O Moderno é o centro ao redor do qual gravitam, seja para adorná-lo
com apêndices qualificatórios, seja para negá-lo sem que se desenvolva alternativas substanciais. O
Estado ou é monopólio da força, ou é ferramenta de uma classe (ou ambos, mas com sentido
diverso), ou é fato social. O Estado, e todos assumem, é central a partir da Idade Moderna.
Devemos estar atentos ao fato de que contemporaneamente o Estado não perdeu sua força;
15
Anota Bresser-Pereira (2009, p.16): “uso ‘governo’ não como sinônimo de Estado (como geralmente se faz na
linguagem corrente), mas para me referir: (a) ao grupo de pessoas, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de
Estado, que chefiam a organização do Estado; e (b) ao processo de governar, de decidir sobre políticas e instituições
públicas”.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 contrariando estatofóbicos e estatofílicos,16 ele até mesmo a expandiu. Pensar a realidade, a
fenomenologia social, requer que sejam pensadas as relações sociais imersas num Estado,
ressignificando seu conteúdo; primeiramente o conceito correspondente.
As sociedades avançadas hoje são Estados-nação, não meros agrupamentos livres de
organização complexa, de nacionalidade agregadora culturalmente, de corpo representativo, de
economia de mercado etc. Justo por isso, o conceito e a ideia que se tem de Estado influenciam,
mesmo que não se queira assumir, o conteúdo e o resultado da análise sociológica e/ou política.
Conceber o Estado de tal ou qual maneira envolve questões maiores, tais como o ideário do
estudioso, o olhar com que ele encara e entende o indivíduo (seu fim, sua realidade, sua
constituição...), as razões que direciona ao processo político e às relações societárias, bem como,
mesmo que indiretamente, a noção de Direito (o papel e a finalidade da atividade jurídica). Isso
acaba por se refletir no resultado das análises e na estrutura das pesquisas, refletindo na realidade
objetiva.
Na Ciência Política, o Estado, como sinalizado, em exemplo, por Maria do Carmo Campello
de Souza, é governo. Digamos que os estudos de ciência política seguem a cartilha de Alberto
Salles. Abandonam os relevos nacionais. A Política, contudo, é fenômeno social que é fenômeno
humano. Pensar a Política sem levar em conta a sociedade é perder-se em abstrações fantasiosas.
Ou enclausurar-se naquela seita importada do norte, couraça ontológica. Vivemos, ao menos
segundo os minimalistas, numa democracia representativa. Representando eleitores que compõe a
sociedade política. Esta, segundo Burdeau (2005, p.4), “não é uma simples aglomeração física dos
indivíduos que ela reúne; ela supõe, em seus membros, a existência de uma consciência comum que
lhes sela a participação no grupo”, só havendo sociedade política, portanto, quando “à socialidade,
grupamento instintivo nascido da necessidade, sobrepõe-se uma associação fundada pela
consciência de sua razão de ser e pela representação de seu objetivo”. Brota daí uma consciência
social em torno de um projeto. Projeto que deveria informar os representantes e os agentes de
Estado num todo. Notável o vínculo inquebrantável entre uma coisa e outra. O processo político diz
respeito ao processo social; sem que com isso precise-se fazer sociologia política estrita. Enfim; a
Ciência Política dominante, principalmente no Brasil, é incapaz, portanto, de responder por que do
16
Assumo que me aproprio de termo alheio, ironicamente utilizado por Santos (1984, pp.31-6) – Cf.; porém, com outro
sentido e significado, mesmo que aceitando a continuidade daquela “dual-ética da razão política nacional”. Que razão é
essa? Acredito que expor as suas “três antinomias” deduzidas pelo autor em questão (cit., pp.13-4) é útil: “1) a maioria
dos democratas brasileiros é constituída por autoritários fora do poder; 2) a maioria dos democratas brasileiros é como a
maioria de seus católicos, isto é, não praticante; e, finalmente, 3) democrata é todo aquele que pensa e age como eu”.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 grotesco social se o processo político vai muito bem, obrigado; a agenda do Executivo é aprovada,
há disciplina partidária satisfatória, leis dirigidas em dispersão ao corpo nacional constituem a
maior parte dos projetos aprovados, partidos cumprem certo ritual de alianças e votos sem
aberrações... Contudo, não entende a ilegitimidade do Estado diante da ordem social.
Toda conceituação de Estado que o confunda com governo; toda conceituação de Estado que
o confunda com o Direito; toda conceituação de Estado que o confunda com os conflitos sociais
(que são apenas efeito duma causa não-evidente); toda conceituação de Estado que prescinda de um
ideal, ou melhor, que prescinda de uma ética nacionalmente construída e ininterruptamente
articulada pelos cidadãos ativos, agentes positivos de mudança; toda conceituação de Estado que
resvale na permanência ao fascinar-se no tempo passado; estará fadada a cristalizar o país ou nas
atualizações ou fazê-lo caudatário aos Estados que se arrastam na manutenção do grotesco subhumano (as “potências” globais), neste estado de coisas regido pelo delirante absurdo surrealista em
que se debate a condição humana, degradada e niilista, racionalista-dogmática – que necessita de
urgente ressignificação da Política, cambiando ética, valores, linguagem. A confusão desses termos
prejudica a vida em sociedade porque obscurecida fica a finalidade do governo; obtusa fica a
realidade social; anuviado fica o rol de deveres e responsabilidades próprio às células consituintes
da sociedade, os indivíduos.
Estado, portanto, ao contrário da concepção dos autores-atores abordados, indica uma
realidade social total, ao passo que governo indica uma realidade política parcial. Embora não
possamos aqui adentrar mais a fundo num referente conceitual diverso para o símbolo Estado, esta
diferenciação exposta entre Estado e governo ilustra suficientemente a guinada a ser dada para que
enxerguemos em maior complexidade e acuidade a problemática da legitimidade da ordem social e
a necessária ressignificação da Política, envolvendo rito, valores, ética, linguagem.
O conceito predominante de Estado no Brasil carrega consigo um modo de encarar a
realidade fenomênica social – presa ao processo político e à funcionalidade de mecanismos.
Essencialmente mecanicista, desgarrada do fluxo humano em sociedade. Isso gera relações de poder
fechadas em si mesmas, impedindo a identificação dos novos rumos societários, com combinações
e formatações específicas, que a forma de vida em sociedade, que é o Estado, demanda. O conceito
predominante de Estado no pensamento político brasileiro enrijece a sociedade, mantendo-a alheia
ao Estado que, em tese, ela constitui.
I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Referências bibliográficas
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