O DIABO: ARTIFÍCIO DO BEM NA LUTA CONTRA O MAL Leniran Rocha CARVALHO UESB Orientadora: Prof.a Dra. Rita de Cassia Mendes Pereira Na Europa Ocidental, durante a Idade Média, para “arrebanhar” os fiéis, fazê-los obedientes e dedicados, a cultura clerical dominante atribuiu ao mal um papel marcante na história da humanidade. Personificado na figura do diabo, o mal vai ser popularizado, difundido em imagens e textos produzidos pelos próprios representantes da Igreja Cristã. Até o século VI a imagem predominante do Diabo estava associada às representações clássicas do anjo decaído. Com uma aparência aprazível, não amedrontadora, sem feiúra e com um sorriso irônico, não ameaçador, que não tinha faculdade para interpor-se entre Deus e os homens. Mais que isso, estava ainda próximo da imagem do anjo outrora preferido por Deus e que rondando a terra por castigo do seu envolvimento com os prazeres mundanos. Mas, então, como poderia um anjo de Deus ter se tornado o seu maior e único inimigo? Como poderia ter se transformado na junção de todos os males e perversões? A evolução das representações clericais sobre o diabo, na Idade Média, está associada como o avanço do processo de evangelização. A afirmação de um bem único e universal demandava, como contrapartida, mostrar às criaturas de Deus a presença contínua de um mal. Aos fiéis, era necessário fazer-se instruir por aqueles que, escolhidos por Deus, poderiam ajudar a distinguir o bem do mal e assegurar-lhes o paraíso vindouro. Visando ampliar o seu rebanho, os representantes do poder eclesiástico trazem, assim, para dentro das próprias Igrejas, a imagem do Príncipe das Trevas, aquele que conhecia os céus, e o transforma em um inimigo íntimo. Sua aparência e força foram sendo paulatinamente edificadas, ampliadas, concretizadas. Contraponto do céu – a morada eterna dos justos –, as trevas são o reino do diabo que, acompanhado de um exército de subdemônios, assola famílias, vilas, cidades e tem presença constante no dia-a-dia das criaturas de Deus: “A fé verdadeiramente católica determina que os demônios existem e que podem causar dano mediante suas ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na Antiguidade e no Medievo. 1 operações.” (Quodlibet, XI, 10) Particularmente a partir do século XII, quando o cristianismo consolidado em seu poder se vê afrontado pelas heresias, o Diabo assume um papel fundamental no processo de evangelização dos povos. Nesta sociedade confusa, assolada pelas divergências e contestações religiosas, o medo é uma arma em favor da unidade de pensamento. É a Pedagogia do Medo. É preciso fazer temer os próprios pensamentos, anseios e sonhos. Aqueles que não crêem, privados da perspectiva da salvação, vêem-se invadidos e possuídos pelo diabo e temem a si próprios. Nos sermões, todos os males, doenças e catástrofes são da autoria do diabo ou de Deus, em represália a alguma infração cometida pelo homem. Mas o diabo ocupa um papel cada vez mais proeminente nos discursos, nas preleções, nos tratados eclesiásticos: quando um fato não pode ser explicado, nem como milagre, nem pelas forças da natureza, nem pela habilidade do intelecto, é que há pacto com o Diabo. Sob a ação sistemática da Igreja Cristã, o Príncipe das Trevas torna-se o protagonista de uma batalha infindável entre o bem e o mal. Para J. Le Goff, esta é a época de uma primeira e fundamental “explosão diabólica”. O que antes era abstrato e teológico, concretiza-se em imagem que ninguém quer ver, pois fere o olhar. O diabo assume características corpóreas, com tonalidades vermelhas e aspectos atemorizantes. Por outras vezes, sinônimo e a representação de todos os males e aspectos negativos, tomam as formas de inimigos reais ou sobrenaturais. A Igreja dará ao diabo propriedades e poderes semelhantes ao do próprio Deus. O Transitando na terra, escolhendo incautos e desobedientes para levar consigo ao Inferno, ele luta com forças semelhantes ao do Criador e mostra-se capaz de tomar os fiéis a Deus. Fragmentos de um mundo irrelevante e findo, os deuses e outras entidades, pertencentes a sistemas religiosos anteriores ao cristianismo, são absorvidos nesta atmosfera de luta entre forças antagônicas. No clima de vigilância e perseguição então instaurado pela Igreja, as divindades pagãs foram reduzidas a meros representantes do mal na terra e do único inimigo de Deus. Para afirmar a possibilidade da salvação – e do seu próprio papel na concretização desta salvação – a Igreja torna o diabo uma força concreta, onipresente. Era preciso temê-lo, como ao próprio Deus. Como salienta Nogueira, o mundo estava então dividido em duas tendências claramente definidas e antagônicas: os que ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na Antiguidade e no Medievo. 2 cultivavam o Bem e suas virtudes (os verdadeiros cristãos), e aqueles que cultivavam o Mal e todos os seus vícios - os servidores de Deus e os servos do Demônio. Nos discursos eclesiásticos, o Mal precedia o Bem. Falar do Mal, falar muito, de forma incisiva, era um recurso pedagógico de afirmação do drama dualista. Para se pensar no Bem, torna-se necessário saber do Mal. Ao Deus soberanamente bom, o Criador, o princípio de tudo, antepõe-se o Mal, representados pelo diabo. Mas, se o Bem sempre existiu, desde a gênese da história por eles contada, o Mal, como recusa ao amor divino, foi criado para preencher as trevas e para dar sustentação ao próprio Bem, como o caminho mais certo para se seguir. Apresentados ao Bem e ao Mal, os homens podem então escolher. Personificado, sedutor, acumulado de poderes o Príncipe das Trevas torna-se, então, a unidade fundamental de oposição às verdades fundamentais propagadas pelos representantes do bem. Todas as outras formas de representação do mal – mulheres, judeus, heréticos, pagãos - serão, agora, tão somente, agentes de Satã. Fragmentos de um mundo irrelevante e findo, os deuses e outras entidades, pertencentes a sistemas religiosos anteriores ao cristianismo, são absorvidos nesta atmosfera de luta entre forças antagônicas. No clima de vigilância e perseguição então instaurado pela Igreja, as divindades pagãs foram reduzidas a meros representantes do mal na terra e do único inimigo de Deus. Segundo Nogueira, tudo que o cristianismo repeliu energicamente como demasiadamente pagão, como contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino do Mal. Aos demônios foram emprestadas as imagens que os antigos atribuíam às suas divindades infernais. O principal opositor de Deus e seu inimigo eterno alcançou destaque e sucesso. Sua aparição final, no grande e maior combate tinha tempo certo no calendário da escatologia cristã. Até lá ele faz aparições pontuais, na escuridão e nos pensamentos. O pavor, consumado, do reino das trevas, domina as consciências cristãs, amedronta crianças e adultos. Enfim, com o objetivo de arrebanhar adeptos e de controlar as consciências, a Igreja Cristã desenvolveu, ao longo da Idade Média uma Pedagogia do Medo que tinha como um de seus principais elementos constitutivos a crença no poder do diabo. As imagens do reino das trevas estruturam-se nas representações textuais e iconográficas da Idade Média e servem de justificativa para a afirmação de um código moral restritivo dos pensamentos e ações dos homens e mulheres. Contra o castigo, o sofrimento, a ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na Antiguidade e no Medievo. 3 escuridão, a Igreja apresenta as alternativas da fé e da boa conduta moral. O Diabo é, pois, a imagem mais eficaz encontrada pelo cristianismo para legitimar a presença do Deus e conceituar todas as demais formas de expressão cultural e religiosas divergentes. Os representantes da Igreja Cristã reclamavam a supremacia de um único Deus, um Deus do Bem, onipotente, onisciente e onipresente. Contudo, a afirmação do império do Bem serviu, ao mesmo tempo, para colocar em destaque, a presença de um Mal que, de forma gradativa e incontrolável, assomava sobre as mentes e as ações dos homens. O Diabo, presente de forma cada vez mais acentuada nos discursos da Igreja Católica era o contraponto necessário para o desenvolvimento das noções de pecado, medo, para explicar a presença das chagas, da escuridão e diversos outros fatos não compreendidos. A ordem terrena é o cenário de uma batalha interminável entre os reinos do bem e do mal e o Príncipe das Trevas, o inimigo implacável de Deus, com os seus poderes incomensuráveis e os temores que desperta, corresponde a um instrumento indispensável para se atrair o rebanho de fiéis e afirmar o poder da Igreja. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na Antiguidade e no Medievo. 4