luiz arraes
dicionário de silêncios
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Para Andréa e Júlia, minha vida.
Para Augusto Arraes, minha vida.
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sumário
parte 1
A luz e a fresta ............................................. 17
A porta ......................................................... 19
Sobras (ou Pai rico, filho pobre) ................. 21
Os gêmeos ................................................... 25
Lar, doce lar ................................................ 29
Happy end ................................................... 31
parte 2
O colecionador ........................................... 35
Tarde em lisboa ........................................... 39
O cosmopolita ............................................. 43
Conto da morte anunciada ......................... 47
Uma viagem tranquila ................................ 53
Minha vida é minha pátria ......................... 63
“A criança insistia...” ................................... 71
“A batida foi toda...” .................................... 73
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parte 3
Variações ..................................................... 77
Conto em forma de posfácio....................... 81
Tese ............................................................. 83
Uma obra-prima .......................................... 85
Nota sobre as fontes .................................... 89
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parte 1
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a luz e a fresta
Ao prof. Fernando Figueira
A luz que atravessava a fresta da porta era o sinal.
Antes de abrir os olhos, antes mesmo de acordar, eu a via,
vinda do corredor. Encadeava-me. Eu tentava dormir novamente, mas o esforço me despertava ainda mais. A luz
e o coração batendo forte. O tempo não era longo nem
curto. Era pesado, se é pelo peso que se poderia medi-lo.
Os passos subindo a escada curiosamente me acalmavam.
O barulho da porta do quarto de meus pais abrindo. O
choro de minha mãe tornava-se audível para depois ser novamente abafado pelo fechar da porta. Só os gritos de meu
pai chegavam até mim. O silêncio voltava rápido. Minha
vigília perdia o sentido, e eu voltava a dormir. A luz que
atravessava a fresta permanecia. Só que agora não me impedia de retomar o sono, e eu, então, dormia como uma
criança; que de fato eu era, ou tentava ser.
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a porta
A Everardo
Uma porta não é a mesma coisa que uma parede. Dito assim, parece óbvio. Uma porta é uma passagem; uma parede, um obstáculo. Não é tão simples
assim.
Moro num apartamento que, na verdade, é apenas a
metade de um. Os apartamentos antigos ficaram grandes
demais para os orçamentos e o tamanho das famílias de
hoje. No meu prédio, os donos decidiram transformar um
apartamento em dois, bloqueando uma porta, de um lado
e do outro, e impossibilitando a comunicação. Esse foi o
grande erro. Uma porta, ainda que bloqueada, não é a mesma coisa que uma parede.
O bloqueio da porta se dá por fechaduras dos dois
lados. Se as duas forem abertas, a porta não separa mais
nada e os dois apartamentos passam a ser um só.
Um dos lados abertos, o meu, por exemplo, cuja
abertura depende de mim, é como meia parede. Separa e
ao mesmo tempo comunica.
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luiz arraes
É uma viúva que mora ao lado. Embora madura,
guarda traços de beleza e seu corpo ainda não carrega as
marcas da idade.
Nas poucas vezes que cruzo com ela no elevador ou
no corredor, sempre se apresenta simpática, ainda que cerimoniosa.
É só prestar atenção e ouço seus passos ao lado, o
piano que, às vezes, toca, o choque dos talheres contra as
louças.
Quando me perguntam com quem eu moro, hesito
antes de dizer sozinho.
Fico tentado a dizer que divido um amplo apartamento com uma viúva, cada um ocupando uma ala, respeitando o espaço do outro.
Não estaria mentindo totalmente. Quando chego
em casa, sinto, às vezes, como se estivesse alguém a me
esperar. Sinto nitidamente a vaga presença de uma pessoa,
de uma sombra.
Olho a porta, confirmo as fechaduras, nunca abertas,
sempre fechadas.
Deixo-me cair sobre a poltrona. São tantas as portas
por onde entram meus fantasmas e apenas a uma me é
dado o poder de fechar e abrir.
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