doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03021
MIL ANOS COM BANHO!
CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro (UEL)
Introdução
Para o dicionário moderno, ele é simplesmente a imersão total ou parcial do corpo
em líquido, especialmente água. Pode ter propósitos higiênicos, terapêuticos ou
simplesmente lúdicos.
Mas, etimologicamente falando, banho vem do latim balneu (do qual originou
também balneário) (FERREIRA, 2004, p. 263). Curiosamente, SILVA (2007, p. 55) anota,
no verbete em plural, que se trata de “proclama de casamento, proclamação”. O significado
é confirmado em CUNHA (1986, p. 96), que registra exatamente “proclama de
casamento”, e acrescenta que “a palavra ban sofreu uma extensão do sentido, passando a
significar ‘proclama de casamento’ e, em português, foi confundida com banho”.
À primeira leitura, poderia se pensar na coincidência: em tempos medievais, o
primeiro banho do ano era tomado em maio, mês dos casamentos, em plena primavera e a
caminho do verão, bem longe do inverno rigoroso que havia passado. Mas CUNHA fala
em confusão, o que não permite, ao menos só por estas fontes, associar um sentido ao
outro.
Enfim, o que era o banho na Idade Média? Higiene, terapia ou lazer? Ou mais que
isso? Tais perguntas foram o mote deste estudo, que descreve o hábito (ou não) de se
banhar, a partir da Antiguidade Tardia – a título de contextualização e preâmbulo – até
chegar ao medievo. A pesquisa, bibliográfica, recaiu sobre consagrados medievalistas,
como George Duby – expoente dos costumes da vida privada – e Jacques Le Goff,
expressão
inconteste
do
conhecimento
medieval.
Outras
fontes
bibliográficas,
naturalmente, integram o trabalho. Um dos objetivos é lançar uma luz sobre o tema, tão
vítima de preconceitos e opiniões mal formadas.
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As respostas às perguntas motivadoras encontram-se atrás de costumes, crenças
populares, conhecimentos científicos da época, normas de etiquetas e valores religiosos.
Como tudo o que é medieval.
Hora do banho!
Mil anos sem banho?
Uma perspectiva preconceituosa e mal (in)formada leva a crer que a Idade Média
foi um longo milênio de falta de asseio pessoal. Uma afirmação de D’HAUCOURT (1994,
p. 49) parece reforçar a ideia: “Como até recentemente em vários locais do interior francês,
as pessoas só se lavavam depois de vestidas e então limitavam-se a limpar as partes do
corpo que ainda permaneciam visíveis, ou seja, o rosto e as mãos”. Havia um motivo:
muitas pessoas dividiam o mesmo quarto e não havia toaletes ou espaços privativos.
Mas é preciso continuar a leitura: “O que não quer dizer que os homens da época
eram incapazes de uma toalete mais completa, que se fazia com o tronco nu, diante de um
balde d’água”. D’HAUCOURT informa ainda que nas cidades e nos castelos os habitantes
tomavam banho. Nos mosteiros, contudo, o banho era reservado aos doentes e
convalescentes – estes, porém, abstinham-se nos três dias seguintes a uma sangria.
A autora anota que, em 1292, havia mais de 26 banhos públicos em Paris,
destinados aos pobres, na volta de alguma atividade na qual se sujavam, como uma
viagem, uma caça ou um torneio. Eram abertos todos os dias, exceto domingos e feriados.
Assim que a água era aquecida, mensageiros saíam para chamar os “clientes”. Mas nunca
antes da aurora, quando ladrões poderiam atacá-los.
Além do banho, era praticada a depilação, tintura de cabelos e aplicação de
perfumes e ungüentos, especialmente a partir do século XIII.
ASHENBURG (2008, p. 59) afirma que “a cultura do banho romano desapareceu
lentamente, esmoreceu em várias épocas e locais do Império, que esfacelava-se”. Mas isso
não significou uma rejeição ao hábito, pois a autora logo acresce: “Ironicamente, à medida
que problemas políticos e econômicos tornavam difícil a manutenção de grandes termas,
bispos, papas e imperadores continuaram a construir e ampliar luxuosos aposentos de
banho nos palácios”. Informa ainda que, no século VI, o Bispo de Ravena (Vitor),
reformou as casas de banho junto ao palácio episcopal, decorando-o com mosaicos e
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mármore. No século IX, foi a vez do Papa Gregório IV redecorar as termas do Palácio
Laterano.
O banho, segundo a autora, tornou-se hábito aristocrático na Alta Idade Média. As
termas prejudicadas pela destruição dos aquedutos, em 537, pelos godos, nunca se
recuperaram. A diferente cultura germânica dos invasores, somada a uma mentalidade
cristã, teria sido a razão do declínio do banho, na Antiguidade Tardia e nos primeiros
séculos da Idade Média.
Mas é claro que um hábito não desaparece simplesmente. No Oriente romano, as
termas permaneceram:
Na Alexandria do século VI, um terço do orçamento da cidade era gasto
com o aquecimento das casas de banho. Nas províncias orientais da Síria,
Judéia e Arábia, locais de confluência das tradições cristã, romana e
islâmica, a casa de banhos, em geral pequena, evoluiu para um híbrido
romano-islâmico. [...] No fim, este híbrido adotado pelos turcos [...]
tornou-se a casa de banhos turca (ASHENBURG, 2008, p. 60).
LE GOFF e TRUONG (2006, p. 144) também assinalam a existência desta
percepção equivocada. Afirmam que “assim como o desaparecimento dos estádios
sublinha a supressão do esporte na Idade Média, o desaparecimento das termas sublinha a
supressão dos banhos públicos”. E explicam que daí veio a frase “Nenhum banho durante
mil anos”, em La sorcière de Michelet. Mas reparam: “Essa asserção é falsa: os homens
banhavam-se. Estamos mal informados sobre as práticas individuais e domésticas do banho
na Idade Média” (idem).
De fato, os autores dizem que, particularmente na Itália, desenvolveu-se um
“verdadeiro termalismo”. Logicamente, herança dos tempos romanos. Mas – observam –
sem influência dos banhos públicos bizantinos, nascidos no Oriente muçulmano no século
VII, e que espalharam até a Espanha, através do norte africano.
As termas cristãs, porém, não eram como as da Antiguidade. Pois não eram lugares
de encontros, conversas, bebedeiras e festins. A influência da Igreja mudou a natureza dos
banhos, e os hammans (termas muçulmanas) eram considerados locais de prostituição. Só
com a chegada do Renascimento a nudez deixou de ser rejeitada tão veementemente.
ASHENBURG (2008, p. 73) exemplifica: “Uma ilustração pequena em um manuscrito
alemão de 1405 mostra uma mulher entrando num destes estabelecimentos pela escada da
rua, segurando um lençol à frente do corpo e com a parte de trás totalmente exposta”.
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Os hammans, porém, contribuíram para a volta dos banhos públicos na Europa
Ocidental, de acordo com ASHENBURG (2008, p. 71-72). E ironicamente – na opinião da
autora – o Cristianismo, que havia atuado como força para fechar os banhos, séculos antes,
agora agia a favor, numa mudança de mentalidade: “o banho tinha mudado de caráter,
passando de novidade exótica a parte integrante da vida urbana ocidental”.
TOSSERI (2009), igualmente, desmente a ideia de que não havia o hábito do banho
no medievo:
Acervos preciosos de arte e objetos do período incluem itens usados na
toalete de homens e mulheres, assim como iluminuras que representam
pessoas se lavando. Os tratados de medicina e educação de Bartholomeus
Anglicus, Vicente de Beauvais ou Aldobrandino de Siena, monges que
viveram no século XIII, mostram uma preocupação real em valorizar a
limpeza, principalmente a infantil. A água era um elemento terapêutico e
servia tanto para prevenir quanto para curar as doenças. Desenvolveramse as estâncias termais e era recomendado e estimulado lavar-se
regularmente. Como as casas não tinham água corrente, os grandes locais
de higiene eram os banhos. Certamente herdados da Antiguidade, é
provável que tenham voltado à moda graças aos cruzados retornados do
Oriente, onde se havia conservado a tradição.
Uma referência aos hábitos de higiene medievais – verdadeira apologia – é retirada
de Monique Clossom (“Propre comme au Moyen-Age”, Historama, número 40, junho de
1987):
A higiene não é uma descoberta dos tempos modernos, mas “uma arte
que o século de Luiz XIV menosprezou e que a Idade Média cultuou com
amor”, escreveu a historiadora Monique Closson, autora de numerosos
livros sobre a criança, a mulher e a saúde no período medieval.No estudo
de referência “Limpo como na Idade Media”, a historiadora mostra com
luxo de fontes que desde o século XII são incontáveis os documentos
como tratados de medicina, ervolários, romances, fábulas, inventários,
contabilidades, que nos mostram a paixão dos medievais pela higiene.
Higiene pessoal, da cozinha, dos talheres, etc.As iluminuras dos
manuscritos são documentos insubstituíveis onde os gestos refletem o
“clima psicológico ou moral da época (IDADE MÉDIA, 2009).
A historiadora parece defender que a prática do banho foi muito bem documentada,
e com riqueza de detalhes:
Milhares de manuscritos, diz Closson, ilustram o costume medieval.
Bartolomeu o inglês, Vicente de Beauvais, Aldobrandino de Siena, no
século XIII, com seus tratados de medicina e de educação “instalaram
uma verdadeira obsessão pela limpeza das crianças”. Eles descrevem
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todos os pormenores do banho do bebê: três vezes ao dia, as horas,
temperatura da água, perto da lareira para não pegar resfriado, etc.. As
famosas Chroniques de Froissart, em 1382, descrevem a bacia no
mobiliário do conde de Flandes, de ouro e prata. As dos burgueses eram
de metais menos nobres e as camponesas em madeira. A Idade Média
atribuía valor curativo ao banho, como ensinava Bartolomeu o Inglês no
Livro sobre as propriedades das coisas.
[...] Dentifrícios, desodorantes, xampus, sabonetes, etc., tirados de
essências naturais, são elencados nos tratados conhecidos como
ervolários feitos nas abadias. Historiadores como J. Garnier descreveram
com luxo de detalhes os altamente higienizados costumes medievais.
(idem).
A tradição do banho se conservou pelo menos nos palácios da classe dominante da
Alta Idade Média, segundo DUBY (1990, p. 318), e se perpetuou nos séculos XI e XII,
tanto nos mosteiros clunisianos quanto entre leigos.
ASHENBURG (2008, p. 61) também diz que as informações sobre a higiene do
início do período medieval vêm principalmente dos monges, que documentaram os
costumes da vida monástica. A Regra 53 de São Bento, por exemplo, exige que os
hóspedes e convidados do mosteiro tivessem suas mãos e pés lavados assim que
chegassem ao mosteiro: “Que o Abade sirva a água para as mãos dos hóspedes; lave o
Abade, bem assim como toda a comunidade, os pés de todos os hóspedes” (REGRA). A
Regra 36, por sua vez, prescreve o banho aos doentes: “O uso dos banhos seja oferecido
aos doentes sempre que convém”.
A autora afirma que “aos monges que tinham problemas com desejos carnais,
prescreviam-se banhos frios e, aos doentes, quentes” (idem, p. 61). No monastério suíço de
St. Gall, no século IX, banhos eram oferecidos na enfermaria, e havia banhos no claustro.
Em Canterbury, havia os banhos tomados antes do Natal, em clima de solenidade e
austeridade: solitários, silenciosos, rápidos. Nada de permanecer no banho por prazer.
Ordens religiosas permitiam banhos também nas festas da Páscoa e Pentecostes. Em dada
época, uma média acima da dos camponeses.
Já na Espanha, a prática do banho levada pelos romanos diminuiu com as invasões
dos visigodos, que diziam que o banho quente deixava o homem efeminado. As casas de
banho foram demolidas e só retornaram a partir do século VIII, com a chegada dos
mouros. Porém, com a Reconquista, foram novamente destruídas.
ASHENBURG (2008, p. 69) assinala que leigos e religiosos mantiveram a prática
de se lavar, especialmente considerando-se uma época em que os alimentos eram
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consumidos com as mãos, sem talheres. Documentos atestam isso: “Pinturas medievais
normalmente retratam uma jarra, uma bacia e uma toalha para secar as mãos em um canto
dos quartos. O encontro com uma pessoa que não lavava as mãos era algo digno de
observação”. De fato, no século X, Bruno (irmão do imperador Oto, o Grande), foi
criticado pelos seus hábitos:
Quando ele tomava banho, raramente usava algum sabonete ou qualquer
preparação para manter a pele brilhante, o que é ainda mais surpreendente
considerando que estava familiarizado com os métodos da limpeza e os
confortos da realeza desde a mais tenra infância (ASHENBURG, 2008, p.
70-71).
DUBY (1990, p. 205) lembra que a toalete podia ser uma boa ocasião – a primeira
do dia – para a família se reunir: “toalete das crianças, vigiada pela mãe como o quer
Giovanni Dominici, toalete também dos adultos, nem sempre solitária nem reservada, ao
amanhecer”.
Não se descuidava dos bebês: “os manuais medievais de cuidados com o bebê
recomendavam banhá-los em água morna pelo menos uma vez, e às vezes três vezes ao
dia”. Tantos banhos se justificavam porque os bebês não se limpam sozinhos da urina e
fezes e, além disso, era bem mais fácil buscar água só para um bebê. Mas, obviamente,
camponeses não liam manuais de higiene, portanto seus hábitos eram diferentes.
Igualmente óbvio é que, na Idade Média, o mundo era menos odorizado. Tanto
assim que – anota ASHENBURG (idem, p. 70) - São Tomás de Aquino defendia o uso de
incenso para disfarçar o odor dos fieis nas lotadas igrejas.
De outro lado, Duby afirma que, entre os cuidados corporais, o banho era o mais
recorrente nas narrativas de Sone de Nansay, um herói de um romance do século XIII –
também citado em ASHENBURG (2008, p. 69). Ali, a prática adquiriu uma importante
função simbólica: “Na representação do privado, o banho assinala o espaço e o tempo da
intimidade, uma área espacial e um tempo reservados ao íntimo” (DUBY, 1990, p. 363). É
um ato solitário. Mas, por ser privado, levava à curiosidade e podia ser espionado, o que
provocou, com freqüência, o erotismo.
No romance occitano Flamenca (século XIII), os banhos públicos eram o foco da
narrativa. Descreve Duby (idem, p. 364): “Trata-se de banhos terapêuticos, dos quais um
letreiro, colocado em cada banho, esclarece as virtudes. Para ali afluem doentes, coxos e
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aleijados de todas as regiões [...]. Cada banho é fechado e isolado. [...] Ali as pessoas se
banham segundo a época da lua”. ASHENBURG (2008, p. 69-70) menciona o mesmo
romance.
O banho figurava ainda como parte de um rito de acolhida, signo de conforto
corporal. Duby cita: “a filha do conde de Anjou é recolhida com seu filho pela mulher do
‘prefeito’, que manda imediatamente lhe preparar um banho em uma tina, e já no Chevalier
à La charrette, banhos e massagens são habilmente dispensados a Lancelot pela donzela
que o libertou” (idem).
Conforme o autor, as pessoas se lavavam de duas maneiras: na água do banho ou no
vapor da sauna, sozinhas ou em grupo. Em casa, era preparado no quarto, numa tina, perto
do fogo que aquecia a água. Era um signo – e dever – de hospitalidade, como mencionado.
Neste espírito, alguns anfitriões colocavam pétalas de rosas ou outras plantas odoríferas na
água.
Duby (idem, p. 593) fala de um poema épico do final do século XIII, atribuído ao
austríaco Siegfrid Helbling, que descreve “com grande luxo de detalhes” todas as fases do
banho de vapor que um cavaleiro e seu criado tomam. Era a versão medieval do que hoje
se denomina spa, com roupões, pedras aquecidas, massagens, estímulo à sudorese,
relaxamento e repouso, entre outros requintes.
“Quanto aos banhos das casas privadas, são muito chiques”, registrou Baldassore
Cossa, em 1416 (idem, p. 594). Mais uma vez, uma função socializante foi anotada, pois os
banhos tinham áreas comuns para homens e mulheres, mas com telas para separá-los.
Entretanto, pequenas janelas garantiam que pudessem conversar, beber juntos e até se tocar
– como era hábito.
Em alguns casos, horas eram perdidas na água: “a cada dia, [homens e mulheres]
entram no banho três ou quatro vezes, passando assim a maior parte do dia, cantando,
bebendo ou dançando” (idem, p. 596).
Na Idade Média, o banho era espiritualizado, quando terapêutico:
Uma prática da época era o “banho da alma” - banhos em termas ou
saunas, com vapores, com ervas, enxofre ou sal. Em certas ocasiões
especiais, como festas, os mais ricos doavam um destes banhos aos mais
pobres ou aos pacientes psiquiátricos. Podiam ser usadas também
sanguessugas e ventosas. Os banhos duraram até o final do século XV,
quando a sífilis levou à sua extinção. Os banhos haviam se tornado ponto
de prostituição (CUSTÓDIO, 2009).
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Hildegard de Bingen (1098-1179) - mística, compositora, conselheira de reis e
papas, e também médica - incluía o banho em suas prescrições: “Hildegard receita ainda a
barba-de-júpiter contra a esterilidade masculina e a escarola para “acalmar o desejo
amoroso do homem”. A escarola deve ser administrada na água do banho. Para as
mulheres menstruadas, infusão de camomila” (CUSTÓDIO, 2009).
Em sua Summa Teologica, São Tomás de Aquino também recomenda o banho, ao
lado de outras medidas terapêuticas. Convicto das relações entre matéria e espírito, o
doutor escolástico o prescreveu no combate à acídia, conforme relata LAUAND (2004):
Tomás enfrenta esta questão na Suma Teológica I-II 38 e no artigo 5
chega a recomendar banho e sono como remédios contra a tristeza! Pois,
diz o Aquinate, tudo aquilo que reconduz a natureza corporal a seu
devido estado, tudo aquilo que causa prazer é remédio contra a tristeza.
Tomás destrói assim a objeção "espiritualista":
Objeção 1.: Parece que sono e banho não mitigam a tristeza. Pois a
tristeza reside na alma; enquanto banho e sono dizem respeito ao corpo,
portanto, não teriam poder de mitigar a tristeza.
Resposta à objeção1: Sentir a devida disposição do corpo causa prazer e,
portanto, mitiga a tristeza.
De resto, para os remédios contra a tristeza, Tomás não fala de Deus nem
de Satã, mas sim recomenda: qualquer tipo de prazer, as lágrimas, a
solidariedade dos amigos, a contemplação da verdade, banho e sono.
Sabe-se também que, poucas horas antes de sua consagração, um futuro cavaleiro
tomava um banho, como parte da ritualística de ordenação. Como SANTOS (2008, p. 15)
comenta:
No século XI, o ritual punha em evidência a influência da igreja: o
sacerdote benzia a espada e lembrava que devia servir à igreja, às viúvas,
aos órfãos e a todos os servidores de Deus contra a crueldade dos pagãos.
Ainda se incluía no ritual incluía a purificação com um banho e o
cavaleiro recebia uma camisa de linho, símbolo da pureza e uma túnica
vermelha, símbolo do sangue que deveria verter em defesa do ideal
cristão, elevando-o a um plano de dignidade espiritual.
De acordo com ASHENBURG (2008, p. 79), por volta de 1430, John Russel –
administrador sob as ordens do Duque de Gloucester – escreveu um Livro de Educação e
Formação, para servir como manual de etiqueta e instrução para pajens e servos. Os temas
vão desde o manuseio dos alimentos (só com a mão esquerda) até cutucar o nariz
(definitivamente proibido).
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As instruções, naturalmente, também falavam do banho. Usava-se uma banheira,
forrada com lençóis, ervas, esponjas, flores, água de rosas. “Embora não haja menção a
nenhum sabão ou sabonete (o primeiro era usado para lavar roupas, mas raramente o corpo,
na Inglaterra do século XV), este é um banho quente, diferente dos medicinais” (idem, p.
80). O referido banho medicinal previa o uso de ervas como malva, confrei e várias outras,
todas juntas. “Deixe que ele [o mestre cavaleiro] permaneça na água mais quente que
conseguir suportar, e seja qual for a doença que tiver, será curado” (idem, p. 81).
Com o passar o tempo, os cuidados higiênicos, incluindo o banho, começaram a
fazer parte de um conjunto sistematizado de saberes sobre o assunto. Assim registra Duby
(1990, p. 584): “É a idéia central do grande tratado de Konrad Von Megenberg, Das Buch
der Natur, datado de 1349, que recomenda um estilo de vida corporal perfeitamente
compatível com a interioridade. Dieta, movimento, ar livre, banhos freqüentes, mens sana
in corpore sano”.
ASHENBURG (2008, p. 75) menciona outros documentos:
Um manuscrito francês feito para o Duque de Burgúndia, no final do
século XV, retrata na iluminura que o ornamenta uma cena elegante,
numa casa de banhos que atende casais. Homens e mulheres, tendo o
turbante como única peça sobre o corpo, comem e bebem em banheiras
para dois. Um casal de turbantes em um aposento anexo se encaminha
para um quarto. Outro desenho, polonês, oferece imagens mais grosseiras
e satíricas da vida nas casas de banho...
Evidentemente, havia o propósito de se embelezar: “A pele clara, lisa, brilhante, e
todo o corpo igualmente, é fruto de banhos freqüentes e de um longo trabalho, completado
pelos ungüentos” (idem, p. 591). O autor explica que “a lavagem do corpo já não provoca
no final da Idade Média as prevenções do moralismo monástico; ou, pelo menos, a prática
do banho e da sauna parece tão geral, e em todos os meios, que as reservas sobre a lavagem
completa e freqüente do corpo já não parecem inadmissíveis”. De fato, continua o autor, o
dominicano Félix Faber recomendava “energicamente” a limpeza corporal. Duby chega ao
ponto de conjeturar: “teremos ocasião de nos perguntar se a lavagem freqüente não
adquiriu nas represetnações coletivas o mesmo valor espiritual que a freqüente confissão”
(idem, p. 592). Que mudança!
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Considerações Finais
Mais uma vez, uma pesquisa responsável, em fontes confiáveis, é capaz de afastar
as “trevas” injustamente atribuídas à Idade Média. Apesar de reconhecer que o banho,
como hábito de higiene, sofreu seus períodos de rejeição e foi até objeto de superstições,
por outro lado ele chegou uma prática quase cotidiana, e de considerável complexidade, do
ponto de vista social e antropológico.
Perfeitamente digno de um estudo histórico – seja História dos costumes, das
mentalidades ou da saúde pública – o banho pode revelar surpresas. O que não é
surpreendente é que ele tenha sido tão complexo, culturalmente falando, a ponto de servir
de hábito de higiene, momento de ócio e lazer, reunião familiar, diálogos e
relacionamentos sociais, terapia medicinal, ritual de acolhimento, prática de sexo,
ostentação, desenhos ilustrativos, e mote para enredos narrativos.
Um longo parágrafo de Duby (1990, p. 598) serve de fechamento para este estudo.
Ele inicia dizendo que “o corpo no banho desperta outras ressonâncias no final da Idade
Média. A Renascença não é apenas uma visão espacial da felicidade, é também visão
profunda de uma caminhada interior”. E cita a obra Badenfahrt (1514), do poeta de
Estrasburgo Thomas Murner, que é uma alegoria da conversão ao apelo de Cristo, através
da figura do mestre do banho e sua trombeta:
Então Deus, apiedando-se de nós
Começou a nos ensinar
Como se deve ir para o banho.
Lavar-se, purificar-se, perder toda vergonha
Na força e poder de Seu santo nome.
Ele o fez tão publicamente
Que o mundo inteiro o viu:
Ninguém poderia dizer na verdade,
Nem dizer nem se lamentar
De não ter sabido
Como deve banhar-se, purificar-se,
Purificar-se novamente em Deus.
Erguer-se como um novo Adão
10
Que o batismo ressuscita.
Pois Deus nos concede em Sua graça
Que nenhum pecado original nos esmague mais.
Isso foi realizado por Deus tão abertamente
Que o mundo inteiro o viu:
Foi o próprio Deus quem nos chamou
para o banho ao som da trombeta.
REFERÊNCIAS
ASHENBURG, Katherine. Passando a limpo – o banho: da Roma antiga até hoje. São
Paulo: Larousse, 2008.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro. Entre cataplasmas e salmos: as práticas médicas
medievais. In Anais da VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais e I Jornada
Internacional de Estudos Antigos e Medievais: O Conhecimento do Homem e da Natureza
nos Clássicos. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 16 a 18/ 09/ 2009.
D’HAUCOURT, Geneviève. A vida na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
DUBY, George (org.). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004.
IDADE MÉDIA. Limpo como na Idade Média, época que cultuou a higiene. In
http://idademedia.wordpress.com/2009/01/09/limpo-como-na-idade-media-epoca-quecultou-a-higiene/ . 09 de janeiro de 2009 (Acesso em 21.08.2011).
LAUAND,
Jean.
O
Pecado
Capital
da
Acídia
na
Análise de Tomás de Aquino (notas de conferência proferida no Seminário Internacional
"Os
Pecados
Capitais
na
Idade
Média",
http://www.pecapi.com.br/
- Univ.
Fed. do Rio Grande do Sul, setembro de 2004). In
http://www.hottopos.com/videtur28/ljacidia.htm . Acesso em 21.08.2011.
LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
REGRA do glorioso patriarca São Bento. Disponível em http://www.osb.org.br/regra.html
. Acesso em 21.08.2011.
SANTOS, Josinete Pereira dos. Da “Comédia Novelesca” Barroca ao cavaleiro Don
Quijote, tradição emblemática. (Dissertação de Mestrado) Niterói: UFF, 2008. In
http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2008-07-29T145853Z1536/Publico/Josinete%20Santos-Dissert.pdf . Acesso em 21.08.2011.
SILVA, Joaquim Carvalho da. Dicionário da língua portuguesa medieval. Londrina:
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TOSSERI, Olivier. Não havia higiene na Idade Média? In História Viva. São Paulo:
Duetto.
Edição
74.
Dezembro
de
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Disponível
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11
http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/nao_havia_higiene_na_idade_media_.html
Acesso em 20.08.2011.
.
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