#09 | novembro 2015 distribuição on-line gratuita Editorial 3 Lista de autores publicados 68 Créditos e contato 69 Julia de Souza Thiago Ponce de Moraes Miriam Adelman Marcos Vinícius Almeida Lucas Perito 31 Carla Kinzo 36 Marcia Pfleger Matheus Hatschbach Jimena Arnolfi em tradução de ensaio fotográfico de 57 63 5 20 41 10 52 14 Lubi Prates Vanessa Carvalho a imagem de capa e as fotos ao longo da edição são de Marcel Fernandes N ove. Abrimos o editorial escrevendo um número por extenso, assim como quem olha o tanto de caminho que já ficou para trás. Talvez (certamente, aliás) já te- nhamos usado essa metáfora da estrada várias vezes, mas somos viajantes deslumbrados, desculpem. Nesta edição, carregamos mais um pouquinho nas mochilas. Trazemos presentes de poetas, contistas, tradutores e fotógrafos gentis em dividirem conosco impressões de suas próprias viagens. Já houve quem perguntou o porquê de nunca falarmos muito sobre os materiais aqui. Pode parecer desculpa, mas deixamos que falem por si nas próximas páginas. São vozes lindas. Por fim, o que não pode ser ignorado: lançamos esta nona edição em meio a tragédias. Calaram-se tantas vozes. Calaram-se pessoas, calaram-se animais, calou-se um rio. Calou-se Mariana, Paris, o mundo. E tantos e tantos mais têm sido calados. Que não se cale a razão. os editores Julia de Souza [díptico]: um artista precisa de problemas concretos Ele chegou Ele disse que os artistas não podiam ser famosos. Ela disse que podiam. Mas não deviam. Ela disse isso para discordar. Ele disse os poetas, então. Não existem poetas famosos. Ela disse existem. Arrã, ele com cheiro de cerve- disse. Ela perguntou da sua vida. Da vida ja. Ela fez chá. Ele disse que sua casa era que ele tinha deixado para trás. Ele res- bonita. E que gostava muito de hoteis. To- pondeu sem querer e depois disse vamos alhas limpas, muitas tolhas, sempre ali, falar de você. Ele disse que ela fazia mui- à mão. Ela concordou, falou dos lençois tas perguntas. Perguntas demais. Ele dis- brancos e sempre esticados. Ela não po- se que gostava de estar distraído. Disse dia ter concordado, não devia. Falaram que se alguém chega perto demais, blo- do dia, de como tinha sido o dia de cada queia sua visão. E assim não se pode es- um. Ela tinha tido um dia cheio. Ele tinha tar distraído. Ele disse que era tudo uma tido um dia de artista. Um dia improdu- questão de perspectiva. Um artista preci- tivo como deve ser o dia de um artista. Ele sa ver o mundo, caso contrário, não exis- contou de suas andanças e dos hoteis que te. Ele disse que gostava de tudo, do im- conheceu. Nem sempre eram hoteis, às pressionismo, do modernismo, do poema vezes eram albergues pulguentos em Chi- concreto. De tudo. Que tudo no mundo natown. Ela perguntou se ele era famoso. era muito parecido. Ela foi irônica e disse 5 você poderia me dar uma aula de perspectiva. De Renascença. deviam. Eu disse isso para discordar. Ele disse os poetas, então. De tudo. Ela não foi irônica. Ela pensou no verso do Drummond Não existem poetas famosos. Eu disse existem. Arrã, ele disse. Eu como são tristes as coisas quando consideradas sem ênfase. Ela perguntei da sua vida. Da vida que ele tinha deixado para trás. pensou mas não disse. Ela devia ter dito. Ela devia ter admitido Ele respondeu sem querer e depois disse vamos falar de você. Ele que roubou esse verso uma vez porque ele tem tudo a ver com disse que eu fazia muitas perguntas. Perguntas demais. Ele disse desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra desejo seria que gostava de estar distraído. Disse que se alguém chega perto demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que fosse para fa- demais, bloqueia sua visão. E assim não se pode estar distraído. lar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas. Não a pro- Ele disse que era tudo uma questão de perspectiva. Um artista nuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a visão. Ela precisa ver o mundo, caso contrário, não existe. Ele disse que não se lembra dos detalhes. Não se lembra que roupa ele usava gostava de tudo, do impressionismo, do modernismo, do poema ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou sua visão. Lembra concreto. De tudo. Que tudo no mundo era muito parecido. Eu apenas que ele chegou, passou duas horas sentado em seu sofá, fui irônica e disse você poderia me dar uma aula de perspectiva. e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que eram pontes De Renascença. De tudo. Eu não fui irônica. Eu pensei no verso nunca atravessadas, que eram movimentos para frente e para do Drummond como são tristes as coisas quando consideradas trás, que repeliam qualquer coincidência, como quem não quer sem ênfase. Eu pensei mas não disse. Eu devia ter dito. Eu devia chegar nunca ao fim do poema. ter admitido que roubei esse verso uma vez porque ele tem tudo *** Ele chegou a ver com desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra desejo seria demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que foscom cheiro de cerveja. Eu fiz chá. Ele dis- se para falar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas. se que minha casa era bonita. E que gostava muito de hoteis. Não a pronuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a Toalhas limpas, muitas tolhas, sempre ali, à mão. Eu concordei, visão. Eu não me lembro dos detalhes. Não me lembro que rou- falei dos lençois brancos e sempre esticados. Eu não podia ter pa ele usava ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou minha concordado, não devia. Falamos do dia, de como tinha sido o visão. Lembro apenas que ele chegou, passou duas horas senta- dia de cada um. Eu tinha tido um dia cheio. Ele tinha tido um do em meu sofá, e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que dia de artista. Um dia improdutivo como deve ser o dia de um eram pontes nunca atravessadas, que eram movimentos para artista. Ele contou de suas andanças e dos hoteis que conheceu. frente e para trás, que repeliam qualquer coincidência, como Nem sempre eram hoteis, às vezes eram albergues pulguentos quem não quer chegar nunca ao fim do poema. em Chinatown. Eu perguntei se ele era famoso. Ele disse que os artistas não podiam ser famosos. Eu disse que podiam. Mas não 6 privilégio esse ano farei cinco anos em um ele disse quem fica parado morre lembre é preciso matar um leão por dia e há leões de cinco cabeças ele disse cinco cabeças em um leão ele disse engole o choro isso é coisa da sua cabecinha você é um homem ou um animal para de olhar as nuvens para de olhar o chão para de ler poesia chuva de estrelas cadentes não há não vai correr a maratona se não o bicho come esquece o dorso fraturado do tigre ele disse um pouco de suor não faz mal imagine conselho bom não sai de graça mas hoje estou de bem com o mundo não há de quê mas por favor sai sai sai desse vão de escada vê só esse pé direito que privilégio e você aí debaixo desse vão de escada. 7 dois sonhos maus ou autobiografia chegavam todas as noites. Pulavam o portão II. Está ela ainda criança no banco de trás de um automóvel da casa e iam a seu quarto violá-la enquanto dormia. O estupro de passeio. Nos bancos da frente, seu pai e sua mãe – não há tinha o único objetivo de contaminá-la com o vírus da Aids. De- regra quanto a qual dos dois é o motorista, eles se revezam ar- pois de algumas tentativas fracassadas, disseram ter finalmente bitrariamente. De repente, os bancos da frente se esvaziam: não conseguido transmitir a doença. Os ninjas não eram verdadei- há mais pai nem mãe, não há mais um condutor no automóvel, ros ninjas, isso se sabia, mas vestiam-se como tais, todos de pre- que assim mesmo segue rodando pela cidade. Ela não possui to e com gorros que deixavam só os olhos de fora. Havia mulhe- meios de saber qual será a rota escolhida pelo carro autômato, e res no bando. Quando soube que estava contaminada, resolveu tampouco qual o destino final. Ela sente um desespero estranho tomar providências. Foi a um posto de saúde, que mais parecia e abafado, mas se mantém calada e sem cinto-de-segurança: da um laboratório ou um centro veterinário. Contou o ocorrido à janela vê a cidade familiar se transformar aos poucos em uma mulher do balcão e ela imediatamente lhe ofereceu um antído- paisagem que é sempre nova. I. Os ninjas to. Uma só dose que reverteria de pronto a contaminação, mas a deixaria careca. Julia de Souza tem 28 anos, nasceu e vive em São Paulo. Formou-se em Letras pela USP, onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado sobre a prosa de Hilda Hilst. Em 2013 lançou seu primeiro livro de poemas, Covil, pela editora 7Letras. Publicou poemas em diversas revistas, como Piauí e Pessoa e também o conto “Moinho” pelo selo digital Formas Breves. Trabalha como preparadora de texto para algumas editoras. 8 Thiago Ponce de Moraes olho pela janela através do vidro baço o escuro da noite a estender seu limiar para aqui e adiante sua caligrafia torpe enquanto tenciono escrever a pressa os gestos da mudança no que vejo e risco algumas coisas outras deixo ao papel estrelas estelas cheias de inscrições enquanto tenciono esta caligrafia baça este vidro fino torpe tenciono escurecer a noite e suas pequenas janelas de luz pontos até o limiar até a fúria com que vejo o aqui e o adiante a se aproximar a fúria em que arrisco não mais ser mas escurecer ou escapar às pressas com a caligrafia que o esforço ruidosamente espessa com a caligrafia que esgarço para pela janela escrever seus riscos luzes sua fúria escura tormenta a avançar a noite o risco as estrelas aqui enquanto algumas coisas esqueço outras vidros gestos noites adiante cesso traço teço 10 Quando balbucias tuas sílabas E eu te devolvo a noite, Estás em minha boca e tua língua É minha língua. Quando fremem os teus lábios E eu os toco com a carne, Estou já sobre teu corpo e teu corpo É meu corpo. Quando impera o silêncio E meus olhos os teus tão perto, Estamos juntos entre as pernas, existimos, Somos nossos. Meu olho se abre como ferida, Abre-se como tua boca incerta, Porto íntimo em tua fronte. Abre-se em falhas e lágrimas, Abre-se em fenda, chaga impossível, Abre-se de tua cicatriz, como um livro, Abre-se como tuas pernas Que me apertam inconsútil Até que cedo e me achego cego Em derradeiro afã À fonte que ao se dar Me suga por completo, Que me sutura vivo Da noite até de manhã cedo. 11 As cores mudam Nos céus acima de nossas cabeças Mudam As estrelas e A maneira pela qual Emitem luz Muda O que víamos e o que vemos Nos fissura Nos sentimos Nos tocamos Passado e promessa As campanas Se encontram Nossas trompas Entre as coxas Aqui Nossa música Enquanto Sob um timbre de arrepios Mudos O agora Vigora Thiago Ponce de Moraes é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006) e De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010), além do livro de ensaios Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém: específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Faz parte do Conselho Editorial da Revista de Poesia e Debates – Zunái e foi editor da Revista Confraria de Literatura e Arte. Atualmente, é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). As peças aqui publicadas fazem parte de seções distintas de sua terceira compilação de poemas: Dobres sobre a luz. No ano de 2015, participa de dois festivais: 31º Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá) e XX Encontro Internacional de Escritores (México). 12 Miriam Adelman Vida Virtual Desça do preto e branco ônibus da vida. Aqui você, não importa quem for nem para onde ia, terá seu lugar para brilhar, aquela foto a cores que encontrou seu melhor ângulo, apagou a inadequada sombra, e poderá ser visto – enquanto a página não rolar muito para baixo, e se as configurações permitirem – por um navegante solitário em Beijing ou na Croácia, esse pequeno sorriso seu que será para alguém, o mais intrigante mistério. 14 Expectativa Quando chegar a primavera não irei me surpreender com o sol repentino ou tua mão fria posando na minha nuca. Nas estradas que um dia amanheceram brancas haverá apenas a esperança sutil de um calor que dure mais um pouco de cores pequenas que despontem do jasmim ou dos juncos que crescerão na terra molhada, e eu terei mudado em alguma coisa desde o lugar onde hibernei com meus ursos mansos no oco de uma árvore, apenas sugando amoras doces e alguns cenas da vida, e se por acaso houver alguma aprendizagem, será apenas das mais simples, com as patas no barro escuro e fresco, sabendo das chuvas e dos caminhos enganosamente infinitos. 15 Só quis Só quis estar no mundo. Era muito simples. Ouvir muitas línguas, olhar nos olhos pegar um trem ou andar no vento, ou até num grande navio que - se navegasse para uma ilha de promessas de cor esmeralda, eu iria mas se afundasse, também ia dar as últimas braçadas e entregar-me as salgadas ondas por não querer para mim o triste destino de sobrevivente. Algum segredo procurava mas sabia que eram todos mentira, que a chave era apenas o mais simples repetido de outra maneira com ar de interessante ou triste como passar uns dias de pão e água. Qual a raiz e o quê é supérfluo? Há apenas a busca, apenas a esperança Fresco Clamava pelo pai mas foi a mãe que veio. As muralhas da cidade pintadas de vermelho-sangue. Cenas de destruição em toda parte famílias engolindo sua última cena, um campo regado a ossos de javali e codorniz, jarras que o inimigo despedaçou e todo sobre um mesmo chão (isto foi antes que inventaram perspectiva). Finalmente, a visão: um escuro corredor em caracol e um só átrio, banhado em luz. que o gesto conte. 16 Fábula III, ou “as formas da coragem”. Para Joyce, Hettie e Diane. E para as que vêm chegando... Era apenas uma menina e o mundo, um lugar lotado de criaturas com sonhos baratos. Pegava todos os dias, de manhã o bonde que descia a ladeira, ela via figuras seu coração dando saltos no ponto dançando na água ou nas chamas onde a curva sugeria uma fuga da noite e sabia que onde a mão do condutor podia em algum lugar o caminho bifurcava vacilar por um instante e perder e seria só o rumo que ela conseguisse o rumo. vislumbrar quando todo mundo parasse Noitezinha, na hora da sopa de lhe falar, de lhe indicar com a mãe chamava as mãos ou apontar com os dedos para ela colocar na mesa o enferrujado dever, ou quando ela os pratos azuis, os guardanapos de pano não mais escutasse. amarelados, as grandes colheres, Os meninos pulavam e ela obedecia, os vagões do trem ou as mansinha, as unhas de esmalte ondas mais altas, e o tempo todo ela de uma semana sabia que isso não era para ela guardando seu segredo escarlate. porque não era longe o suficiente Quando lá fora chovia, como de ou talvez porque ser costume, gotas misturando-se com poeira e através da janela suja todas as formas alongavam-se, encurtavam-se, apenas uma triste fêmea da espécie não lhe permitisse um lugar entre os que desafiavam 17 os mares, a Bruxa de Novembro ou o Chinook. Enquanto isso os garotos saiam e voltavam à casa. Ela ouvia suas histórias e percebia como esticavam suas meia-verdades sobre a bruma, as baleias, os adversários com suas espadas, ou as armas comuns do bandido da esquina. Dançava sozinha frente ao espelho, diante dos escuros olhos ciganos, examinando a curva dos seus braços, o quadril que se alargava, os Miriam Adelman, nas- cida nos EUA, mora em Curitiba desde 1991. É professora da UFPR, da área de sociologia, desde 1992, e hoje atua também como pequenos seios que endureciam sob um fino tecido, as pernas que embora curtas pudessem carregá-la muitas milhas. Sentia então um estranho tipo de medo-coragem professora da pós-gradu- que lhe dizia coisas inteligíveis: ação de Letras dessa ins- que poderia dormir ao relento, tituição. Além dos traba- construir um provisório lhos acadêmicos, escreve crônica e poesia, e se dedica à tradução (acadêmica abrigo, aprender as línguas de humanos e tigres, ser nômade e literária). Um dos seus como qualquer uma projetos em andamento ou como nenhum outro. diz respeito ao estudo e tradução das escritoras da Geração Beat, ainda pouco And then she went... conhecidas no Brasil. 18 Marcos Vinícius Almeida Folia Era tempo de frio e o pai gostava de ver os velhos tocando. Primeiro a missa, depois a cachaça. O padre leu o Eclesiastes e falou do mundo. De ponta-cabeça — dias contados —, fim de tudo. Os velhos subiram na carroceria do caminhão e começaram. João lambuzava a boca na canjica. Viu o padre encostar no balcão da barraca de lona e virar meio copo e morder uma lasca de churrasco. E homens fedendo a quentão passando. Olhos de brasa. Apertavam as ancas das mulheres que riam, girando, ali de frente do palco. O churrasquinho chiando na chapa e as crianças lá na frente tacando copos descartáveis na fogueira. Cacos de brasa avançavam no rumo do céu, num riscado. E sumiam. 20 Vamos lá perto, perguntou para a mãe se podia. Leva, disse o pai, sem desviar os olhos dos velhos na carroceria do mercedão amarelo. escalaram um riscado vermelho. E apagaram. Os moleques ali pouco falavam. Corriam, pegavam e jogavam. João ia andando, meio a esmo. Queria outra coisa, alguma A mãe pegou a mão do menino e foi no rumo do fogo. Os coisa grande. Só parou quando viu um galho caído, enroscado tocos de lenha bem maiores que aqueles que usavam em casa. no canteiro. Pegou o galho e tentou puxar, mas não conseguiu da Eucalipto, a mãe explicou. D. Joana e d. Rosalvina também olha- primeira vez. Culpa dos braços miúdos e finos. Soltou e encarou vam o fogo. Falavam que naquele tempo a fogueira era maior. as coisas, procurando um jeito. Precisa comer mais tutano, o pai Tinha mais gente. Naquele tempo era melhor. sempre dizia. Puxou outra vez, com força, mas pouco adiantou. Naquele tempo era como um lugar, donde as pessoas tinham Foi aí que Irís e Rafinha chegaram. Agora vai dar. Agora é fácil. sido empurradas. Sempre tinha alguém falando naquele tem- O galho deu um estalo. E as folhas verdes chiavam enquanto po em tom contrariado — à maneira dos desterrados, há muito arrastavam. O pai não gosta de folia. Os outros moleques come- exilados, há muito tempo longe de casa. çaram a gritar. E se amontoaram feito procissão de Sexta-Feira Os moleques catavam tudo o que fosse e atiravam no fogo. Santa: misto de enterro e festa — arrastando um santo de gesso Uns faziam feixes com espetinhos de churrasco. Outros joga- ou célebre cadáver falso. Os moleques batiam na rabeira do ga- vam latinhas e garrafas pet. A maioria, copos descartáveis. Res- lho. Chutavam. E todo mundo olhava. Perto da fogueira, como tos de guardanapo sujo. se tivessem treinado antes, fizeram uma manobra e jogaram o Podia ir mais perto? Igual aos outros? galho lá dentro, de uma veizada. Espirrou um chumaço de fa- Perigoso. ísca. Sob os estalos da folhagem verde, a coluna crescia em go- Mas então passava o Rafinha, Baiano, Bareta, todo mundo jo- mos, cada vez mais fartos. Que cabeça! Onde já se viu? Crescia gando latas de cerveja na fogueira. no rumo da rua, mas depois foi virando, virando na direção do Igual aos outros? mercedão amarelo. Fumaça não pensa, mas era quase isso. A co- A mãe olhou para trás e disse sim. Só um pouquinho. João luna se deitou de uma pancada sobre os velhos. soltou da mão dela e correu. Andou ao redor da fogueira, olhando as línguas tremulando pontudas. E como eram grandes as *** brasas. Igual gelo de fogo. Brasa era gelo de fogo. Tirou a blu- A lavareda que subia na trempe do fogão tinha diminuído. sa e amarrou na cintura. Se chegasse mais perto, ia derreter o Palha e sabugos consumidos. João achou melhor ajeitar o fogo. rosto igual aquela cabeça de boneca velha que jogou no fogão Pegou um toco de lenha, mas devolveu no lugar. Precisava esco- uma vez. Viu uma latinha no chão. Mirou no meio da fogueira lher direito. Precisava de um toco melhor. Pegou outro. Virou o e jogou. A latinha bateu no toco e a fogueira cuspiu faíscas que toco no fogo e foi se sentar no rabo do fogão. 21 O pai entrou logo depois. Passou direto para a pia levando de quem tivesse passado do serviço direto para o balcão. Cum- a vasilha cheia de mandioca fresca, ainda suja de terra. Foi no primentou o pai e disse que fazia muito tempo. E o pai disse que rumo do fogo. João só olhou. Só olhou como se já soubesse. O pai fazia tempo demais. O homem de barba amarela tinha as per- sacudiu a cabeça, não é certo. E puxou o toco de lenha e mostrou nas moles e um copo amassado na mão. Passou a mão na cabeça que não pode enfiar as costas do pau no fogo. Não é certo. Levou de João. E da última vez que tinha visto o rapazinho, o rapazi- lá fora, bateu a brasa. Voltou com o toco virado — do jeito certo. nho era um cisco de gente. Cabia na palma da mão. E mais uma E enfiou na boca do fogo. vez o homem disse que fazia muito tempo. E mais uma vez o pai disse que fazia mesmo tempo demais. Por quê?, João perguntou. Zanga com a vida, disse o pai. *** Tempo é doido, disse a mãe. Só aí o pai perguntou como ia o Toninho Esperança, primo do homem de barba amarela. E aquele nome mudou a cara do Nada mais do que a faísca de um impulso arrastou os três homem de barba amarela. Bebeu um gole e disse que tinha bons samaritanos, praticamente juntos — impelidos por neces- acontecido desgraça demais, mas que agora ele tinha achado sidade de ordem, embora não muito conscientes disso —, ar- sossego. Toninho Esperança tinha ido levar uma imagem de São rastavam o galho para fora da fogueira, para fora da praça, só Jorge para d. Maria do Bilé reformar. Era uma surpresa para a que não sem resistência. Iam sob a zombaria de meia dúzia de mulher, devota do santo. Toninho Esperança vinha a cavalo no moleques — distribuindo chutes secos, gritando — na rabeira rumo do Estreito, com o santo embrulhado num saco. Na altura do galho. E foi a sanfona a voltar primeiro, depois a viola. Já ha- da porteira, onde tem um grande descampado, foi atingido por via música outra vez. Mas aquilo resistia no ar, enfraquecida, um relâmpago. O raio estourou na testa do cavalo e o Toninho diante do palco e dissipando-se à maneira das horas de espera. Esperança voou no chão. E o cavalo veio por cima. Das pernas. O Tão insistente quanto o fígado e a alegria daqueles homens e diabo. Partiu os ossos. E foram umas doze horas caído até o dia seus copos, olhos de brasa, atarracados à cintura das mulheres. seguinte, já que ninguém passava por lá. Do santo não sobrou Gargalhavam, giravam — imunes àqueles que arrastavam o ga- nem o caco. Abriram o saco e era uma farinha só. O ar ainda lho. Homens bons. Sérios. E, a certa altura, apenas três vultos fedia pelo sapecado. E o doutor constatou que as pernas do Toni- recortados sob a dobra de uma esquina, largando um rastro de nho Esperança tinham apodrecido. Não cortasse fora, Toninho fumaça no ar. Esperança ia morrer. Depois que acordou, Toninho Esperança Tudo doido, disse a mãe. parou de falar. Todo mundo na expectativa e esperando uma Então apareceu um sujeito da barba amarelada, exalando piada, uma frase embolada e retorcida, igual esse povo que en- quentão, com um chapéu na cabeça. Tinha na roupa a sujeira torta a cara e enrola a língua. Mas não. Nenhum gemido. Nada. 22 Em casa, ele ficava só no quarto. Não queria comer e era indife- mesmo no chão — lugar de bicho de sangue ruim. Bicho de san- rente a visita. Não tiveram jeito de pagar ninguém para ajudar, gue frio. Mas é preciso muito esforço para alimentar um senti- e só havia a mulher. Falava-se muito da coragem dos parentes mento. No ódio carece de cuidar tanto quanto de amor. Às vezes, da mulher, de como os Oliveira tinham se erguido naquelas até mais. E as necessidades práticas da lida com o irmão eram terras do nada. Igual peste. Seu bisavô Oliveirinha foi um dos tantas, que ele não teve escolha, sentenciou a mulher ao esque- primeiros a chegar àquelas terras, a destocar aqueles pastos to- cimento. E mesmo quando a encontrou no mercado, atarraca- dos na mão, abrir caminho na enxada e cavar poço da largura da com um mulatinho mais novo que ela, o homem de barba de rio. Mas não. Ela era diferente do povo dela. No começo, era amarela sentiu pena daquela desgraçada. O homem de barba comum ver a moça cantar na beira do tanque, ou disparar uma amarela coçou a barba e bebeu mais um gole. Olhou os homens gargalhada depois que um prato se espatifava no chão. Pelejava no mercedão, antes de continuar. A família se reuniu. E depois para o Toninho Esperança tomar banho, cortar o cabelo e trocar de muita discussão, ficou decidido que eles iam fazer uma es- as fraldas. Mas a dureza do homem era doutra natureza. Uma cala. Cada dia era um. No começo deu certo, dia sim, dia não. fé ao contrário. E ela não aguentou as birras, a falta de força do Mas mesmo assim era custoso demais. Nem todo mundo tinha marido, entregue a um mundo só dele. Ela mesma ia se con- paciência e jeito com a coisa. E cada um tinha seus próprios pro- taminando daquela tristeza, ia amuando também. Foi embora blemas. Era isso ou aquilo. A própria vida já é um pecado dana- morar de novo na casa dos pais. O homem de barba amarela do pra ajeitar. E no fim das contas o homem de barba amarela tentou muitas vezes falar com a mulher. Convencer a mulher ficou sozinho. E sozinho ele não dava conta de trocar fraldas e que não era direito abandonar. Fosse de modo contrário, Toni- forçar Toninho Esperança a comer uma sopinha de fubá que nho Esperança não arredava. Esperanças. Nada adiantou. A mu- fosse. Tinha de trabalhar. E minha mulher tava de saco cheio lher repetia que só ela entendia a realidade da situação. Estava dessa coisa de dormir longe de casa, disse o homem de barba ali todo dia. Na visita, é fácil julgar. E não tinha como garantir, amarela, antes de beber um gole. O resto da família nem liga- só na ideia, que o Toninho Esperança não fizesse igual. Só na va. Aproveitavam da boa vontade dele. Era um bobão. E real- ideia é fácil. Só na ideia é mentira. Na ideia todo mundo é bom. mente era complicado aguentar aquilo tudo sozinho. Por que É quando o calo dói dia por outro que a gente compreende — e não fazia igual aos outros? Se pelo menos o Toninho Esperança muda. Fez o que fez. E nada além. Era livre. Tinha que tocar a reagisse, xingasse, praguejasse contra Deus ou seja lá o que fos- vida. Mas a culpa não é dele, o homem de barba amarela tentou se. Se tivesse pelo menos raiva da vida e da mulher. Sei lá. Mas explicar. E a mulher riu: onde cai desgraça, há culpa. E bateu a não. Toninho Esperança só calava. Então ele chegou defronte de porta da casa. O homem de barba amarela sonhou por uns dias Toninho Esperança munido de ameaças. Ameaças de verdade. em furar o bucho da mulher. Furar e colocar tudo para fora, ali Decidido. Se Toninho Esperança não fizesse nada, ia embora. E 23 Toninho Esperança ia acabar com fome e com a calça cagada. Ia morrer seco e cagado, naquela cadeira de rodas. Era um esqueleto com pele costurada por riba do osso, disse o homem de barba amarela. O espírito tinha escapado. Naquela mesma noite, o homem de barba amarela acordou com um barulho. Na cozinha, encontrou Toninho Esperança. A cadeira de rodas jogada para trás, com o pneu ainda girando em falso. Um cheiro forte de urina que escorria pelo chão. E o fio da tomada do rádio, amarrado na torneira da pia. O homem de barba amarela bebeu outro gole — olhou na direção do palco, os velhos cantavam animados — e se calou. A culpa não é sua, disse a mãe. O homem de barba amarela abanou a cabeça, ameaçou umas palavras que emperram na boca. Abanou a cabeça e disse que qualquer hora eles se encontravam para fazer qualquer coisa. Apertou a mão do pai, passou a mão na cabeça de João. E saiu. E beberagem resolve?, disse o pai, olhando o homem de barba amarela rodopiar já longe. Se beberagem resolvesse, dono de bar era santo. A mãe não disse nada. Passou a mão na cabeça do menino. João olhava o homem de barba amarela. Tinha parado em frente a uma moça, o homem. Baixou o chapéu e fez um cumprimento desses de quadrilha, inclinando o corpo, baixando a cabeça. A moça sorriu. O homem rodou o chapéu no ar, pegou, enfiou na cabeça. Numa folia só. Depois virou o resto do copo, lançou no chão. E já saíram rodopiando, numa dança endoidada, sumindo no meio dos outros casais. João riu. Ninguém sabe nada, disse o pai. E já foi apontando a testa no rumo de casa. 24 O último jogo Reinaldo era conhecido peladeiro, o terror dos campi- Escombros, um rastro de destruição: zagueiros caindo, bufando, como prédios em ruínas, completamente perturbados. Volantes batendo cabeça contra cabeça — um bando de cabras- nhos de terra empenada, mas ninguém acreditava que ele daria -cegas. E a cena termina com a triste figura do goleiro esmur- conta de jogar num campo de verdade. Fora do jogo, tinha fama rando o vazio, soltando gritos incompreensíveis, contemplando de lerdo, meio atrasado. Tinha problemas com p e b e com m e o fundo do gol. n. Complicava-se com questões de direita e esquerda. Esquema tático não entra numa cabeça tão concreta. Mas bastaram dois treinos para o menino desmentir os mais Um horror. Escândalo. Espetáculo. *** pessimistas. Duas conversas demoradas com desenhos riscados Reinaldo tinha um irmão mais velho — um branquelo da com tijolo no muro do vestiário com seu Lazinho — velho do testa larga e cavanhaque torto, chamado Regis. E Regis vivia ro- nariz afundado, meio gago, constantemente com pressão alta. deando o campo em dias de treino e jogo, embora não gostasse Havia treinado o único juvenil decente a pisar naquele campo de futebol. Regis era um desses caras de alma enfezada. De se- por volta de 76. E agora, de volta ao comando do time, esticou gunda a sexta, com o cigarro de palha que mais parecia um cha- uma corda na ala esquerda do campo e disse ao Reinaldo que ruto no canto da boca, não fazia outra coisa a não ser dirigir um ele só podia correr naquela faixa — avançar quando o time ti- caminhão basculante nas vielas da pedreira, levando entulho vesse a bola e grudar no camisa 7 quando a bola estivesse com o de um lado a outro. Mas era bater sexta depois do expediente, adversário. Já na estreia, contra o Cruzeiro do Sul, fora de casa, ele se enfurnava num bar e destampava a beber. Alguma coisa um jogo que terminou empatado, Reinaldo desbancou um ma- ruim que vivia lá dentro escapava. Ele vidrava os olhos e saía grelo de chuteira amarela, meio metro mais alto, titular absolu- no tapa com quem fosse. Falava-se em coisa de espírito. Da vez to, para o banco de reservas. que andou quebrando as coisas em casa, jogando a televisão no E foi por essas e muitas outras coisas que o Reinaldo foi o me- chão e dando de querer avançar no pai, a vergonha foi tanta que lhor lateral esquerdo e um dos melhores jogadores no juvenil Regis chegou a tomar uns passes. E realmente durante aquele do Atlético Campo Grande, nos jogos escolares de 1996. Seu Chico tratamento espiritual as encrencas cessaram, mas não porque Azulão, a mais antiga e respeitada sumidade futebolesca daque- se comprovasse a tal mediunidade. Por determinação do men- las bandas, achava tudo aquilo um horror. “O moleque tem um tor, ele tinha cortado a cachaça. Óbvio: sem cachaça, não havia diabo em cada perna”, resmungava, quando Reinaldo disparava confusão. Mas foi passar a vergonha, ele voltou ao copo. E vira e com a bola. “É o jogador mais escandaloso que eu já vi.” E as ar- mexe o pai tinha outra vez que buscá-lo na delegacia, isso quan- rancadas do Reinaldo eram mesmo coisa de outro mundo. do a polícia não o deixava em casa. Regis chegou a enfrentar, 25 sozinho, cinco caras, durante uma festa no Campo do Meio. de tocar o braço do filho, teria sentido o quanto ele tremia. E se Quando já estava cercado, sacou um capacete de motoqueiro tivesse olhado direito, teria visto a mancha avermelhada no ros- que estava sobre o balcão. Até então armados com tacos de si- to dele. nucas e canivetes de cabo curto, os cincos sujeitos terminaram desmaiados. Dois deles com nariz estourado, o terceiro com o Regis estava de pé, olhos esbugalhados e as calças respingadas de molho. braço torto e o quarto caiu duro no chão, com as costelas fratu- “Na sua idade eu já me sustentava”, disse. radas. Não fosse a mulher do dono do bar entrar na frente — ia A mãe começou a tremer. Recolheu-se contra a parede. terminar em enterro de caixão lacrado. O pai, cujo espírito tinha para si que toda conversa era em Na casa de Regis e Reinaldo, a maioria das vozes vinha da televisão ou de algum aparelho de som. si mesma um pouco de conversa fiada, saía de casa antes que o sol apontasse e voltava só à noite, cansado demais para qualquer Regis chegou meio de fogo, num domingo à noite, e topou coisa que não fosse um banho, comida e cochilar no sofá diante com Reinaldo deitado no sofá da sala, assistindo ao jogo da se- de um programa de televisão com anões de fralda levando ras- leção. Sentou-se no sofá menor, acendeu um cigarro e ficou teiras, extintores de incêndio, testes de DNA que terminavam olhando o irmão. O pai tinha saído. O cheiro inundava o ar. A em choro e ranger de dentes. A mãe, sempre ocupada demais mãe preparou uma lasanha de frango e tinha comprado uma com roupas ou panelas, estava resignada com aquilo e com mui- Coca-Cola de dois litros. Ela entrou na sala com um prato esfu- tas outras coisas. Ainda há pouco, aqueles dois meninos corriam maçado e entregou a Reinaldo. juntos pela rua, sentavam juntos para comer. Quando a situação “Que vida, hein?”, disse Regis, com a voz embargada. lhe vinha à cabeça, ela dizia, em conversas sussurradas ao apa- A mãe baixou os olhos e Reinaldo nem olhou para o lado. É gar das luzes, que o caso daqueles dois meninos era de coisa de sempre assim que resolve. Então a mãe saiu para servir outro vida passada. prato. A travessa farta, o queijo escorrendo nas bordas. Tinha “É Deus que dá oportunidade de a gente vir junto com um ini- feito quantidade que sobrasse para o marido e o filho coloca- migo, pra aprender o perdão”, ela dizia ao pai dos meninos, que rem na marmita. não retrucava. “Quando o caso é custoso, vêm gêmeos, e até gru- Regis havia saído de casa cedo e provavelmente não havia dados, que é pra aprender de uma vez.” comido nada e ela colocou três pedaços no prato dele. Quando Fosse como fosse, agora aqueles irmãos não se davam. ela girou a tampa do refrigerante, ouviu o barulho dos cacos do “Mãe, a senhora viu minha chuteira?”, perguntou Reinaldo, já prato nopiso. Reinaldo continuava sentado, na mesma posição que antes, olhos voltados para os cacos no chão. Se tivesse a oportunidade de saída para o jogo mais importante daquela temporada. “Tá no mesmo lugar”, respondeu a mãe, sem desgrudar os olhos da panela. 26 Ele deixou as chuteiras secando no varal, junto com o par “Assim não dá”, puxou um molho de chaves barulhento do de meias. Deixou os dois lá, tinha certeza, mas carregava só as bolso e abriu o velho baú de madeira no canto do vestiário. Pu- meias, encontradas caídas na terra. Não fazia sentido. Ele ba- xou umas camisas com números desbotados que pareciam ras- teu a terra das meias e procurou as chuteiras debaixo da cama, tros de verdadeiros números já não existentes, uma velha som- entre as roupas recolhidas do varal, debruçado sobre as caixas bra presa ao tecido, listras pretas e brancas — restavam furos entulhadas na garagem. Procurou até dentro do velho Fusca do do tamanho de golas e o cheiro de pano podre —, até que surgiu seu pai, há anos parado, juntando ferrugem e atraindo ratos. uma chuteira de couro fosco, cadarços duros, que parecia ter Reinaldo estava quinze minutos atrasado para o jogo quando sido transportada de outro século. pensou que talvez o cachorro as houvesse carregado para algum “Se sobrar, coloca duas meias.” canto. Assoviou e chamou. Não demorou muito e uma moita Reinaldo calçou três meias e seus pés pareciam ter encolhido, de capim se mexeu antes que o bicho saltasse e viesse em sua porque ainda havia espaço demais lá dentro. Ele corria como se direção. Mas ele rastreou aquelas moitas todas e mais não sei corresse atrás da própria chuteira, que parecia estar um pas- quantas vezes — tudo em vão. so à frente. Não tinha equilíbrio para lançar ou participar das O único lugar que não procurou foi o galinheiro. Seu pai dei- triangulações e contra-ataques e acabou passando o primeiro xava o lugar sempre trancado. Uma das coisas que enervava o tempo próximo da linha lateral, sem avançar — um terceiro e homem era chegar do serviço e topar com as galinhas — festei- falso zagueiro, compondo uma linha empenada, procurando o ras — devastando a beleza das couves. Ninguém mexia naquele limbo do campo. galinheiro sem as ordens do pai. Reinaldo chegou a dar uma Sem o apoio de Reinaldo, as jogadas de ataque de seu time espiada por fora da tela — uma das sete galinhas se mexeu no acabaram restritas às tristes e inofensivas investidas pelo meio- ninho, olhando de lado — e isso foi tudo. -campo. Aquele time do Flamengo da Ponte Baixa era bem or- Ele calçou as meias e depois um par de tênis e chegou ao ves- ganizado e logo os dois volantes mais um meia-direita recuado tiário no meio da reza, com o time já uniformizado. Vestiu o criaram uma linha de três homens, uma barreira que minou calção e a camisa número 6 e molhou o cabelo com o time sain- praticamente todas as ofensivas do Atlético Campo Grande no do já sob o som de fogos. O Flamengo da Ponte Baixa estava em primeiro tempo. Já beirando os quarenta, em um contra-ataque campo, se aquecendo. articulado no espaço deixado por Reinaldo, o camisa 11 avançou “Cadê a chuteira?”, perguntou seu Lazinho. Fedendo a conhaque, usando sua típica camisa de botões marrons com duas faixas cinza verticais, cheias de flores, seu Lazinho olhou para os pés de Reinaldo. em diagonal e acertou uma pancada da intermediária. Cebolinha, o goleiro, que era fanho, até que tentou, mas ouviu apenas o barulho da bola escorrendo na rede. O sol estava forte e seu Lazinho parecia ter lustrado a testa 27 numa lata de gordura. Havia manchas de suor sob os braços e imprecisa. Veio alta, descrevendo um arco de parábola que cru- nas costas. Não era um técnico muito sofisticado, principalmen- zou a rota do sol, girando e sem mostrar pistas de onde ia cair. te nos momentos de crise. Suas especialidades restringiam-se Reinaldo soltou a trave e começou a caminhar para trás, tenta- aos fundamentos, ali estavam todos os problemas e soluções do do se defender das rajadas do sol com a mão sobre a testa. Mas futebol. Pediu que os marcadores marcassem e os atacantes se a bola havia desaparecido. Ele continuou a caminhar de costas, movimentassem e chutassem para gol, que todos passassem a procurando sinais, qualquer coisa no vazio do céu. Quando deu bola com mais precisão e procurassem os vazios do campo. E por si, o goleiro gritava e era tarde demais. A bola caiu diante também aos reservas que arrancassem as chuteiras e as ofere- dos seus olhos, Cebolinha tentou rebatê-la, jogou-se contra Rei- cessem a Reinaldo. Mesmo constrangido — afinal, nem todos ali naldo, mas o camisa 11 do Ponte Baixa chutou para o gol. estavam satisfeitos com aquilo —, Reinaldo calçou e tirou cinco pares de chuteira até que um deles assentou firme nos pés. “É só jogar”, disse o treinador, passando a mão na cabeça do menino. O Flamengo da Ponte Baixa voltou ainda mais motivado para o segundo tempo. A cada dividida, o time todo gritava junto, in- Reinaldo bateu a grama da roupa sob os gritos e lamentos de Cebolinha, as expressões negativas dos zagueiros, o tapinha nas costas do capitão Valdinho. Enquanto o time tentava se recompor para soltar a bola, ele viu seu Lazinho ao longe, enxugando a testa, fazendo gestos indecifráveis. Olhou para a arquibancada e avistou seu irmão sentado sozinho, com uma lata de cerveja. clusive os reservas e a meia dúzia de pais e mães na arquiban- Enquanto meia dúzia de pais e mães gritava olé, o Flamengo cada. Essa onda de motivação logo no início deixou o Atlético da Ponte Baixa trocava bola de um lado para o outro, segurando Campo Grande ainda mais nervoso. Acuados pela marcação sob o resultado. Seu Lazinho até que tentou. Fez três substituições, pressão e sem encontrar espaços para avançar, começaram a colocou mais dois atacantes e resistia à beira do campo gritan- tentar lançamentos da defesa diretamente para o ataque. O que do calma, reclamado do juiz, cantando as jogadas de ataque. agravava a situação era que não conseguiam vencer nenhum Mas na confusão que tinha se tornado o Atlético Campo Grande, dos rebotes. Cada lançamento resultava em uma nova ofensiva o camisa 11 do Ponte Baixa avançou com facilidade pelo flanco do Ponte Baixa. esquerdo do campo. O primeiro zagueiro terminou deitado de- Uma dessas jogadas terminou em escanteio. Como sempre pois de ser ludibriado pelas pedaladas. Quando chegou à linha fazia, Reinaldo se posicionou no primeiro poste, para bloque- da grande área, o camisa 11 levou uma voadora por trás, soltou ar um possível cruzamento fechado. Antes que o juiz apitasse, um grito de dor e caiu rolando no chão. Pela violência do grito, ainda espiou a movimentação dos jogadores adversários na pe- parecia ter partido algum osso. Os jogadores se amontoaram e quena área, perseguidos pela fúria dos marcadores. Reinaldo no meio da confusão o juiz tirou o cartão vermelho e apontou o se agarrou à trave e ficou de olho na bola. Mas a trajetória era vestiário para Reinaldo. 28 *** Ele caminhou sem olhar para trás. Tinha um bolo queimando na garganta e as lágrimas iam caindo, à medida que ia dei- O pai acordou na mesma hora de sempre e colocou o café xando o campo. Os gritos em comemoração ao terceiro gol che- para coar. Ele calçou as botas e foi até o quintal carregando uma garam abafados nas escadas e não havia ninguém no vestiário. lata com milho e ração. Ainda havia estrelas e o canto de galos Tirou o uniforme de qualquer jeito e calçou seu velho tênis. Por próximos e distantes. Estranhou o silêncio. Havia casos de co- que as coisas tinham dado tão errado? A água do chuveiro era bras que bebiam ovos, também das últimas matilhas de lobos e fria e ele ainda sentia frio enquanto ia para casa. cães selvagens que atacavam no meio da noite, saruês famintos O pai assistia à televisão e não perguntou nada sobre o jogo. e também vagabundos que agem quando menos se espera. Mas Embora não tivesse sede, Reinaldo foi à cozinha e bebeu dois co- estava tudo trancado e não havia buracos na tela e o cachorro pos d’água como quem procura algum consolo. Ele andou pelo dormia na casinha, no lugar de sempre. Abriu o portão do gali- quintal e olhou para o céu muitas vezes, mas não havia nada de nheiro e caminhou devagar. O sol vinha lento ainda escondido. diferente no céu nem na terra. Quando voltou para a casa, viu as Só a preguiça de uma mancha cinza surgindo ao longe, e o escu- chuteiras dependuradas no varal. Como se tivessem sido lava- ro daquela hora ainda era o mesmo escuro da noite. Ele girou o das ainda há pouco, tinham um cheiro de água sanitária mistu- bocal e a luz caiu sobre as galinhas. Imóveis. Pescoço quebrado, rada com alguma outra coisa que ele não conseguiu identificar. recolhidas no ninho. “Seu pai achou lá dentro do ninho”, disse a mãe. “Tinha um Debaixo de cada uma delas, os ovos ainda estavam quentes. ovo quebrado por dentro e eu tive que usar muita Q-boa.” Marcos Vinícius Almeida nasceu em 1982, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, mas viveu desde sempre em Luminárias, interior de Minas Gerais. Morou também em São João del-Rei (MG), onde cursou Filosofia, sem concluir, e em Porto Alegre (RS) por um tempo. Hoje, vive em São Paulo e cursa o último semestre de jornalismo. Publicou textos de ficção em revistas e jornais, como a revista Cult, Suplemento Literário de Minas Gerais, entre outros. Também em algumas antologias. Foi um dos laureados no Prêmio Ufes de Literatura, em 2010. É autor do romance Inércia (Multifoco, 2009). E da coletânea de contos Quebranto (e-Galáxia, 2014). Blog: http://quebracorpo.blogspot.com.br/ 29 Lucas Perito Quatro Formas de Eros (Fragmentos) À Diana I Perder a si mesmo como Um encontro ansiado II Quando nua doura a negra noite Que guardas em teu olhar III A comunhão nasce da morte de nossos filhos Que tu usas como alimento. Aos que não nascem Tu dás repouso no meu desejo; Engole-os como bebo seus felinos olhos. IV Não temos fronteiras. 31 O Despertar Num entrever de águas pesadas, o nado se torna denso, lerdo, [perto Nada é torpor, um pulmão que abre e fecha frente o vento que chega Uma montanha de curvas sobre o salgueiro que freme a luz que entra nesse íntimo espaço É um membro que cresce na vista que mais branca se torna O algodão ao lado, o ato em cima, A constatação do terrível despertar dos sentidos. Do Escrever Sobre uma Raposa É uma presa que marca Em traços rubros em meio a folhas virgens Agudo passar entre árvores anêmicas Todo belo se encontra nesse andar Incerto traço que rasga a mata Que fremee fere Uma marca na presa. 32 Em Noites de Sol Em tempos revoltos, onde, longo, parece o caminho, perece o ser de entendimento. Locais, onde não se encontra o mal, pois oposto não é dado. Caminham homens, com olhos arados entre mulheres que não caçam. A música não mais ouvida faz sombra como seres ou objetos. Espalham o suspiro dormente do momento que se repete. Para assim se ver, em ilhas de húmus e pétalas, que desfolham o teu lugar. Observa-se desonesto caminho dos desterrados ou envergonhados, Que aqui, não encontram seu lar nem sua morada. Não procures as faces dos destemidos - que aqui não os verás. Os dias de trabalho, longos são, enquanto eterno sol brilhar. É na escuridão, longe da intrusa e dentro da noite que luzes se formam. Há caminhos que sempre contaram, mas que contados nunca foram. Adeus - frente a bandos de vaidosos discursos magros, E se os sinos tocarem espera-se que dias melhores virão. 33 A Ungaretti Como aquela pedra de S. Michele, Dura, ainda que natural A mim se aproxima Sua gélida face; Cinza e amorfa Confunde-se com que se tem De inverso; Distingue-se, pois figura eternidade. Nasceu em São em 1985. em Comunicação Multimeios É Paulo graduado pela em PUC- SP. Trabalhou na editora Empresa das Artes, escrevendo livros ligados a história e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico Caminhos da Mantiqueira (2011) de Galileu Garcia Junior. Tem alguns poemas publicados na Revista Zunái, na Revista Diversos Afins, na Revista Benfazeja, na R. Nott Magazine e no Caderno-Revista 7 Faces. 34 I. Carla Kinzo não mora no tijolo a casa ou no barro não está na porta a saída ou no escuro o medo o caminho não é o que afirma o papel o mapa não é o terreno não depende da palavra amor o amor nem toda confissão nem todo metro é poema como nem toda água salgada é lágrima ou mar 36 II. às vezes é dentro de um gesto o dia mesmo quando o dia é mais pesado que o gesto às vezes é também como o amor num anel sem marca de início sem marca de fim muitas vezes é numa capela o clamor pela vida outras numa esquina profana algumas vezes é longe de casa o adubo pra raiz sob os pés na maioria das vezes é no espaço da planta de um pé o cimento da casa ou como quando encontramos na planta do anel na volta de um gesto o caminho mais breve ao lado leve da cama III. É talvez na linha que divide a água e o ar no exíguo espaço de um copo Ou mesmo no fio de concreto que separa a calçada dos carros Na cena em que você se equilibra num meio fio às seis da tarde há muita gente na rua você não me vê do outro lado olhando esse quadro com a sede que não se mata com a água do exíguo espaço de um copo É ali que resisto bebê-lo, equilibrista, para tentar inscrevê-lo no espaço fatal de uma palavra 37 IV. Seus dedos na direção do meu rosto a pinçar um cílio caído sobre as maçãs são os únicos, meu amor, capazes de suspender o derramado dos dias 38 V. Riscar o grafite na superfície da folha com a mão leve como quem rouba o negativo do verbo de outros tempos de outras mãos ainda que sejam as mesmas as mãos sobre o papel há muito esquecido Dar voz ao que se calou mas restou como réstia vaga impressão de sílabas dores e abraçar um sentido contrário como quem atira fogo ao próprio corpo pra buscar alguma luz Carla Kinzo nasceu em São Paulo, em 1980. Publicou os livros Matéria (7letras), ao lado de Caetano Gotardo e Marco Dutra e Cinematógrafo (7letras). Trabalha em seu novo livro, Cartográfico, contemplado com um ProAC de Criação Literária em Poesia. É mestre e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Seu primeiro livro infantil, Grão, fica pronto nesse semestre pela Pólen Livros. 39 A ânfora de ouro “E eis que em meio à palha descobre o bom agouro: encontra o fazendeiro um maciço ovo de ouro!” Deitado na Marcia Pfleger cabana – que apesar de muito velha me há de ultrapassar – recordo a passagem, em minha vida, da ânfora de ouro. Na verdade, nenhum um dia é gasto desta triste sina, sem voltar a lembrá-la. Os primeiros ventos do Outono sopravam prenunciando chuvas. O rio estava barrento, as árvores, desbastadas. As favas verdejantes amarelavam nas ramas e o mundo inteiro parecia uma grande ruína sob a luz de um continuado crepúsculo. Naquele dia, voltei cedo à cabana. Gelados os pés e as mãos machucadas na horta, ansiava pelo calor do fogão a lenha. A gaita de boca e o chimarrão eram as únicas companhias. Um toc-toc na porta espalhou uma surpresa naquele calor de aconchego, que era quase de temeridade. Abri a porta cautelosamente e um velho franzino, de olhar afável, pediu-me pouso. A ventania enrolava sua longa barba. Tinha as roupas puídas, um alforje encardido e um par de sandálias de couro ressecadas. Não gosto de abrigar desconhecidos. Não gosto de abrigar seja quem for, nem mesmo um cão faminto, portanto já ia me desvencilhar do inconveniente quando um grande relâmpago – que o Céu não perde o vício bíblico de anunciar desgraças – fez desabar a tempestade. 41 Nessas condições, a contragosto, consenti que o velho entrasse e rapidamente cerrei a porta à chuva torrencial. De início fui avisando que não tinha nenhum guisado. A refeição seria pão, banha e café amargo. Não gastaria com o velho generosas se revelam - ele disse agradecido, com sua voz baixa e rouca. Por conta disso, retirou do alforje a pequena ânfora, depositou-a no chão e com a mão direita sobre a tampa, exclamou: nem queijo, nem mel. Ele disse que aquilo seria suficiente. Na - Seja o meu mérito com este repartido. verdade, comia pouco, falava também pouco, na mesma contra- E assim que levantou a tampa, a ânfora estava cheia de mo- partida em que eu olhava muito, observava muito. Percebi, entre outras coisas, que o alforje do velho tinha algo de peso – um volume que retinia como metal. Não me contive: edas de ouro! Dei um salto para atrás, estupefato com aquela mágica. Ele me entregou as moedas, agradecendo a hospitalidade. Segurei- - Que é isso aí que leva em seu alforje? -as com as mãos em garra, os olhos luzidios refletindo o brilho - Ah, sim, isto aqui...é uma ânfora. Veja. das moedas e as chamas que crepitavam no fogão de pedra. E tirou de dentro uma pequena ânfora de metal barato, vazia, - Como...como fez isso? - perguntei assombrado. fosca, sem adornos ou marcas. Tinha uma tampa, razão pela - Nada faço. Deus faz. qual eu ouvira o sonido dos metais. Imediatamente ocorreu-me que não poderia deixá-lo partir. - E o que leva aí dentro? Não ainda, pelo menos. Era imperativo descobrir o segredo da Ele disse com naturalidade: ânfora de ouro. - Não levo nada; Deus é que coloca aqui dentro para mim. Um pedinte de esmolas, deduzi. A ânfora devia fazer as vezes do chapéu... No mais, não carregava um dinheiro sequer - pude conferir porque, na madrugada, enquanto um pesado sono o acalentou, revistei-o cuidadosamente. Nunca fiquei tão satisfeito com a intemperança do clima. A chuva vinha em grandes golfadas contra a janela e fazia caprichosos canais no solo. A noite chegara mais cedo e foi então, que me ocorreu a ideia... Desta vez, servi ao velho também leite e queijo. Disse-lhe que estava maravilhado com o milagre que presenciara e que eu era Na manhã seguinte, como é hábito no Sul, o tempo continuou instável. A chuva parecia ceder e, de repente, recomeçava homem muito temente a Deus. Roguei-lhe que me contasse o prodígio da ânfora de ouro. com bravura. Ao longe, ouvi o fragor do rio e imaginei-o borbu- Ele mostrou-se reticente. Apenas me contou que era curandeiro, lhante sobre as margens. Não tive escolha senão permitir que o vagava pelo mundo tratando de pessoas pobres e ajudando os ne- forasteiro ficasse por mais tempo. cessitados como podia. A ânfora era um presente de Deus para que - É nos momentos de grande necessidade que as almas pudesse dispor de seus tesouros com generosidade e compaixão. 42 Apertei as moedas de ouro que trazia em meu bolso. Como Tomou mais um gole de vinho e suspirou reflexivo: seria bom vê-las multiplicadas! Coloquei a segunda parte do - Uma coisa maravilhosa isso que aconteceu comigo... plano em ação. A lenha crepitava no fogo e a chuva agora apenas tamborila- - Nada como um bom trago nestas noites frias - disse pegando um garrafão de vinho que guardava. Enchi dois copos e servi um ao guardião da ânfora. va de leve nas telhas.Eu mal respirava para não perder uma só palavra do que dizia. - Já faz alguns anos que a tenho. Não para riqueza própria, - Não bebo, muito obrigado. mas para repartir com quem necessite. Então, coloco minha Já esperava, portanto não me intimidei: mão direita sobre a tampa da ânfora e invoco a frase que o anjo - Ora, um copo de vinho não vai fazer mal. O vinho é bebi- me ensinou... da sagrada. Experimente, é de boa safra. Não vai me fazer essa Eu lembrava e citei: desfeita. - “Seja o meu mérito com este repartido”. Para ser gentil, aceitou. Fiquei olhando sua mão magra levar o copo até os lábios e beber lentamente, no mesmo molde de quem toma um café quente. Estendi a prosa até tarde, pois é sabido que o cansaço e o álcool fazem soltar a língua mesmo do mais carola. - Sim, isso mesmo, isso mesmo... - e bebeu mais um gole de vinho. - Por que não guarda algumas moedas para você? - perguntei. Ele me olhou surpreso, como se fosse óbvio: - Para quê? Eu tenho a ânfora de ouro! Ele terminava de tomar o copo de vinho e, na distração, eu o enchia de novo. Foi ficando sonolento, porém o sorriso já lhe Preparamo-nos para deitar. O ancião estava acomodado chegava fácil. Percebi a hora correta, quando comentava sobre numa rede no fundo da cabana. O fogo quase se extinguira e a importância da fé, e entrei no assunto: alimentei-o com algumas achas. Olhei sorrateiramente para o - Admiro quem tem uma fé assim, como a sua. E acredito que seja genuína. O milagre da ânfora é para calar os mais descrentes. Ele mordeu a isca e apanhou a ânfora, olhando-a com admiração. Então, contou: velho, que já dormia tranquilo, e com um grosso pedaço de lenha nas mãos, acertei-o sem piedade. Matei-o. Ah, mas eu não seria tolo de dar um fim ao corpo, sem tomar algumas providências! - Este milagre me veio num sonho... Um anjo do Senhor apa- Ciente de tudo o que me havia revelado, com o machado que receu e me entregou a ânfora. Disse que minha mão direita se- usava para cortar lenha, decepei-lhe a mão direita. Mão e ânfo- ria abençoada e todos os dias poderia repartir meu mérito com ra estavam agora em meu poder, prontas para me fazerem um alguém que eu achasse generoso. Quando acordei, encontrei homem rico, muito rico. essa ânfora ao meu lado. Nessa empreitada, meio atordoado pelo vinho e pelo afã do 43 crime, acabei derrubando o machado e Nenhum chá, unguento ou curativo re- ferindo minha perna. Do talho abaixo do vertia a ferida que se alastrava. Arrastei- joelho brotou um sangue escuro e grosso. -me até o cavalo e toquei para a cidade. O - Seja meu mérito com este reparti- Derramei um pouco de aguardente e en- vento era cortante e grandes poças cor de do...com este repartido...Repartir com al- faixei o local sem cerimônias. café com leite pontilhavam a estrada. guém... É isso! Já amanhecia com uma garoa fina. Embrulhei o corpo do velho na rede onde dormira e joguei-o no rio. A violência das águas revoltas pelas chuvas o arrastaria para longe, para nunca mais... Lavei numa bacia a magra mão decepada e pensei em guardá-la junto à ânfora sob uma tábua solta do piso, na escura despensa. Mais tarde, trataria de salgá-la para que fosse preservada. Estava um pouco febril e minha perna doía, mas mesmo assim, em lugar de deitar, não contive o impulso de conjurar o encantamento que me traria mais ouro. Segurando a mão do velho sobre a Foi quando me veio o que julguei ser uma revelação. Para pagar o médico, o remédio e o O médico iria até a cabana pela ma- que mais fosse - e principalmente para nhã, então, eu invocaria a graça afortuna- não deixar o dinheiro na cabana, tal o da para repartir com ele as moedas. Não apego que me incinerava - levei todas as daria tudo para o doutor, como o velho moedas de ouro comigo. fez comigo - daria somente uma moeda O doutor me deu injeção, fez curativos, (e já era uma boa paga) e as outras seriam receitou medicamentos e recomendou minhas. Era esse o segredo da ânfora. E que ficasse em repouso. Não aceitou pa- assim faria, sucessivamente, até que ti- gamento - dado o meu aspecto, imaginei vesse um tonel de ouro! que não desconfiava que eu era um ho- O pensamento me fez sentir bem, sen- mem rico, dono de uma ânfora de ouro! tir-me generoso e sentir uma certa ale- Perguntou onde eu morava e garantiu- gria em ser generoso. A perna até parara -me que iria lá no dia seguinte, para ver de doer, tanto o sentimento de esperança se eu melhorara. é abundante em suas dádivas. Na volta, tive de descer do cavalo porque havia chovido mais e a lama alta na - A sua perna não está nada boa. É melhor estrada dificultava a passagem. Escorre- que fique uns dias no hospital - disse o - Seja o meu mérito com este repartido. guei diversas vezes. Numa dessas, em al- doutor, apreensivo. Abri cautelosamente a ânfora. Estava guma parte do trajeto, acabei perdendo Eu mal escutara sua recomendação, as moedas de ouro que trouxera comigo. afoito que estava para ver de novo uma Ao dar falta da pequena fortuna, voltei pequena soma em ouro em minhas mãos. Fiquei cismando por um dia inteiro o atrás, a pé, arrastando-me, chafurdando Tivesse vasculhado o sentido de suas pa- que teria dado errado. A obsessão deu na lama, procurando desesperadamen- lavras, saberia que minha situação era trégua quando o mal-estar, causado pelo te as moedas, sem encontrá-las. Urrei de precária... Mas a lembrança do ouro me ferimento da perna, foi tomando espaço. frustração e ódio. deixava febril. tampa da ânfora, invoquei: vazia. 44 - Doutor - disse ofegante - eu quero lhe pagar... Apesar de sua objeção, entrei claudicante na despensa da casa, cerrei a cor- algum tempo. Após algum tempo, a perna vai ficando pior, obrigando-me a permanecer deitado. Já nem procuro mais o médico. Sou um homem condenado... tina e tirei das tábuas do chão a ânfora Os poucos recursos que tinha, esta de ouro e a mão (que eu já havia salgado). invalidez precoce acabou por diluir, dei- Murmurei o encantamento: xando-me mais miserável. - Seja o meu mérito com este repartido... A mão do velho queimei nas cha- Abri a ânfora. mas do fogão de pedra, pois me causava Vazia. pesadelos. Falei mais alto: Só restou, encostada num canto da ca- - Seja meu mérito com este repartido. bana, a ânfora vazia, cujo metal barato, A ânfora continuava oca, surda ao assim como meu coração, parece nunca meu apelo. ter conhecido brilho... Repeti várias vezes, com lágrimas de frustração, até bradar em alta voz: - Seja o meu mérito com este repartido! Seja o meu mérito com este repartido! ... Há, há, há, há...! A ânfora, a maravilhosa ânfora de ouro, estava vazia, vazia para sempre... O doutor me encontrou chorando na penumbra. Arrastou-me até o leito e disse que meu estado febril havia piorado. Levou-me ao hospital onde fiquei alguns dias. Curei-me. Voltei para casa. No entanto, a ferida retorna após 45 Crepúsculo solferino avançava para o interior do cemitério, E, se por um acaso remoto, a descobris- seus passos ecoavam estranhamente no sem? E se ele estivesse lá? Não. Muito ar- cascalho. Por um momento pareceu in- riscado. Corria um boato sobre transfor- deciso. Percorreu com os olhos a imen- mar as velhas edificações e outras ruínas estava silenciosa. Nenhu- sidão dos túmulos em ruínas, a tristeza do local em patrimônio histórico. Não ma criança brincava de roda nos arredo- dos mausoléus que se recortavam contra lhe agradava a ideia de que outros que- res, como da última vez. Ao longe, casas o céu gris. Reconheceu o caminho e, bem brassem aquela paz, profanassem o que esparsas e, mais além, alguns casarões devagar, recomeçou a andar, a cabeça estava fadado a permanecer no esqueci- antigos, remanescentes de um tempo de baixa, os olhos apertados. mento. E se entrassem na velha capela, e (Uma continuação inspirada no conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles) A tarde glória da região, que há muito havia terminado. Um frêmito nervoso percorreu-lhe o corpo quando avistou a capela. Ali embai- se descessem as escadas fantasmagóricas da catacumba? E se o interrogassem? Ricardo caminhava vagarosamente. xo, na catacumba secular, há mais de um Ele fora impecável. Ninguém jamais Mas não andava à toa, como quem pas- ano, trancara a amante infiel. Como esta- descobriria. Ninguém o conhecia nas re- seia aproveitando a erma quietude do lu- ria o corpo?, pensou tomado de uma ex- dondezas. Convidara Raquel “um último gar. Tinha destino certo. citação mórbida. Ricardo não fazia ideia encontro, por favor”, e ela viera escondi- Chegou ao grande portão do imenso do que sobrava de uma pessoa após um da de tudo e de todos. “Vou lhe mostrar cemitério abandonado. “Vivos e mortos, ano de sua morte. Ele teria desejado vol- o mais belo pôr de sol de sua vida”, pro- desertaram todos, meu anjo”, lembra ter tar lá antes, bem antes, enquanto Raquel metera. Viera sozinha, pousando os pés dito a Raquel. De fato, as lápides racha- estivesse moribunda, frágil, já sem um incautos sobre uma teia invisível de ara- das, cobertas pela hera, denunciavam pingo de arrogância. Então, então ele lhe nha. “Este é o local que você gostaria de que o cemitério fora desterrado ao es- falaria de seu imenso amor, de como ela me mostrar?”, zombara ela quando en- quecimento: essa morte que é maior que havia destruído seus sonhos, de como ela traram no cemitério. Ela sempre zomba- a própria morte. merecia expiar essa pena tortuosa... Mas ra dele, lembrou com raiva. Zombara de O dia estava abafado e um vento lú- não podia. Muito arriscado. O marido a seu amor, de sua paixão, trocando-o por gubre agitava as árvores, parecendo sus- procurava, a polícia, com certeza, havia outro homem. “Ele é riquíssimo”, contara surrar mensagens fúnebres. Ricardo dado uma busca pelo desaparecimento. para espezinhá-lo. 46 “Venha ver, Raquel, aqui nas catacumbas”, dissera-lhe naque- da situação, mesmo assim, não teria sobrevivido mais que pou- la tarde, apontando o retrato em uma das gavetas fúnebres. “É cas semanas. Nada de água. Nada de comida. Nada de luz. Se- incrível como ela tem os seus olhos, Raquel”. E a tola – pensou pultada viva. -, curiosa como o são todas as mulheres vaidosas, foi descendo, Girou a chave e lentamente empurrou a porta enferrujada. um a um, os degraus de seu destino... Então, no momento em Desceu apenas o primeiro degrau e esperou que seus olhos se que ela se inclinava à luz do fósforo para olhar o retrato amare- acostumassem à quase completa escuridão. Aos poucos, come- lado da defunta, Ricardo trancou a porta gradeada, encerrando- çou a distinguir contornos, formas, detalhes. Lá embaixo, em -a para sempre no interior do mausoléu. “Há uma frincha na um canto, finalmente os olhos encontraram, com terror, o que porta, meu anjo. Por ali, você verá o pôr de sol mais belo de sua procurava. Então, um remorso agudo rasgou-o ao meio! “Raquel”, vida”, disse na despedida. gemeu. Dobrando os joelhos, Ricardo chorou convulsivamente. Os gritos de Raquel ainda ecoavam na lembrança: primeiro, Eram gritos desesperados, inumanos... aterradores, embrutecidos; depois, distantes, quase ausentes; finalmente, na entrada do cemitério, apenas o fantasma de um Alguns dias mais tarde, a milhares de quilômetros dali, a lamento. Seria o vento nas árvores que trazia esse som de preci- mulher jogou o jornal sobre a cama. Estava tudo consumado, pício? A cantiga de roda das crianças continuara... pensou. E deu um sorriso. Embora o marido a tratasse com mi- Parou em frente à capela. Só para se certificar, correu a vista mos, enchendo-a de compensações, Raquel já estava sentindo ao redor: não havia ninguém. Tateou o bolso e retirou nervoso que viver na Europa estava sendo mais entediante do que pre- o molho de chaves de onde balançavam um cortador de unhas, vira. Agora, poderia voltar. um canivete e, entre outras, a chave que buscava. Uma chave nova, da fechadura que dava acesso ao lôbrego recinto. O marido a achava, às vezes, estranha, ausente. Desde aquele misterioso assalto, há mais de um ano, a esposa costumava Abriu as portas da capela, cobrindo parte do rosto com a gola entrar num estado em que parecia totalmente ensimesmada. do blusão, prenunciando miasmas putrefatos. “O que sobrou de (Nem o passeio de duas semanas ao Oriente a tinha feito esque- você”, murmurou com rancor. cer o trauma). Em tais momentos, Raquel tornava-se pensativa Estava escuro, bem mais escuro que da última vez, pois a tarde, então, era ensolarada e não tinha esse aspecto cinzento, de e, nesses devaneios, seus olhos verdes se escureciam, denunciando um brilho cruel. luto verdadeiro. À direita do altar, na semi obscuridade, a grade É claro que era cruel, sempre o fora. Não era a isso que de- que levava às sepulturas parecia inalterada. Um pensamento via tudo o que tinha conquistado, não era a isso que devia, até louco, contraditório, nascido de uma tênue esperança, ocorreu- mesmo, a própria vida? Não fora esse laivo de impiedade que -lhe: “E se estivesse viva?”... É claro que não. Se resistira ao terror lhe deu a coragem? Não fora, sustentou Raquel para si mesma, 47 esse desprezo pela fraqueza – tanto alheia quanto própria – que aguardava a chegada do dia, quando teria ao menos um pouco a salvou? de luz para enxergar, sem que a imaginação projetasse horrores Ah, como havia sido ingênua, tola mesmo, ao aceitar aquele na escuridão. convite. Um psicopata! E o pior: como foi que chegara a ter, veja Nauseada, vomitou ali mesmo, no alto da escada, e a exaus- só, um romance com ele! Bem fizera trocando-o por outro, me- tão que isso causou lhe trouxe até certo alívio. Depois, recostou nos debiloide e, além de tudo, milionário. a cabeça na grade, resignada, já sem forças. Apenas esperava a As sombras daquele cemitério ainda pairavam em seus manhã. olhos. Só a perspectiva de que Ricardo pôde ser capaz de dese- Quando o céu foi perdendo o negrume e adquiriu aquele tom jar-lhe tanto mal, tanto, tanto, causava desconforto. Mas, agora, de azul que permite certa visibilidade, percebeu que a aurora estava tudo consumado. Recostou-se no parapeito da janela de se aproximava. Uma réstia de luz passava pela frincha da por- onde vislumbrava o mar e rememorou tudo minuciosamente. ta. Imbuída de novo alento, outra vez sacudiu as grades, várias Ela fora perfeita. vezes, diversas vezes. Com as mãos em forma de garra, tentava Fechou os olhos e se viu novamente na velha escada da cata- puxar a fechadura, em vão. cumba. Pela fenda da porta da capela, a luz irisada desaparecia, Foi quando seus olhos, involuntariamente, sutilmente, desli- os últimos vestígios de luz. A garganta doía-lhe de gritar e um zaram apenas um pouquinho, um átimo à direita da fechadura. tremor de pânico se espalhava pelo corpo, como se mil tarân- Então, voltaram... vagarosos, criteriosos, estudando a possibi- tulas lhe percorressem as veias. Por um instante, pensou des- lidade. Raquel deu um passo atrás, a respiração em suspenso. falecer. Agarrada às grades enferrujadas da porta, recusava-se Olhou da fechadura nova ao velho caixilho engastado nas pa- a descer onde repousavam as criptas. Logo, ela seria mais uma redes de taipa e pedras. As pedras eram pequenas, ovaladas e, naquela multidão de cadáveres do velho cemitério. talvez, algum dia tivessem sido brancas. Agora eram escuras, Mesmo sabendo ser inútil, ainda tentou sacudir as antigas manchadas, com fungos proliferando em algumas partes. grades, onde a fechadura nova, trocada por Ricardo, reluzia nos Quanto mais examinava, mais a ideia fazia sentido. Reme- últimos respingos de luminosidade. Passou a noite ajoelhada e xeu afoitamente a bolsa à procura de algo apropriado. Foi adivi- agarrada às grades. Com desalento, recordou que ninguém sa- nhando o pente, as luvas, os cigarros, os óculos de sol, a carteira, bia onde estava. Ninguém jamais poderia imaginar. Ninguém os fósforos (pegou os fósforos), um batom e, então, no fundo da jamais a ouviria gritar. Ninguém entraria no velho cemitério. bolsa, achou a caneta de metal. Presente elegante de uma amiga Num instante, a escuridão ficou absoluta. Aqui e ali, aterro- (nunca pensou que seria tão útil). Acendeu um fósforo e exami- rizada, escutava ruídos. Nenhum lugar é completamente silen- nou com os dedos delicados o caixilho e a parede. Quase os aca- cioso à noite. riciava, enquanto os olhos sondavam a expectativa. Enrolando a Já chorara várias vezes e, ansiosamente, suplicantemente, suave echarpe de seda em torno das mãos, começou a apunhalar 48 devagar o sutil espaço entre o caixilho e a parede. Enfiava a caneta nos ângulos, como se quisesse rasgar o estuque, golpeava com firmeza, os cabelos em desalinho, os dentes cerrados. ruína, uma pedra que cabia inteira na palma da mão. Subiu as escadas e com vigor golpeou a pedra no caixilho enegrecido. Viu que não ia ceder. Uma ratazana passou corren- No começo, pareceu-lhe que nada acontecia. A parede mostra- do por entre suas pernas. Raquel levou um susto. Num canto, va-se sólida. Com o tempo, aos poucos, um pedacinho começou viu os olhos miúdos do roedor brilharem. Certeira, esmagou- a esfarelar. Raquel estava totalmente concentrada, totalmente -o dando várias estocadas com a pedra, descarregando toda sua presente no que fazia. Ao notar os progressos da empreitada, frustração. O animal guinchou. chegou mesmo a sentir certo prazer naquilo tudo. Quando se voltou, ofegante, para o caixilho percebeu: pode- Súbito, a caneta entortou e as costas das mãos se arranharam ria entortá-lo com força no sentido do pequeno espaço cavado nas grades sujas. Começou o trabalho novamente, porém ficara na parede! E assim fez, golpeando metodicamente com a pedra. mais difícil; com a ferramente deteriorada, as pedras pareciam O trabalho era lento, o ferro frio é difícil de malhar. Teve a ideia irredutíveis. Bateu, bateu, bateu (as mãos já sangravam). Caiu de esquentá-lo, fazendo uma pequena labareda com alguns car- no choro e esfregou o rosto com as mãos feridas. Após um mo- tões que estavam na carteira, gastando quase todo conteúdo da mento de autopiedade, o gosto do sangue na boca deu-lhe novo caixa de fósforos. Teve resultado... ânimo, revitalizando-a como se fosse uma vampira. Finalmente (as mãos doíam), terminou. A tranca da fecha- “Calma, Raquel”, disse a si mesma. Recomeçou com calma, dura poderia passar pelo caixilho violado. Tentou abrir, mas calculando cada golpe. Começou a fazê-los um sobre o outro, não pôde! “Vamos, estou quase saindo”, instigou. Raquel sacu- em um mesmo ponto, até que sentisse a taipa voltar a esfarelar. diu violentamente a porta meio desconjuntada. “Se a suspender Cerca de duas horas depois, conseguiu fazer um pequeno um pouco, quem sabe...”. Então, com uma sensação de regozijo, buraco por onde enxergava a lingueta cintilante da fechadura. conseguiu. Estava livre! Aproximou os olhos do buraco para observar o caixilho. Trata- Abriu devagar a saída do cárcere macabro. Encaminhou-se à va-se de uma moldura inteiriça, com uma fenda retangular no porta da capela, perto das janelinhas empoeiradas, “já amanhe- meio, por onde passava a tranca. A fenda era um pouco maior, ceu...”. Girou o trinco e esta não estava trancada. Tão infalível delatando que a antiga fechadura (a original) era mais robus- Ricardo achara seu plano, que nem se dera o trabalho de trocar ta. Isso dava uma pequena folga à porta, evidente quando a a fechadura desta! chacoalhava. Escavou mais um pouco, (a testa úmida de suor), mais ainda, até que a tranca ficasse à mercê de seu vandalismo. Respirando Num longo hausto respirou o ar da liberdade. Ah, quão sutil é a linha entre a vida e a morte! Às vezes, um pouco de determinação e astúcia podem fazer toda a diferença. com júbilo, acendeu um fósforo e desceu à catacumba. Olhando Só neste momento Raquel se deu conta de que estava com sede para o chão, encontrou o que precisava: um pequeno pedaço de – mas isso não era importante agora. Ao lusco-fusco percorreu 49 depressa a via de cascalho que levava ao caixilho, recolocar a tranca no lugar e os uma bolsa e uma echarpe apodrecidas, portão do cemitério. “Escapei, maldito”, pedaços de estuque na parede. Tinha cer- que não tinham identificação. Mas o que pensou com fúria e alegria. Mas... e se ele teza de que Ricardo voltaria, afinal o vira realmente intrigava, eram as circunstân- voltasse? Estacou. E se descobrisse que guardando as chaves. A porta deveria pa- cias insólitas do suicídio. Os peritos ten- fugira? E se Ricardo começasse a perse- recer inviolada. Deixaria na catacumba tavam desvendar um mistério: por que gui-la para terminar o intento assassi- algumas coisas, entre elas, a bolsa (sem o homem se matara, cortando os pulsos, no? Não, Raquel não poderia chamar a dinheiro e documentos, é claro), o que abraçado apaixonadamente a um cadá- polícia, não poderia contar a verdade – o serviria também de álibi para o “assalto”. ver centenário... marido, ciumentíssimo, iria querer satis- Então, ao encontrar o que precisava em fações do porquê fora se encontrar às es- um dos túmulos quebrados do cemitério, condidas com o ex-amante. arrumaria tudo, impecavelmente. A vin- Começou a pensar. Ou melhor, a ide- gança seria perfeita. alizar. Ao esposo, diria que tinha sido as- - O que está fazendo, querida? saltada e largada em um lugar distante. A Raquel abriu os olhos. Um crepúscu- pretexto de trauma, pediria-lhe para não lo esplêndido, solferino, a surpreendeu. envolver a polícia e nem tocar mais no A voz do marido a trouxera de volta ao assunto. Quanto ao seu algoz... ah, Ricar- presente. do teria uma grande surpresa! Olhou ao redor, o lugar era mesmo - Estou admirando o pôr do sol, sorriu enigmática. deprimente e assustador. Lápides em O esposo a abraçou e ficaram juntos ruínas, mármores partidos, tudo, tudo a contemplar o horizonte matizado, os Marcia Pfleger (pronuncia-se Flêguer), é jorna- abandonado. Mas, tinha tempo. Ainda barcos que navegavam ao longe, sentin- lista e escritora. Nasceu em União da Vitória (in- mal amanhecera... do a brisa marinha acariciar o rosto, em Com uma cruz de ferro caída de um completa paz. terior do Paraná), mora e trabalha em Curitiba. Participou da edição 6 da Revista Parênteses e da antologia Paralelos - Contos Fantásticos, túmulo dirigiu-se novamente – assom- Sobre a cama, a página aberta de um pela Editora Inverso, com o conto O Segredo do brada com a própria audácia – para os jornal brasileiro trazia uma estranha no- Alquimista. Também integra o Dossiê Woolfiana fundos do sinistro cemitério. “Acho que tícia... Em um ermo vilarejo, dentro de - Mulheres escritoras dos séculos XX e XXI, organi- será um bom instrumento para o que um antigo cemitério abandonado, fora zado pela UFPR. É autora do blog Unha que risca preciso fazer depois”, pensou. encontrado um homem – morto recen- A primeira coisa seria desentortar o temente. Ao lado do seu corpo estavam a lousa. Seu livro de estreia, Caneca de Café com Versos, foi lançado em setembro deste ano pela Editora 7Letras. 50 A perpétua saudade daquele novembro café Nós éramos cicatriz Uma chaga na pele de Gaia Contorcionistas equilibrantes dos Quereres & carências Contaríamos ainda mais uma vez as palavras dos tântricos movimentos das nossas pregas de couro cru: -Um hiperorgasmo em latim- Uma saliva que não mata a sede- E um veneno vencido no mar do jardimMeu sangue te queria por completa empurrava minhas artérias Caçando o oxigênio das tuas inspirações Todo o odor que percorria a casa Era um convite pra inércia teimosa daqueles corpos estendidos, a completarem-se entre os ácaros que especulavam pelos fios do carpete Desde que estive em você na perpétua Matheus Hatschbach marca dos vales sedosos de novembro. 52 Quem sabe se num café te encontrar lendo aquele alérgico livro blasé de sempre possa olhar reto sem despencar na gravidade óptica da suja orbita sua. 53 Poesia escrota Quero uma antropofagia escrachada Vomitada num beco atrás da tua esquina Vulgarizar todos meus versos Só para escandalizar esse comichão retrógrado que me puxa a espinha Poesia são os teus brilhantes olhos de ressaca é o carinho disfarçado nas pulgas dos cachorros de rua é o cheiro do creme hidratante de frutas vermelhas entrando intempestivamente Amedrontar tuas regras das minhas linhas Tuas métricas nas feridas Por que elas não me deixam fechar Quero apodrecer toda expectativa de uma lírica Não sou teu poeta, meu bem Quero explodir o mundo só para O bem gozar do meu vagabundo Não quero a arte, Quero pintar o papel d’umas gotas de suor sangue e saliva na minha pele é você sendo sem mas nem que é você. 54 Aqui jaz um poeta Teimou tanto Em ter o mundo numa rima Que terminou Sem fundos nem linha. Matheus cresceu Hatschbach inundado nasceu&- pela nebli- na curitibana, com os pulmões carbonizados pela cidade. Cursa História e Direito e constrói o Coletivo Invernáculo. Participou dos livros Desnamorados e O Corvo. Os escritos são publicados no blog devaneiostropicais.wordpress.com. 55 Jimena Arnolfi por Lubi Prates Hibernación Hibernação En tiempos de autopromoción constante Em tempos de autopromoção constante lo mejor es esconderse o melhor é se esconder hibernar como un animal de sangre caliente hibernar como um animal entrar en un sueño profundo de sangue quente, que el latido sea más lento entrar num sono profundo que la temperatura descienda onde a batida do coração seja mais lenta ahorrar energías onde baixe a temperatura; usar las reservas almacenadas de los meses más cálidos poupar energia mutar en una refugiada, usando as reservas armazenadas invencible. durante os meses mais quentes se transformar em uma refugiada, invencível. 57 Día del inquilino Los días en la ciudad se parecen a la escenografía de un teatro una vez que termina la obra ganarse la vida es arruinarla. El tren es más mi casa que la casa donde vivo todo el tiempo miro edificios imagino torres de cuerpos acostados Dia do inquilino uno encima del otro. Os dias na cidade se parecem Siento un poco de alivio com o cenário de um teatro cuando termino de crujir mis dedos quando a peça já terminou, necesito que exista ganhar a vida é arruiná-la. una acción similar para la mente. Podría renunciar a este trabajo O trem é mais minha casa que a casa onde moro y recuperar la vida en general todo tempo olho edifícios pero no lo haré imagino torres de corpos estendidos debo, antes, pagar el alquiler. um acima do outro. Me sinto aliviada quando meus dedos param de ranger e preciso que haja a mesma ação para a mente. Poderia renunciar a este emprego e recuperar minha vida mas não farei devo, antes, pagar o aluguel. 58 http Afuera, la luna creciente o menguante, http Lá fora, a lua crescente ou minguante, adentro, un brillo oscuro en la botella. aqui dentro, um brilho escuro na garrafa. Colecciono redes sociales Coleciono redes sociais para demorar la hora en la que me voy a dormir. só para atrasar o horário de dormir Estoy sola pero lleno la cubetera Estou sozinha, mas encho a forma de gelo para no despertar a nadie. para não despertar ninguém. 59 Estatísticas Estudos de mercado para saber que tipo de mente você tem que sabonete ou creme dental usa, em qual candidato vai votar. Quando o telefone toca e é uma nova pesquisa minto em todas as respostas. Depois me sinto bem Estadísticas como se tivesse ganho um prêmio. Estudios de mercado para saber qué tipo de mente tenés qué jabón o dentífrico usás a qué político vas a votar. Cuando suena el teléfono y es una nueva encuesta telefónica, miento en todas las respuestas. Después, me siento bien como si hubiera ganado algo. 60 Militancia Militância Estoy a favor de cualquier cosa Sou favorável a qualquer coisa que me haga pasar la noche. que me faça passar a noite. La actitud que tomemos será crucial A atitude tomada será crucial para sobrellevar este clima de fin de época. para suportar este clima de fim de época. Jimena Arnolfi nació en Buenos Aires, Argentina en 1986. Estudió Lubi Prates: nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de Psicologia. Tem pu- Comunicación Social. Sus escritos circulan en antologías, revistas y pu- blicado o livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012) e algumas par- blicaciones online. Publicó Todo hace ruido (Editorial Pánico el Pánico, ticipações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais. 2013), Metafísica (La Fuerza Suave, 2015) y el cuento Yo quería que lo ma- Escreve no blog coração na boca. Edita a Parênteses, revista literária virtual, tes en formato audiolibro (Grupo Alejandría, 2015). Tiene un blog: e traduz. Vive em Curitiba. www.elpoemadelmomento.blogspot.com.ar 61 ensaio fotográfico de Vanessa Carvalho Vanessa Carvalho nasceu em Recife, em 1995. Mantém desde 2013 o projeto Reconhecendo-se em Desconhecidos, no qual, por onde anda, fotografa pessoas que ela nunca viu. Também escreve e publica no blog Filosofia de Quinta. Lista de autores já publicados Alan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Kehl de Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del Fuego, Aníbal Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber, Bruno Palma e Silva, Cecilia Pavón, Daniel Francoy, Daniella de Paula, Déa Paulino, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Érica Zíngano, Fabiano Calixto, Fabíola Weykamp, Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno, Gabriela Ventura, Gertrude Stein, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, J.F. de Souza, Juliana Amato, Juliana Krapp, Luana Vignon, Ismar Tirelli Neto, Jeanne Callegari, Julianna Motter, Laura Liuzzi, Leandro Jardim, Lielson Zeni, Lyn Hejinian, Leo Ventura, Leonardo Gandolfi, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luca Argel, Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marcos Casadore, Mariana Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger, Mirella Carnicelli, Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Noemi Jaffe, Odile Kennel, Pierre Masato, Rafael Mendes, Raimundo Neto, Ricardo Domeneck, Rodrigo Garcia Lopes, Rubens Akira Kuana, Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin, Thiago tizzot, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira, William Zeytounlian. Fotógrafos Adelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André Lasak, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Daniela Feder, Edu Suppion, Julio Perestrelo, Marcel Fernandes, Mariana Caldas, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer, Thany Sanches, Vanessa Carvalho. Edição Bruno Palma e Silva Lubi Prates Fotos Marcel Fernandes cargocollective.com/marcelfernandes Projeto gráfico Bruno Palma e Silva palmaesilva.com.br A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar. Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados. Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos. Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco! revistaparenteses.com.br facebook.com/revistaparenteses [email protected]