A ESCOLA COMO INSTITUIÇÃO FABRICADORA DE INDIVÍDUOS
MARTINS, Ingrid Roussenq Fortunato – UNESC
[email protected]
BÚRIGO, Tânia Bernadete Serafim – UNESC
[email protected]
Eixo Temático: Cultura, Currículo e Saberes
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
O presente trabalho discute sobre o papel da escola como sistematizadora de saberes,
elencando suas técnicas e dispositivos como fabricadores de indivíduos na Modernidade . A
discussão parte da noção da noção de instituição na visão de Eizirik e Comerlato para a
compreensão dos discursos explícitos e velados existentes na escola. Além de descrever o que
é instituição ele relaciona este conceito com a fabricação dos indivíduos na Idade Moderna,
por meio da objetivação e subjetivação, sob viés foucaultiano,. Apresenta a escola que, em
parceria com outras instituições, fabrica os indivíduos por meio de suas práticas pedagógicas
formais e informais. Destaca a trama de poderes na qual as escolas inserem-se manifestando
não apenas em sua pedagogia, mas também em sua organização administrativa e estrutural. O
artigo cita a planta do Panópticon de Jeremy Bentham que servia de modelo tanto para as
casas prisionais, manicômios, albergues e escolas e responsabiliza este modelo pela
fabricação do indivíduo moderno. O poder disciplinar manifestados pelas instituições da
Modernidade acontece por meio de dispositivos que não escapam a ninguém e ultrapassam
fronteiras, apresentando um movimento circular. O Estado, nessa perspectiva, não possui todo
o poder, mas é parte de uma rede formada pela escola e outras instâncias sociais. O biopoder
também é citado e configura-se como controle não mais do indivíduo em si, separadamente,
mas enquanto espécie, o corpo-espécie, que se tornou alvo de saberes e de poderes para a
regulação de uma população. A descoberta da criança e a pedagogização do sexo trouxe à
tona discursos de controle da própria vida. O falar sobre é descoberto como forma de eximir a
culpa dos atos indesejados dos alunos.
Palavras-chave: Modernidade. Instituição escolar. Fabricação de indivíduos.
Introduzindo: o que é a escola na Modernidade...
Pensar em Educação nos dias atuais é também ponderar sobre o papel da escola, a
legitimação e efetivação dos saberes, a formação do educando e a coerência entre objetivos
3596
propostos e realizados pela instituição escolar. Para isso, é necessário fazer uma análise sobre
os objetivos desta instituição e as técnicas utilizadas em suas metodologias. Inicialmente, é
importante refletirmos sobre alguns conceitos que envolvem este tema. Partiremos da noção
de instituição seguindo um viés enunciado por Eizirik e Comerlato, em seu livro A escola
invisível, fazendo uma relação deste conceito com a fabricação do indivíduo enunciada por
Foucault em suas obras Vigiar e punir: nascimento da prisão, Microfísica do Poder e
História da sexualidade 1: a vontade de saber. Neste sentido, este trabalho traz uma reflexão
de como os corpos, no decorrer da Modernidade, foram sendo disponibilizados para o
disciplinamento plurilateral, ou seja, para os alvos do poder disciplinar nas mais diferentes
instâncias sociais, sendo que aqui nos ocuparemos com a escola.
A instituição escolar, em parceria com outras instituições, fabrica os indivíduos da
Modernidade1. Essa fabricação não se constitui de forma repressiva, mas de maneira tão sutil
que algumas ações escolares nem são percebidas como instrumentos de individualização.
Eizirik e Comerlato (1995) apresentam o significado da palavra Instituição e
justificam que é importante sabermos sua origem para compreendermos os discursos falados e
mudos da escola. Mudos e falados porque nem tudo o que a escola diz efetiva em sua prática.
Segundo as autoras, do ponto de vista morfológico, “instituição, vem de uma raiz ST,
originada da palavra estare, que significa estabelecer, ficar em pé.”(p. 22)
É importante destacarmos a relevância da análise morfológica, porque as Instituições
da Modernidade carregam em sua prática - cheia de regras, códigos, linguagem, trocas e
compensações - todo o peso da origem desta palavra. Portanto, as Instituições aparecem e
permanecem na sociedade com o objetivo de “estabelecer, criar formas, meios de controle,
deter mecanismos de regular o funcionamento, ministrar ensinamentos, formar mestres,
determinar regras.” (EIZIRIK e COMERLATO, 1995, p. 22).
Neste sistema encontram-se lutas e enfrentamentos de espaços e de poder que
compõem um real e um imaginário institucional. A escola passa a exercer seu papel à medida
que oportuniza mecanismos de controle da ordem, de determinação de regras, de
homogeneização e de controle das formas de contato com o ser humano. Ela é responsável,
mas não só ela, pela fabricação dos indivíduos nos jogos visíveis e invisíveis de sua prática. É
1
Foucault não visualiza superação das condições materiais que caracterizam a Modernidade. Ele situa a origem
deste período no final do século XVIII, sendo que a sociedade disciplinar se inicia no século XIX, localizada no
ocidente, caracterizando a sociedade burguesa capitalista industrial. É deste tempo e deste espaço que ele
localiza suas preocupações, pautadas na compreensão da constituição do homem moderno.
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interessante destacar, também, que os mesmos mecanismos que fazem com que as instituições
sejam estabelecidas podem fazer com que se auto-destruam. Segundo Eizirik e Comerlato
(1995) é isso que sustenta a instituição, pois os fatores que levam à ordem levam também à
desordem:
Assim como não podemos dividir as pessoas, os grupos, as
instituições como boas e más, certas e erradas, também com relação
aos processos mais complexos, é nas ambigüidades e contradições que
encontramos maior fecundidade para compreensão dos fenômenos. O
estudo das contradições e ambigüidades existentes no contexto
institucional da escola se constituem em ampla rede micropolítica de
poder, e se mostram, com freqüência, em mecanismos sutis de
disciplinamento, em jogos visíveis, que produzem subjetividades (sic).
(EIZIRIK e COMERLATO, 1995, p. 23.)
Os mesmos mecanismos que sustentam a escola apresentam em seu interior
possibilidades de destruí-la por suas contradições. Pensar a escola apenas como uma
instituição cheia de regras e isenta de resistências é não considerar os jogos de poderes que
são tecidos em seu interior e que constituem uma rede que, por sua vez, perpassa todas as
instituições existentes na sociedade disciplinar.
A escola como trama da rede de poderes
A escola enquanto instituição responsável pela sistematização dos saberes não se
apresenta alheia às manifestações de poder, e nem é a mais ou a menos responsável para que
este poder se consolide. Segundo Foucault (1998), em qualquer sociedade há relações
múltiplas de poder que a atravessam, a caracterizam e a constituem. O autor salienta que as
relações de saber e de poder apresentam-se dependentes, pois todo poder produz saber e os
saberes estão carregados de poder.
Analisar o poder de forma foucaultiana é vê-lo como não globalizante, não totalizante.
Isto porque o mesmo indivíduo pode ser tanto dominado quanto dominador e também porque
a análise de Foucault se dá tanto em termos micro como macro, pois se dedicou aos estudos
do poder fora do Estado, nas instâncias sociais, sobretudo nas instituições de internamento do
homem moderno: de aprisionamento do louco, do doente, dos infratores. E nesta trajetória
3598
descobriu que dentro das instituições responsáveis por estes enclausuramentos poderiam ser
descobertas possibilidades diferentes de saberes já anunciados pela ciência. Em sua
genealogia, ele encontrou um poder específico, denominado disciplinar, que aparece em uma
sociedade específica, a Moderna, também anunciada por ele como Sociedade Disciplinar.
Em suas pesquisas, constatou que a planta do Panópticon de Jeremy Bentham2 era
comum não só nas casas prisionais, mas naquelas que encarceravam o doente, o louco, os
pobres. Percebeu que em todos esses espaços era comum um olhar centralizado e constante,
seja do médico ou do vigia. O objetivo do olhar era o mesmo: a vigilância para que o
indivíduo aniquilasse com sua própria vontade de fazer o mal3 e até mesmo de pensar em
fazê-lo. A visibilidade dada aos indivíduos até então nunca havia sido tão organizada:
Se o projeto de Benthan despertou tanto interesse, foi porque ele fornecia a fórmula
aplicável a muitos domínios diferentes, de um “poder exercendo-se por
transparências”, de uma dominação por “iluminação”. O panopticon é mais ou
menos a forma do castelo (torre cercada de muralhas) utilizada paradoxalmente para
criar um espaço de legibilidade detalhada. (FOUCAULT, 1998, p. 217).
O indivíduo deixou de ser colocado no escuro da masmorra e foi iluminado para sua
própria proteção. Na sociedade disciplinar, os alunos deixam de ser aqueles que não
aparecem, passam a destacar-se através do próprio poder que a instituição escolar delega.
Portanto, a disciplina não massifica pela negatividade do poder, mas individualiza por sua
positividade. Neste aspecto, o poder tem como objetivo principal o adestramento para o
aproveitamento máximo das potencialidades e utilidades econômicas e para a diminuição da
capacidade de revolta, ou seja, a docilização dos corpos.
Tanto a escola, como as outras instituições sociais, passa a desempenhar um novo
papel, o de fabricação dos indivíduos pela produção do poder-saber. Mas não é todo poder
que individualiza, mas o poder disciplinar, que é específico de uma época, a Modernidade. A
ação escolar sobre o corpo faz nascer um homem diferente, singular, produto do poder-saber.
Todo saber assegura um exercício de poder “[...] devendo enviar aos que delegaram um
4. O Panópticon foi a planta idealizada pelo filósofo inglês Jeremy Bentham e consistia numa prisão com
disposição circular de celas individuais, dividas por paredes e com a parte frontal exposta à observação em uma
torre do alto, no centro, em que a pessoa que ali estivesse veria sem ser vista. Foucault descobriu o Panópticon
ao estudar a medicina clássica e constatou que esta planta era utilizada em outras instituições sociais, como
escolas, hospitais e manicômios.
3
O sentido de mal, no caso da prisão, do hospital e do manicômio seria a idéia de não praticar o errado, o
prejudicial para si e para outras pessoas.
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poder, um determinado saber correlativo do poder que exerce” (MACHADO In FOUCAULT,
1998, p. XXII).
O poder disciplinar acontece por meio de dispositivos que não escapam a ninguém e
ultrapassam fronteiras. Seu movimento é circular, pois não se apresenta na forma piramidal,
mesmo que a sociedade se mostre hierarquicamente organizada. O Estado, nessa perspectiva,
não possui todo o poder, mas é parte de uma rede formada por todas as instâncias sociais. A
escola é produto de poder-saber quando submetida às análises e produtora quando ela mesma
é quem examina. A organização escolar não é estática, apresenta movimentos e determinações
plurilaterais. Por mais que se apresente exigente e autoritária, o poder existente nela não é
unilateral, atravessa toda sua estrutura, não depende de uma superestrutura que a determina
propositalmente. O aluno é exigido, mas também exige e, nessa relação de resistência,
apresenta-se a consolidação da disciplina. A pressão exercida não se dá apenas do diretor para
o coordenador, do coordenador para o professor e deste para o aluno: ela também funciona de
forma ascendente e transversal.
O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o possuiria ou
que o exerceria devido a seu nascimento; ele torna-se uma maquinaria de que
ninguém é titular. Logicamente, nesta máquina, ninguém ocupa o mesmo lugar;
alguns lugares são preponderantes e permitem produzir efeitos de supremacia. De
modo que eles podem assegurar uma dominação de classe, na medida em que
dissociam o poder do domínio individual. (FOUCAULT, 1998, p. 219)
As exigências sociais obrigam a escola a desempenhar um papel que ela pode não
querer fazê-lo, mas o faz porque, para sua perpetuação, deve atender aos apelos da sociedade
que a sustenta. A sociedade disciplinar tem como característica a organização, carregada de
necessidade de subsistência. Esta organização não é diferente da ressaltada por Bentham no
Panópticon, pois o olhar para o homem que está na instituição ainda é o mesmo do séc. XVIII.
O indivíduo moderno não foi escondido, seus anseios e medos não foram solapados; o
contrário aconteceu, a modernidade o colocou no palco e acima dele instalou seus holofotes
para poder extrair um saber relativo de seu tempo. Nesta perspectiva, a escola também produz
saberes sobre seus alunos; analisa seus comportamentos e fala deles em forma de casos ou
problemas. Questiona sobre o que fazem e determina quem são, deixam de ser pessoas e
passam a ser alunos, bons ou ruins, com problemas de aprendizagem ou não. Esta instituição
não utiliza tecnologias diferentes daquelas empregadas na penitenciária ou no hospital
3600
psiquiátrico. A diferença é que o hospital recebe doentes e transforma-os em pacientes, a
prisão faz dos infratores, delinqüentes; e a escola converte os jovens em alunos. O sentido é o
mesmo: a instituição determina a verdade sobre quem é o indivíduo moderno.
[...] somos obrigados pelo poder a produzir a verdade, somos obrigados ou
condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. O poder não pára de nos
interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade,
profissionaliza-a e a recompensa. No fundo, temos que produzir a verdade como
temos que produzir riquezas, ou melhor, temos que produzir a verdade para poder
produzir riquezas. Por outro lado, estaremos submetidos à verdade também no
sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e
reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados,
classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de
viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos
específicos de poder. (FOUCAULT, 1998, p. 180).
O aluno, o professor, a escola e a família são julgados, condenados ou condecorados
através do processo avaliativo escolar; das observações feitas pelos especialistas que,
legitimados por essa instituição, têm a decisão de determinar quem é o educando daquela
escola. Esse julgamento não acontece apenas do professor para o aluno, mas de todos os
envolvidos no processo educativo; a vigilância hierárquica está em todos os recônditos
escolares. As classificações são feitas através dos olhares dos pedagogos, psicopedagogos,
psicólogos que têm por objetivo examinar quem é esse indivíduo e sancioná-lo.
A fabricação do indivíduo moderno na escola
Para Foucault, por meio da microfísica do poder instituída na sociedade disciplinar, o
indivíduo é fabricado por processos de objetivação, que visam sua constituição como objeto
útil e dócil, e pelos processos de subjetivação, que o tornam um sujeito preso à própria
identidade pela consciência de si. Quanto à objetivação, o autor salienta que:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do
poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao
corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se
torna hábil ou cujas forças se multiplicam. (FOUCAULT, 2003, p. 117)
A disciplina fabrica corpos submissos e dóceis, satisfazendo as necessidades políticas
e econômicas da sociedade moderna. Descobriu-se um meio de possuir os corpos para que
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operem como se quer, segundo a rapidez que lhes é exigida. Os mínimos movimentos passam
a ser marcados por meio de técnicas, tecnologias e dispositivos do controle da própria vida.
A utilização e combinação de instrumentos disciplinares é o que faz com que a
sociedade moderna tenha sucesso. Um destes recursos é caracterizado por Foucault por
vigilância hierárquica, que seria um olhar constante, como o olhar panopticon. A segurança
de alguém observando o aluno deve ser real mesmo quando essa prática não seja efetiva. A
impressão que fica nos alunos é que não terão condições de fazer nada escondido porque
haverá um olhar escolar os examinando. Essa vigilância se dá não apenas pelos professores
que lidam direto com os alunos, mas com todos que rodeiam a comunidade escolar. É
interessante ressaltar que fazem parte desse olhar, não apenas os especialistas como citamos
anteriormente, mas os próprios alunos. O engendramento da escola nesta vigilância é tão sutil
que faz com que os alunos queiram fazer parte dessa rede de olhares, para transformar o lugar
onde estudam num ambiente melhor e menos perigoso. A sensação de organização e controle
objetiva não os atos, mas os próprios indivíduos.
Outro instrumento utilizado pela escola é o privilégio de justiça e sanções particulares:
privilegia-se alguns em detrimento de muitos. A isso Foucault chamou de sanção
normalizadora, que tem por objetivo ser mais eficaz do que apenas punir. Se a escola apenas
punisse, a retirada do potencial de cada aluno não seria tão intensa. Como ela mais premia,
por meio de notas, elogios e gratificações, pode retirar dos alunos a vontade de serem quem
são4. É um controle rigoroso aliado a outras regulamentações cujo intento é formar sistemas
corretivos que fazem funcionar normas gerais da educação escolar. O receio dos alunos
quanto às sanções que vão receber caso infrinjam as normas e o desejo de receberem
gratificações por bom comportamento, demonstram a eficácia deste sistema. As punições
podem ser expressas por meio de suspensões, expulsões, reunião com os pais, redução nas
notas, mudança de classe e, dependendo da gravidade, chamada do conselho tutelar. As
gratificações se dão das mais diferentes formas, desde a classificação por notas associando-as
ao saber dos alunos até certificados concedidos aos melhores. Apesar de parecer, à primeira
vista, que o produto da punição é um e o da gratificação é outro, destacamos que tanto um
quanto outro fazem parte de um sistema duplo que Foucault chama de “gratificação-sanção” e
são responsáveis pela manutenção da ordem da Modernidade.
4
Para a fabricação do indivíduo moderno, além do processo de objetivação é necessária sua subjetivação, que é
o desejo do homem moderno de ser quem ele é.
3602
Mesmo que a escola apresente mais gratificações do que sanções, ela continua
objetivando seus alunos, pois permanece controlando minuciosamente seus atos. A
gratificação nada mais é do que uma forma mais sutil de fazer com que os alunos afastem-se
de atitudes desagradáveis e incômodas para a própria escola, fazendo-os pensar que é para seu
próprio bem. Percebemos aí a sutileza da sanção normalizadora, que não se apresenta de
forma negativa. Algumas escolas promovem uma premiação, com medalhas e certificados,
para os “melhores” alunos do ano, aqueles que se destacam em notas e comportamentos
disciplinares exemplares são os premiados.
Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se uma
diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de
suas virtualidades, de seu nível ou valor. A disciplina, ao sancionar os atos com
exatidão, avalia os indivíduos com verdade; a penalidade que ela põe em execução
se integra no ciclo de conhecimento dos indivíduos. (FOUCAULT, 2003, p. 151).
Além da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora, Foucault cita o exame
como instrumento de adestramento e objetivação dos indivíduos. Por meio dessa técnica
pode-se classificar o integrante da instituição escolar. Retira-se dele um saber e determina-se
quem ele é.
Nas escolas, a aplicação do exame envolve todo um ritual, desde a padronização de
sua estética até a conduta disciplinar e temporal. O exame pode ser visto nos Conselhos de
Classe, nas avaliações aplicadas, nas conversas entre pais e professores. Ele acontece de
maneira sistemática e objetiva, pois através da observação da escola dos atos do aluno,
determina-se quem é esse indivíduo e pode-se prever o que ele virá a ser futuramente. Esse
ritual renova constantemente o poder e demonstra a força que a disciplina possui no cotidiano
escolar. Por meio do exame é feita a análise para possível sanção ou gratificação. É o exame
que determina o conhecimento sobre o aluno, sobre suas aptidões e deficiências, sobre sua
evolução ou desvio, esse instrumento pressupõe um mecanismo que liga um certo tipo de
formação de saber a uma certa forma de exercício do poder (FOUCAULT, 1979, p.156).
Além dos instrumentos enunciados anteriormente, a sociedade disciplinar, segundo
Foucault, concretiza também funções, responsáveis por sua organização celular. Estas funções
controlam o tempo e os lugares do homem na Modernidade. A arte das distribuições é um
exemplo de como os lugares podem e devem ser determinados nesta sociedade. Ela centra-se
no encarceramento, enclausuramento, localização funcional e determinação de lugares dentro
3603
das instituições. Satisfazendo o objetivo de que cada indivíduo deve ocupar um lugar na
sociedade, a escola como instituição moderna, também se perpetua, pois continua
seqüestrando os indivíduos e utilizando seus corpos para fabricação de homens que sejam
úteis e dóceis para o sistema capitalista. Não há determinações governamentais específicas de
poder, mas uma rede que perpassa as mais diferentes esferas sociais. O poder nesta sociedade
não é menos autoritário, é mais sutil. Ele não só reprime, mas principalmente extrai do
homem o máximo de suas capacidades no tempo determinado por ela.
A determinação dos lugares feita nesta sociedade e dentro da escola não ocorre de
maneira imposta, mas de forma com que tanto alunos, quanto pais e professores, certifiquemse que o rendimento escolar será o maior possível. Quando os professores separam os alunos
uns dos outros não definem como castigo, mas como sendo o melhor a ser feito para que toda
turma tire proveito. Vemos a arte das distribuições sendo apresentada de maneira com que
todos queiram participar dela. Há um convencimento do que é melhor para o indivíduo e o
grupo através das determinações de espaço.
O controle das atividades é outra função enunciada por Foucault como forma de
extrair o máximo das produtividades dos indivíduos modernos. O que passa a ser relevante na
sociedade disciplinar não é tanto o controle do tempo escolar por ele mesmo, mas com o
objetivo de controlar os próprios atos. “No bom emprego do corpo, que permite um bom
emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o
suporte do ato requerido”. (FOUCAULT, 2003, p. 130)
O que interessa no controle do tempo é que não haja ociosidade. Mas ele aparece
entrecruzado com o controle da atividade que tem por objetivo a retirada máxima de
eficiência. Os professores não permitem mais que os alunos fiquem com qualquer tempo
ocioso, pois a ociosidade é improdutiva. Aqueles que terminam suas atividades devem
continuar fazendo outras ou ajudando seus colegas. A organização temporal faz com que os
alunos não manifestem indisciplina e/ou desordem, mas esta não é a principal finalidade. O
que importa é a retirada maior de eficiência por um período menor de tempo.
Essa particularização do tempo, espaço e atividade, por meio dos exercícios propostos
pela escola, retira do corpo a economia e a política necessária para o bom aproveitamento da
coletividade. “O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e
da duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou
de se completar.” (FOUCAULT, 2003, p. 137).
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Muitos alunos, mas a cada um é dada uma identidade, uma determinação, uma vida. À
escola cabe a determinação de quem é o aluno-problema, o aluno-hiperativo, o alunosuperdotado, assim como à psiquiatria cabe dizer quem é o normal e os doentes em suas mais
diferentes classificações. A escola inventa o aluno, como a prisão o delinqüente e a psiquiatria
o louco.
Para Foucault, não é apenas pela objetivação que se dá a fabricação dos indivíduos. O
autor, além de estudar o indivíduo moderno como objeto útil e dócil, passa a analisá-lo, em A
vontade de saber, como sujeito de uma sexualidade. Na obra em questão, o autor explicita o
indivíduo moderno como produto da inter-relação das tecnologias de objetivação e
subjetivação. Nesse ínterim, não é suficiente estudar o homem da Modernidade como apenas
objeto, mas também como sujeito de sua própria sexualidade. É importante ressaltar a
amplitude da palavra sexualidade e suas diferentes formas de manifestação. A partir da
necessidade de se falar sobre ela, seja para expiação de pecados ou alívio de consciência, foi
necessária a formação de dispositivos que envolviam práticas discursivas e não-discursivas.
Essas práticas tornaram-se instrumentos de crescimento de poder que colocavam o homem e a
população na junção do biopoder, levando-os ao controle dos “menores movimentos do corpo
e às mais sutis emoções da alma do homem, constituindo-o sujeito de uma sexualidade.”
(FONSECA, 2003, p. 84)
O biopoder configura-se como controle não mais do indivíduo em si, separadamente,
mas enquanto espécie, o corpo-espécie, que se tornou alvo de saberes e de poderes para a
regulação de uma população. A partir da necessidade de controle não mais de um indivíduo,
mas de uma espécie, são necessários dispositivos que dêem conta de satisfazer as
necessidades sociais, como o controle de natalidade, mortalidade e doenças. A descoberta da
criança e a pedagogização do sexo trouxe à tona discursos de controle da própria vida. O falar
sobre é descoberto como forma de eximir a culpa dos atos indesejados dos alunos. À escola
cabe interpretar o que ouve de acordo com suas possibilidades. Quando interrogados sobre
seus atos, os alunos não vêem outra alternativa a não ser falar para, de certa maneira, serem
absolvidos pelo sistema que o engendrou na rede de poderes.
Mas o falar na escola não é apenas discursar sobre sexo, é sobre tudo. A maneira
como as famílias vivem, como se comportam também são alvos do biopoder. A escola sentese tão responsável por seus alunos que acaba sancionado-os até pelo que fazem fora dela. Ela
assumiu a responsabilidade que a ciência havia assumido ao perceber, no séc. XVIII, que o
3605
governo não deveria ocupar-se apenas com sujeitos, e sim com uma população. Para isso,
deveria adotar algumas atitudes, dentre elas o controle de natalidade, a idade de casamento, a
precocidade das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis, práticas
contraceptivas...
A escola afere identidades aos indivíduos, ouvindo quem eles são e legitimando o que
pensam de si. Quando Foucault estudou a sexualidade, seu objetivo não era apenas enunciar o
controle da sexualidade de uma população, mas de anunciar como os homens modernos
constroem sua identidade. E esta construção se dá por meio de dispositivos que fazem o
homem falar de si mesmo.
Na escola, os alunos falam de si, do que pensam sobre o outro. Constituem e são
constituídos pela instituição que conquistou o espaço de sistematização de saberes e formação
do sujeito moderno.
Considerações finais
O aluno passa pela escola para aprender e, nesse sentido, podemos afirmar que ele
aprende. Resta perguntar sobre o que ele aprende e se essa aprendizagem passa pelos
objetivos educacionais. Não sabemos se a proposta que a escola apresenta em seus
documentos tem por objetivo fabricar indivíduos, mas ela continua concretizando essa prática,
seja o constituindo em sua docilidade de objeto ou na identidade do sujeito.
Ela perpetua a individualização enquanto enfileira alunos para ouvirem o mestre, mas
também quando os coloca em grupos para discutirem sobre determinado assunto, prevendo
suas respostas. As soluções para as perguntas nas discussões já estão prontas e cabe aos
alunos apenas chegarem a elas. Quando não chegam ao que o professor determinou como
correto enquadram-se em classificações determinadas pelos profissionais da Educação. São
examinados, sancionados e vigiados o tempo todo, ou seja, são disciplinados, e isso faz deles
indivíduos modernos.
Alguns mais afoitos poderiam então perguntar quanto às perspectivas da escola, para
onde ela vai e que papel devemos assumir enquanto educadores. Poderíamos nos perguntar
também do porquê sabermos de fabricação se não temos outro meio de formarmos esses
alunos. Não pensamos que a escola se enquadre numa proposta redentora, mas também não
tiramos dela as possibilidades que possui. Ela está inserida, sim, numa sociedade disciplinar
3606
que não superou seus métodos de controle e ainda se apropria da própria vida do indivíduo,
mas não é omitindo-se que poderá fazer algo diferente disto.
Mesmo que a escola busque, em sua prática pedagógica, meios de formar alunos
críticos e reflexivos, ela continuará mantendo a fabricação, que não é sinônimo de escravidão
ou mesmo de massificação. O perigo para nós seria o não conhecimento do estado em que
estamos. Saber que somos fabricados nos dá alternativas de sabermos quem somos e
podermos pensar em como podemos nos constituir de outra forma. Foucault nos permite isto:
sua “ontologia do presente” (MOREY, 1991 apud VEIGA-NETO, 2004) nos capacita para
compreendermos como somos constituídos, para podermos nos constituir de outra forma.
Assim, pode-se conquistar autonomia dos educandos mesmo sabendo que ainda
utilizamos tecnologias disciplinares. À medida que a escola dá ouvido aos alunos para extrair
deles seu saber e interpretá-los, subjetiva-os e constrói suas próprias verdades. Ela extrai deles
um saber, mas também pode dar voz ao que pensam sobre si e a sociedade. A diferença quem
pode fazer é a própria instituição escolar.
Criticar a escola por seus métodos apenas não basta, é necessário buscar alternativas
dentro das possibilidades que nos são oferecidas. O conhecimento de quem somos e para onde
estamos indo é o início do caminho, para quem sabe, num futuro bem próximo, podermos
modificar nossa história por nossa própria modificação.
REFERÊNCIAS
EIZIRIK, Marisa Faermann; COMERLATO, Denise. A escola invisível: jogos de
poder/saber/verdade. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo:
EDUC, 2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
___.Vigiar e punir – nascimento da prisão. 27 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
___. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 17 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
MACHADO, Roberto. Introdução: Por uma genealogia do poder. In FOUCAULT, Michel.
Microfísica do Poder. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. Pp.VII – XXIII.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & e Educação. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
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a escola como instituição fabricadora de indivíduos