2C2. TERÇA-FEIRA, 21 DE ABRIL DE 2015 A GAZETA CRÔNICA SARAH VERVLOET [email protected] Escrevo Escrever é preciso. Anima a língua cuja meta é amaciar as palavras, tecer verbos e versos, até que escrever seja mais que amar. Embora os fins sejam esses, a escrita é um sem-fim de questões, artifícios, categorias. Suas forças podem ser centrípetas, centrífugas, confusas, mas não se perdem. Escrever, então, é crônico. Escrever crônica, portanto, é estar e ser. Escrevo e aqui estou. Escrevo e sou, permaneço e existo. Assim, tem meu apoio Roland Barthes, quando afirma que não existe outra saída para o autor de literatura “senão o deslocamento – ou a teimosia – ou os dois ao mesmo tempo. Teimar quer dizer afirmar o irredutível da literatura: o que, nela, resiste e sobrevive aos discursos tipificados que a cercam: as filosofias, as ciências, as psicologias; agir como se ela fosse incomparável e imortal”. Teimo aqui como quem escreve sobrevivendo, escrevo teimando a sobrevivência. No convite para a escrita desta crônica e das demais que virão, dei-me conta de que escrever é lapidar gelo – não pedra. Escrever é gelado porque se congela em atos, em camadas de letras a serem descobertas, derretidas em forma e escultura. É um frio que se deve suportar, convenhamos, senão é água. Daí a dificuldade da primeira crônica, da primeira escrita, da primeira leitura. Nunca estive tão na pele dos alunos com os quais convivo diariamente e, vez ou outra, resmungam: “não consigo escrever, não sei, não sei nem por onde começar”. Eis a dificuldade líquida e liquidada. Inevitável é deparar-se com a folha em branco, as teclas saltando para os dedos e nem por isso dali brota o texto. Simples, porque palavras não brotam. Lá elas já existem, no tal sem-fim de todo o começo, quando se percebe suas formações e composições. Não tão simples é valer-se delas, como aqui prometo que vou tentar. Nesse palavreio-movimento, a escrita só tem sentido se for sentida. Deixo-me, assim, encerrar esta primeira crônica sentindo e lembrando alguns versos meus que aqui proso, devido também aos últimos dias de manifestações religiosas a nossa volta, desde o século XVI. Aqueles que deixam o sopé do morro do Convento da Penha repleto de peregrinos, romeiros e rezas. Durante esses dias, busquei e busco sempre as bordas, o olhar observador e fílmico. Eram – e são –, sim, dias de comer pipoca e cachorro-quente, já que o profano acompanha o sagrado remotamente, mas são dias também de ouvir os vivas de uma ponta a outra da cidade. E, ainda, de reencontros, reflexos, renascimentos, retornos: mamãe emocionada pelas lembranças de vovó, que sempre esperava ansiosamente por esse mo- — Inevitável é deparar-se com a folha em branco, as teclas saltando para os dedos e nem por isso dali brota o texto mento. Pois quem é Canela Verde sabe o que por aqui pulsa nessa mesma época, a cada ano, independente da religiosidade. Eis meu tecido de palavras, escrito com a teimosia de quem escreve e de quem entende a necessidade crônica de escrever verso ou prosa (e um até breve): de domingo em diante, a ilha do mel veste oração. No alto da ladeira do convento, são milhares de sincréticas vozes, que percorrem a enseada de luzes, invadem recortes, encostas, canais. Seguem procissões mulheres e homens. Transmitem promessas, pedidos, paixões. Da catedral, os olhos e os passos de Palácios chegam ao parque da pequena praia. Relembram, em sorrisos, a tradição franciscana, curvados à oitava pascoal. A baía salgada de lágrimas fiéis une panelas de barro, palmas, terços, berços, congo, celebrações, festas, que invadem os afloramentos iluminados. As honras suadas à Virgem da Penha, a derrota aos caminhos fechados, a união paroquial, o céu, os filhos, vistos ao final da orla capixaba. RESTAURADO Um dos melhores filmes da história, “Um Corpo que Cai” volta ao cinema DIVULGAÇÃO Clássico de Alfred Hitchcock será exibido hoje à noite, no Cinemark Vitória LUIZ CARLOS MERTEN Durante décadas, “O EncouraçadoPotemkin”e“Cidadão Kane” se alternaram notopodaslistasdemelhores filmes de todos os tempos. Ora era o cultuado clássico de Sergei M. Eisenstein, com sua celebração da montagem e a cena daescadariadeOdessa,ora o de Orson Welles que consolidou o bê-á-bá da narração cinematográfica. Mas, nos últimos anos, temocorridoumfenômeno interessante. Em 2012, a revista “Sight and Sound”, editada pelo British Film Institute, fez uma pesquisa com diretores e estudiosos e “Um Corpo Que Cai” (“Vertigo”) foi para o topo, seguido de “Cidadão Kane”. “Potemkin” foi banido de entre os dez mais. “Um Corpo Que Cai” é a imperdível atração da vez nos clássicos restaurados da rede Cinemark. O filme O ator James Stewart e o labirinto de escadas, ao estilo de M.C. Escher foiexibidonofimdesemana e ganha outra apresentação hoje, às 19h30. Mestre do suspense, Hitchcock talvez nunca tenha sido mais refinado nem sinuoso como nessa história de vertigem e desejo. TRAMA James Stewart faz o policial Scottie, que logo no começo encara o abismo e passa a ter um medo mortal das alturas. Ele é contratado para seguir uma mulher que apresenta um comportamento estranho. Madeleine (Kim Novak) move-se num mundo que parece em câmera lenta, em outro tempo. Scottie deixa-se envolver pelo mistério da mulher. Não consegue evitar seu suicídio. Atormentado, ele vaga pelas ruas e encontra, de novo, Kim Novak, mas agora ela se chama Judy. No corpo de Judy, Scottie opera uma transformação e traz, de entre os mortos, Madeleine. Chama-se assim, “D’Entre les Morts”, o livro em que Hitchcock se baseou para conceber esse poema necrófilo. A definição era dele. Bem antes da atual consagração, “Um Corpo Que Cai” já seduzira os críticos, mas não o público. O próprio mestre do suspense nutria um sentimento ambíguo pelo filme. O fracasso de público o incomodava. Na sequência, fez “Intriga Internacional”, com Cary Grant, que arrebentou na bilheteria. E, depois, mudando o tom, “Psicose”, seu maior sucesso (de público). A cena da missão religiosa, quando Scottie, correndo atrás de Madeleine, entra na torre e, na escadaria, tem a vertigem, até hoje é motivo de admiração. Hitchcock filma o labirinto da escada, à maneira de Escher, combinando travelling com movimento de lente. Claude Chabrol (“Uma Mulher Casada”), Arthur Penn (“Deixem-nos Viver”), Wim Wenders – todos o imitaram. É tempo de rever “Um Corpo Que Cai” e renovar o fascínio do melhor filme de todos os tempos. E o filme ainda tem Kim Novak, em seu maior momento na tela. É interessante destacar que ela caiu meio de paraquedas no projeto, substituindo Vera Miles, que ficou grávida no comecinho da produção. Kim é genial. Nos bastidores, o diretor e a atriz brigavam feito cão e gato. Kim queria interpretar, Hitchcock lhe pedia para não fazer nada. Sua câmera faria tudo. Foi por causa delas que Hitchcock fez uma declaração polêmica, comparando atores a gado. Dizia que ator não devia pensar, quem pensava era ele. Pode parecer exagerado, mas deu certo em muitas obras-primas. (AE) UM CORPO QUE CAI Exibição: Hoje, dia 21, às 19h30, no Cinemark Vitória (Av. Américo Buaiz, 200, Enseada do Suá).