CADERNO DE FÍSICA DA UEFS, 03 (01): 07-12, 2004 A HIPÓTESE DOS GRANDES NÚMEROS E A MECÂNICA QUÂNTICA Saulo Carneiro Instituto de Física - UFBA S a u l o equações gravitacionais e eletromagnéticas são invariantes sobre uma formação de escala dos intervalos de tempo e distâncias, contanto que nós também escalonemos as constantes de acoplamento correspondentes. Com esta filosofia, podemos pensar o Universo como uma estrutura autosimilar, com as mesmas leis físicas aparecendo em diferentes escalas [ 5 ] .1 Não obstante, este atraente quadro da Natureza aparentemente se quebra quando consideramos o comportamento quântico do microcosmos: a introdução da constante de Planck define uma escala bem particular, na qual, distintamente do que ocorre para grandes escalas, os efeitos quânticos devem ser considerados. Em linguagem matemática, nós podemos dizer que as equações quânticas, como as de Schrödinger e Dirac, não são invariantes de escala, devido à presença de h. O propósito principal deste 1. Introdução Uma das coincidências mais curiosas entre a Física de Partículas e a Cosmologia é a possibilidade de obter grandezas cosmológicas, como massa (M), raio (R) e idade (T) de nosso universo, escalonando os valores típicos de massa (m), raio (r) e vida-média (t) característicos da Física de Partículas, por fator de escala Λ ~10 38−41 . Este fato conduziu a importantes idéias e desenvolvimentos, como a hipótese de Dirac de que os parâmetros cosmológicos variam com a idade do universo [1] e a Gravitação Forte [ 2−5 ] , que tenta derivar as propriedades dos hádrons a partir de um escalonamento de teorias gravitacionais, tratando partículas como soluções tipo buraconegro. O formalismo da Gravitação Forte se baseia na invariância de escala da Relatividade Geral, também presente na Eletrodinâmica Clássica: as 7 A Hipótese dos Grandes Números e a Mecânica Quântica Saulo Carneiro o cosmológico. Com ajuda de (1) nós podemos, por exemplo, escalonar h para obter a invariância de escala das equações quânticas. A partir de uma análise dimensional simples, temos trabalho é explorar o quadro mencionado acima e estender a invariância de escala ao comportamento quântico. O preço a pagar é o escalonamento da constante de Planck, conduzindo à quantização de grandes estruturas, até então tratadas como clássicas. Este procedimento pode parecer bastante especulativo, mas conduz a coincidências tão impressionantes que nós devemos perguntar que verdade contém. Um propósito adicional é mostrar que parece existir outra invariância de escala, intermediária, além da considerada pela Hipótese dos Grandes Números. Como será mostrado, o novo escalonamento nos leva das partículas às estrelas típicas e buracos negros, do mesmo modo que o escalonamento original nos leva das partículas ao Universo observado. H = Λ3 h o que conduz a um quantum escalonado de ação dado por H~10 81 J.s, 38 se nós escolhermos Λ ~10 . Qual o significado de tal quantização? Uma possível resposta é que o momento angular de um universo em rotação deve ser ordem de H/2π~10 80 J.s. 2 Ainda não há nenhuma evidência conclusiva de que o Universo gira, embora possam ser feitas especulações sobre evidências indiretas, como a rotação de galáxias e conglomerados [ 7 ] e o campo magnético intergalático [8,9 ] . Mas o ponto importante aqui é que, se o Universo gira, deve fazê-lo com momento angular da ordem de H/2π, próximo do valor obtido para as solues cosmológicas rotatórias das equações gravitacionais de Einstein [ 7 ] e do limite de Kerr para um buraco-negro em rotação com massa da ordem de 10 50 Kg. Também é importante notar que esta ordem de magnitude para o momento angular do Universo está dentro dos limites obtidos a partir de medidas de anisotropia da radiação cósmica de fundo [10 ] e é próximo do valor obtido a partir de medidas da 2. A Quantização em Larga Escala. As grandezas cosmológicas M, R e T podem ser relacionadas a m, r e t pelas relações de escala 1 T R ⎛ M ⎞2 = =⎜ ⎟ =Λ t r ⎝m⎠ [2] [1] com Λ ~10 38−41 . Como massa, tempo e comprimento são tudo que nós precisamos para construir um sistema completo de unidades, a relação (1) define completamente a transformação de escala do mundo das partículas para 8 CADERNO DE FÍSICA DA UEFS, 03 (01): 07-12, 2004 para λ , M ' e H ' , podemos deduzir a relação rotação do plano de polarização da radiação cósmica eletromagnética [11,13] . Além disso, (1) e (2) se ajustam bem à relação de Regge para galáxias e conglomerados [ 9 ] , 1 1 ⎛ M ' ⎞3 ⎛ H ' ⎞4 λ =⎜ ⎟ =⎜ ⎟ ⎝ m⎠ ⎝ h ⎠ [4] 3 J = h( M / M ) 2 que, junto com (3), define completamente a nova transformação de escala. A equação (4), por outro lado, está em acordo com a relação de Regge para estrelas e planetas [9] , onde, aqui, M se refere à massa do objeto em consideração. É fácil verificar que esta relação está de acordo com (1) e (2) quando M é a massa do Universo 4 J = h( M / M ) 3 . 3. A Escala Intermediária. Nós podemos inferir ainda uma escala intermediária de quantização, relacionadas aos momentos angulares das estrelas, cujos valores se concentram em torno de H ' /2π~10 42 J.s [ 9 ] , próximo do limite de Kerr para um buraco-negro em rotação com massa M ' ~10 30 Kg. Com estes valores, obtemos o fator de escala De (3), podemos estimar os valores de R ' e T ' e tentar achar algum significado físico para eles. Partindo da escala de Fermi, obtemos R ' ~10 4 m e T ' ~10 −4 s. O primeiro pode ser comparado com o raio gravitacional de uma estrela típica: com M ' ~10 30 Kg, 2 temos rg = 2GM ' / c ~10 3 m. O segundo pode ser comparado com o tempopróprio de colapso da estrela, −5 τ ~ rg / c ~ 10 s. Tentemos entender por que o quantum escalonado coincide com o limite de Kerr para o momento angular de buracos-negros nos dois casos ( Λ e λ ). As equações (1)-(4) podem ser postas na forma unificada −1 T ' R' H ' ⎛ M ' ⎞ λ ≡ = = ⎜ ⎟ ~ 10 19 [3] t r h ⎝ m ⎠ onde a primeira igualdade vem naturalmente da invariância de Lorentz, enquanto a segunda é obtida, novamente, de uma simples análise dimensional. Além disso, com estes valores 1 1 Rn ⎛ M n ⎞ n ⎛ H n ⎞ n+1 =⎜ ⎟ =⎜ ⎟ r ⎝ m ⎠ ⎝ h ⎠ 9 [5] A Hipótese dos Grandes Números e a Mecânica Quântica Saulo Carneiro Até agora consideramos apenas ordens de magnitude que, por isso, não podem prover uma base sólida o bastante para a conjetura de quantização em larga escala. Não obstante, em um recente trabalho [14 ] , Oliveira Neto (e, mais recentemente, Agnese e Festa [15] ), apresentou resultados impressionantes concorrentes à quantização do Sistema Solar, em ótimo acordo quantitativo com os dados observacionais. Para órbitas circulares, a gravitação newtoniana nos dá v 2 = GM / r , onde v é a velocidade orbital, M é a massa de Sol e r é o raio da órbita. Substituindo esta equação na condição de quantização de Bohr ( λ escalonada) L = mvr = nH ' / 2π ( m é a massa do planeta), obtemos com n = 2 no caso Λ e n = 3 no caso λ . Da análise dimensional, nós obtemos para as constantes gravitacionais correspondentes 1 ⎛ M ⎞n Gn = g ⎜ n ⎟ ⎝ m ⎠ −1 [6] onde g é a constante gravitacional forte. Igualando o limite de Kerr Kerr J n = Gn M n2 / c com H n / 2π dado por (5) e usando (6), chegamos ao interessante gm 2 / hc = 1 . resultado Assim, a coincidência entre H n / 2π e J nKerr pode ser baseada no fato experimental de que a constante de estrutura forte é da ordem da unidade. Ou, invertendo o raciocínio, mostra que os hádrons podem ser considerados como buracosnegros em seu limite de rotação. É importante notar que a escala intermediária de comprimento e tempo é igual à média geometria entre a escala de Fermi 1 e a 1escala cosmológica. De fato, (Rr ) 2 = rΛ2 = rλ = R ' . É este fato que garante a unicidade da constante gravitacional, não importando se estamos lidando com estrelas ou agrupamentos de galáxias. Realmente, se G ' e G são as constantes Λeλ , gravitacionais nas escalas respectivamente, temos, de (6), 2 G / G ' = (G / g )(g / G ') = λ / Λ = 1 . r= n 2 H '2 4π 2 GMm 2 [7] Agnese e Festa [15] ajustaram todas as órbitas planetárias à relação r = n 2 r1 , com r1 = 0.0439 u.a.. Assim, com G = 6.67 ×10 −11 m 3 / Kg .s 2 , M = 1.99 × 1030 Kg e m = 2.10 ×10 26 Kg ( a massa média dos planetas do sistema solar), obtemos, de (7), 1 2 2 42 2 H ' = (4π GMm r1 ) = 1.2 × 10 J .s , quer dizer, o quantum escalonado de ação obtido, de (3) e (4), no contexto da conjetura de invariância de escala. 5. A Quantização dos redshifts 4. A Quantização do Sistema Solar Uma análise estatística de dados 10 CADERNO DE FÍSICA DA UEFS, 03 (01): 07-12, 2004 teoria, mas algumas observações podem ser feitas neste sentido. Uma possível explicação para a quantização das grandes estruturas pode ser aventada com base em um ponto de vista evolutivo: a natureza quântica do Universo primordial (com escala de Fermi) determinou sua estrutura atual, aparentemente quantizada em larga escala. Esta hipótese pode ser razoável para o caso de galáxias e agrupamentos. Mas é muito improvável que estruturas intermediárias como as estrelas e o sistema solar mantenham a memória das condições iniciais. Além disso, seria necessário explicar a existência de duas escalas diferentes de quantização, o que não parece ser muito simples. Outra linha de raciocínio é explicar as várias faces da quantização em larga escala de modo fragmentado, no contexto de diferentes abordagens clássicos. Como exemplos, podemos mencionar os modelos oscilantes [ 22, 23] , introduzidos para explicar a periodicidade dos redshifts das galáxias. Ou o modelo “quântico-mecânico” de Nottale para o Sistema Solar [ 24] , baseado no caráter caóticos das órbitas planetárias [ 25] . Embora distinto da abordagem aqui apresentada, o modelo de Nottale também usa uma constante de Planck escalonada, de ordem de 10 42 J .s . Finalmente, o que parece ser a filosofia mais radical: ver o Universo, incluindo seu comportamento quântico, como realmente auto-similar e incorporar esta característica em qualquer descrição fundamental do mundo físico. astronômicos tem sugerido uma quantização dos redshifts cosmológicos [16−21] , um fato de explicação no contexto do modelo padrão. Para galáxias, os dados mostram um intervalo de quantização entre cz = 24Km / s e cz = 72 Km / s [16 ,17 ] ; ou, em uma outra análise, entre cz = 6,4 × 10 3 Km / s e 4 [18 ] cz = 1,28 × 10 Km / s . Estes resultados também são confirmados, pelo menos no nível qualitativo, pela observação de que as galáxias tendem a se agrupar em paredes, deixando vastas regiões vazias [19 ] . Nós tentaremos agora estabelecer uma possível conexão entre tais observações e a conjetura de quantização em larga escala, com ajuda de algumas suposições simples. Se as galáxias são consideradas em movimento livre no espaço-tempo plano, é natural supor um limite superior para seus momentos dado por Mc , onde M é a massa do universo. Esta limitação do espaço de momentos de galáxias leva, via relações de incerteza escalonadas, à quantização de seu espaço-tempo, com um quantum Δr ~ H / Mc . dado por Usando 50 81 H ~ 10 J .s e M ~ 10 Kg , chegamos a Δr ~ 10 23 m , que corresponde a um intervalo de velocidade dado por Δv ~ 100Km / s . 6. Conclusão Apesar dos resultados curiosos mostrados neste trabalho, a quantização em larga escala, se genuína, carece de explicação teórica. Nós estamos provavelmente longe de tal 11 A Hipótese dos Grandes Números e a Mecânica Quântica Saulo Carneiro 7. Agradecimentos [15] NETO, M.; Ciência e Cultura. 48, 166, 1996. Gostaria de agradecer a H. Arp, R. Murandian e E. Recami por importantes sugestões. Meus agradecimentos também a M.C. Nemes pela leitura do manuscrito. [16] AGNESE, A., FESTA, R.; Phys. Lett. A 227, 165, 1997. [17] TIFFT, W., COCKE, W.; Astroph. J. 287, 492, 1984. [18] TIFFT, W., COCKE, W.; Astroph. J. 336, 128, 1989. Referências. [19] GUTHRIE, B., NEPIER, W.; Mon. R. Astrr. Soc. 243, 431, 1990. [20] GUTHRIE, B., NEPIER, W.; Mon. R. Astrr. Soc. 253, 533, 1991. [1] DIRAC, P.; Nature. 139, 323, 1937. [2] SALAM, U., STRATHDEE, J.; Phys. Rev. D. 16, 2668, 1977. [21] BROADHURST, T., ELLIS, R., KOO, D., SZALAY, A.; Nature. 343, 726, 1990. [3] SALAM, U., STRATHDEE, J.; Phys. Rev. D. 18, 4596, 1978. [22] GELLER, M., HUCHRA, J.; Science. 246, 897, 1989. [4] CALDIROLA, P., PAVISIC, M., RECAMI, E.; Nuov. 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