CONTRAPONTO ENTRE ARTE, ARTESANATO E TRABALHO:
A FALSA DIFERENCIAÇÃO E A ATROFIA DA FANTASIA
Mara Salgado 1
Kety Valéria Simões Franciscatti 2
Este trabalho expõe resultados obtidos com a pesquisa “Arte, Artesanato e Trabalho:
um estudo acerca dos limites e das potencialidades de resistência no fazer e criar artesanal, e é
parte da pesquisa Psicologia e Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada”, desenvolvida
no Departamento de Psicologia (DPSIC) e no Laboratório de Pesquisa e Intervenção
Psicossocial (LAPIP) da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Pesquisar esta
dimensão diante dos limites e potencialidades do artesanato, mais especificamente do fazer
artesanal, configura-se como condição geradora de conhecimento, reflexões que podem
contribuir para a compreensão das relações que constituem o artesanato e os caminhos atuais
de sua produção. Neste sentido, a proposição desta investigação também está articulada com
o Estágio Curricular oferecido na área de Pesquisa/Psicologia Social intitulado: “Artesanato e
Formação: revitalização da Corporação de Artesão de Tiradentes como espaço para contrapor
trabalho e arte”.
Com base na Teoria Crítica da Sociedade, mais especificamente Adorno, Horkheimer
e Marcuse, busca-se investigar o processo de formação cultural tendo como foco de análise o
ofício do artesão na aproximação e diferença com a arte e as exigências do mundo do
trabalho. Entende-se que, na articulação com a arte, a psicologia encontra condições
apropriadas para pensar os obstáculos objetivos e subjetivos à realização de seu objeto – o
indivíduo. Tal entendimento sustenta parte do método que visa elucidar as (im)possibilidades
de formação da subjetividade autoconsciente e autodeterminada e, assim, estabelecer a crítica
ao sofrimento injustificado e revelar possíveis saídas deste estado.
O método de investigação que orientou este trabalho seguiu-se da leitura e
sistematização do referencial teórico (autores frankfurtianos já mencionados e outros
fundamentados nesta perspectiva como Crochík, Franciscatti e Imbrizi) sobre o processo de
formação cultural e das possibilidades de individuação, da tensão entre forma e expressão, da
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Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ/DPSIC/LAPIP
Bolsista PIBIC/CNPq – Graduanda em Psicologia
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Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ/DPSIC/LAPIP
Doutora em Psicologia – Orientadora
racionalidade do mundo do trabalho, sobre a fantasia e a resistência presentes na arte, bem
como da bibliografia que subsidiam a compreensão das formas de produção artesanal como
Mario de Andrade e Ferreira Gullar.
Também para tal investigação foi realizado o
levantamento das condições da produção e da obra artesanal através de análise documental da
“Corporação de Artesãos de Tiradentes” (CAT), observações de grupos de artesãos e
entrevistas.
O contato com a CAT ocorreu através de seus sócios fundadores e atuais beneficiários
e teve a finalidade de sistematizar os dados referentes à primeira associação de artesãos da
cidade de Tiradentes e região, fruto do primeiro projeto, em cidade brasileira, para fomento e
desenvolvimento do artesanato. A sistematização dos dados deu-se a partir da organização dos
documentos da corporação, que possibilitou a seleção e a análise dos seguintes documentos:
“Projeto Tiradentes – um estudo de alternativas para revitalização de comunidades urbanas e
rurais (1979 a 1981)”, que propiciou a criação da CAT a partir de 1981; e o “Projeto
Corporação de Artesãos de Tiradentes – CAT”.
Além destas atividades, foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas com
artesãos vinculados à CAT com o propósito de criar base compreensiva das relações
estabelecidas com o ofício de artesãos e de suas atuais possibilidades formativas. O estudo e
análise das entrevistas realizadas fundamentaram-se na coleta de dados recorrentes,
destacados dos relatos dos artesãos e foram indicativos dos principais aspectos
estabelecedores de suas condições sociais e de trabalho. Durante o contato com os artesãos em
suas reuniões grupais e ou nas entrevistas já realizadas, iniciou-se o levantamento das
condições da produção artesanal em seus aspectos físicos (oficinas e áreas residenciais de
trabalho), que foram fotografados (após consentimento dos artesãos), e em seus aspectos
psicológicos, através dos relatos das entrevistas.
Considerações sobre a arte: fantasia, expressão e “trabalho em algo que resiste”
Os autores estudados (Adorno, Horkheimer e Marcuse) indicam os limites presentes
na constituição da cultura como lugar de proteção, de satisfação; e, dado tais limites,
denunciam os obstáculos à formação humana como conseqüências da não realização do
fundamento da cultura: a diferenciação na realização do indivíduo. Ressalta-se esta
consideração no sentido que esta perspectiva de estudo talvez indique as dificuldades de
reconhecimento dos rastros de expressão do homem no fazer artesanal. Assim, busca-se com
base no entendimento destes autores sobre o processo de criação artístico – aqui circunscrito à
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faculdade da fantasia, ao conceito de expressão e a resistência que estão presentes no trabalho
do artista – tensionados como o que caracteriza o fazer artesanal e as exigências do mundo do
trabalho, discorrer sobre o caráter de resistência e crítica que ainda possam estar objetivadas
na obra artesanal face ao processo de empobrecimento da produção seriada e/ou coletiva.
A produção dos autores da teoria crítica, apesar de não ser considerada de maneira
homogênea, por existir diferenças teóricas entre eles, tem em sua base as formulações de
Freud, reconhecido como um pensador privilegiado por dizer a respeito dos sofrimentos
ocasionados na formação da civilização e da subjetividade. Ressalta-se, neste ponto alguns
aspectos de como Marcuse e Adorno tomaram as proposições freudianas para examinar a
faculdade da fantasia. Para Freud (1911/1974, p. 284) na arte, por meio do exercício da
fantasia, o princípio de prazer e o princípio de realidade podem se reconciliar:
Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não
pode concordar com a renúncia à satisfação instintual [pulsional] que ela a
princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa
liberdade na vida de fantasia. Todavia, encontra o caminho de volta deste
mundo de fantasia para a realidade, fazendo uso de dons especiais que
transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas
pelos homens como reflexos preciosos da realidade. Assim, de certa maneira,
ele na verdade se torna o herói, o rei, o criador ou o favorito que desejava ser,
sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar alterações reais no mundo
externo. Mas ele só pode conseguir isto porque outros homens sentem a
mesma insatisfação que ele com a renúncia exigida pela realidade, e porque
essa insatisfação, que resulta da substituição do princípio de prazer pelo
princípio de realidade, é em si uma parte da realidade.
Nesse sentido, Marcuse (1955/1981, p. 133), que não faz distinção entre os termos
“fantasia” e “imaginação”, considera que
A fantasia desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental
total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados
produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os
arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas idéias da memória coletiva
e individual, as imagens, tabus da liberdade.
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Assim para este autor é o estabelecimento do princípio de prazer o provocador da
“divisão” e a “mutilação” da mente. Ele escreve: “o processo mental, anteriormente unificado
no ego prazer, está agora cindido; sua principal corrente é canalizada para o domínio do
princípio de realidade e colocada em linha com os requisitos do mesmo” (MARCUSE,
1955/1981, p. 132). À hegemonia desta parte da mente cabe “interpretar, alterar, manipular” e
até “definir” o que é a realidade; à outra, livre do controle do princípio de realidade, paga este
preço expressando “impotência, inconseqüência, o irreal”. Entretanto, se é a oposição entre
razão e fantasia que marca a cisão da mente, entretanto, a superação desta cisão solicita o
confronto entre o que ambas preservam e abandonam (FRANCISCATTI, 2005).
Como Marcuse (1955/1981) em “Eros e civilização”, Adorno (1970/1988), não
obstante ao fato de adotar uma perspectiva mais crítica ao que pôde ser esclarecido por Freud,
também considera a potencialidade de crítica e a verdade do movimento empreendido pela
fantasia dentro do processo de criação artístico. Tal como Marcuse, Adorno busca na arte,
mais precisamente em sua negatividade, fundamentos para potencializar sua obra como crítica
da cultura e da práxis aprisionada pelas exigências da sobrevivência. Assim, em “Teoria
Estética”, Adorno (1970/1988, p. 19) afirma que “a arte é a antítese social da sociedade, e não
deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição
de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente
parte na sublimação”. Entretanto, o que Adorno critica, a partir da própria ambigüidade
presente em Freud, é a condição de “fuga” dada aos momentos que denunciam a insatisfação
imposta com a massacrante divisão do trabalho. Ao reverenciar o princípio de realidade,
clama-se à adaptação ao que faz sofrer de forma injustificável, perde-se a negatividade da
arte. Para Adorno (1970/1988, p. 20; grifo das autoras),
A realidade oferece muitos outros motivos reais para dela se fugir e mais do
que o admite a indignação a respeito da fuga, que é veiculada pela ideologia
da harmonia; até mesmo psicologicamente seria mais fácil legitimar a arte do
que o reconhece a psicologia. Sem dúvida, a imaginação é também fuga, mas
não completamente: o que o princípio de realidade transcende para de algo
superior encontra-se também sempre em baixo. É maldoso pôr ali o dedo.
Destrói-se a imago do artista como aquele que é tolerado: neurótico
incorporado na sociedade da divisão do trabalho. Nos artistas de altíssima
classe, como Beethoven ou Rembrandt, aliava-se a mais aguda consciência da
realidade à alienação da realidade; só por si isto já constituiria um objeto
digno da psicologia da arte, que não teria de decifrar a obra de arte apenas
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como algo de semelhante ao artista, mas como alguma coisa de diferente,
como trabalho em algo que resiste.
Nesta perspectiva, trata-se de entender a obra arte trazendo não somente algo
semelhante ao artista, mas também algo diferente: “trabalho em algo que resiste”, trabalho
contra o trabalho. Entretanto, o trabalho contra o trabalho presente na produção de uma obra
de arte, requer também a passagem pelo espírito. Na tensão entre aspectos subjetivos e
objetivos, a atividade artística exercida entre a sensibilidade e a razão proporciona um
momento onde a violência deformadora é contida e transformada. Assim,
Por muito que a arte tenha sido marcada e intensificada pela alienação
universal, aquilo que menos a aliena é o fato de nela tudo ter passado pelo
espírito e ter sido humanizado sem violência. (...) Ainda que o espírito nela
continue a exercer a dominação, ela liberta-se, na sua objetivação, dos seus
fins dominadores. (...) A arte retifica o conhecimento conceptual porque,
separado, cumpre o que esta em vão espera da relação abstrata sujeito-objeto:
o desvelamento de alguma coisa de objetivo mediante a produção subjetiva.
(...) Mediante a espiritualização, radical dominação da natureza, sua própria
dominação, corrige a dominação da natureza enquanto dominação do outro.
(ADORNO, 1970/1988, p. 133; grifo no original).
Mas para Adorno, (1970/1988, p.133), é pela “expressão”3 que “(...) a natureza penetra
no mais profundo da arte (...)”. Nesse sentido e ainda a respeito da capacidade que estaria
presente nas manifestações artísticas, no aforismo “O exibicionista”, analisando mais de perto
a própria observação de Freud – que a insatisfação pela renúncia erótica é algo da realidade,
citada anteriormente –, Adorno (1951/1993, p. 186) critica a proposição de que os artistas
sublimam: “os artistas não sublimam. (...) Antes, manifestam os artistas instintos violentos, de
tipo neurótico, que eclodem livremente e, ao mesmo tempo, colidem com a realidade. (...) A
tudo que é sublimado opõem idiossincrasias”. Para Adorno (1951/1993, p. 187; grifo no
original), a expressão artística resguarda a manifestação não falsificada de si-mesma, pela sua
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O conceito de expressão vem sendo estudado, como parte da pesquisa “Psicologia e Arte: reflexões acerca da
subjetividade obstada", em diferentes subprojetos, sendo foco principalmente da investigação realizada por
Cynthia Maria Jorge Viana. Parte deste trabalho, intitulado “O fazer cego da expressão: estudos sobre os
conceitos de expressão e sublimação em Adorno e Freud”, e outro realizado por Sandra Faria de Resende,
intitulado “Morte e vida nos contos de Clarice Lispector: reflexões sobre as potencialidades da literatura e os
limites da formação cultural”, também participam do II Colóquio de Psicologia da Arte “A correspondência das
artes e a unidade dos sentidos” – todos com orientação da Profa. Dra. Kety Valéria Simões Franciscatti.
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força resiste à mutilação das exigências sociais.
Ela é tão forte, que lhe sucede modificar-se em uma mera imagem – o preço
da sobrevivência –, sem sofrer mutilação ao passar para o exterior. Ela
substitui seu objetivo, assim como sua própria ‘elaboração’ pela censura
subjetiva, por uma elaboração objetiva: sua revelação polêmica. Isso
distingue-a da sublimação: toda expressão bem-sucedida do sujeito é, por
assim dizer, um pequeno triunfo sobre o jogo de forças de sua própria
psicologia. O pathos da arte está ligado ao fato de que ela, precisamente por
retirar-se para a imaginação, dá à supremacia da realidade o que a esta é
devido, sem resignar-se todavia à acomodação, sem dar prosseguimento à
violência do exterior na deformação do interior.
Sobre o entrelaçamento do momento expressivo e o formal, Adorno (1970/1988, p.
134; grifo no original) escreve que “isso conduz a um paradoxo subjetivo da arte: produzir
algo cego – a expressão – a partir da reflexão e pela forma; não racionalizar o que é cego, mas
produzi-lo primeiramente de modo estético; ‘fazer coisas acerca das quais não sabemos o que
são’”. O artista, por isso mesmo, pode ser entendido como um “representante” das (im)
possibilidades que cercam o processo de formação do indivíduo.
Arte e Artesanato: a vingança do mundo do trabalho subsidiando a morte da
expressão no artesanato.
Segundo Ferreira Gullar (1994), apesar de o trabalho artesanal ser visto como
atividade inferior desde a Antiguidade, a efetiva distinção entre arte e artesanato trata-se de
um fenômeno moderno que tem seu início no Renascimento, na divisão de trabalho (artistas e
artesãos) que se estabelece nas equipes de construção de igrejas medievais, uma vez que esta
proporciona condições ao aparecimento do artista individual. Para o autor, quando esta figura
deixa o canteiro de obras e passa ter o ateliê próprio pode prescindir da encomenda e criar à
espera de um futuro comprador. Em meio a esta relativa independência do artista, que se
estabelece tanto no plano econômico quanto estético, o artista
Distingui-se do artesão que continua a produzir objetos de uso e preso às
formas tradicionais. Uma das características do artesanato, em contraposição à
arte então nascente, é que esta se caracteriza pela busca de novas formas e
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estilos, enquanto o artesanato é conservador e repetitivo. Nele, a experiência é
passada de pai para filho e não como conhecimento estético, forma estilística,
mas como a forma do objeto, ou seja: um copo se faz assim, uma bandeja se
faz assim, um cálice se faz assim. (GULLAR, 1994, p. 8).
Entretanto observa-se que o artesanato num certo sentido, desde a Antigüidade, não se
restringia a fazer um objeto, os rastros daquele que executava a ação bem como o da cultura a
qual estava inserido podiam ser percebidos neste objeto.
Mário de Andrade (1938, p. 4), em “O artista e o artesão”4 , indica que
o artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente,
mas a técnica da arte não se resume ao artesanato. O artesanato é parte da
técnica que se pode ensinar, mas há uma parte da técnica da arte que é por
assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do
artista.
Contudo, ele mesmo ressalta que o objeto artesanal pode se tornar um testemunho,
uma revelação da relação homem e sociedade. É na tensão entre repetição e criação que
Andrade (1938) considera a possibilidade da revelação do objeto artesanal: o que desponta de
criação em meio à repetição contém a rebeldia e a transgressão da própria repetição.
Se for possível dizer que historicamente, o artesanato nasce da necessidade de se
produzir bens de utilidade, mesmo como instrumentos facilitadores da sobrevivência do
homem, também é possível observar que este sempre conteve elementos tradutores da cultura,
em suas respectivas utilidades e características peculiares da comunidade de origem 5 . Como o
fazer artesanal está correlacionado com a matéria-prima de alcance regional do artesão – que
reflete o sistema de vida de sua região e assume aspectos que possibilitam suprir as variadas
necessidades que as condições sociais locais apresentam – a obra produzida por meio deste
ofício estabelece, necessariamente, a relação entre o homem e o meio através da representação
simbólica da cultura, seja em seu caráter reprodutor, quando se limita a repetição, ou
transgressor, quando há expressão singular.
Nesse sentido, faz-se necessário refletir sobre o crescente fomento do artesanato
apenas em seu caráter de identidade de tradição cultural, pois este movimento parece impor ao
4
Trecho extraído do texto de apresentação em aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da arte, do
Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal em 1938.
5
www.descubraminas.com.br / Saul Martins.
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artesão a tarefa de simplesmente repetir arranjos arcaicos, o que pode limitar sua capacidade
de criar e minar a expressão, de cada comunidade e cada artesão, a uma demanda de mercado.
Isso, não significa, porém, desconsiderar que é o reconhecimento da tradição e a repetição de
um fazer, que possibilita ligar o passado ao presente, realizando transmissão de valores,
fazeres e demais experiências acumuladas, que constituem o registro da história da qual o
sujeito pertence, e a apropriação e o reconhecimento deste registro são importantes para o
processo de individuação. Entretanto, se o repetir traduz reprodução e transmissão da cultura e
nisso também a adesão àquilo que ela também traz de aprisionamento, a criação que pode se
inscrever sobre o fazer repetido traduz uma tentativa de reparação da adesão àquilo que faz
sofrer, o que caracteriza uma resistência à ordem social.
A sobrevivência do artesanato, após a industrialização, parece apontar para uma
resistência enquanto o "fazer", enquanto "forma de trabalho", que envolve a história familiar,
cultural, geográfica de aprendizado e desenvolvimento de uma comunidade. Mas, quando o
artesanato transforma-se num "filão comercial", tanto seu caráter de resistência do "fazer",
quanto do "criar", sofre inversões severas, lançando o artesão à dicotomia do início da
industrialização: expressão versus valor e expressão versus produção. No ritmo da
produtividade atual, o artesão para garantir sua subsistência tem seu corpo visto e vivido tal
como uma máquina explorada ao limite máximo de funcionamento.
Nesse sentido, o processo de produção artesanal vem cedendo ao mercado, que parece
vingar-se daquele que tenta resistir à ordem da racionalidade tecnológica, transformando a
manifestação da resistência em mercadoria sem valor, reduzida a um "fetiche" do mercado, e
como tal, deve adequar sua produção para atender à demanda de consumo. Assim, teme-se
que o trabalho artesanal esteja gradativamente passando, através do modo de produção e da
determinação do mercado, a um processo mecanicista onde o artesão, destituído de sua
subjetividade, torna-se instrumento de trabalho barato.
À medida que houve demanda para o aumento da produção, o mercado, em seu
delírio, consegue fornecedores (artesãos ou atravessadores) para suprir sua programação e,
nisto, a expressão deixa de ser valorizada. Em nome da sobrevivência ou do aumento de
lucro, hoje as peças que retratavam características do cotidiano de uma cidade do interior,
transformam-se em peças em série, iguais, sem expressão e que podem, quem sabe, através de
seu frágil material moldado muitas vezes em resina, representar a fragilidade do indivíduo que
morre e ajuda matar aquilo que acena para a liberdade e a alteridade.
Essa "vingança" do mundo do trabalho aponta para duas vertentes que permeiam as
novas relações sociais e culturais do fazer artesanal. Uma se realiza através da demanda de
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aumento de produção, que conseqüentemente mata a criação e empurra o artesão para uma
rede coletiva de trabalho, submetendo sua sobrevivência às associações, cuja própria
existência já diz de um pouco de morte do desejo de resistência de cada artesão, comprometese, cada vez mais, a possibilidade de criação: uma vez que as associações também
reproduzem a ameaça ao artesão em sua busca pela máxima autonomia possível, suas relações
acabam se constituindo pelo medo (acionado diante da ameaça de um mercado voraz) e
potencializam os mecanismos de defesa que minam, assim, a possibilidade da presença da
expressão na criação artesanal. A outra vertente da vingança é a que nega a expressão do
artesão, por falsa projeção se oculta da percepção o elemento de resistência que insiste em
aparecer e o remete à própria impossibilidade de resistir. Tal movimento pode ser pensado
quando se incentiva e valoriza-se as cópias seriadas que atendem ao ideal de mercado.
A falsa diferenciação, marketing da racionalidade tecnológica no artesanato.
Para Adorno (1959/1986, p. 176) “(...) a formação do indivíduo nada mais é que a
cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva. Porém a cultura tem um duplo caráter:
remete à sociedade e media esta e a pseudoformação”. A adoção da cultura como um valor,
um fim em si mesma autentica seu caráter de dominação ao manter a dissociação entre cultura
(espírito) e civilização (bens materiais). A cultura não é só espírito é também bem material
então, tudo que o homem produziu e produz é cultura – representação dinâmica da mediação
social – e manter essa dissociação é manter a alienação e dominação uma vez que a coloca em
condição imutável. Assim, se a sociedade se estrutura na dominação, os homens impedidos de
expressar-se de acordo com sua autoconsciência estão de “antemão deformados”. Essa
ilusória ambigüidade da cultura nos remete à separação social colocada entre o trabalho do
corpo e o trabalho do espírito, base para pensar a práxis do artesão, que camufla seu
adoecimento através da propaganda de um ofício extraído do espírito (expressão/criatividade),
como se seu corpo não estivesse acuado pelo ritmo da alta produtividade exigida pelo
mercado (CROCHÍK, 1999).
Nesse sentido, o que hoje se manifesta como formação cultural sustenta-se numa
“pseudoformação socializada” (ADORNO, 1959/1986, p. 176), em que o homem com seu
espírito alienado não encontra formas, nem forças para a resistência à dominação, possível
com a expressão de sua subjetividade por meio do exercício da fantasia, movimento capaz de
denunciar as condições objetivas de renúncia e autodestruição, bem como de indícios que
poderia ser diferente.
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Na tensão entre produtividade e diferenciação está o paradigma das exigências
modernas, que se baseiam no sistema da produção industrial e finge buscar “o novo”, a
almejada diferenciação, esta por sua vez tem servido, ultimamente, como instrumento para
adaptação. Com base nas contribuições dos autores frankfurtianos (Adorno, Horkheimer e
Marcuse), Imbrizi (2005, p. 23) ressalta a impossibilidade da diferenciação:
[...] não só em função das condições oferecidas no espaço de trabalho, mas
fundamentalmente porque o processo de formação percorrido pelo indivíduo
nas várias esferas da socialização está tomado por valores vinculados à
racionalidade do equivalente: o homem é formado para igualar-se aos outros;
os espaços oferecidos para a participação e discussão de idéias são falsos. [...]
Perde-se, então a oportunidade desses espaços como possibilidades de avanço
das relações entre os homens, que sob a ótica da tecnologia tendem a ser
calculados e mensurados segundo critérios de utilidade e lucro.
A partir do estudo específico sobre as formas de produção do artesanato, através da
bibliografia selecionada, mas principalmente através do contato com os artesãos e seus
produtos, o que desponta é a negação da alienação da força de trabalho, a negação da
substituição da máquina pelo homem, dada tamanha necessidade de produção capaz de suprir
somente a miséria da sobrevivência.
As entrevistas realizadas com os artesãos e o contato em suas reuniões, apontam para a
realidade de uma maioria, dentre os inúmeros tipos de artesãos, que também se mantém a
margem de um sistema justo de trabalho e vítimas das especulações do mercado.
A potencialidade da atividade artesanal em Tiradentes/MG foi impulsionada por um
programa de expansão e desenvolvimento para o artesanato, o que ocasionou o crescimento
econômico da cidade e o fortalecimento do ofício. Diante disso a possibilidade de um fazer
que contenha expressão, possível com na transgressão da técnica e da lógica da produtividade,
vem sendo diminuída, e ao invés de denunciar os sofrimentos injustificados, submete-se ao
ritmo da máquina responsável pela atrofia da fantasia.
O mercado em seu jogo de massificação impulsiona o consumo e determina a
produção, impedindo o aparecimento daquilo que lhe serve de propaganda: a diferenciação. A
falsa diferenciação eleita pelas estratégias de mercado, o elemento capaz de alavancar o
consumo, intimam as pessoas a participarem, discutirem e criarem, desde que seus
argumentos se pautem na manutenção da produtividade e do lucro.
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Assim, o artesão também não tem encontrado condições para escapar do achatamento
da subjetividade, e parece por meio de mecanismos de defesas, compactuar com a falsa idéia
de que produz um trabalho mágico e especial, que o imuniza da expropriação do mundo do
trabalho. Tal discurso aproxima o artesão à lógica de mercado de beneficiamento de
marketing. O que se percebe, é que atualmente, essas peculiaridades conquistadas com o
trabalho manual, só são possíveis quando o artesão consegue ligar-se a fantasia e realizar o
mergulho em sua particularidade. Porém, quando o artesanato deixa de ser um ofício
escolhido por condições históricas individuais e passa a ocupar o cenário de um novo
empreendimento alternativo, apropriado para sanar o crescente desemprego, sua nova
categoria rebaixa aquelas características especiais, pois estas parecem ser incompatíveis com
as condições de produção e desvalorização de seus produtos.
Talvez a promessa da arte em reconciliar o princípio de prazer e o princípio de
realidade (Freud, 1991/1974; Marcuse, 1955/1981), que permite ao artista a ida ao mundo da
fantasia e o seu retorno de lá, seja o que aproximou o artista e o antigo artesão, separados pela
rendição à realidade. O artista, também ligado à alienação, pagando o preço pela resistência e
o artesão pagando o preço pela alienação impossibilitado de resistir. Ambos oprimidos pelas
impossibilidades de individuação acenam da arena, impotentes diante da dominação e
renúncia.
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Texto na íntegra - Instituto de Psicologia da USP