OS BANCÁRIOS E SEU MISTER NO MUNDO DO CAPITAL EM CRISE Nise Jinkings1 Os trabalhadores bancários experimentam peculiaridades nas suas condições de existência decorrentes do caráter particular de seu objeto de trabalho: a forma dinheiro da mercadoria. Realizam um conjunto de operações de registro e de controle, transferência e redistribuição dos valores excedentes criados no processo capitalista de produção, atualmente com o suporte teleinformático. É dessa maneira que viabilizam a transformação da mercadoriadinheiro em capital produtor de juros, num processo fetichizado que toma a aparência de dinheiro que gera mais dinheiro, como assinalou Karl Marx (1985:459). Na crítica realidade contemporânea de mundialização e desregulamentação financeiras, o capital-dinheiro circula velozmente de um ponto a outro do mundo, sob a forma volátil de impulsos eletrônicos. Nesse quadro de crescente expansão e predomínio do capital financeiro nos movimentos da economia, a força de trabalho bancária experimenta de modo particular as tensões e contradições do atual regime de acumulação capitalista. As pesquisas de mestrado e de doutorado que resultaram, respectivamente, nos livros O mister de fazer dinheiro (Boitempo, 1995) e Trabalho e resistência na “fonte misteriosa” (Editora da Unicamp, 2002), de minha autoria, buscaram desvelar as singularidades da atual reestruturação capitalista no universo bancário. O primeiro estudo, realizado entre 1992 e 1994, objetivou analisar as mudanças do trabalho bancário, fortemente marcado por inovações tecnológicas, organizacionais e gerenciais, e sua repercussão no cotidiano e na subjetividade dos trabalhadores dos bancos. A investigação procurou apreender as formas particulares do processo de fetichização do trabalho nos bancos, assim como os mecanismos de resistência dos bancários diante da realidade problemática que vivenciam. 1 Socióloga, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina. Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 Em suas considerações finais, a dissertação aponta algumas tendências que se esboçam com o processo avassalador de transformações do trabalho bancário, potencialmente incrementador das manifestações fetichizadas de consciência que se desenvolvem no mundo do trabalho sob o domínio capitalista. Assinala que a intensificação do processo informático nos bancos, o aumento da terceirização, os níveis crescentes de desemprego, as mudanças no perfil do bancário – com o incremento de gerências nas agências bancárias e a redução de caixas e escriturários – além das políticas gerenciais “participativas” que mistificam as relações sociais antagônicas nos ambientes laborais, implicam maiores obstáculos ao desenvolvimento de uma consciência política dos bancários e de sua luta coletiva. Ao mesmo tempo, o estudo aponta um movimento de degradação das condições de trabalho. Permanecem, em grande medida, algumas das características típicas do trabalho burocrático manual – como o labor cansativo, rotineiro, repetitivo e empobrecido de conteúdo –, que se somam à reorganização do trabalho, à automação e às novas formas de gestão para produzir um aumento do controle e da pressão por produtividade, tornar mais intenso o ritmo de trabalho e disseminar o medo e a competição nos ambientes laborais. Nessa realidade contraditória, as formas de rebeldia que emergem no dia-a-dia de trabalho, mesclam-se com manifestações de subordinação, resignação ou adesão desses trabalhadores bancários ao ideário patronal e aos interesses do capital. A pesquisa de doutorado, desenvolvida nos últimos anos da década de 1990, dá continuidade aos estudos anteriormente desenvolvidos, mergulhando no modo como a reestruturação capitalista invade os ambientes laborais e as condições de vida e trabalho dos bancários. O estudo buscou as mediações entre o trabalhador bancário – seu labor e ação sindical –, os bancos, o sistema financeiro nacional e o internacional, o mundo do trabalho e o capitalismo mundializado. Parte do quadro problemático marcado pela adoção de políticas neoliberais no país e pelo fortalecimento do grande capital privado transnacional no sistema financeiro brasileiro, buscando desvelar sua repercussão nos novos padrões de trabalho nos bancos, que se destinam a maximizar a produtividade e, simultaneamente, a fragilizar as ações coletivas de resistência dos bancários. A tese mostra que se intensifica o movimento de migração do tradicional atendimento nas agências para o atendimento eletrônico, enquanto as agências bancárias apresentam-se cada vez mais como pequenas “lojas” eletrônicas de Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 serviços financeiros e são desativadas grandes centrais de serviços, compensação e processamento de dados. As estratégias mercadológicas dos bancos, direcionadas para a “qualidade do atendimento”, convertem bancários alocados nas agências e centrais de atendimento em bancários-vendedores dos serviços financeiros disponibilizados. Sofisticam-se as práticas do poder organizacional, sintetizadas em programas de treinamento, de qualidade total e remuneração variável, que mistificam mais ainda as relações de antagonismo e dominação próprias do capitalismo, fragmentam e individualizam o trabalho. A análise apresentada sugere que nos ambientes laborais, ao controle burocrático do trabalho inspirado nos métodos produtivos tayloristas, sobrepõe-se uma outra forma de autoridade do capital. Mascarada pela mediação das “leis” do mercado, essa nova estratégia de controle e disciplina do trabalho tem como portadoras as metas de produtividade e as avaliações de desempenho funcional, que mensuram e qualificam a atuação dos trabalhadores. Nesse contexto de rápida destruição de postos de trabalho, de difusão de formas precárias de contratação e da disseminação de mecanismos ideológicos de manipulação da subjetividade do trabalho, os bancários vivem a intensificação do trabalho e a instabilidade do emprego como fatores essenciais de degradação de suas condições laborais. No cotidiano do trabalho bancário, a maneira como a lógica destrutiva do capital e sua reestruturação produtiva repercutem sobre a vida e a saúde dos trabalhadores revela-se em jornadas extenuantes, ritmo intenso e sobrecarga de tarefas, ambientes laborais marcados pela ansiedade e tensão. São ambientes laborais que desestruturam relações solidárias entre companheiros de trabalho, desgastam a saúde física e mental, intimidam ações individuais e coletivas de resistência. O crescente índice de manifestações patológicas e de suicídios, especialmente entre trabalhadores de bancos estatais em face dos processos de privatização e das mudanças abruptas de suas condições laborais, é significativo das formas atuais de fragmentação e destruição da subjetividade do trabalho. Nesse contexto, a expressão do conflito é problemática, mas não ausente. O diálogo com os sindicatos As pesquisas desenvolveram-se na cidade de São Paulo e tiveram um importante apoio do Sindicato dos Bancários de São Paulo, na cessão e consulta Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 de documentos e publicações. Esse apoio concretizou-se também em conversas informais e entrevistas semi-estruturadas com dirigentes sindicais e, posteriormente, na co-edição do livro O mister de fazer dinheiro, que teve sua apresentação escrita pelo então presidente do sindicato de São Paulo. O livro foi lançado em sede do sindicato paulista e em diversos outros sindicatos bancários do país, com palestras e debates sobre as transformações do trabalho em curso e suas repercussões na capacidade de luta sindical dos bancários. Vários desses sindicatos compraram em quantidade o livro, para uso em cursos de formação. Na imprensa sindical foram noticiados os lançamentos e palestras e artigos foram publicados nas revistas O Espelho, Informativo da Comissão de Empresa dos Funcionários do Banco do Brasil (n. 158 e 159, janfev/1997) e Prosa & Verbo, Revista Unificada dos Bancários RS (n. 19, outnov/1999). Após a publicação do livro Trabalho e resistência na “fonte misteriosa” foi publicada longa entrevista em O Espelho (n. 215, maio/2003). Desde a publicação dos livros, fui convidada a participar como palestrante de inúmeros seminários, encontros e congressos sindicais bancários. Nesses eventos pude apresentar os resultados de minhas pesquisas e debatê-los com dirigentes e militantes. Alguns desses eventos foram extremamente ricos, articulando reflexão teórica e vivência prática nas análises das mudanças do trabalho bancário e dos impasses e desafios postos aos sindicatos. Outros foram também momentos importantes de mergulho na investigação. É o caso do VII Congresso Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil, realizado no Rio de Janeiro em julho/1996, no qual fui conferencista convidada e onde foram aplicados questionários que visavam captar as impressões e análises dos sindicalistas e militantes presentes, em um contexto de intensificação do ataque neoliberal aos bancos estatais. Os dados coletados orientaram e fundamentaram o desenvolvimento de minha pesquisa de doutorado. Nos livros e nas discussões com sindicalistas e militantes venho chamando a atenção para a ofensiva ideológica que invade os locais de trabalho bancários, buscando conquistar a adesão incondicional dos trabalhadores ao ideário empresarial e às estratégias mercadológicas dos bancos. Com o apoio de sofisticados meios de comunicação, assim como dos seus programas de qualidade total, remuneração variável e treinamento, os bancos tentam construir um ambiente no qual os bancários se pensem, não mais como representantes do Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 trabalho assalariado que se defronta antagonicamente com o capital, mas como o próprio capital personificado. O discurso institucional do trabalhador “compromissado”, “empreendedor”, “competitivo”, tenta enfraquecer a noção de coletivo, defendendo um individualismo exacerbado e buscando legitimar as exigências de metas de produtividade. Enfrentar essa ofensiva, contrapondo nos locais de trabalho a crítica bem fundamentada às atuais táticas do poder organizacional, desvelando as finalidades e os sentidos dos seus programas gerenciais é desafio importante dos sindicatos, na sua luta por melhores condições de trabalho e saúde nos dias de hoje. Isto porque essas táticas de poder são elementos essenciais das estratégias de disciplinamento e controle do trabalho e são, também, fonte inequívoca de degradação das condições de trabalho e saúde dos bancários. Neste sentido, a análise crítica das práticas organizacionais e do modo concreto como elas afetam as relações e condições de trabalho nos bancos, desenvolvida nos dois livros, pode contribuir para um melhor embasamento da luta sindical. Mesmo considerando os enormes impasses e desafios com os quais o sindicalismo bancário vem se defrontando desde os anos 1990 e o contexto crítico da atualidade, hostil à ação coletiva, penso que as condições da luta histórica dos trabalhadores contra a exploração capitalista permanecem presentes nos ambientes laborais. Pois as tensões e conflitos que ali afloram no dia-a-dia permitem desmascarar as contradições entre o discurso empresarial e a realidade de exploração intensa do trabalho. Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008