UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
“POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?”:
DISCURSO EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL
NO ROMANCE A ESCRAVA ISAURA
KLEBERSON DA SILVA ALVES
Santo Antônio de Jesus, Bahia
Setembro/2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
“POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?”:
DISCURSO EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL
NO ROMANCE A ESCRAVA ISAURA
KLEBERSON DA SILVA ALVES
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia (PPGHIS/UNEB)
como requisito obrigatório para a obtenção do título
de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Wellington Castellucci
Junior.
Santo Antônio de Jesus, Bahia
Setembro/2010
A474
Alves, Kleberson da Silva.
“Por que razão não libertaram esta menina?”: discurso
emancipacionista e perfil do liberto ideal no romance A Escrava Isaura. /
Kleberson da Silva Alves - 2010.
150 f.
Orientador: Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2010.
1. Literatura - História. 2. A Escrava Isaura - Romance. 3. Bernardo
Guimarães I. Castellucci Junior, Wellington. II. Universidade do Estado
da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 801.9
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
―POR QUE RAZÃO NÃO LIBERTARAM ESTA MENINA?‖: DISCURSO
EMANCIPACIONISTA E PERFIL DO LIBERTO IDEAL NO ROMANCE A ESCRAVA
ISAURA
Autor: Kleberson da Silva Alves
Orientador: Prof. Dr. Wellington Castelluci Junior
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional
e Local da Universidade do Estado da Bahia como requisito necessário a obtenção do título
de Mestre em História.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior (Orientador)
Universidade do Estado da Bahia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
_______________________________________________
Profª. Drª. Gabriela dos Reis Sampaio
Universidade Federal da Bahia
_______________________________________________
Prof. Dr. Paulo Santos Silva
Universidade do Estado da Bahia
Santo Antônio de Jesus, 24 de Setembro de 2010.
AGRADECIMENTOS
O trabalho de pesquisa é um processo de intensos diálogos. Especialmente no
caso da pesquisa histórica, de dialogo virtual com os sujeitos históricos e sociais cujos
nomes, memórias, histórias, ações e pensamentos, são intensivamente mencionados,
analisados e discutidos. Mas, também, de diálogos reais com pessoas e instituições sem as
quais a pesquisa não se concretizaria. É importante destacarmos que muitas dessas pessoas
ficam incógnitas. Talvez, possam ter, em algum momento, suas histórias e vivências nas
instituições de pesquisa (Bibliotecas e Arquivos) investigada por algum historiador e/ou
sociólogo curioso e perspicaz. Julgo que seria uma interessante pesquisa. Agradeço a esses
indivíduos que muito contribuem para a concretização de muitas pesquisas.
Agradeço também a alguns que serão aqui nomeados. Tarso Tavares e Girlene
Neri da Divisão de Informação Documental da Biblioteca Nacional (DINF/BN); Fábio do
Centro de Digitalização da Universidade Federal da Bahia (CEDIG/UFBA), que realizou a
digitalização dos microfilmes remetidos pela Biblioteca Nacional; Angélica de Cássia
Barbosa, estudante de graduação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que
realizou a digitalização dos microfilmes dos periódicos Ensaios Litterarios (São Paulo,
1847-1850) e A actualidade (Rio de Janeiro, 1859-1860) no acervo do Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL/CECULT) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Foram pessoas muito importantes no processo de coleta e digitalização da documentação
utilizada na presente pesquisa.
Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, através de bolsa de estudos, que possibilitou a
aquisição de alguns exemplares de obras literárias que, fora do mercado editorial
contemporâneo, somente podiam ser encontrados em Livrarias-Sebo. Ademais, a presente
pesquisa deve muito aos diálogos e experiências vivenciadas, no período de 2004 a 2006,
com as professoras Iacy Maia Mata e Ana Rita Santiago da Silva acerca das relações entre
História e Literatura, quando eu ainda cursava a graduação. Diálogos estes fundamentais
para a elaboração do projeto de pesquisa que também contou com sugestões de Luiz
Alberto Couceiro. Agradeço também aos professores Paulo Santos Silva e Gabriela dos
Reis Sampaio pelas valiosas contribuições durante a realização do exame de qualificação.
6
No âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local
(PPGHIS/UNEB), além dos colegas e professores, agradeço à Ane Vieira Nunes e
Consuello L. Pereira da Silva, que sempre atenderam solicitamente às minhas solicitações,
bem como nunca me deixaram permanecer com dúvidas. Agradeço especialmente ao
professor Wellington Castellucci Junior que orientou, durante dois anos de pesquisa, a
confecção deste trabalho. Ainda referente ao Programa, agradeço também a algumas
colegas com os quais vivenciei também momentos de amizade na cidade de Santo Antônio
de Jesus. São elas: Soanne Cristino Almeida dos Santos e Camila Barreto Santos Avelino.
Neste último parágrafo de agradecimentos, não poderia esquecer alguns pessoas
que há muito convivem comigo: meus pais (Maria Magali de Silva Alves e Mario Jorge
dos Santos Alves), meus irmãos (Uenderson e Jeferson da Silva Alves) e meu sobrinho
Kaique (este de convívio um pouco mais recente, há apenas três anos e meio, desde o seu
nascimento). Agradeço também aos bons amigos e colegas – também estudantes de
história – Jéssica dos Santos Oliveira, Álvaro Leal Santos, Caroline Lima Santos e
Humberto Manoel.
RESUMO
Este trabalho consiste na análise do romance A escrava Isaura de autoria do
bacharel mineiro Bernardo Guimarães. Escrito em 1874, numa conjuntura de debates em
torno da emancipação dos escravos, a obra apresenta uma proposta de emancipação que se
opunha à iniciativa do Estado em regular o processo de transição do trabalho escravo ao
livre, que era então representada na lei do Ventre-livre (1871). Através das caracterizações
de senhores, escravos e capitães-do-mato pudemos compreender o discurso antiescravista
do literato que buscava convencer a classe senhorial de que era prudente que eles próprios
efetivassem o processo de transição que lhes seria vantajoso moral e economicamente.
Ademais, é possível perceber que o literato defendia um processo lento e gradual que
―preparasse‖ o escravo para a vida em liberdade como se advogava na época, indicando o
que ele considerava como adequado para o comportamento do futuro liberto: um
comportamento dócil e submisso, de acordo as expectativas senhorial. Nessa perspectiva
temos, em A escrava Isaura, e em outra história romântica do mesmo autor publicada em
1871, um discurso no qual temos personagens/indivíduos que atuaram na tentativa de
perpetuar a escravidão, bem como negros que não se comportavam de acordo aos anseios
da classe senhorial, caracterizados pejorativamente.
Palavras-chave: A escrava Isaura; Bernardo Guimarães; Discurso antiescravista; Literatura
e História; Século XIX.
ABSTRACT
Title: ―Why this girl was not set free?‖: emancipationist discourse and the ideal profile of
the former slave in the novel Isaura, the slave girl
We have analyzed the novel Isaura, the slave girl by Bernardo Guimarães.
Written in 1874, in a debate conjuncture concerning the emancipation of slaves, the work
presents a proposal for emancipation which contested the State initiative in regulate the
transition process from slave work to free work, represented by the Law of Free Womb
promulgated in 1871. Through the characterization of the masters, slaves and slave hunters
we could comprehend the anti-slavery discourse of the writer which tried to convince the
master class that it was prudent if they did the transition process by themselves. In addition
to that, it was possible to perceive that the narrator of Bernardo Guimarães novel defended
a slow and gradual process which could prepare the slave to the free life as claimed in
those times, indicating what he considered adequate for the future free man behavior. In
this perspective, we have in Isaura, the slave girl a discourse in which the
characters/individuals who acted trying to perpetuate the slavery were negatively
characterized.
Key-words: Isaura, the slave girl; Bernardo Guimarães; Anti-slavery discourse; Literature
and History; XIX Century.
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................ 10
A escrava Isaura e o embate entre escravistas e emancipacionistas: as representações
senhoriais no romance bernardino .................................................................................... 27
Literatura e estratégias emancipacionistas .................................................................... 27
Escravistas versus emancipacionistas no enredo romântico bernardino ......................... 40
Os motivos do embate: razão, amor e caridade versus perversão senhorial ................... 52
Ruína escravista, vitória emancipacionista: A escrava Isaura e o ensinamento do literato
sobre a emancipação ........................................................................................................ 56
Concluindo o capítulo anterior: a solução vitoriosa....................................................... 56
Emancipar, um desígnio senhorial ................................................................................ 65
Emancipação e manutenção da ordem senhorial ........................................................... 72
Bernardo Guimarães e a lei do ventre-livre ...................................................................80
Anselmo, um capitão-do-mato emancipacionista: repressão e alforria na literatura
romântica bernardina........................................................................................................ 85
Para além de A escrava Isaura ..................................................................................... 85
Os capturadores ficcionais da obra de Bernardo Guimarães .......................................... 90
Os escravos fugidos e suas características .................................................................... 99
Libertos ideais em enredos românticos bernardinos .................................................... 114
Senhores, feitores e capitães-do-mato emancipacionistas ............................................ 125
Considerações finais ...................................................................................................... 131
Registros históricos ........................................................................................................ 142
Referências .................................................................................................................... 146
INTRODUÇÃO
Em primeiro de outubro de 1859, o bacharel mineiro Bernardo Joaquim da Silva
Guimarães (Bernardo Guimarães, como ficou conhecido no mundo das letras), que, além
de poeta e romancista,1 também atuou como crítico literário, publicou, no periódico A
actualidade (Rio de Janeiro), um texto em que indicou o potencial da literatura como meio
para se compreender uma época. Elemento que nos serviremos para analisar suas próprias
obras e seu potencial de fornecer informações sobre uma dada maneira de pensar a
sociedade brasileira do contexto de discussões em torno da extinção do ―elemento servil‖
que esteve presente nos meios literário, jornalístico, político-parlamentar e das ruas. Não é
o Bernardo crítico que interessa aqui analisar, todavia, não podemos desprezar que o
crítico oferece elementos para compreendermos o literato. Em suas palavras,
A cultura das letras é sem duvida um agente poderoso de civilização,
como também um sintoma, que revela de um modo brilhante a existência
dela. É sobretudo nos monumentos literários, que vão legando às
gerações futuras, que se reflete clara e fielmente a fisionomia das diversas
épocas e das diversas nacionalidades. 2
A utilização da literatura enquanto registro histórico não constitui novidade
historiográfica, tendo já sido publicados interessantes estudos tanto no âmbito nacional
quanto internacional. 3 Todavia, a despeito das considerações de nosso literato, publicadas
ainda em 1859, pensar na literatura como meio para se compreender a História não foi algo
1
O autor ficou célebre mesmo por suas poesias, que, a despeito do sucesso de A escrava Isaura (1875) ainda
eram publicadas e elogiadas mesmo após a publicação de seu conhecido romance. Cf. GUIMARÃES,
Bernardo. Novas poesias, 1876 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de
Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959).
2
GUIMARÃES, Bernardo. ―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de
Janeiro, ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2. Arquivo Edgar Leuenroth/Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura da Universidade Estadual de Campinas, doravante AEL/CECULT.
3
Entre as produções brasileiras destaque os historiadores Sidney Chalhoub e Nicolau Sevcenko, este último,
pioneiro na ampla utilização da literatura no Brasil. Internacionalmente podemos destacar os estudos do
historiador estadunidense Robert Darnton, da também estadunidense Natalie Zemon Davis. Cf.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003;
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república. 2ª
Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros
episódios da história cultural francesa. Trad. Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986; DARNTON,
Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. Trad. Luís Carlos Borges.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987; DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Trad. Denise
Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões
da literatura inglesa. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
11
unanimemente aceito, provocando intensos debates, alguns dos quais, inclusive,
reivindicavam mesclar a história com a literatura.4 Provavelmente, em 1981, Nicolau
Sevcenko foi o primeiro historiador brasileiro a aventurar-se na ampla utilização da
literatura enquanto registro de uma época, documento histórico.5 Por isso, julgou
necessário justificar incisivamente sua pesquisa e opção documental. Em sua defesa,
destacou que
a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar
e a comover; mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou
como pode a qualidade dos frutos não depender das características do
solo, da natureza, do clima e das condições ambientais? 6
Robert Darnton, em 1984, que também lançou mão de narrativas literárias – assim
como Sevcenko – também julgou necessário justificar sua pesquisa e opção documental,
indicando que a História Cultural e seu vasto repertório de fontes ainda não ocupava um
lugar efetivo no cânone historiográfico. Em suas palavras,
Percebo que existem riscos, quando alguém se afasta dos métodos
estabelecidos da História. Alguns argumentarão que os dados são
demasiado vagos para permitir que se chegue, algum dia, a penetrar nas
mentes de camponeses desaparecidos há dois séculos. Outros se
ofenderão com a idéia de que se interprete um massacre de gatos com a
mesma linha de pensamento com que se interpreta o Discours
préliminaire da Encyclopédie, ou mesmo com o fato de se chegar a
interpretá-lo. E um número ainda maior de leitores reagirá contra a
arbitrariedade de se selecionar alguns poucos documentos estranhos
como vias de acesso ao pensamento do século XVIII, em vez de proceder
de maneira sistemática, através do cânone dos textos clássicos. 7
Quebrada as barreiras iniciais, não temos dúvidas quanto ao valor da literatura, e
outras produções culturais, enquanto registro histórico; compreendemos que, assim como
as leis, a produção jornalística, etc., a obra literária – a arte de modo geral – está informada
por questões de sua época, seus embates, dilemas, expectativas. Enfim, são registros
históricos que, quando devidamente indagados, oferecem importantes informações a
4
REVEL, Jacques. ―Microanálise e construção do social‖. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a
experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.
35.
5
SEVCENKO, Literatura como missão. Tal publicação foi antes, em 1981, a tese de doutoramento do
historiador.
6
Ibidem, p. 29.
7
DARNTON, O grande massacre de gatos, p. 18.
12
respeito dos conflitos e expectativas de seu autor (de uma parcela da sociedade) num
contexto historicamente determinado. A questão (ou problema, como se considerou em
outros tempos) da literatura como documento histórico ocorreu em termos muito parecidos
para os jornais e outras publicações periódicas. Conforme Tânia Regina de Luca, a tradição
do século XIX e início do XX de busca da verdade fez com que os historiadores
hierarquizassem suas fontes. Assim,
os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma
vez que essas ―enciclopédias do cotidiano‖ continham registros
fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses,
compromissos e paixões. Em vez [de] permitirem captar o ocorrido, dele
forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.8
Situação que, ainda conforme Luca, se transformou com a busca por parte dos
historiadores por novas temáticas como as mentalidades, os mitos, o cotidiano, o
inconsciente. Temáticas que requereram do historiador uma reavaliação do seu repertório
de fontes e incorporação de materiais jamais tidos como tal. 9 Os periódicos, então, não
eram mais questionados por sua ―falta de objetividade‖ e assim como a literatura e outras
formas de narrativa, foram ganhando espaço no trabalho do historiador. No entanto, as
preocupações dos pesquisadores, quanto à utilização dos periódicos enquanto
―receptáculos de informações‖, fez com que poucos se aventurassem na utilização deste
registro histórico. Segundo Luca, ―alguns só se dispuseram a correr tantos riscos quando
premidos pela falta absoluta de fontes‖; outros continuaram a ignorar a imprensa, pois,
julgavam tais produções como ―mera caixa de ressonância de valores, interesses e
discursos ideológicos‖,10 elemento que não retira o valor destes registros, ao contrário,
possibilita novas e interessantes temáticas. Aliás, cada vez mais, os historiadores se
preocupam com a maneira de pensar dos indivíduos, sendo a literatura e a produção
periódica uma importante fonte de informações. É importante destacarmos que a literatura
não esteve por muito tempo dissociada da produção periódica; segundo Antonio Candido,
com a invenção do folhetim romanesco por Gustave Planche na França,
no decênio de 1820, houve uma alteração não só nos personagens, mas no
estilo e técnica narrativa. É o clássico ―romance folhetim‖, com
8
LUCA, Tânia Regina de. ―História dos, nos e por meio dos periódicos‖. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(org.). Fontes históricas. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 112.
9
Ibidem, p. 113.
10
Ibidem, pp. 116-117.
13
linguagem acessível, temas vibrantes, suspensões para nutrir a
expectativa, diálogo abundante com réplicas breves. 11
Ademais, na sociedade brasileira do século XIX, muitos literatos também atuaram
na produção periódica, evidenciando uma grande aproximação entre criação literária e
atividade jornalística inclusive quanto ao conteúdo exposto e discutido. A título de breve
apresentação, podemos citar ao menos dois jornais que contaram com a colaboração de
Bernardo Guimarães: Ensaios Litterários, periódico editado por acadêmicos do curso de
Ciências Sociais e Jurídicas de São Paulo, e A actualidade, periódico liberal publicado na
capital do Império que contou com nosso literato em seu quadro de redatores. 12 Isso para
ficarmos apenas naqueles que circularão em nossas páginas. Periódicos que, como
conhecemos, apresentavam mais explicitamente – em comparação à literatura – as idéias e
valores divulgados e defendidos por seus redatores/editores.
Conforme Sevcenko, a literatura pode, se for um discurso extremo dos desajustes,
focar o ideal, aquilo que se considera deveria ser, ao invés das estruturas sociais vigentes.
Assim, a produção literária exprime perspectivas e anseios, de certa parcela da sociedade,
mas, sobretudo de seu autor.13 Tendo em mente as considerações postas acima, em nossa
pesquisa, procuramos compreender como e com que objetivo Bernardo Guimarães
representou os escravos fugidos, os senhores e os capitães-do-mato, especialmente no
romance A escrava Isaura (1875) e em ―Uma história de quilombolas‖ (1871). A literatura
é aqui considerada um importante registro histórico, a partir do qual podemos compreender
o projeto de sociedade defendido pelo sujeito/literato. Como menciona Natalie Zemon
Davis, a respeito das fontes utilizadas em seu O retorno de Martin Guerre,
Examinamos as fontes literárias – peças teatrais, poemas líricos e contos
– que, quaisquer que sejam suas relações com a vida real dos indivíduos,
11
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A.
Queiroz, 2000, p. 33.
12
A partir do exemplar do dia sete de setembro de 1859, logo abaixo do subtítulo do A actualidade (Jornal
Politico, Litterario e Noticioso), é mencionado o nome dos redatores. São eles: Otavio Farnése, Lafayette
Rodrigues Pereira e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães. Ademais, no exemplar de 19 de dezembro de
1860, nosso literato escreveu as seguintes palavras: ―é me forçoso abandonar as lides da imprensa, retirar-me
do lado dos meus dois ilustres colegas, com os quais tive a honra de colaborar por espaço de dois anos na
redação da Actualiade. Cf. GUIMARÃES, Bernardo. ―[Carta de despedida aos amigos, editores e leitores do
A actualidade]‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 110,
19/12/1860, p. 1.
13
SEVCENKO, Literatura como missão, pp. 27-33.
14
mostram-nos os sentimentos e reações que os autores consideravam
plausíveis num determinado período. 14
A literatura, de acordo com Davis, é uma das formas de conhecermos as
esperanças e os sentimentos.15 Tais questões implicam encararmos tal registro histórico
para além das referências a episódios históricos neles contidos, a esse respeito Sevcenko,
em sua obra pioneira, advertiu:
a criação literária revela todo o seu potencial como documento, não
apenas pela análise das referências esporádicas a episódios históricos ou
do estudo profundo dos seus processos de construção formal, mas como
uma instância complexa, repleta das mais variadas significações e que
incorpora a história em todos os seus aspectos, específicos ou gerais,
formais ou temático, reprodutivos ou criativos, de consumo ou
produção.16
Também para Darnton, a literatura (em seu caso contos populares, provenientes
da tradição oral) constitui-se como fonte histórica para além das referências a eventos e
personalidades históricas: ―o significado histórico dos versos está mais em seu tom que em
suas alusões‖.17 Para além de registro histórico, devemos considerar que a literatura legou
contribuições para a produção do conhecimento histórico. A preocupação com os aspectos
mais cotidianos da vida, por exemplo, antes ocupação dos literatos, também adentrou o
universo do historiador. Conforme Carlo Ginzburg, a relação com o romance histórico
provocou transformações historiográficas que buscou novos documentos para conhecer a
vida privada e cotidiana.18 Foi sob influência da literatura que também temos nos ocupado
dos mais variados sujeitos/personagens como os capturadores de escravos fugidos – e seus
dramas – e não somente das principais personagens de A escrava Isaura. Questão que
implica numa forma de analisar o romance como um conjunto de pequenos dramas que
auxiliam a compreender a obra, o drama principal. 19
14
DAVIS, O retorno de Martin Guerre, pp. 17-18.
Ibidem, p. 17.
16
SEVCENKO, Literatura como missão, p. 299.
17
DARNTON, O grande massacre de gatos, p. 60.
18
GINZBURG, Carlo. ―Provas e possibilidades à margem de ‗Il ritorno de Martin Guerre‘, de Natalie Zemon
Davis‖. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico & PONI, Carlo. A micro-história e outros
ensaios. Trad. António Narino. Lisboa: DIFEL, 1991, pp. 188-191.
19
Conforme Massaud Moisés, ―o romancista escolhe o drama capital […] e dele faz derivar os demais, ou a
ele os aglutina numa interdependência que respeita a proeminência do primeiro‖. Assim concluiu que: ―a
análise do drama principal ilumina o entendimento dos secundários, […] da mesma forma estes colaboram
para esclarecê-lo‖. Cf. MOISÉS, Massaud. A criação literária, v. 1 (prosa). 15ª ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Cultrix, s.d., p. 175.
15
15
A literatura também sofreu influências da produção historiográfica. Ginzburg
ressaltou que, no século XIX, alguns autores de romance reivindicaram o título de
―História‖ para suas produções devido ao maior prestígio deste tipo de narrativa. Tais
romancistas, para além do título, serviam-se do estilo narrativo da historiografia e dos
elementos relacionados à veracidade de suas personagens. Todavia, ―com o aumento de
prestígio do romance, a situação muda. Continuando embora a equiparar-se aos
historiadores, os romancistas desligaram-se pouco a pouco de sua situação de
inferioridade‖. Os historiadores profissionais permaneceram com suas narrativas sobre os
―grandes personagens‖, enquanto os romancistas adotaram ―a gente do povo, as mulheres,
as crianças‖ e – podemos acrescentar – para as sociedades escravistas como a brasileira, os
escravos.20 Sobre a questão das personagens na produção literária, em 1847, num periódico
acadêmico, que contou com a contribuição de Bernardo Guimarães, ao tratar dos elementos
que o romancista utilizava para suas descrições, elencou-se:
o infeliz escravo das Antilhas regando a terra com o suor de seu rosto,
bronco e miserável como a escravidão; o mendigo cruzando os portais do
rico e poderoso, que lança com desprezo esmola escassa induzindo mais
pela ostentação do que pela dó e compaixão que sente ao ver este que é
seu irmão e que a miséria desnaturou os foros humanos; o espúrio atirado
à roda da caridade por mãos estranhas, que o acharam abandonado na fria
laje desprendendo o vagido expressivo da inocência, planta isolada sem
mãos que reguem, sem um coração que abrigue-a em seu seio, o véu
misterioso que encobre seu nascimento, e que o tempo vem finalmente
rasgar e manifestar á luz do dia; os usos de um povo, de uma classe na
sociedade são fatos de que senhoreia-se o romancista para suas
descrições.21
Buscando compreender o discurso emancipacionista de nosso literato, analisamos
duas histórias românticas publicadas na década de 1870. A primeira delas intitulada ―Uma
história de quilombolas‖, foi, provavelmente, escrita em 1870 e publicada em 1871 na
Capital do Império. Ao que tudo indica, foi esta a primeira iniciativa do literato, em
formato de prosa, a referir-se à escravidão.22 Em forma de poesia, foi em 1852, que
Bernardo Guimarães publicou em seus Cantos da solidão, um texto cujo cantor se comove
20
GINZBURG, ―Provas e possibilidades à margem de ‗Il ritorno de Martin Guerre‘‖.
―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos,
1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 6. AEL/CECULT.
22
Cf. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: das origens ao romantismo, v. 1. São Paulo:
Editora Cultrix, 2001, p. 484.
21
16
ante a sepultura de um ―fiel‖ escravo, todavia sem questionar ou analisar o regime servil. 23
Conforme José Armelim Bernardo Guimarães, neto de nosso literato, a referida poesia –
intitulada ―À sepultura de um escravo‖ – foi uma homenagem ao ―fiel‖ e ―dedicado‖
escravo Ambrósio (então falecido), que pertenceu ao literato.24 Tal poesia (parte integrante
dos Cantos da solidão), destacou o próprio autor, foi publicada em São Paulo, por amigos
da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais:
Quando, ao terminar meus estudos acadêmicos, me dispunha a retirar-me
de S. Paulo, grande número de amigos e colegas mostraram desejos de
possuir impressas aquelas poesias; existiam elas pela maior parte em seu
primeiro esboço tais quais me tinham saído da pena no primeiro jato, e os
manuscritos se achavam em deplorável desordem; o tempo de que
dispunha era muito limitado para eu poder coligi-las, e limá-las
convenientemente; com a tal ou qual ordem e correção que a pressa me
permitiu dar-lhes, deixei-as em S. Paulo em poder daqueles amigos, a fim
de dá-las ao prelo; deixei-as mais como um franco penhor de amizade e
gratidão, como um eco de meu coração, que eu queria deixar ressoando
entre aqueles bons amigos, de muitos dos quais eu me ia separar talvez
para sempre, do que como um título com que me apresentasse ao público
para conquistar o glorioso nome de poeta.25
A partir da citação acima, saída da própria pena do literato, fica explícito que
Bernardo Guimarães viveu um ambiente extracurricular na paulicéia quando de sua vida de
estudante, o que incluía escrever poesia – a exemplo das publicadas em 1852. Examinando
o periódico Ensaios Litterarios publicado por acadêmicos de São Paulo durante quase toda
a estada de Bernardo Guimarães na cidade, todavia, não encontramos referências a
escravidão e a extinção do tráfico,26 que então já era discutida por estadistas. Em finais da
década de 1850 e inicio da década seguinte, Bernardo Guimarães viveu na Corte, sendo um
dos redatores do periódico liberal A actualidade onde publicou algumas de suas
composições poéticas, todavia novamente não encontramos texto que possamos atribuir ao
literato que trate da questão da escravidão,27 de maneira semelhante ao seu repertório de
prosa e poesias publicadas até o ano de 1871. Enfim, a questão da escravidão não parece
ter preocupado o literato em muitos momentos de sua vida, sendo significativo que ―Uma
23
GUIMARÃES, Bernardo. Cantos da solidão, 1852 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org.
Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), pp. 53-54.
24
GUIMARÃES, José Armelim Bernardo. E assim nasceu A escrava Isaura: a vida boêmia de Bernardo
Guimarães. Brasília: Senado Federal, 1985.
25
GUIMARÃES, Cantos da solidão, p. 11.
26
Ensaios Litterarios (São Paulo, 1847-1850). AEL/CECULT.
27
A actualidade (Rio de Janeiro, 1859-1860). AEL/CECULT.
17
história de quilombolas‖ (1871) e A escrava Isaura (1875) tenham sido publicadas
justamente no momento em que a ―questão servil‖ era pauta dos debates políticos em
virtude das discussões em torno da proposta de Lei emancipacionista – libertação do ventre
– e sua efetivação depois da lei aprovada.
Ao analisarmos as obras de Bernardo Guimarães, não podemos ignorar que se
tratam da produção de um bacharel em direito, um indivíduo formado para pensar e dirigir
a sociedade brasileira.28 Concepção, aliás, explicitada em periódico dos acadêmicos
paulistas da geração de Bernardo Guimarães, cujos acadêmicos acreditavam que era na
academia que ―se amoldam os corações, e se preparam os espíritos; é deles, que dependem
os costumes, a legislação política – a sociedade enfim!… Em todos os tempos, nos países
bem organizados, são estes estabelecimentos os defensores da moral, e da política‖. Enfim,
os bacharelandos tinham consciência de sua posição na sociedade e acreditavam num
futuro em que eles seriam seus dirigentes: ―com efeito, é daqui destes bancos que saem os
legisladores profundos, os defensores de nossos princípios na tribuna parlamentar‖.29
Como mencionou o narrador bernardino, em 1883, ao tratar dos estudantes da academia
paulista de meados da década de 1840 – período no qual lá estudou Bernardo Guimarães –
―uma mocidade brilhante e esperançosa freqüentava a Academia; uns ricos, outros fidalgos
de sangue azul, outros com a aristocracia do talento tinham suspensa sobre a fronte a
aureola de um esplendido futuro‖; era dentre os estudantes que ―saiam os deputados,
senadores, ministros, barões, condes e marqueses‖.30
Nessa perspectiva, consideramos a existência de um projeto político implícito nos
enredos de nosso literato cuja condição de bacharel é indicativa de sua posição de classe
semelhante à de muitos outros literatos:
a sociedade brasileira contou, para a formação da sua inteligência, com os
filhos de famílias abastadas do campo, que iam receber instrução jurídica
(raramente, médica) em São Paulo, Recife e Rio (Macedo, Alencar,
Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Bernardo Guimarães, Franklim
Távora, Pedro Luís), ou com filhos de comerciantes luso-brasileiros e de
profissionais liberais que definiam, grosso modo, a alta classe média do
país (Pereira da Silva, Gonçalves Dias, Joaquim Norberto, Casimiro de
28
ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: o Bacharelismo Liberal na política brasileira. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
29
―Solemnidade do dia 11 de agosto de 1849‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850,
pp. 27 e 28. AEL/CECULT.
30
GUIMARÃES, Bernardo. Rozaura, a engeitada. vol. 1. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1914 [1883], p.
126.
18
Abreu, Castro Alves, Sílvio Romero). Raros os casos de extração
humilde na fase romântica, como Teixeira e Sousa e Manuel Antônio de
Almeida, o primeiro narrador de folhetim, o segundo picaresco; ou do
trovador semipopular Laurindo Rabelo. 31
Enfim, além de sua condição de bacharel, o projeto político implícito na obra do
literato esteve relacionado à sua posição social. Sem estabelecer qualquer tipo de
determinismo, não podemos ignorar, como mencionou Candido, que ―a posição social é
um aspecto da estrutura da sociedade‖ que influencia no processo de criação da arte.32
Bernardo Guimarães, a saber, era filho de João Joaquim da Silva Guimarães, um capitão da
Guarda Nacional – também ele poeta –,33 que foi um dos eleitos para a primeira
Assembléia Geral Legislativa do Império; tendo exercido posteriormente ―altos cargos de
nomeação do Governo e de eleição popular, tendo sido deputado nas legislaturas
[mineiras] de 1848-1849, 1850-1851 e de 1854-1855‖. Sua mãe, sobre a qual são escassas
as informações, foi ―D. Constança Beatriz de Oliveira, filha de abastados lusitanos de
Bragança. Senhora culta e de rígidos princípios morais‖. 34
Ademais, conforme Candido, numa análise literária devemos considerar que a
literatura possui funções ―total‖, ―social‖ e ―ideológica‖. A ―função total deriva da
elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão do mundo por meio de
instrumentos expressivos adequados‖; a ―função social‖, refere-se à função da obra nas
relações sociais, ―na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade‖; e, por
fim, a ―função ideológica‖, que é mais evidente nos objetos políticos, religiosos e
filosóficos. Na ―função ideológica‖, temos a finalidade do autor ao produzir sua obra. É a
consideração das três funções que, conforme Candido, permite compreender a literatura. 35
Elementos que, sem dúvida, também perpassam pela filiação de classe do literato.
Observará, no entanto, nosso leitor, que, sem ignorar as demais ―funções‖, priorizaremos
nossa analise na ―função ideológica‖, pois tratamos essencialmente do projeto políticoantiescravista de nosso literato.
31
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 92.
CANDIDO, Literatura e sociedade, p. 24.
33
Em 1883, no volume Folhas de outono, Bernardo Guimarães deu publicidade a algumas composições de
seu falecido pai.
34
GUIMARÃES, Bernardo. ―Á memoria de João Joaquim da Silva Guimarães, no anniversario de sua morte
(24 de junho)‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 35, 09/07/1859,
pp. 3-4. AEL/CECULT; GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 15-16, 22, 24, 28 e 29.
35
GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 45-47.
32
19
Eventualmente recorreremos às posições adotadas por outros seus pares de pena.
Questão que não se trata de uma estratégia original. Roberto Schwarz, estudioso da obra
machadiana, em certa medida, toma o romance Senhora de José de Alencar, uma narrativa
que versa sobre o paternalismo, como referencial para melhor compreender o romance
machadiano. Em alguns trechos, o autor analisa a obra de Machado de Assis através de
seus contrastes com o romance alencariano. 36 Assim também procedeu Gilda de Mello e
Souza. Em artigo, cujo objetivo foi ―expor […] como reagiram em face da vestimenta de
seus personagens três dos mais significativos romancistas do século XIX‖ (Joaquim
Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis), a estudiosa da literatura
destacou: ―espero que o confronto auxilie o leitor a penetrar mais intimamente a
personalidade de cada um‖.37 Trataremos os escritos de outros literatos numa dupla
perspectiva: como fontes históricas, produções capazes de fornecer informações sobre o
contexto literário-emancipacionista; e, ao mesmo tempo, como referencial que facilitará
nossa compreensão da obra e perspectiva de Bernardo Guimarães.
Em nossa análise, levaremos em consideração a importância das personagens,
suas caracterizações e ações para se compreender um enredo cujas personagens estão
relacionadas. Enfim, temos em conta que a personagem ―é o elemento mais atuante, mais
comunicativo da arte novelística moderna‖. 38 Conforme Candido,
da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos,
organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma
impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos nestas, pensamos
simultaneamente nas personagens na vida que vivem, nos problemas em
que enredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa
duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. O
enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo.
Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão
da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.39
Compreendendo as personagens, suas ações e os significados de suas
caracterizações, julgamos possível melhor compreender a mensagem e a visão de mundo
explícitas num romance. No mundo fictício, as personagens ―são mais nítidas, mais
36
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
37
SOUZA, Gilda de Mello e. A idéia e o figurado. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2005, p. 73.
38
CANDIDO, Antonio. ―A personagem do romance‖. In: CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 53-54.
39
Ibidem, pp. 53-54. Grifo nosso.
20
conscientes, em contorno definido, – ao contrário do caos da vida – pois há nelas uma
lógica preestabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes‖. Conforme Candido,
esse efeito decorre do fato de que, diferente das pessoas reais (sempre percebidas de
maneira fragmentária), a personagem é exposta por completo ―ela é criada, é estabelecida e
racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a
aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro‖. A personagem é um ser
formado por fragmentos, elementos essenciais que possibilitam conhecê-la, no entanto o
contexto de sua vida fictícia também é restrito, sendo assim, temos uma idéia por completo
desses seres que habitam o mundo da ficção:40
as personagens, ao falarem, revelam-se de um modo bem mais completo
do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram disfarçar a
sua opinião verdadeira. O próprio disfarce costuma patentear o seu cunho
de disfarce. Esta ―franqueza‖ quase total da fala e essa transparência do
próprio disfarce (pense-se no aparte teatral) são índices evidentes da
onisciência ficcional.41
Conforme Anatol Rosenfeld,
a limitação da obra ficcional é a sua maior conquista. Precisamente
porque o número das orações é necessariamente limitado (enquanto as
zonas indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens
adquirem um cunho definido e definitivo que a observação das pessoas
reais, e mesmo o convívio com elas, dificilmente nos pode proporcionar a
tal ponto. Precisamente porque se trata de orações e não de realidades, o
autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção dos aspectos que
apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido do que a
observação da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, através de
situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida.
Precisamente pela limitação das orações, as personagens têm maior
coerência do que as pessoas reais. 42
Enfim, na acepção de Rosenfeld – como também de Candido –, ―a ficção é o
único lugar […] em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão‖. 43 Diante
de tal consideração, fica implícito a importância da personagem na obra literária, ao que
tudo indica o elemento mais importante da produção fictícia. Assim, julgamos que a
40
Ibidem, pp. 58 e 67; ROSENFELD, Anatol. ―Literatura e personagem‖. In: CANDIDO, Antonio et alii. A
personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 32 e 34.
41
ROSENFELD, ―Literatura e personagem‖, p. 29.
42
Ibidem, pp. 34-35.
43
Ibidem, p. 35.
21
análise destas é o meio mais eficaz para se compreender o contexto em que foi escrita, as
expectativas, dilemas, anseios e projetos do literato, ou seja, explorar o vasto potencial que
a obra literária pode oferecer à História Cultural. Ademais, tendo em conta a importância
da personagem na obra romântica – e conseguintemente em nossa análise sobre o discurso
antiescravista expresso em romances –, optamos por estruturar este estudo em três
capítulos, devido à tipologia social das personagens que serão foco de nossa análise, bem
como aos conflitos em que estas personagens estiveram envolvidas. Mesmo sendo questões
intimamente imbricadas, nos dois primeiros capítulos apreciaremos ainda o discurso
emancipacionista do literato; no terceiro, contemplaremos também o perfil de liberto que
ele julgava ideal para a sociedade. Apresentaremos, ainda, nossas considerações finais na
qual, tendo em conta os elementos expostos no terceiro capítulo, discutiremos as possíveis
motivações para a caracterização de Isaura como escrava ―branca‖.
Nos dois primeiros capítulos veremos como Bernardo Guimarães caracterizou
personagens pertencentes à classe senhorial – a sociedade eminentemente branca.
Apreciaremos como o literato expôs indivíduos que estiveram apegados à escravidão e
aqueles que atuaram como emancipacionistas. Ao representar, em A escrava Isaura, duas
personagens com pensamentos divergentes em torno da escravidão, nosso literato projetou
um conflito no qual o senhor emancipacionista (o herói romântico) era o protagonista,
aquele que dava as características do desfecho da trama, e o escravista como antagonista
(vilão). Conflito que no romance é vencido pelo emancipacionista que, ao contrário do
escravista, é o ser racional (ao passo que movido também por nobres sentimentos).
Ademais, atentamos para o fato de que no referido romance, a extinção da escravidão é
tida como uma tarefa a ser exercida pela classe senhorial, a despeito de três anos antes de o
autor escrever o romance (o que ocorreu no ano de 1874) já vigorar no Brasil uma lei que
visava regular o processo de extinção da escravidão. Sugerimos que Bernardo Guimarães
foi contrário à aplicação do dispositivo legal conhecido como Lei do Ventre-Livre.
No último capítulo veremos, através dos conflitos entre escravos fugidos e
capitães-do-mato, a sociedade eminentemente negra, mesmo que na caracterização do
literato essas personagens sejam em sua maioria embranquecidas a exemplo de Isaura, um
perfil de liberto defendido pelo literato. Neste conflito, ao contrário do que se pode
imaginar, não existiu uma posição a priori para mocinhos e vilões. Em 1875, no romance A
escrava Isaura, o literato depreciou a personagem que atuou na tentativa de capturar
Isaura, uma escrava dócil e submissa. Em 1871, no entanto, o literato havia reivindicado
22
ação enérgica contra escravos insurretos e quilombolas, caracterizando positivamente a
personagem que atuou enquanto capitão-do-mato. Consideramos que, em suas obras, o
literato apresentou o tipo de comportamento considerado adequado para o escravo ser
digno da liberdade. Comportamento que estava relacionado ao reconhecimento da
autoridade senhorial. Enfim, o literato propõe o fim da escravidão com a devida
manutenção da ordem e autoridade senhorial. Tal proposta implica no reconhecimento, por
parte do literato, do definhamento daquela autoridade que se buscava manter.44
As preocupações expressas na obra do literato estão muito relacionadas ao
discurso antiescravista que não se configurava como homogêneo. No dizer de Silvio
Romero, contemporâneo dos debates em torno da extinção da escravidão, existiam
diferenças quanto ao ―método a empregar‖.45 Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo,
o discurso antiescravista foi manifestado de três formas no Brasil: emancipacionismo,
imigracionismo e abolicionismo. Os partidários do emancipacionismo pregavam um
processo lento e gradual para se extinguir a escravidão; ressalvavam a necessidade de
―preparar‖ o escravo para a vida em liberdade, visando essencialmente mantê-lo no
trabalho agrícola. O discurso imigrantista projetava que o futuro do país deveria se dá
através da formação de um mercado de trabalho livre composto por imigrantes europeus
em substituição ao trabalhador africano, tido como social e biologicamente inferior. E, por
fim, os abolicionistas que, conforme a autora, ocorreu no Brasil especialmente após a
decretação do Ventre-Livre (1871), cujo restrito séquito de militantes pregavam a
delimitação de um prazo para ocorrer a extinção da escravidão. 46
A escrava Isaura é uma obra freqüentemente rotulada como abolicionista, a
despeito do teor de sua trama não propor uma extinção nacional – e datada – para o fim da
escravidão. Ao contrário, no romance é defendida uma solução senhorial – através da
44
Peter Burke, em estudo sobre a ―imagem pública de Luís XIV‖, considerou que a necessidade de exaltar a
autoridade e o poder real na conjuntura final do reinado de Luís XIV foi ocasionada pelo definhamento dos
padrões de representações do Rei no momento em que seus ―poderes‖ míticos e sua ―grandeza‖ eram
questionados. Enfim, começa-se a planejar a disseminação e manutenção de dados valores quando estes já se
encontram em definhamento. Em outras momentos essa tarefa não é necessária. Cf. BURKE, Peter. A
fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, pp.
137-145.
45
ROMÉRO, Sylvio. ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7,
janeiro de 1881. Rio de Janeiro: N. Midosi, Editor, 1881, p. 192. Biblioteca Pública do Estado da Bahia
(doravante BPEB), Periódicos Raros.
46
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do
século XIX. São Paulo: Annablume, 2004, pp. 27-90; também sobre a diferenciação entre abolicionismo e
emancipacionismo ver: PEREIRA, Josenildo de Jesus. ―As representações da escravidão na imprensa
jornalística do Maranhão da década de 1880‖. Tese de Doutorado: FFLCH/USP, 2006, pp. 136-137, 142 e
150-151.
23
concessão de alforrias – para se extinguir o regime servil. Tal rótulo, talvez, esteja
relacionado a pouca diferenciação – tanto da época, quanto do discurso historiográfico –
entre emancipacionistas e abolicionistas. De fato, em muitos casos, as diferenças eram
bastante sutis. Conforme Azevedo, ―não se pode dizer que os abolicionistas se
distinguissem essencialmente dos emancipacionistas, a não ser que, enquanto para estes
bastava a lenta extinção do cativeiro, mediante a libertação do ventre escravo, aqueles
pretendiam ainda um prazo fatal para este término‖.47 Por vezes, a diferenciação no
discurso contra a escravidão era marcado pelas adjetivações de ―intransigentes‖ e/ou
―moderados‖. Nas considerações de Silvio Romero, quando ainda vivenciava debates em
torno da questão da ―emancipação dos escravos‖,
Três são as feições mais pronunciadas destes vários matizes da opinião
[antiescravista]: abolicionistas intransigentes e imediatos; sectários do
status quo criado pela lei de 28 de setembro, e abolicionistas moderados,
que desejavam medidas que debelem mais ou menos lentamente o mal,
ou marcam um prazo fixo para a sua extirpação. 48
Eventualmente ao nos referirmos as considerações de outros pesquisadores,
trataremos o discurso emancipacionista como ―abolicionista‖, buscando preservar a análise
por outros realizadas. O trecho, de autoria de Silvio Romero, mencionado acima, é um
exemplo da pouca diferenciação, ocorrida na época entre os matizes do discurso
antiescravista. Mesmo compreendendo que existiam ―grupos que se digladiam‖ em torno
da extinção da escravidão, Romero rotulou dois dos três matizes por ele mencionados
como abolicionistas diferenciando-as apenas pela adjetivação de intransigentes e imediatos
– que compreendemos propriamente como abolicionistas – e abolicionistas moderados,
aqui tratados como emancipacionistas.49 Aliás, houve quem, participando dos debates em
torno da emancipação, fez questão de destacar sua opção antiescravista: ―não sou o que
alguém pensa, um abolicionista a todo transe‖; ―não quero […] a abolição, a manumissão
inoportuna e não refletida; ―sou abolicionista, mas moderado‖, destacou, no dia cinco de
47
Ibidem, p. 76.
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 194. Grifo do original.
49
Ibidem, p. 194.
48
24
julho de 1869, o deputado Perdigão Malheiro, em sessão que discutia um projeto de Lei
que visava proibir a venda de escravos em leilão.50
De todo modo, o discurso antiescravista era essencialmente dirigido à classe
senhorial. Sejam os discursos políticos apresentados na tribuna parlamentar, nos panfletos
ou na obra literária o alvo era um só, sensibilizar a classe senhorial para a necessidade da
extinção da escravidão. O que diferenciava esses três suportes do discurso era o caráter
mais explícito que, por sua própria natureza, os dois primeiros apresentavam em relação à
literatura. De modo geral, de maneira direta ou indireta, os interlocutores do discurso
antiescravista eram os senhores. O discurso emancipacionista, conforme Josenildo de jesus
Pereira, tinha o objetivo de ―chamar atenção das classes dominantes para a necessidade de
sua adequação às exigências estabelecidas pelas lutas dos escravos, pelo abolicionismo e o
movimento do capital Industrial em sua expansão‖.51
É importante destacarmos ainda, que o discurso emancipacionista muitas vezes foi
posto em oposição ao abolicionista, tido, em alguns casos, como perturbador da ordem e
prejudicial à segurança da família e da moral senhorial: ―uma propaganda imprudente, por
todos os lados ataca a nossa propriedade, e o que é mais – a nossa vida‖. Assim, no
discurso emancipacionista procurava-se ―despertar a lavoura [os senhores] a consciência
do perigo que a ameaça‖. Implícita ou explicitamente, reivindicava que ―a lavoura seja
vigilante e unida, opondo aos projetos dos seus inimigos [abolicionistas] uma contrapropaganda ativa e vigorosa‖, buscando evitar a ocorrência dos ―perniciosos frutos‖ da
propaganda abolicionista.52
Não sendo o discurso antiescravista homogêneo, tampouco era a sua vertente
emancipacionista. A observar na literatura, era diverso tanto em estratégias de
convencimento (como veremos no início do primeiro capítulo) quanto em sua proposição.
Houve literatos-emancipacionistas que defenderam o controle do Estado (através da lei do
Ventre-Livre) na realização da emancipação; e outros como Bernardo Guimarães, que
reivindicavam uma emancipação conduzida pela classe senhorial. Empreendimento que
seria realizado pela iniciativa senhorial em conceder alforrias. Enfim, o discurso
50
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta
legislatura. Sessão de 1869. Tomo 3. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve
& C., 1869, pp. 52, 56 e 57. BPEB, Periódicos Raros.
51
PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 140.
52
Tal proposição foi exposta em periódicos da corte e de São Paulo e copiadas num jornal emancipacionista
da cidade de Santo Amaro, na província da Bahia. Cf. ―Scenas do abolicionistmo‖. Echo Sant’amarense, ano
2, n. 154, Santo Amaro, BA, 11/01/1883, p. 1; ―A propaganda abolicionista‖. Echo Sant’amarense, ano 2, n.
161, Santo Amaro, BA, 19/01/1883, p. 1. BPEB, Periódicos Raros.
25
emancipacionista que apresentaremos ao nosso leitor é apenas uma parte do discurso
antiescravista, não podendo ser generalizado, mesmo existindo muitos indivíduos que
pensaram e propuseram o mesmo que nosso literato.
Outros elementos, para além da eventual pouca diferenciação entre abolicionismo
e emancipacionismo, podem ter influenciado na criação de uma imagem ou memória do
romance A escrava Isaura como obra abolicionista. Em primeiro lugar, Bernardo
Guimarães é ainda muito pouco conhecido na historiografia e na crítica literária. Conforme
Irineu Eduardo Jones Corrêa,
Os estudos sobre a obra bernardina permanecem relativamente raros.
Num catálogo editado por ocasião do centenário de sua morte, em 1984,
estão arrolados apenas 25 títulos de ensaios e trabalhos sobre o escritor e
sua obra. Na biografia do escritor, preparada por Basílio de Magalhães,
estão indicadas 60 obras de referência direta a ele. À guisa de
comparação, um catálogo comemorativo dos 150 anos do nascimento de
Castro Alves relaciona mais de 300 trabalhos sobre o poeta baiano. 53
Em segundo lugar, temos que considerar ainda o caráter político da caracterização
do referido romance como abolicionista e os exageros quanto à sua contribuição para a
extinção do regime servil. Questões que indicam que a abolição foi tarefa de indivíduos
―brancos‖, ―cultos‖ e liberais em detrimento dos escravizados que de diversas maneiras
manifestaram seus descontentamento com a escravidão. Mesmo de forma não intencional,
alguns – poucos – pesquisadores contribuem (ou contribuíram) para perpetuar tal
concepção. José Armelim Bernardo Guimarães, neto e biografo do literato, por exemplo,
exagerou quase afirmando que houve certa coragem ao criticar a escravidão em 1875,
indicando implicitamente que seu avô foi um pioneiro em plena vigência do regime
servil. 54 Na análise de Corrêa, Bernardo Guimarães foi um indivíduo que, desde quando
estudante em São Paulo, atuou em ―favor dos menos favorecidos e das causas
impossíveis‖. Índole do literato que, para ele, são ―confirmadas no repúdio ao escravismo‖,
citando como exemplo obras como A escrava Isaura, Rozaura, a engeitada e o poema ―À
sepultura de um escravo‖.55 Tipos de exposições que colocam o literato como alguém que
escreveu e atou contra o poder estabelecido, notadamente o dos senhores de escravos.
53
CORRÊA, Irineu Eduardo Jones. ―Ficções do humor e a idéia de ironia em Bernardo Guimarães‖. Terceira
Margem, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 9, 2003, p. 35.
54
GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura.
55
CORRÊA, Irineu Eduardo Jones. ―Bernardo Guimarães e o paraíso obsceno: a floresta enfeitiçada e os
corpos da luxúria no romantismo‖. Tese de Doutorado: FL/UFRJ, 2006, pp. 69-70.
26
Finalizando estas palavras iniciais, ao analisarmos a obra de nosso literato, não
podemos desconsiderar seus aprendizados com a crítica literária como a questão das
descrições das paisagens e contextos. Em sua nota ―ao leitor‖ do romance O indio Affonso,
datada de 28 de fevereiro de 1873, sugeriu que suas histórias tinham por base narrativas
que ouvia nos lugares por que passava. 56 Ademais, indicou que buscava retratar fielmente
os lugares onde passavam suas narrativas. Conforme o próprio nos descreveu,
A descrição dos lugares também é feita ao natural, pois os percorre e
observei mais de uma vez. Com o judicioso e ilustrado crítico o Sr. Dr. J.
C. Fernandes Pinheiro, entende que a pintura exata, viva e bem traçada
dos lugares deve constituir um dos mais importantes empenhos do
romancista brasileiro, que assim prestará um importante serviço tornando
mais conhecida a tão ignorada topografia deste vasto e belo país.57
Foi compreendendo ―seu‖ compromisso para tornar mais conhecida a topografia
do Brasil que o literato contava histórias dos locais nos quais viveu ou tomou notícia:
Por isso faço sempre passar a ação dos meus romances em lugares que
me são conhecidos, ou pelo menos de que tenho as mais exatas e
minuciosas informações, e me esforço por dar às descrições locais um
traçado e colorido o mais exato e preciso, o menos vago que me é
possível. 58
Enfim, o literato julgava conhecer o contexto dos locais descritos em suas
histórias. Com feito, elas ocorrem na maioria dos casos nas províncias de Goiás, São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, nas quais o literato viveu em algum momento de sua
―vida errante, inquieta e agitada…‖.59 Tais ensinamentos da crítica literária, mesmo que
não tenham se configurado como realidade efetiva na obra do literato, devem ser encarados
como elementos que podem auxiliar na interpretação de sua obra enquanto objetivo
explicitamente declarado por ele. O literato reivindicava retratar a realidade, eis ao menos
uma lição que podemos apreender dessa sua incursão na crítica literária.
56
GUIMARÃES, Bernardo. O indio Affonso. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro Editor, 1873, p. 8.
Ibidem, p. 8.
58
Ibidem, p. 9.
59
GUIMARÃES, Bernardo. Poesias, 1865 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus
de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), p. 3. As palavras são do próprio literato no prólogo
do referido volume.
57
A ESCRAVA ISAURA E O EMBATE ENTRE ESCRAVISTAS E
EMANCIPACIONISTAS: AS REPRESENTAÇÕES SENHORIAIS NO
ROMANCE BERNARDINO
Literatura e estratégias emancipacionistas
No restrito círculo do cânone literário das décadas de 1860 a 1880, os
emancipacionistas buscaram convencer o público leitor – considerado restrito por muitos
homens de letras diante dos esforços que eles julgavam empregar – para a ―necessidade‖
da emancipação servindo-se de diferentes estratégias. Apelava-se para a caridade quanto
aos sofrimentos dos cativos e/ou quanto à possibilidade destes agirem violentamente, como
recurso para justificar a necessidade da extinção da escravidão.1 Bernardo Guimarães, no
romance A escrava Isaura, no entanto, serviu-se de outra estratégia, a saber, ressaltar a
inviabilidade econômica da escravidão, destacando também que a condução da
emancipação era favorável à permanência da autoridade moral da classe senhorial. Não
ignorou, no entanto as agruras da escravidão representadas na vida da escrava Isaura.
Enfatizar os sofrimentos do escravo pode ter sido um recurso direcionado às
mulheres – brancas e de elite – que eram consideradas detentoras do amor e da caridade: ―a
caridade pede a vós, que sois a caridade‖. 2 Concepção que foi exposta não somente na
literatura. Na edição de 14 de março de 1868, o cronista da revista A vida fluminense ao
mencionar o aniversário da Imperatriz, destacou: ―é hoje um dia de verdadeira festa
nacional!/ é aniversário natalício de Sua Majestade a Imperatriz, o anjo da guarda dos que
1
Entre os literatos que apelaram para os sofrimentos do escravo podemos citar Castro Alves. Cf. ALVES,
Castro. A cachoeira de Paulo Afonso, 1876 (In: Obra completa. Org. Eugênio Gomes. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1997); Idem. Os escravos. Ed. De centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo:
GRD, 1983. Para os autores que buscaram convencer seus leitores para a necessidade da extinção da
escravidão apelando para a rememoração da violência o principal expoente foi Joaquim Manuel de Macedo.
MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. 2ª Ed. São Paulo: Zouk, 2005
[1869]. Interessante artigo sobre as representações do escravo na obra de Macedo foi produzido por Sharyse
Amaral. Cf. AMARAL, Sharyse. ―Emancipacionismo e as representações do escravo na obra de Joaquim
Manuel de Macedo‖. Afro-Ásia, 35, 2007, pp. 199-236. Castro Alves também recorreu a um discurso que
enfatizava a violência escrava também em A cachoeira de Paulo Afonso. José de Alencar também se serviu
de tal estratégia para defender a extinção da escravidão, em 1857, na comédia intitulada O demônio familiar.
Cf. ALENCAR, José de. O demônio familiar: comédia em 4 atos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2003 [1857]. Conforme Josenildo de Jesus Pereira, a resistência escrava ficou marcada na memória de muitas
gerações das classes dominantes sendo relembradas no contexto emancipacionista. Cf. PEREIRA, ―As
representações da escravidão‖, p. 81.
2
Tal questão é explicitada, em abril de 1871, por Castro Alves que explicita a idéia de que sua luta
antiescravista era direcionada às mulheres. ALVES, Castro. ―Carta às senhoras baianas‖, abr., 1871. In: Obra
completa. Org. Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, pp. 771-772.
28
sofrem, o símbolo da caridade e da virtude‖. 3 Os senhores, por não ―encarnarem‖ a
caridade cristã, talvez não fossem afeitos a compreender tal apelo.4 Talvez outras
estratégias fossem mais hábeis a convencer este público. Os senhores, para muitos
literatos, talvez fossem como os feitores e os capitães-do-mato – a exemplo da personagem
Martinho que atuou na tentativa de capturar Isaura – que nenhum sentimento lhes tocava
quanto à sorte dos escravos de maneira semelhante à exposta por Castro Alves:
Pois não vês que [nós, os escravos] morremos todo dia,
Debaixo do chicote, que não cansa?
Enquanto do assassino a fronte calma
Não revela um remorso de sua alma?5
Tendo publicado seu romance em 1875, momento no qual os literatos ampliavam
suas preocupações a respeito do público leitor, Bernardo Guimarães – ao utilizar de duas
estratégias para convencer seus leitores (apelou para a sensibilidade ―feminina‖ e os
interesses senhoriais) – tentou ampliar a base dos leitores que poderiam ser convencidos
através de sua obra. Conforme Hélio de Seixas Guimarães, a partir da década de 1870 –
especialmente após a divulgação dos dados do censo – houve uma maior preocupação com
o público leitor por parte dos literatos.6 Os dados do censo de 1872, certamente um
elemento que auxiliou na formação da visão dos literatos, indicou certa predominância de
indivíduos não alfabetizados no império. 7 A despeito de uma ampliação no mercado de
livros na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, 8 tais considerações
sobre o pouco potencial de leitura no império foi explicitado por críticos e literatos de
finais do século XIX e inicio do século seguinte.
Machado de Assis, em 1866, exercendo a função de crítico, destacou: ―quando
aparece entre nós […] o editor não pode oferecer vantagens aos poetas, pela simples razão
de que a venda do livro é problemática e difícil‖; ―há um circulo limitado de leitores‖,
3
―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 1, n. 11, Rio de Janeiro, 14/03/1868, p. 124. Grifo nosso.
Biblioteca Nacional (doravante BN), Periódicos Digitalizados.
4
Questão, como a anterior, também exposta por Castro Alves em sua ―Carta às senhoras baianas‖.
5
ALVES, A cachoeira de Paulo Afonso, p. 347.
6
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de
literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial; Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
7
PUNTONI, Pedro (coord.). Os recenseamentos gerais do Brasil no século XIX: 1872 e 1890. São Paulo:
CEBRAP, 2004 (CD-ROM).
8
EL FAR, Alessandra. ―Livros para todos os bolsos e gostos‖. In: ABREU, Márcia & SCHAPOCHNIK,
Nelson (orgs.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado das Letras, Associação
de Leitura do Brasil; São Paulo: FAPESP, 2005, p. 329.
29
comentou afirmando que havia uma ―regra geral‖: ―os livros aparecem e morrem nas
livrarias‖.9 Em 1903, o historiador da literatura José Veríssimo observou,
a mulher brasileira, mesmo aqui no Rio de Janeiro, que se presume a mais
adiantada e culta cidade do país, salvo exceções, nada lê. E o homem
brasileiro, o burocrata, o capitalista, o negociante, o industrial, o político,
o mundano, e até o ―doutor‖, acompanham-na de perto. 10
Pelo menos desde 1865, Bernardo Guimarães explicitou sua preocupação com o
público leitor fosse dos periódicos ou da literatura. Em ―Prólogo‖ ao seu volume de
Poesias escreveu o seguinte sobre o destino de muitos de seus escritos, que se perderam:
―ora são artigos de periódicos, literários, que se imprimem depois de muitas fadigas e
despesas, e depois se distribuem alguns raros exemplares, indo o resto para as tavernas
servir de embrulho‖. 11 Logo no primeiro parágrafo do referido prólogo, o literato menciona
a saga de Camões, que tendo naufragado, ―salvara os seus Lusíadas, trazendo-os em uma
das mãos em cima das ondas‖. Todavia ironicamente, destacou que, de sua parte, nenhum
empenho faria para salvar sua obra, pois, ―na época que atravessamos o papel está sujeito a
toda sorte de avarias‖:
Eu não arriscaria nem um fio de cabelo de minha cabeça, – a não ser
algum desses que começam a branquejar-me, – para salvar esse potpourri que aí vai, nem das ondas, nem mesmo das traças e dos ratos, nem
de outros mil perigos a que estão sujeitos todos os papeis deste mundo.12
Talvez, o literato, diante da imagem que fez sobre a realidade da leitura no Brasil,
do empenho em ―promover pelos meios ao nosso alcance a cultura das letras em nosso
país‖,13 e dos dados reais da instrução no Império, tenha traçado uma interpretação que o
guiou na forma de se dirigir ao público leitor. Neste período, conforme Alessandra El Far,
notava-se um crescente mercado de ―livros populares‖ – direcionados à crescente camada
urbana alfabetizada e assalariada – que existia para além dos círculos da Rua do Ouvidor –
9
ASSIS, Machado de. ―Propósito‖, 09/01/1866. In: O ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008, p. 48.
10
VERISSIMO, J. ―Leitura de livros‖. Almanaque Brasileiro Garnier para o anno de 1904. Rio de Janeiro,
ano II, 1903, p. 202.
11
GUIMARÃES, Poesias, p. 5.
12
Ibidem, p. 3.
13
GUIMARÃES, Bernardo. ―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de
Janeiro, ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2. AEL/CECULT.
30
onde, certamente, circulavam as publicações de nosso literato – e suas publicações melhor
encadernadas e conseguintemente de maior valor monetário de produção e venda:
Tanto a Garnier quanto a Laemmert situavam-se no mesmo quarteirão da
Rua do Ouvidor. Quem por elas passasse, veria fileiras do chão ao alto de
exemplares cuidadosamente encadernados e, dependendo do horário,
entusiasmadas confrarias literárias que reuniam conhecidos homens de
letras. Apesar do burburinho, o comércio livreiro da segunda metade do
século XIX estava longe de concentrar-se em uma das ruas mais famosas
da cidade. Nas suas adjacências, vários outros estabelecimentos do
mesmo teor divulgavam, cada um a seu modo, suas ofertas,
especialidades e raridades bibliográficas. Localizadas nas ruas da
Quitanda, Uruguaiana, Sete de Setembro, S. José, da Assembléia, do
Carmo, do Rosário e do Ourives, esses comerciantes, sabendo que os
volumes de acabamento requintado tinham endereço certo, apostavam em
um novo tipo de negócio, o livro barato, que ganhava um número cada
vez maior de adeptos. 14
Este crescente mercado de livros e conseqüentemente do público leitor não incidia
sobre os leitores de Bernardo Guimarães, cujas obras eram publicadas por Baptiste Louis
Garnier, editor francês estabelecido no Brasil (na Rua do Ouvidor da capital do Império),
que geralmente imprimia seus livros em Paris direcionando seu catálogo a um público
leitor pretensamente mais exigente. Nesse sentido, é significativo o empenho do literato
emancipacionista para aumentar a base de pessoas – essencialmente ligadas aos grupos
senhoriais – que poderiam ser convencidas através da leitura de sua obra de teor
antiescravista. Veremos que, ao mesmo passo em que buscava sensibilizar o leitor para a
situação de Isaura, produziu um discurso em que enfatizava a manutenção da escravidão
como um manancial de problemas para a família senhorial, questão que também esteve no
cerne da preocupação de outros literatos. José de Alencar, por exemplo, em 1857, numa
comédia intitulada O demônio familiar, apresentou ao público os perigos – principalmente
morais – em manter o escravo próximo à classe senhorial. Trata-se da história de Pedro,
um jovem escravo – ―O demônio familiar‖ – que, buscando atingir o objetivo de se tornar
cocheiro, mente e inventa artimanhas que poderiam ter corrompido a família senhorial. A
solução apresentada ao final da comédia: libertar os escravos – como uma iniciativa
senhorial –, evitando a continuação dos perigos. 15 Joaquim Manuel de Macedo, em 1869,
em seus ―quadros da escravidão‖, procurou mostrar aos senhores
14
15
EL FAR, ―Livros para todos os bolsos e gostos‖, pp. 329-330.
ALENCAR, O demônio familiar.
31
os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravo,
inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, deixem-nos dizer
assim, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a
família dos senhores, e a sua raiva concentrada, mas sempre em
conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra dos seus
incônscios opressores. É o quadro do mal que o escravo faz de assentado
propósito ou às vezes involuntária e irrefletidamente ao senhor. 16
Houve literatos que foram explícitos em afirmar que iriam recorrer a um discurso
que enfatizava a escravidão como problema para a família senhorial, a despeito de entender
que poderia existir outros caminhos na empreitada antiescravista. Na concepção de
Macedo, existiam dois caminhos para convencer seus leitores – pertencentes à classe
senhorial – a respeito da necessidade da extinção da escravidão:
Um desses caminhos se estende por entre as misérias tristíssimas, e os
incalculáveis sofrimentos do escravo, por essa vida de amarguras sem
termo, de árido deserto sem um oásis, de inferno perpétuo no mundo
negro da escravidão. É o quadro do mal que o senhor, ainda sem querer,
faz ao escravo. 17
É significativo, no entanto, que o caminho adotado por Joaquim Manuel de
Macedo – ―é o que mais convém ao nosso empenho‖ – tenha sido aquele que destacava a
escravidão como um elemento prejudicial à classe senhorial, afinal era este o público leitor
que ele almejava convencer. Nem mesmo Castro Alves, que na maioria de suas
composições apelava para a ―sensibilidade‖ feminina da família senhorial, foi indiferente a
este expediente para convencer seu público, a exemplo do exposto na poesia ―Amante‖,
publicada em A cachoeira de Paulo Afonso:
―Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Esta alma é o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.
―Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força…
E quem tem um punhal nada carece!…
16
17
MACEDO, As vítimas-algozes, p. 10.
Ibidem, p. 10.
32
Ou em ―Sangue de africano‖,
Aqui sombrio, fero, delirante
Lucas ergueu-se como o tigre bravo…
Era a estátua terrível da vingança…
O selvagem surgiu… sumiu-se o escravo. 18
Enfim, diante dos quadros da literatura antiescravista, fica patente que a
escravidão deveria ser extinta em proveito da própria classe senhorial, evitando os
problemas que sua perpetuação continuaria a provocar. Questão explicitada ainda em 1859,
no período A actualidade que ao apresentar a notícia da tentativa de suicídio de um
escravo, que estava para ser capturado, mencionou sua história buscando convencer os
escravistas para o perigo do regime. Segundo noticiaram, chamava-se Marcelinho, era
originário das províncias do norte e se encontrava fugido ―ha cerca de um ano, depois de
ter assassinado seu senhor […] receando horrível vingança, em conseqüência de um
inqualificável abuso praticado por ele réu na pessoa de uma sua senhora moça ainda
menor‖. Ao comunicar a notícia, não se esqueceram de transmitir um ensinamento que
tinha um interlocutor declarado: ―mirem-se neste espelho os apologistas da escravidão‖. 19
Bernardo Guimarães não foi indiferente a este empenho, tendo optado por destacar
especialmente as vantagens econômicas da emancipação. É provável que nosso literato
tenha se servido dos argumentos jurídicos da ―Economia Política‖, disciplina que, como
outros bacharéis, cursou no quinto ano do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da
Academia Paulista de meados do século XIX.20
Provavelmente Bernardo Guimarães julgou ser este o melhor meio para convencer
a classe senhorial. Sabemos, no entanto, que os senhores não agiam essencialmente
movidos por interesses econômicos; por isso mesmo, é significativo seu empenho e o de
outros indivíduos que buscaram extinguir a escravidão com o argumento da ―razão‖.
Conforme Antonio Penalves Rocha, a questão da inviabilidade econômica da escravidão
foi abordada desde os primeiros escritos antiescravistas publicados no Brasil da primeira
metade do século XIX, cujos autores recorriam a economistas europeus como
fundamentação. Rocha, ao tratar dos autores tidos por pioneiros na crítica à escravidão
18
ALVES, A cachoeira de Paulo Afonso, pp. 343 e 344.
―Noticias diversas‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 58,
31/10/1859, p. 2. AEL/CECULT.
20
ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 96.
19
33
(João Severiano Maciel da Costa, Antonio José Gonçalves Chaves, José Bonifácio de
Andrada e Silva e José da Silva Lisboa), destacou um elemento que podemos aplicar a
Bernardo Guimarães e outros de sua geração que, como os pioneiros, serviram-se dos
princípios da Economia Política: ―a adesão dos brasileiros à crítica econômica da
escravidão liga-se ao fato de que ela era reconhecida como única condenação propriamente
cientifica desta instituição‖.21
Não obstante, a Economia Política não foi unanimidade. Silvio Romero, em texto
datado de 20 de setembro de 1873, julgou não ter motivos para acreditar no caráter
científico das considerações dos economistas, todavia em sua própria observação fica
implícito que existiram aqueles que assim julgavam; o próprio Romero, em 1881, quase
oito anos depois de suas críticas, escreveu que ―a economia política, a ciência do trabalho,
é que deve procurar a solução do debate‖ sobre a emancipação dos escravos; nesta ocasião,
considerou que ―só a ciência econômica poderá fornecer os materiais para a solução
almejada‖.22 Em 1873, no entanto, aos moldes da propalada neutralidade científica
positiva, Romero rejeitava a possibilidade de uma ―ciência‖ cujo resultado fosse um
conselho visando uma transformação da realidade. Para ele, ―o economista é um astrônomo
que pretende fazer os astros de seu firmamento. Não se contenta com a descrição, a análise
e o estudo; como os cegos da alquimia, ele intenta fazer o ouro‖. O economista agia de
forma contrária à do ―positivista‖ – termo utilizado por Romero – que ―como o filósofo
não pretendem criar o objeto que estudam‖.23
No ápice da crítica de Romero à Economia Política encontramos o objetivo
daqueles que buscaram convencer a classe senhorial utilizando o argumento econômico, a
saber, ―gerar e multiplicar a riqueza‖ que, na concepção dos emancipacionistas, só seria
possível com a extinção do trabalho escravo e a adoção do trabalho livre. Nesse sentido, os
objetivos da Economia Política caíram ―como uma luva‖ no discurso de alguns
emancipacionistas. Tal ciência, na interpretação de um contemporâneo dos debates em
torno da emancipação, tinha um ―ponto de vista‖ que considerava ―o homem como
21
ROCHA, Antonio Penalves. ―Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira‖.
Revista Brasileira de História, v. 20, n. 39, 2000, pp. 43-79.
22
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, pp. 196 e 199. Segundo Lilia Moritz
Schwarcz, em 1875, Romero defendeu tese de doutoramento sobre a Economia Política. Cf. SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1871-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 148.
23
ROMERO, Sylvio. ―Se a economia politica é uma sciencia‖, 20/09/1873. Estudos de Litteratura
Contemporanea: paginas de critica. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert & C., 1885, pp. 911.
34
instrumento de produção‖, que ―só faz-se cabedal da sua inteligência e das suas faculdades
morais e sentimentos individuais ou sociais, subordinando sempre essas considerações ao
ponto de vista econômico‖.24 Nesse tipo de interpretação, não obstante, inclusive os
aspectos morais relacionavam-se ao bom proveito da economia, como indicou o panfletista
Luis Barbosa da Silva, em suas considerações sobre as vantagens da extinção do ―elemento
servil‖. Para ele,
O economista abstrai-se da apreciação puramente moral do homem e só
enxerga-lhe nas qualidades ou defeitos da alma a influencia que possam
ter nas relações econômicas da sociedade, e este é o único nexo de
relação que têm os estudos morais com os econômicos.
Mas como a verdade é uma e indivisível, as observações dos
economistas, quando bem encaminhadas, são sempre a prova material das
verdades morais, a afirmação tangível e visível do direito e da razão.25
No embate colocado em A escrava Isaura é justamente o senhor com elevados
valores morais, o emancipacionista, que sobressai vitorioso. Provavelmente, na concepção
de Bernardo Guimarães, somente apresentar o sofrimento do escravo não despertasse a
preocupação e o interesse da classe senhorial. Possivelmente, por isso, ao lado dos
sofrimentos da escrava Isaura, o literato destacou as vantagens sociais, morais e
econômicas da emancipação, da adoção do trabalho livre, para a classe senhorial, ao
contrário de outros que expuseram que o grande benefício da emancipação era livrar o
senhor dos perigos da vingança escrava. Joaquim Manuel de Macedo foi explícito em
afirmar que iria recorrer a este expediente para despertar o interesse e a preocupação de
senhores e seus familiares, por isso optou por destacar a vingança escrava que somente
cessaria com a extinção da escravidão. Em sua mensagem introdutória aos leitores de As
vítimas-algozes, destacou:
o escravo que vamos expor a vossos olhos é o escravo de nossas casas e
de nossas fazendas, o homem que nasceu homem, e que a escravidão
tornou peste ou fera.
Contar-vos-emos, pois, em pequenos e resumidos romances as histórias
que vós sabeis, porque tendes sido testemunhas.
Se [senhor] pensardes bem nestas histórias, devereis banir a escravidão,
para que elas não se reproduzam.
24
PARKER, Theodoro (pseudônimo). Elemento servil. Rio de Janeiro: Typ. da Rua da Ajuda, 1871, p. 19.
Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo, doravante BB/USP.
25
Ibidem, pp. 19-20.
35
Porque estas histórias veracíssimas foram de ontem, são de hoje, e serão
de [a]manhã, e infinitamente, enquanto tiverdes escravos. 26
A questão da ―vingança‖ escrava, esteve na mente de muitos indivíduos que
estiveram envolvidos nos debates em torno da emancipação. Nesse período, entre os
crimes mais notáveis ―contra a segurança individual‖, citados por autoridades, houve
exemplos de ―assassinatos e cenas horrorosas contra senhores [que] se tem dado em toda a
parte‖; sendo que ―a causa é comum, a escravidão‖, como destacou o jurista Perdigão
Malheiro.27 Ou seja, a resistência ou ―vingança‖ escrava – para citarmos a linguagem
macediana – chamava a atenção. Não sem razão, não poucos literatos colocaram a questão
da vingança escrava em suas narrativas, e não as agruras da vida do escravo.
Para muitos emancipacionistas, era preferível ressaltar a vingança escrava a
destacar os ―pretensos‖ sofrimentos que viviam o escravo no Brasil. Américo Marques S.
Rosa, em texto sobre ―A influência da escravatura sobre o desenvolvimento social e moral
do Brasil‖, publicado em 1853 na província da Bahia, julgou não ser o melhor caminho
apelar para a questão dos sofrimentos dos escravos. Sobre tal questão, enfatizou:
Não copiaremos a história da triste vida de um escravo, nem pintaremos o
quadro hediondo das privações e injúrias que padecem eles no Brasil, são
coisas que ninguém ignora, fora inútil avivá-las. E, demais, julgamos
infrutíferos os esforços daqueles, que tentam propagar a abolição da
escravatura, apresentando em relevos os horrores da escravidão.28
Para ele tal atitude equivalia a ―despender em vão palavras e tempo‖, ao apelar
para a ―generosidade de um povo afeito a escutar a sangue frio os gemidos de dor
arrancados do coração do escravo, que se estoce sob os golpes do látego‖. Julgava que o
ideal era ―falar outra linguagem mais enérgica e convincente‖: ―mostrar com argumentos
sólidos e incontestáveis, que o atraso do Brasil procede do vergonhoso tráfico de
escravos‖.29 É provável que muitos indivíduos pró-emancipação tenham compreendido o
26
MACEDO, As vítimas-algozes, pp. 7-10.
MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio historico-juridico-social (Parte 3ª: Africanos). Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1867, p. 135.
28
ROSA, Americo Marques S. ―A influência da escravatura sobre o desenvolvimento social e moral do
Brasil‖. O Academico, n. 4, Bahia, ago., 1853, pp. 79-81. Centro de Digitalização da Universidade Federal
da Bahia (doravante CEDIG), Jornais Diversos, R128 (1855-1870).
29
Ibidem, pp. 79-81. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, para os abolicionistas brasileiros a África
era uma terra de vícios, miséria e ignorância que contaminava o Brasil através do tráfico de escravos. Cf.
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada
(século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, pp. 136-139.
27
36
tempo em que viveram de maneira semelhante a Luis Barbosa da Silva, político que foi
filiado a Liga Progressista, uma agremiação composta por dissidentes liberais e
conservadores, em oposição ao domínio do Partido Conservador. Para ele (sob o
pseudônimo de Theodoro Parker),
Perante a razão a escravidão não se tem ainda revelado tão pouco em toda
a sua hediondez.
A sociedade brasileira ainda não tem a consciência clara do mal, que lhe
vem da influência deletéria da escravidão.30
Provavelmente, por isso, os literatos tenham buscado demonstrar aos leitores as
influências negativas da escravidão para a ―sociedade‖ – ―iluminar‖ a mente dos
proprietários de escravos. Questão que provavelmente nosso literato entrou em contato em
finais da década de 1850. Na edição de 31 de agosto de 1859 do jornal A actualidade,
periódico que contou com Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores, foram
apresentados os ―Apontamentos sobre a necessidade de uma escola de agricultura theorica
e pratica‖, nos quais o engenheiro agrônomo Caetano da Rocha Pacova destacou que um
caminho que levaria à substituição do trabalho escravo pelo livre era demonstrar as
vantagens deste último. Segundo ele,
Logo que for resolvida a questão do trabalho livre, e que for praticamente
demonstrada sua superioridade ao forçado, perderá este sua razão de
existência. Uma ferramenta má é abandonada, quando dispomos de uma
perfeita, e sabemos empregá-la.31
Julgamos provável que nosso literato tenha lido esta e outras considerações
publicadas no referido periódico. Ao apelar para argumentos ―científicos‖ para convencer a
classe senhorial, os emancipacionistas buscaram incutir na mente destes uma ―razão‖ – que
não se encontrava suficientemente consagrada como gostariam. A respeito de um discurso
em que se dizia que ―a causa da emancipação está ganha perante a filosofia e no mundo do
sentimento‖, Luis Barbosa da Silva considerou ser coisa de ―observadores superficiais‖: ―si
estivéssemos bem convencidos de que a escravidão é uma iniqüidade bárbara, mais
degradante, como de fato é, para o senhor do que para o próprio escravo, qual o homem de
30
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 11.
―Apontamentos sobre a necessidade de uma escola de agricultura theorica e pratica, apresentados ao Exm.
Sr. ministro do império por C. da R. Pacova‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de
Janeiro, ano 1, n. 48, 31/08/1859, p. 2. AEL/CECULT.
31
37
brio que, por um instante, possuísse um seu semelhante?‖.32 Por isso, ele, como outros
emancipacionistas, se empenharam em demonstrar as degradações de ordem moral e
econômica provenientes do regime escravista.
Na década de 1880, no entanto, mesmo com a existência de considerações
―científicas‖ sobre as desvantagens da escravidão, o discurso emancipacionista que apelava
para o sentimento cristão quanto aos sofrimentos do escravo ainda possuía apelo. Em 1883,
foi publicado o volume Os escravos de composições produzidas por Castro Alves, 33 poeta
antiescravista – falecido em 1871 – que apelava para situação do escravo. Em 16 de
novembro de 1883, estando em Londres, Joaquim Nabuco escrevia carta, na qual julgava
importante a publicação de obras antiescravista, entre elas a de Castro Alves a quem ele
teria conhecido e admirado.34 Nabuco compreendia a importância da propaganda para a
causa que atuava e, para além, os elementos que lhe poderiam ser úteis – como os
―sofrimentos‖ dos escravos.35 Mucio Teixeira, em sua ―Biographia de Castro Alves‖, texto
de abertura da primeira edição de Os escravos indicou que o apelo para a situação do
escravizado tenha influenciado na iniciativa de publicar a obra do poeta baiano. Sobre a
questão, seguindo os caminhos do biografado, escreveu:
Foi então que Castro Alves lembrou-se de escrever um poema. O Assunto
preferido dá a medida exata da sua personalidade. Os Escravos, essa raça,
atada por séculos ao potro das maiores torturas, arrastando-se agrilhoada
ao sol da nossa pátria; esses infelizes que gemem à sombra das nossas
florestas, regando de lagrimas de sangue o solo onde espalham as
sementes promotoras do ouro.36
Enfim, aos menos para Joaquim Nabuco e um dos responsáveis pela publicação
em 1883, a obra de Castro Alves ainda tinha razões para ser dada à publicidade. Assim
como no mundo da ―razão‖, a escravidão também não estava condenada ―no mundo do
sentimento‖, como asseverou, em 1871, Luis Barbosa da Silva. 37 Era então preciso auxiliar
na condenação da escravidão através destes dois vieses. Questão que, em finais da década
de 1860 e início da seguinte, esteve muito relacionada às discussões em torno da libertação
32
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, pp. 3-4.
ALVES, Castro. Os escravos. Ed. de centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo: GRD, 1983 [1883].
34
TEIXEIXA, Mucio. ―Biographia de Castro Alves‖, 07/09/1883. In: ALVES, Castro. Os escravos. Ed. de
centenário, fac-similar da príncipe. São Paulo: GRD, 1983, p. XXXV.
35
Carta de Joaquim Nabuco a Domingos José Nogueira Jaguaribe, Londres, 16/11/1882. BN, Manuscritos,
I-5,01,073.
36
TEIXEIRA, ―Biographia de Castro Alves‖, p. XXII.
37
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 6.
33
38
do ventre que então era discutida no parlamento e, provavelmente, em muitos encontros de
jovens da sociedade imperial. Conforme Emília Viotti da Costa,
Para muitos jovens, que iniciavam sua carreira política e literária nesse
período, a discussão em torno da Lei do Ventre Livre foi um batismo de
fogo. Eles se identificaram com a causa da emancipação e das reformas e
nos anos que se seguiram continuaram a lutar por elas.38
Bernardo Guimarães, que já contava com um pouco mais de quatro décadas e
meia de vida, não foi indiferente ao debate que se agitou no parlamento ainda na década de
1860,39 período no qual o jovem Castro Alves produziu muitas de suas composições e
quando Bernardo Guimarães atuou como jornalista no senado representando o Jornal do
Comércio (1864-1865),40 quando o deputado mineiro Perdigão Malheiro já havia proposto
o ―nascimento livre‖. Questão que, mesmo não tendo sido pauta oficial do senado que
contou com a cobertura jornalística de Bernardo Guimarães, talvez tenha sido discutida nos
bastidores da câmara permanente do império do Brasil. 41 Conforme o deputado Capenema,
nos anos de 1864 e 1865, foram rejeitados três projetos sobre a emancipação no Senado. 42
O debate em torno da condição dos escravos esteve em pauta para muitos
indivíduos pró-emancipação e, provavelmente, ainda possuía apelo. Não sem razão, esse
foi também um recurso adotado por Bernardo Guimarães, em 1875, no romance A escrava
Isaura.43 Deixemos, no entanto, este debate e passemos ao foco deste capítulo: as
representações dos senhores no romance A escrava Isaura. Foco que se liga ao do próximo
capítulo: a ―linguagem mais enérgica e convincente‖ direcionada aos senhores, que, nas
palavras de Joaquim Nabuco, não eram afeitos a sensibilizarem-se com as condições em
que viviam os escravos; para ele, ―a virtude perde-se ao contato dessa instituição: ela é a
38
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 57.
Sobre os debates sobre a emancipação Cf. CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 139-155;
COSTA, A abolição, pp. 39 e 139-140.
40
Cf. ASSIS, Machado de. ―O velho senado‖, jun., 1898. In: Contos de Machado de Assis, v. 5 (política e
escravidão). Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 153-155.
41
Conforme informações do próprio deputado, ao declarar-se contrário à aprovação do ―ventre livre‖, em
1871, ele já havia proposto tal medida em 1863. Cf. MALHEIRO, Perdigão. Discurso proferido na sessão da
Camara Temporaria de 12 de Julho de 1871 sobre a proposta do governo para a reforma do Estado Servil.
Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1871, p. 65. Para o ano de 1864, não encontramos
referências de que tenha ocorrido discussões penarias em torno da libertação do ventre no senado. Cf. Annaes
do Senado do Imperio do Brasil, 1864. BPEB, Periódicos Raros.
42
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta
legislatura. Sessão de 1871. Tomo 3. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve
& C., 1871, p. 167.
43
GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Biografia, introdução e notas por: M. Cavalcanti Proença. Rio
de Janeiro: Editora Tecnoprint (Edições de Ouro), 1967 [1875].
39
39
escola do crime, envenena o coração do senhor e do escravo, muda a caridade em palavra
vã, desnatura a lei do mérito: é a sentina de todos os vícios‖. 44 Veremos como o narrador
bernardino caracterizou como irracionais os indivíduos mais apegados ao regime
escravista, pondo como exemplo uma personagem senhorial.
Diante da concepção que tinham sobre os senhores e dos meios que julgavam
hábeis a convencê-los, muitos emancipacionistas serviram se de um discurso no qual
buscavam destacar as vantagens que eles teriam com o fim da escravidão; no caso de
Bernardo Guimarães, um discurso pautado nos termos ecléticos da ―Economia Política‖
que, conforme destacou, em 1867, o jurista Perdigão Malheiro, tem demonstrado que
a escravidão obsta profundamente ao desenvolvimento da indústria, a
produção da riqueza pública e privada. Desde Adam Smith, J. B. Say e
outros, até Rénouard, Chevalier, e demais distintos pensadores, a ciência
econômica tem consagrado como axioma essa proposição. 45
Nesse tipo de discurso emancipacionista, a escravidão era um regime moralmente
e economicamente prejudicial. Assim, destacava-se as vantagens monetárias do trabalho
livre e, ainda, as falhas do regime servil neste aspecto. Questão que é implicitamente
apresentada no artigo intitulado ―Greve de escravisados‖ de autoria de Raul do Valle,
publicado na Revista Illustrada, em 22 de outubro de 1887. O autor apresentou um caso de
fuga em massa destacando: ―esses homens, a que chamamos escravos devem, na verdade,
estar cansados de perseguições e violências‖, assim apelou para a caridade senhorial
quanto ao tratamento dispensado ao escravo; e, posteriormente, destacou: ―a continuarem
as coisas como vão, será preciso ter um soldado por detrás de cada escravo‖.46
Implicitamente, discutiu os custos morais e econômicos da manutenção do regime
escravista, tônica já abordada por Bernardo Guimarães doze anos antes no romance A
escrava Isaura;47 e, ainda antes, em 1871, por um panfletista que escreveu as seguintes
44
NABUCO, Joaquim. A escravidão, Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1988 [1870], p. 31.
MALHEIRO, A escravidão no Brasil (Parte 3ª: Africanos), pp. 135-136.
46
VALLE, Raul do. ―Greve de escravisados‖. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 12, n. 468, 22/10/1887,
p. 3. Grifo nosso.
47
Ao que tudo indica, tal concepção é pautada num raciocínio de base iluminista. Jean-Jacques Rousseau,
por exemplo, não considerou que alguns instrumentos de controle social fossem eficazes: ―tomai tudo,
usurpai tudo e depois gastai o dinheiro a mancheias; erguei baterias de canhões; montai cadafalsos e rodas;
promulgai leis e éditos; multiplicai os espiões, os soldados, os carrascos, as prisões, as cadeias; pobres
homenzinhos, de que vos serve tudo isso? Não sereis mais bem servidos, nem menos roubados, nem menos
enganados, nem mais absolutos‖. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. Trad. Roberto
Leal Ferreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 80.
45
40
palavras: ―a sociedade fica estacionaria, e a produção geral é quase nula a despeito da
opressão desenvolvida em imensa escala de uma parte da nação [brancos] contra a outra
[negros]‖;48 ou, ainda, como observou outro contemporâneo do processo de discussão da
libertação do ventre, para o qual a escravidão estava condenada ―pela economia política,
que demonstra como o braço livre produz mais e é mais eficaz e indústria [sic] do que o
braço escravo‖.49
Tendo em mente a questão da inviabilidade econômica da escravidão, dado
explicitado por muitos antiescravistas da época e tido como argumento científico, para
Bernardo Guimarães o apego à escravidão somente poderia ocorrer com indivíduos que
não gozavam de elevados dotes morais e intelectuais. Elemento que pode ser observado
nas caracterizações que o narrador bernardino fez a respeito da classe senhorial.
Escravistas versus emancipacionistas no enredo romântico bernardino
No romance de Bernardo Guimarães, temos um embate – aparentemente
secundário – entre senhores escravistas versus senhores emancipacionistas. Embate
protagonizado pelas personagens Leôncio e Álvaro, provavelmente direcionado – de forma
indireta,50 através das mulheres – aos senhores das regiões que ainda eram os bastiões da
escravidão no império (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia) naquela década
de crítica ao regime escravista, ou seja, àqueles que estiveram ―até a véspera‖ apegados à
escravidão.51 Tal romance, foi inclusive – ao menos parcialmente – publicado em periódico
48
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 15.
MENEZES, Adolfo Bezerra de. A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a
sem damno para a nação. Rio de Janeirro: Typ. Progresso, 1869, p. 5. BB/USP.
50
Daniela Magalhães da Silveira, em sua dissertação de mestrado, utilizando de discussões (cartas)
publicadas em periódicos, destaca que os homens liam os periódicos literários e de moda – como o Jornal
das Famílias – com o objetivo de vigiar a moralidade das leituras a qual aquelas eram expostas. Queixas
houve de quem julgou algumas histórias (contos) imorais. Em anúncio à publicação de uma coletânea de
poesias publicadas pela Livraria Garnier percebemos indícios da possibilidade de uma avaliação das leituras
antes de ser entregue aos jovens e as moças: ―podemos asseverar que as mães a mais extremosa pode dar este
livro a sua filha sem temer pela sua inocência; os homens encarregados da educação da mocidade podem ter
certeza de encontrar nesta coleção as poesias mais próprias para formar o coração, ornar o espírito e apurar o
gosto de seus discípulos‖. Cf. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
51, 14/09/1859, p. 4. AEL/CECULT; SILVEIRA, Daniela Magalhães da. ―Contos de Machado de Assis:
leituras e leitores do Jornal das Famílias‖. Dissertação de Mestrado: IFCH/UNICAMP, 2005.
51
Azevedo menciona que províncias como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais foram fortes bastiões da
escravidão em seu contexto nacional de crise. Aqui podemos incluir a Bahia, onde especialmente no
Recôncavo, os senhores ligados à produção açucareira estiveram ―até a véspera‖ apegados à escravidão. Cf.
AZEVEDO, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, p. 184; BARICKMAN, B. J. ―Até a véspera: o trabalho
escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881)‖. Afro-Ásia, 21-22, 19981999, pp. 177-238.
49
41
baiano.52 Para além, ―apesar de o Rio de Janeiro ser a principal referência editorial do país,
os livros ali impressos chegavam aos demais estados [províncias] por meio de
encomendas‖. 53 Poderiam também chegar a outras províncias por iniciativa do próprio
editor que, por exemplo, em finais de 1874, havia enviado uma ―remessa de diversas obras
por ele editadas‖ à Ouro Preto para os responsáveis pelo Diário de Minas.54
Vejamos uma das personagens rivais. Leôncio – senhor de Isaura –, ―era filho
único do rico e magnífico comendador Almeida‖, proprietário de uma ―bela e suntuosa
fazenda‖ na província fluminense (um dos conhecidos bastiões da escravidão). Era o único
herdeiro de uma rica herança. 55 Desde a infância, já demonstrava algumas características
de sua personalidade acentuadas com a (má) educação que sofreu:
Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus pais
amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência. Mau
aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio
em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os
preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do
patronato. Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico
comendador o desgosto de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola
de medicina logo no primeiro ano enjoou-se daquela disciplina, e como
seus pais não sabiam contrariá-lo, foi-se para Olinda a fim de freqüentar o
curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção de fortuna
paterna na satisfação de todos os seus vícios e loucas fantasias, tomou
tédio também aos estudos jurídicos, e ficou entendendo que só na Europa
poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a sua sede de
saber, em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que
deu-lhe crédito e o enviou a Paris.56
É provável que, seguindo uma concepção iluminista rousseauniana, Bernardo
Guimarães tenha argumentado ter sido o processo de educação dado à personagem
inadequado. Conforme Maria José de Queiroz, nosso literato foi leitor de Rousseau,
Chateubriand, Lamartine, Victor Hugo e Byron;57 autores cujas obras, possivelmente,
Bernardo Guimarães tenha entrado em contato na cidade de São Paulo; autores que entre
52
Encontramos na edição do dia 23 de junho de 1881 da Gazeta da Tarde o capítulo XIX do romance. Cf.
―Folhetim: A Escrava Isaura por Bernardo Guimarães – XIX‖. Gazeta da Tarde, ano 2, n. 134, Bahia,
23/06/1881, p. 1. CEDIG, Vários Periódicos, R0046 (1870-1892).
53
EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 33.
54
São mencionadas as seguintes obras de Jules Verne: Viagem e aventuras do capitão Hatteras, Uma cidade
flutuante e Os forçadores de bloqueio. Cf. ―Imprensa‖. Diario de Minas, ano 2, n. 392, Ouro Preto, MG,
02/01/1875, p. 4. Arquivo Público Mineiro (doravante APM), Jornais Mineiros.
55
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 29.
56
Ibidem, pp. 29-30.
57
QUEIROZ, Maria José de. ―Convite à leitura de Bernardo Guimarães‖. Revista Colóquio/Letras, n. 83,
Lisboa, jan./1985, p. 23.
42
1847 e 1850 eram citados nas páginas dos Ensaios Litterarios, periódico editado por uma
―Associação de Acadêmicos‖ do curso de Ciências Sociais e Jurídicas, entre os quais
Bernardo Guimarães.58 Em muitos aspectos de sua obra, o literato apresentou uma
concepção pautada numa base de raciocínio iluminista filtrada pela realidade brasileira,
tendo o suíço Jean-Jacques Rousseau como referencial. Filósofo que acreditou que o
excesso de facilidades proporcionadas pelos pais à criança era a melhor forma para se
estragar um indivíduo, questão presente na educação de Leôncio. Eis as palavras do
filósofo setecentista:
Sabeis qual é o meio mais seguro de tornar miserável vosso filho? É
acostumá-lo a obter tudo, pois crescendo seus desejos sem cessar pela
facilidade de satisfazê-los, mais cedo ou mais tarde a impotência vos
forçará, ainda que contra a vontade, a usar da recusa. E essa recusa
inabitual dar-lhe-á um tormento maior do que a própria privação do que
deseja.59
Verá nosso leitor que muito da consideração do filósofo foram também
apresentadas por Bernardo Guimarães ao descrever o processo de educação de Leôncio. A
esta questão inclui-se uma artimanha – que veremos abaixo – criada pelo pai de nossa
personagem que, sem recursos para manter a vida desregrada de seu filho na capital
francesa, precisava trazê-lo de volta à sua fazenda. Instalado em Paris, Leôncio prosseguiu
numa trajetória ―acadêmica‖ semelhante à experimentada no Brasil,
naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leôncio raras vezes, e
só por desfastio, ia ouvir as eloqüentes preleções dos exímios professores
da época, e nem tampouco era visto nos museus, institutos e bibliotecas.
Em compensação era assíduo freqüentador do Jardim Mabile, assim
como de todos os cafés e teatros mais em voga, e tornara-se um dos mais
afamados e elegantes leões dos bulevares. 60
Tal opção de vida produziu um incômodo prejuízo financeiro em seu pai, que
precisou trazê-lo de volta ao Brasil, todavia, sem contrariá-lo. Para tanto, buscou
convencê-lo de que o interesse em retornar era seu. A artimanha, utilizada por seu pai,
indica que aquela personagem senhorial fora criada para ser obedecida em todos os seus
58
Ensaios Litterarios (São Paulo, 1847-1850). AEL/CECULT.
ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 86. Em Emílio encontramos a maior apresentação rousseaniana
sobre a educação.
60
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 30.
59
43
desejos. Elemento que se acentua em seu obstinado e irracional desejo de possuir Isaura.
Eis como é narrada a referida situação:
No fim de alguns anos, ora de residência em Paris, ora de giros pelas
principais capitais da Europa, tinha ele [Leôncio] tão copiosa e
desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o comendador a despeito
de toda a sua condescendência e ternura para com seu único e querido
filho, viu-se na necessidade de revocá-lo à sombra dos pátrios lares a fim
de evitar uma completa ruína. Mas, mesmo assim, para não magoá-lo
colhendo-lhe súbita e rudemente as rédeas na carreira dos desvarios e
dissipações, assentou de atraí-lo suavemente acenando-lhe com a
perspectiva de um rico e vantajosíssimo casamento. 61
Tais problemas em sua educação foram marcantes para a formação desta
personagem. Em outro romance Bernardo Guimarães já havia mencionado os perigos de
uma má educação, mesmo apresentando a possibilidade de uma regeneração. Gonçalo,
personagem principal do romance O ermitão de Muquém (publicado em 1858, em forma
de folhetim), apresentava, para além de algumas características negativas, algumas –
dignas de um ―herói‖ – que poderiam facilmente ser elogiadas, todavia ao invés de utilizálas ―ao serviço da pátria e da liberdade‖, ―atirou-se em corpo e alma na carreira da
devassidão e tornou-se um completo vadio, um famoso desordeiro‖. Para o narrador,
―entretanto esse moço não era mau por natureza; tinha no fundo excelente qualidade e
generosos instintos de coração, que teriam feito dele um homem precioso, se não fosse a
sua má educação e a diabólica mania de querer passar pelo maior valentão do mundo‖. Era
necessária uma educação ―adequada‖ para tolher as características consideradas negativas
da personagem. 62 Talvez nosso literato tenha concordado com Jean-Jacques Rousseau para
quem precisamos ter nossas cabeças modeladas ―por dentro pelos filósofos‖: para ele,
moldava-se o homem pela educação.63
Talvez, a má educação de Leôncio explique o seu apego à escravidão quando
muitos já julgavam o regime como economicamente irracional: ―a ciência ensina, e os fatos
demonstram: que o trabalho feito por braço escravo, não pode competir com o que é feito
por braço livre‖, comentou, em 1869, o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes. 64 Leôncio era um
senhor que não apresentava elevados dotes intelectuais, considerando a sua biografia
61
Ibidem, p. 30.
GUIMARÃES, Bernardo. O ermitão de Muquém, 1858 (In: Quatro romances. São Paulo: Livraria
Martins, 1944), pp. 17-18. Grifo nosso.
63
ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, pp. 8 e 17.
64
MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 8.
62
44
escolar. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, em estudo comparativo sobre o
abolicionismo nos Estados Unidos e no Brasil, no Império os abolicionistas utilizaram o
tema da ―irracionalidade e não lucratividade da escravidão‖. Elemento relacionado à base
do abolicionismo que era pautado por ―um modo de raciocínio secular e iluminista‖, ao
contrário do abolicionismo estadunidense, cuja religião era um elemento central. 65
Conforme Emília Viotti da Costa,
No pensamento revolucionário do século XVIII encontram-se as origens
teóricas do abolicionismo. Até então, a escravidão fora vista como fruto
dos desígnios divinos; agora ela passaria a ser vista como criação de
vontade dos homens, portanto transitória e revogável. Enquanto no
passado considerava-se a escravidão um corretivo para os vícios e a
ignorância dos negros, via-se agora, na escravidão, sua causa. Invertiamse, assim, os termos da equação. Passou-se a criticar a escravidão em
nome da moral, da religião e da racionalidade econômica. Descobriu-se
que o cristianismo era incompatível com a escravidão; o trabalho escravo,
menos produtivo do que o livre; e a escravidão uma instituição corruptora
da moral e dos costumes.66
O próprio Bernardo Guimarães, nos romances O garimpeiro (1872) e Rozaura, a
engeitada (1883), citou um dos mais conhecidos representantes do iluminismo, o filósofo
suíço Jean-Jacques Rousseau,67 que, em seu O contrato social (1762), considerou a
escravidão como ilegítima: ―o direito de escravizar é nulo, não somente porque ilegítimo,
mas porque absurdo e sem significação‖. No capítulo IV, que trata ―Da escravidão‖, do
―Livro I‖, o filósofo escreveu: ―já que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu
semelhante, e uma vez que a força não produz direito algum, restam então as convenções
como base de toda autoridade legítima entre os homens‖. 68 É importante destacarmos que
nosso literato entre 1847 e 1851, viveu o ambiente da Faculdade de Direito de São Paulo,
um dos importantes centros de formação da intelectualidade brasileira (―núcleo de um
grande movimento intelectual‖,69 como descreveu o narrador bernardino ao tratar de
meados do século XIX) que se aproximava à sua maneira das idéias liberais de matriz
francesa. Fundada em 1827, juntamente com a faculdade do Recife, foi um dos ―mais
65
AZEVEDO, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, pp. 47 e 50.
COSTA, A abolição, p. 14.
67
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 100; GUIMARÃES, Bernardo. O garimpeiro, 1872 (In:
Quatro romances. São Paulo: Livraria Martins, 1944), capítulo III.
68
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3ª Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, ―Livro I‖.
69
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 7.
66
45
importantes centros de recepção, elaboração e difusão de idéias à época‖. Conforme
Mariza Veloso Motta Santos e Maria Angélica Madeira,
Na Academia Paulista foi gestada a modalidade brasileira de Liberalismo,
o que representou um tour de force de adaptação do modelo europeu,
tendo em vista a conjuntura sócio-política brasileira, marcada por uma
realidade escravocrata, por um Estado monárquico e patrimonial e, ainda,
pela dependência econômica das nações centrais.70
Livros franceses, conforme Marisa Midori Deaecto, ―aguçaram os espíritos das
gentes de letras e habitavam as estantes de homens ilustres‖ no Brasil; 71 como destacou,
em 1847, o acadêmico Bernardo Guimarães, ―livros europeus rolam por todas as mãos, nós
folheamos quotidianamente, conhecemos o que se passa e se pensa na Europa‖. 72
Certamente, em tal ambiente cultural que si ―inspirava‖ na ilustração francesa, nossos
intelectuais ao refletir sobre a realidade brasileira, uma realidade social escravista,
empreenderam esforços para adaptar tais formas de pensamento. Joaquim Nabuco –
quando cursava o quinto ano do curso jurídico da Faculdade do Recife, após passagem pela
Faculdade de São Paulo – ao destacar a ilegalidade da escravidão, citou justamente
Rousseau e Charles de Montesquieu,73 dois conhecidos iluministas. O jovem Nabuco
serviu-se justamente da máxima rousseauniana na qual a propriedade – da terra – remonta
ao ―primeiro ocupante pelo trabalho‖. 74 Nabuco considerou a impossibilidade disto
acontecer na propriedade de escravos, que, portanto, considerou ilegítima: ―ocupação e
trabalho são dois fatos que não se podem encontrar na espoliação da liberdade humana.
Ocupam-se coisas, não pessoas‖, destacou o jovem brasileiro.75
Na perspectiva, de base iluminista, de Bernardo Guimarães, a representação a
respeito do senhor demasiadamente apegado à escravidão foi a de um ser irracional, que
ignorava ―a divisa do filósofo de Genebra – liberdade, igualdade, fraternidade‖. 76 É
70
SANTOS, Mariza Veloso Motta & MADEIRA, Maria Angélica. Leituras brasileiras: itinerários no
pensamento social e na literatura. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 70.
71
DEAECTO, Marisa Midori. ―B. L. Garnier e A. L. Garraux: destinos individuais e movimentos de
conjunto nas relações editoriais entre a França e o Brasil no século XIX‖. In: VIDAL, Laurent & LUCA,
Tania Regina de (orgs.). Franceses no Brasil: séculos XIX-XX. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 421422 e 425.
72
GUIMARÃES, Bernardo. ―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma
Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 18. AEL/CECULT.
73
NABUCO, A escravidão, p. 73.
74
ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 107.
75
NABUCO, A escravidão, p. 34.
76
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 100.
46
importante, no entanto, destacarmos que ao servir-se de concepções de base iluminista, ele
produziu um discurso favorável à perspectiva senhorial, um discurso essencialmente
conservador, como de muitos outros adeptos da ―idéia liberal‖ do século XIX. Conforme
Santos e Madeira,
A introdução do Liberalismo na cultura política brasileira apresentou a
particularidade de – desvinculando a liberdade da igualdade – implantar
um regime que garantisse as liberdades econômicas e mantivesse as
desigualdades em uma sociedade escravista. 77
Sérgio Adorno, em seu estudo sociológico sobre a formação do bacharel no Brasil
imperial, que não raro ocuparam cargos importantes na constituição do Estado, destacou a
tendência conservadora destes profissionais formados sob a égide do liberalismo:
Os construtores do Estado Nacional viveram, por sucessivas gerações e
durante quase cem anos, acreditando que era preciso primeiro ser livre
para poder ser democrático. Insistiram na questão da liberdade que lhes
pareceu a ante-sala da soberania nacional. […] atropelaram a herança
revolucionária que os viu nascer no final do século XVIII para se
transformarem em homens seguramente de seu tempo e apegados ao
progresso: repudiaram o radicalismo ―ultra-passado de 89‖, em favor das
―modernas‖ posturas conservadoras, tão em moda na virada do século. 78
Enfim, nada de ―idéias fora do lugar‖, como sugeriu o crítico literário Roberto
Schwarz ao tratar da presença da ideologia liberal no Brasil do século XIX, um país cuja
base produtiva era pautada no regime servil. Para ele, o império brasileiro vivia a
contradição de ser um país escravista ao mesmo passo que a escravidão não seria o nexo
ideológico da sociedade: ―por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade
das idéias liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora
a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica‖. 79
Ao contrário, nosso liberalismo não esteve dissociado da escravidão, tendo ele sido muito
bem adaptado pelos intelectuais que com ele entraram em contato.
Voltemos à caracterização da personagem Leôncio, que era um ―digno herdeiro de
todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador‖, ―um senhor perverso e
brutal‖. Para o narrador, esta personagem era um ―homem de sombria catadura, que se lhe
77
SANTOS & MADEIRA, Leituras brasileiras, p. 68.
ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 75.
79
SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, p. 15.
78
47
apresentava aos olhos [de seu rival] implacável e sinistro como Lúcifer, prestes a empolgar
a vítima que desejava arrastar aos infernos‖ a ponto de provocar sensações desagradáveis:
―suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angústia apertou-lhe o coração‖, eis as
sensações de Álvaro ao conhecer Leôncio. 80 O escravista é demonizado aumentando ainda
mais o contraste com outras personagens, como Álvaro e Isaura, que são exemplos de
virtude. Tais características, presentes em Leôncio, então senhor de Isaura, certamente
acentuaram os sofrimentos da dócil e ―educada‖ escrava cujo ―tom velado e melancólico
da cantiga parecia gemido sufocado de uma alma solitária e sofredora‖, cujo canto
melancólico dizia:
Desde o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.
Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar.
Nem meus lábios, nem meus olhos
Não podem de amor falar;
Deu-me Deus um coração
Somente para penar.
Ao ar livre das campinas
Seu perfume exala a flor;
Canta a aura em liberdade
Do bosque o alado cantor;
Só para a pobre cativa
Não há canções, nem amor.
Cala-te, pobre cativa;
Teus queixumes crimes são;
É uma afronta esse canto,
Que exprime tua aflição.
A vida não te pertence
Não é teu seu coração.81
Sofrimentos que foram acirrados pelas características de Leôncio que com a morte
de seus pais herdou, entre outros bens, a dócil escrava:
80
81
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 39, 64 e 186.
Ibidem, p. 23.
48
estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente
naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo
atrito da devassidão. Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que
de dia em dia ia crescendo na razão direta dos sérios e poderosos
obstáculos que encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em
vão se esforçava por superar. Mas nem por isso desistia de sua
tresloucada empresa, por que em fim de contas, – pensava ele, – Isaura
era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restavalhe o emprego da violência.82
Enfim, Leôncio é o típico antagonista do romance romântico, aquele para o qual é
repelida a possibilidade de uma identificação com o leitor imaginado. Suas características
são exageradas; além de um perverso e irracional escravista, esta personagem era – apesar
das oportunidades que teve – um indivíduo inculto. Certamente, com tais características
seria detestado numa sociedade que se imaginava – ou almejava ser – culta e ilustrada aos
moldes europeus. Sem dúvidas, as idéias européias (aqui incluídas as liberais) foram um
importante meio que conferia relevo social, todavia, não consideramos que a apropriação
de tais idéias tenha sido um simples engodo com o fim de efetivar o referido objetivo como
já se chegou a sugerir.83 Talvez, nos traços de personalidade do senhor escravista esteja um
elemento mais explicitado por Joaquim Nabuco, que argumentou que ―a escravidão
degrada a alma do escravo e do senhor‖:
A escravidão é como um desses venenos que se infiltram pelo perfumes:
ela se infiltra pelo egoísmo. Depois de se haver introduzido na sociedade
e de ter alimentado uma raça à custa da outra ela corrompe a ambas. Duas
palavras únicas temos a dizer a respeito: que vícios não deve ter uma
alma que obedece, que está sempre curva e humilhada, que rasteja diante
de um homem? que às vezes é a encarnação de todos os crimes? Que
vícios por outro lado não deve ter aquele que está habituado a mandar e
não ser mandada, a castigar a homens como a animais, a contemplar a
máxima degradação da nossa natureza, a satisfazer brutalmente a todos
os seus caprichos? Nada há mais parecido com a alma de um senhor do
que a de um escravo.84
Questão, aliás, também explicitada por Joaquim Caetano da Silva Guimarães,
irmão de nosso literato, em finais da década de 1850. Para ele, ―o senhor e o escravo são
vítimas mutuamente, e é o senhor sem dúvida quem mais sensivelmente carece com as
82
Ibidem, pp. 38-39. Grifo nosso.
Cf. SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, pp. 18-19.
84
NABUCO, A escravidão, pp. 41-42. Grifo nosso.
83
49
conseqüências das coisas‖.85 Joaquim Caetano, também um bacharel, em seu artigo sobre a
―Agricultura em Minas‖, publicado no jornal A actualidade, provavelmente levado à
redação pelo seu irmão que lá trabalhava, criticou aqueles que, ao tratar da escravidão,
depreciavam o senhor sem refletir sobre o regime escravista; implicitamente, criticou
também uma utilização não refletida das concepções filosóficas de Rousseau. Para ele,
A imaginação de nossos filantropos pinta sempre o senhor armado de
azorrague, e o escravo como mera vítima, que consome sua existência em
trabalhos exorbitantes, entregue a fome e a nudez.
O escravo nasce livre das mãos da natureza, segundo o contrato social de
Rousseau, e medita dia e noite na reivindicação de sua liberdade.
Eis o tema favorito de tantas declamações exageradas, e estéreis, que
diariamente estamos ouvindo. E, com efeito que assunto inesgotável para
os que gostam de dissertar sobre lugares comuns e questões de nome!86
Também para Bernardo Guimarães, a escravidão foi considerada como prejudicial
à classe senhorial, à ―sociedade‖. Mas, seus efeitos não eram considerados irreversíveis.
Sendo instruídos e em contato com concepções políticas e filosóficas como o liberalismo
(de matriz conservadora), os próprios senhores poderiam resolver o ―problema‖ da
escravidão. Exemplo disto é a personagem que apreciaremos a seguir. Ademais, sendo o
narrador bernardino um divulgador da ―Economia Política‖, como sugerimos, o que estava
em questão não era a ausência de bons sentimentos na referida personagem; mas, sim os
efeitos econômicos que esta bondade (ou sua ausência) poderia ter (efeitos que, como
veremos no capítulo posterior, foram apresentados no romance bernardino). Pois, ―no
ponto de vista da economia social‖ apresentada por Luis Barbosa da Silva, em 1871,
―nenhuma importância tem em si mesma a inteligência ou a bondade de um indivíduo
qualquer, senão em relação ao efeito que possa ter essa bondade e inteligência na
produção, consumo e distribuição da riqueza‖. 87
Álvaro – personagem que se opõe a Leôncio –, por outro lado, é o generoso
redentor de Isaura, que enfrentava uma vida de sofrimentos sob o domínio de seu rival. É o
protagonista, herói, da história romântica. Com este sim, o leitor deveria se identificar e as
leitoras brancas, caridosas e civilizadas, almejá-lo enquanto tipo ideal para seu futuro
85
―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
33, 02/07/1859, pp. 2-3. AEL/CECULT.
86
―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
33, 02/07/1859, p. 3. AEL/CECULT.
87
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 19.
50
marido. Era ―filho único de uma distinta e opulenta família‖ do Recife, ―na idade de vinte e
cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos‖
que herdou.88 Diferentemente de Leôncio,
Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava
gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do
nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter
uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro
ano, enquanto não pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda
achou algum prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de
embrenhar-se no intricado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do
direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e
não teve ânimo de prosseguir na senda encetada. 89
Assim como seu rival, abandonou os estudos, todavia por motivações distintas.
Álvaro era filosoficamente contra o direito que era praticado. Era ele,
Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais
na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes
utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior
parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os mais
absurdos.90
Álvaro ―tinha ódio a todos o privilégios e distinções sociais‖. Era uma
personagem ―avançada‖, ―era liberal, republicano e quase socialista‖.91 Talvez, ao destacar
a filiação ideológica de sua personagem, o literato – também ele liberal – tenha buscado
incutir entre seus companheiros de ideologia qual era a melhor forma de conduzir a
emancipação.92 Aliás, ―liberal‖ configura-se como um elogio no romance. A doutrina
liberal, conforme a posição política defendida no periódico A actualidade (que contou com
Bernardo Guimarães como um de seus redatores) era essencial para o avanço do Brasil: ―o
88
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 113.
Ibidem, p. 113.
90
Ibidem, p. 113.
91
Ibidem, p. 114.
92
Conforme Dilermando Cruz, ―em 1859 [Bernardo Guimarães] passou a residir no Rio de Janeiro,
incumbindo-se da parte literária na redação da Actualidade, folha política, de doutrina liberal‖. Em 1884, ano
em que faleceu, Bernardo Guimarães era um dos colaboradores do Liberal Mineiro, um ―órgão do partido
liberal‖ em Ouro Preto. Observamos os exemplares de A actualidade (cujos textos em sua maioria não
apresentam autoria, todavia há nele muitas notícias sobre a província de Minas Gerais) referente ao período
em que nosso literato foi um dos redatores do periódico (1859-1860); com efeito, o debate político nele
impresso denotam ser ele de matriz liberal. Cf. CRUZ, Dilermando. Bernardo Guimarães: perfil bio-bibliolitterario. 2ª Ed. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1914, p. 21; ―Bernardo Guimarães‖.
Liberal Mineiro, ano 7, n. 28, Ouro Preto, MG, 11/03/1884, p. 1. APM, Jornais Mineiros; A actualidade (Rio
de Janeiro, 1859-1860). AEL/CECULT.
89
51
futuro pertence às idéias liberais‖;93 questão melhor explicitada em artigo publicado no
mesmo periódico de autoria de Francisco de Paula Ferreira e Costa. Conforme o articulista,
―o partido liberal, a idéia nova, representando a liberdade e a ordem, é a estrela que luz e
que mostra-se radiante nos horizontes da pátria, acenando-lhe um futuro de felicidades,
abrindo um campo livre e bem vasto ao progresso do povo brasileiro‖.94 Segundo Izabel
Andrade Marson, ―os abolicionistas – liberais autênticos – são homens bons, dedicados a
uma grande causa: emancipar todos os escravos do Brasil, cumprindo assim um ‗mandato‘
que a raça negra lhes conferiu, uma vez que a sociedade brasileira não permite que ela atue
em causa própria, nem pela lei, nem pela força‖. 95 Eis a proposta liberal emancipacionista
de Bernardo Guimarães e de outros bacharéis a exemplo de Silvio Romero, que assim
expôs a questão da emancipação dos escravos:
Quero a libertação dos escravos pelo meio prático de uma reductio ad
absurdum da escravidão, sem que para isto se lhe marque um prazo;
porque esta idéia foi repelida, e sem que seja necessário inverter a historia
de nossa civilização, que é uma civilização fundada pelos brancos e não
inventada pelos negros. Não exijo destes que renunciem e posterguem a
sua raça, mas deixem aos brancos o direito de também defenderem a sua.
Quero a libertação como o resultado de uma transformação orgânica da
sociedade, e não como um produto das declamações sem alvo do Sr.
Nabuco, ou uma inversão das teorias negristas; quero-a, como a devem
querer aqui os representantes do espírito civilizador europeu…96
Voltemos ao enredo romântico. Álvaro, o ―redentor‖ de Isaura, é o grande
protagonista do romance. Elemento que não podemos ignorar ao buscarmos compreender a
perspectiva antiescravista do literato, cujo mais conhecido romance indica que a extinção
da escravidão deveria se dá pelos meios tradicionais de concessão de alforrias, visando
garantir a ―gratidão‖ do liberto. A referida personagem era um emancipacionista, mas não
só de palavras, uma vez que ―consistindo em escravos uma não pequena porção da herança
de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos‖,97 com toda a prudência emancipacionista
não somente de ―filantrópico‖, mas também de um filósofo. Enfim, era um embate de
93
―A ideia liberal‖. A actualidade: jornal politilo, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 101,
29/09/1860, p. 1. AEL/CECULT.
94
COSTA, Francisco de Paula Ferreira e. ―O futuro do Brazil e o partido liberal‖. A actualidade: jornal
politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 100, 22/09/1860, p. 4. AEL/CECULT.
95
MARSON, Izabel Andrade. ―Liberalismo e escravidão no Brasil: Joaquim Nabuco e o jogo de temas,
argumentos e imagens na re(criação) do progresso‖. Revista USP, 17. São Paulo, mar./mai., 1993, p. 112.
96
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, pp. 202-203. Grifos nosso, exceto das
palavras em latim.
97
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114.
52
indivíduos de características bastante divergentes, cujo maniqueísmo romântico atribuía a
vitória ao ―bom‖ senhor liberal, culto e emancipacionista.98 A fortuna monetária era um
elemento comum aos rivais.
Os motivos do embate: razão, amor e caridade versus perversão senhorial
Também os motivos deste embate entre escravistas e emancipacionistas ligam-se
as características das personagens envolvidas no embate. Ambos lutavam por Isaura, ou
melhor, pelo seu destino. Leôncio pelo desejo de exercer – exageradamente – sua
prerrogativa senhorial sobre a gentil escrava, o que incluía usufruir sexualmente de seu
corpo, enfim, mantê-la num aviltante cativeiro. Mesmo que, para tanto, julgasse necessário
o emprego da força.99 Questão que, em 1883, o literato apresentou novamente aos seus
leitores. Trata-se da história de um senhor que, como Leôncio, também abandonou os
estudos, não possuindo também elevados dotes intelectuais:
Era de inteligência um pouco menos que medíocre: tanto assim, que
apesar de contar já os seus vinte e sete anos, apenas a custa de muito
patronato e de muito alisar os bancos da Academia tinha podido içar-se
até o terceiro ano. Se já era por natureza algum tanto avesso às letras, a
vida matrimonial, e a tal ou qual opulência [garantida pelo sogro], que
entrou a fruir, acabaram de lhe tirar completamente o gosto pelo estudo.
Perdeu o ano, e não pode fazer ato.100
Enfim, parece que para o narrador bernardino, certos comportamentos somente
ocorriam com indivíduos com determinado perfil, a saber, com uma preparação intelectual
mal sucedida (ou incompleta), que não gozavam suficientemente da razão (ciência).
Vejamos como agiu a referida personagem cuja história assemelha-se com a de Leôncio.
Tendo feito muitas promessas a uma jovem escrava – mucama de sua filha – que ―opunha
sempre a mais rude e obstinada negativa‖, passou aquele senhor a realizar intimidações
visando dobrar a firmeza da jovem:
Com as repulsas e esquivanças ainda mais recrudescia a febre de ardente
sensualismo que abrasava o sangue de Moraes; depois de ter empregado
98
Sobre o maniqueísmo de Bernardo Guimarães ver: MOISÉS, História da literatura brasileira, p. 486.
―Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da
violência‖. Cf. GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 39 e 95.
100
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 16.
99
53
em vão todos os meios de sedução ao seu alcance, lançou mão também
das mais terríveis ameaças.
— Si não cederes a meus desejos, Rozaura, — dizia-lhe ele nos
transportes de sua insensata e lasciva paixão, — vendo-te aí a qualquer
senhor libertino e sem coração, que fará contigo o que eu não posso, nem
tenho animo de fazer; que te amarrará de pés e mãos, e fará de ti o que
muito bem quiser.101
Maria Inês Côrtes de Oliveira, utilizando-se dos dados disponíveis nos
testamentos no que concerne ao reconhecimento de filhos de senhores com escravas,
menciona que um dos traços da sociedade escravista, cujo domínio era exercido pelo
homem, era que a escrava, além de explorada enquanto força de trabalho poderia, ser
também sexualmente explorada.102 Joaquim Nabuco, em 1870, ao fazer sua breve análise
sobre a ―mocidade‖ da escrava, destacou:
A escrava, essa, de quinze a dezesseis anos, às vezes antes, nos limites da
impuberdade, é entregue, já violada, às senzalas. Aquela nasceu
virtualmente sem honra. Ao alcance da primeira violência, sem proteção,
sem tribunal, sem família, sem lei para que apelar, que pode ela contra a
cilada? Não há para ela exemplo senão o da corrupção, e assim a moça de
quinze anos é logo a mulher pública da senzala. 103
Enfim, o que temos é o quadro do senhor degradado pelos vícios da escravidão,
que de forma ―criminosa‖ (como expôs Nabuco) possuía coragem para ―deflorar pobres
mulheres‖. 104 Questão para a qual os dotes físicos das escravas poderiam contribuir – ou
pretensamente justificar – como também ocorreu com Juliana, a mãe de nossa gentil
escrava Isaura:
Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama
favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, que como homem
libidinoso e sem escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua
disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascívia sobre a gentil
mucama. Por muito tempo resistiu ela as ameaças e violências. Tão torpe
e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar oculto aos olhos
de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto. 105
101
Ibidem, pp. 22-23.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio; Brasília:
CNPq, 1988, p. 68.
103
NABUCO, A escravidão, p. 51.
104
Ibidem, p. 42.
105
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 32-33.
102
54
Ou, ainda, com a ―escrava‖ Rozaura – na verdade uma jovem livre que tendo sido
batizada como filha de uma escrava que faleceu após o nascimento, foi escravizada – cujo
senhor, uma personagem bernardina que foi dada ao público em 1883, ―a força de
contemplar todos os dias as belezas plásticas da formosa Rozaura […] se foi deixando
arrastar por uma paixão insensata e frenética por ela‖. 106 Aliás, a imagem da mulata como
sensual e sedutora não se constituiu novidade na produção intelectual brasileira, a exemplo
da poesia ―A mulata‖ de autoria de Mello Moraes Filho, publicada em 1881, nos seus
Cantos do Equador,
Eu sou mulata vaidosa,
Linda, faceira, mimosa,
Quais muitas brancas não são.
Tenho requebro mais belos;
Se a noite são meus cabelos,
O dia é meu coração.
Sob a camisa bordada,
Fina, tão alva, arrendada,
Treme-me o seio moreno:
É como o jambo cheiroso,
Que pende ao galho frondoso
Coberto pelo sereno. 107
Sem dúvidas, senhores não faltaram que, como as personagens Leôncio e o
comendador Almeida, se seduziram pelos propalados ―encantos‖ das negras e mulatas. Tal
questão não escapou sequer aos olhos estrangeiros que por aqui passaram. Conforme a
parisiense Adèle Toussaint-Samson, que esteve no Brasil entre 1850 e 1862, ―muitos
homens acham belas essas negras [minas]‖, a despeito de a francesa julgar apenas ―mais
que um tipo bastante feio‖. Em suas memórias, publicada em 1883 (na França e no Brasil),
as negras tinham ―cintura bem-feita e muito arqueada e seu andar, de passo
desembaraçado, é sempre acompanhado de um movimento de quadris bem provocante‖.
Nas exageradas considerações de Adèle, ―não é raro ver estrangeiros, principalmente
ingleses, sustentá-las e fazer loucuras por elas‖. 108 Por mais exagero que possa ter nas
palavras de Adèle Toussaint-Samson, uma mulher branca, européia e letrada que conviveu
106
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 22.
MORAES FILHO, Mello. Cantos do Equador: sertões e florestas, nocturnos e phantasias, poemas da
escravidão. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1881, p. 53.
108
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro:
Editora Capivara, 2003 [1883], pp. 82-84.
107
55
com a família real brasileira (seu marido foi professor de dança das princesas imperiais),
que julgava que as negras ―depravam e envenenam a juventude do Rio de Janeiro‖; não
podemos ignorar a existência de comportamento senhorial como o descrito por ela, o que o
narrador bernardino buscava evitar.
Por outro lado, Álvaro, nossa liberal e emancipacionista personagem, movido por
sentimentos humanitários e uma nobre paixão, desejava livrar Isaura da escravidão e
esposar-se com ela: ―enquanto meu peito pulsar um coração, hei de disputar Isaura à
escravidão com todas as minhas forças, e espero que Deus me favoreça em tão justa e bela
causa‖, disse Álvaro, prosseguindo: ―hei de empregar todos os esforços ao meu alcance
para libertar a infeliz do afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não
somente um impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem pejo
o confesso‖.109
Enfim, em A escrava Isaura temos uma conhecida fórmula romântica cujos
enredos envolvem um herói e uma heroína, brancos, cultos e ―civilizados‖ (protagonistas),
pelos quais os leitores deveriam se comover e se identificar, e de outro lado um vilão (um
ser repulsivo que deveria ser detestado), que antagoniza uma história de amor marcada por
um obstáculo – a escravidão – que adia para os últimos momentos a união entre os
enamorados. Nesse sentido, temos uma técnica – ainda habitual – que busca prender a
atenção do leitor ao mesmo passo que procura lhes incutir valores morais: no romance
bernardino as características negativas do escravista acabaram por lhe ocasionar a ruína
moral e econômica, eis o ensinamento implícito em A escrava Isaura, como veremos no
capítulo posterior.
109
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 166-167.
RUÍNA ESCRAVISTA, VITÓRIA EMANCIPACIONISTA: A
ESCRAVA ISAURA E O ENSINAMENTO DO LITERATO SOBRE A
EMANCIPAÇÃO
Concluindo o capítulo anterior: a solução vitoriosa
As caracterizações e pretensões dos senhores/personagens que apreciamos no
capítulo anterior seriam suficientes para chegarmos a algumas considerações sobre a
mensagem posta por Bernardo Guimarães em A escrava Isaura. Todavia, nossas
considerações não ficariam completas sem compreender como nosso literato resolveu o
impasse entre as personagens. Portanto, vejamos como se forjou a vitória emancipacionista
(essencial para a concretização do amor entre Álvaro e Isaura) sobre a escravista no
romance de Bernardo Guimarães. O ―inculto‖ escravista Leôncio por
Seus desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e insensata
paixão por Isaura, fizeram-no perder de todo a cabeça, arrojando-se em
um plano inclinado de despesas ruinosas, sem cálculo nem previsão
alguma. Com os enormes dispêndios que teve de fazer em conseqüência
da fuga de Isaura, mandando procurá-la por todos os cantos do império,
acabou de cavar o abismo de sua própria ruína. Em pouco tempo o jovem
fazendeiro estava de todo insolvável, sem um real em caixa, e com uma
multidão de letras protestadas na carteira de seus credores. 1
Foram os custos com a fuga de Isaura que intensificaram os problemas financeiros
do escravista, que ainda via diminuir sua autoridade moral sobre os demais escravos. Tais
problemas são atribuídos ao caráter de Leôncio e de seu pai, o ―devasso‖ comendador.
Conforme é narrado,
a casa de Leôncio, já desde os últimos anos de vida de seu pai, ia em
contínuo regresso e desmantelamento. O velho comendador, entregandose no último quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na
mocidade são desculpáveis, vivendo quase sempre na corte, e deixando
quase em completo abandono a administração da fazenda, havia
esbanjado não pequena porção de sua fortuna. 2
Ademais, o romance foi escrito em 1874 – e publicado em 1875 –, portanto três
anos depois da Lei do Ventre Livre, período em que se destaca uma intensificação da fuga
1
2
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 228-229.
Ibidem, p. 228.
57
escrava. Questão relacionada ao uso, por parte dos escravizados, dos expedientes da
referida Lei como meio de barganha de melhores condições de existência e, sobretudo, da
liberdade.3 No entanto, Bernardo Guimarães opta – neste aspecto – por destacar os
―excessos e devassidões‖ da classe senhorial como comportamentos extremamente
prejudiciais na sociedade que ele buscou analisar e propor transformações/reformas. Em
romance anterior a A escrava Isaura, ele já havia destacado que ―excessos e devassidões‖,
―em todas as sociedades são sempre um princípio de desorganização‖. 4 Características que
como vimos estavam presentes no senhor Leôncio. Ademais, como vimos no capítulo
anterior, as frustradas investidas do pai de Leôncio em sua ―educação‖ também consumiu
uma parcela de sua fortuna. Mas, foi, principalmente, a manutenção da escravidão que
acirrou os problemas financeiros de Leôncio:
Por efeito da má administração, não só as safras começaram a escassear
consideravelmente, como também o número de escravos foi-se reduzindo
pela morte e pelas freqüentes fugas, sem que tanto o comendador como
seu filho deixassem de substituí-los por outros novos, que iam
comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado o ônus das dívidas.5
Em tal discurso fica implícito que sob o trabalho escravo as safras decresciam
causando prejuízos ao senhor que também possuía dificuldades em adquirir novos cativos.
Não podemos ignorar que tal questão era importante na segunda metade do século XIX –
quando o romance foi escrito –, especialmente em virtude do fim do tráfico internacional
de negros escravizados e o conseqüente encarecimento do trabalhador cativo. Os prejuízos
com a escravidão aumentavam em virtude do capital investido na compra de escravos,
questão também mencionada no já aqui referenciado artigo de Joaquim Caetano da Silva
Guimarães que julgava o trabalho escravo como improdutivo a ponto de, em algumas
situações, não compensar sequer o valor monetário pago no momento da compra do cativo.
Segundo Joaquim Caetano,
No tempo em que o africano custava cem oitavas de ouro, os fazendeiros
os compravam a prazo, e muitas vezes levavam dois ou três anos a fazer o
3
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990; SILVA, Eduardo. ―Fugas, revoltas e quilombos: os limites da
negociação‖. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 62-78.
4
GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, 194? [1871], p. 31.
5
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 228.
58
pagamento de um ou dois escravos; si o comprador não era econômico e
trabalhador, via-se na dura necessidade de restituir os mesmos escravos
para saldar sua dívida. A razão disto é clara: até a data da cessação do
tráfico o escravo ocupado na lavoura não produzia três por cento de seu
valor, não levando em conta a mortalidade, doenças, fugas, etc.6
Ao que tudo indica, no artigo intitulado ―Agricultura em Minas‖, o irmão de
nosso literato apresentou discussões que compactuavam com aquilo que Bernardo
Guimarães pensava, tendo o literato se servido das discussões em torno da emancipação
em sua província para escrever o romance. Provavelmente, o referido artigo chegou à
imprensa da Corte pelas mãos de Bernardo Guimarães, que então trabalhava na redação do
jornal A actualidade. No referido texto, há um discurso semelhante ao explicitado por
imigrantistas que alegavam a superioridade econômica do trabalho livre. Noção que,
provavelmente, o literato entrou em contato em São Paulo quando ainda era estudante,
tendo por base as iniciativas do senador Vergueiro, o que o próprio narrador bernardino
nos sugere, em 1883, no romance Rozaura, a engeitada, obra com certo tom de memórias
que relata momentos de personagens do curso jurídico de São Paulo de meados da década
de 1840, período em que nosso literato ingressou na Academia. A cidade de São Paulo,
conforme o narrador bernardino,
conservava ainda quentes as cinzas de Diogo Antonio Feijó, que ainda
escutava os ecos das vozes patrióticas e eloqüentes de Antonio Carlos e
Martins Francisco, e que ainda não pranteava sobre o túmulo de dois
ilustres cidadãos. Modelos venerados de patriotismo e virtudes cívicas, –
Vergueiro e Paula Souza.7
De feito, quando da estada do estudante Bernardo Guimarães em São Paulo, ainda
não se ―pranteava sobre o túmulo‖ do ―ilustre‖ senador Vergueiro, um dos pioneiros na
introdução de trabalhadores emigrados da Europa para o Brasil. Essa referência, de autoria
do próprio literato, sem dúvida, indica um pouco do contexto que o literato encontrou na
província de São Paulo: um contexto de debate imigracionista e de extinção do tráfico
internacional de negros escravizados. Foi justamente em 1847 – ano em que Bernardo
tornou-se bacharelando – que ―chegaram à fazenda Ibicaba, os primeiros imigrantes que se
estabeleceram como colonos para trabalhar na colheita do café, iniciando um
6
―Agricultura em Minas II‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
28, 15/06/1859, p. 3. AEL/CECULT.
7
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 7. Grifo nosso.
59
empreendimento que, em seguida, seria acatado por vários cafeicultores da Província‖. 8
Questão que certamente deve ter sido um aprendizado extracurricular de muitos
bacharelandos que, posteriormente – na década de 1870 –, se envolveram nos debates
emancipacionistas. Ademais, Vergueiro era considerado como ―um dos mais estrênuos e
leais defensores das idéias liberais‖, sendo seu pensamento elogiado por liberais
posteriores, inclusive no periódico A actualidade que, como já mencionamos, contou com
Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores.9
Tratemos da personagem que há tempos abandonamos. Álvaro, que já havia
emancipado seus escravos, ou seja, já havia adotado o trabalho livre em sua fazenda, não
conheceu redução de safra nem tampouco perdeu sua autoridade sobre seus libertos, que se
mantiveram em sua fazenda. É provável que tal solução tenha sido uma estratégia do
literato para demonstrar aos senhores a viabilidade da emancipação conduzida sob os
auspícios senhoriais, fundamental para manter a autoridade sobre os escravos/libertos.
Enfim, no discurso de Bernardo Guimarães, manter a escravidão não era moral e
economicamente viável. Voltemos à personagem Leôncio e sua ruína.
Para tentar resgatar Isaura, Leôncio – que, como vimos, já não gozava das
melhores condições financeiras – empenhou muitos de seus recursos, ―mandando procurála por todos os cantos do império‖, e ainda ofereceu generosa gratificação. Aliás, a própria
dimensão do texto do anúncio, assim como a gratificação oferecida, nada tinha de modesta.
Questão que certamente imputava-lhe não pouco dispêndio financeiro. Vejamos o
minucioso ―grande anúncio em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por
toda a cidade com o Jornal do Comércio‖,10 através da leitura da personagem Martinho:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de
Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura,
cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer
branca; olhos pretos grandes; cabelos da mesma cor, compridos e
ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e
bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe
esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno sinal preto,
acima do seio direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa
de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com
8
Sobre a imigração em São Paulo, com algumas referências ao senador Vergueiros, ver: SOUZA, Carolina
Lima de. ―As primeiras experiências com o trabalho livre imigrante em Campinas no século XIX‖.
Dissertação de Mestrado: IFCH/UNICAMP, 2008, especialmente, pp. 7-11.
9
―O senador Vergueiro‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 53,
24/09/1859, p. 1. AEL/CECULT.
10
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 141.
60
perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode
passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu
em companhia de um português, por nome Miguel, que se diz seu pai.
Quem a apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se lhe satisfazerem
todas as despesas, receberá a gratificação de 5:000$000.11
A gratificação oferecida foi bastante elevada (cinco contos de réis). Tal valor
correspondia a pelo menos 2,5% da fortuna de Leôncio cuja ―fazenda de Campos, com
escravos e todos o mais acessórios, não excederá talvez a duzentos‖ contos. Julgamos que
aqui, o literato enfatizou a questão do custo econômico para manter o regime servil. Num
período que historicamente se aproxima ao da narrativa de Bernardo Guimarães que se
passa ―nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,12 o alemão Eduardo Laemmert,
proprietário da Tipografia Universal, produziu anúncio no qual ofereceu gratificação para
quem apreendesse seu escravo de nome Fortunato que, além de cozinhar e entender de
―plantações da roça‖, sabia ―trabalhar de encadernador‖. Tanto o anúncio (em número de
caracteres) quanto a gratificação oferecida são singelos se comparado a recompensa
ficcional do romance de Bernardo Guimarães. Eis o anúncio de Laemmert:
CRIOULO FUGIDO.
RS. 50$000 DE ALVIÇARAS
Anda fugido, desde o dia 18 de Outubro de 1854, o escravo crioulo de
nome
FORTUNATO,
de 20 e tantos anos de idade, com falta de dentes na frente, com pouca ou
nenhuma barba, baixo, reforçado, e picado de bexigas que teve ha poucos
anos, é muito pachola, mal encarado, fala apressado e com a boca cheia
olhando para o chão; costuma as vezes andar calçado intitulando-se forro,
e dizendo chamar-se Fortunato Lopes da Silva. Sabe cozinhar, trabalhar
de encadernador, e entende de plantações da roça, donde é natural. Quem
o prender, entregar á prisão, e avisar na corte ao seu senhor Eduardo
Laemmert, rua da Quitanda n.º 77, receberá 50$000 de gratificação. 13
O anúncio de Eduardo Laemmert, por este ser o proprietário da Tipografia
Universal de Laemmert, certamente teve seu custo reduzido se comparado ao produzido na
ficção de Bernardo Guimarães. Leve-se ainda em conta que Laemmert produziu seu
11
Ibidem, p. 143.
Ibidem, pp. 21 e 228.
13
Crioulo fugido. RS. 50U000 de alviçaras. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1854. Fotoreprodução do documento (um folheto) é apresentada em: BN. Registros escravos: repertório das fontes
oitocentistas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional. Org. Lilia Moritz Schwarcz & Lúcia Garcia.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006, p. 126. A localização física no acervo da Biblioteca
Nacional é ICO, VOL 107.
12
61
anúncio em sua própria oficina resultando num menor custo. Nessa comparação –
permitida pela tentativa de criar um anúncio quase real da parte do literato – entre anúncio
ficcional e real, percebemos o tom desmedido da ação ficcional do escravista Leôncio.
Resultado: a ruína do escravista devido a uma vida desregrada e aos custos com a
manutenção da escravidão. Destacar que os custos com a vigilância e manutenção da
escravidão eram inviáveis foi também o expediente adotado, em 1871, por um panfletista,
ao referir-se às especulações de que com a extinção da escravidão, os ex-escravos se
entregariam à ociosidade:
Os senhores de terras, que têm estabelecimentos montados, engenhos,
etc., aliviados do peso imenso e improdutivo da fiscalização, vigia e
compressão dos trabalhadores, terão que exercitar e pois desenvolver
muito mais as suas faculdades, pensamentos e disposição industriais;
acostumar-se-hão a melhorar hábitos de ordem em vez dos de dissipação
do atual regime; e longe de esterilizarem-se nas ímprobas funções que
hoje exercem, virão a ser órgãos poderosos de produção.14
É significativo que no romance bernardino, a tentativa de capturar Isaura tenha
aumentado as dívidas do escravista Leôncio. Álvaro, senhor emancipacionista, por outro
lado, além de permanecer com sua fortuna, adquiriu todas as posses de seu rival –
incluindo Isaura que foi por ele libertada. Outros observadores também trataram das
vantagens monetárias que ocorreria com a emancipação, incluindo a possibilidade de
aumento de capitais que antes eram imobilizados com a compra de escravos, a exemplo do
Dr. Bezerra de Menezes. Para ele, ―não existindo a necessidade de empregar na compra de
novos escravos, as economias que realiza, pode ele [o senhor] empregá-las todas em um
fundo de reserva, que vai aumentando todos os anos o valor de sua fortuna e o patrimônio
de seus filhos‖.15 Questão que na prosa romântica deve ter favorecido à personagem
senhorial emancipacionista.
O generoso senhor Álvaro, com o objetivo de resgatar a gentil escrava do jugo da
escravidão – e com fundos disponíveis – adquiriu as posses do escravista que ―estava de
todo insolvável, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na
carteira de seus credores‖. Condição que tornava favorável a possibilidade de uma cruel
vingança por parte de Álvaro que por sua índole opta em não fazê-la:
14
15
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 23.
MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 11.
62
a despeito da aversão e desprezo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não
pretendia levar ao último extremo os meios de vingança, que por um
acaso as circunstâncias tinham posto em suas mãos. Era ele dez vezes
mais rico do que o seu adversário, e de muito bom grado, se não houvesse
outro recurso, por um contrato amigável daria uma soma igual a toda a
fortuna deste, pela liberdade de Isaura.
Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse
adversário caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro, sempre generoso,
nem por isso desejava vê-lo reduzido à miséria.16
Leôncio se suicidou momentos após tomar conhecimento de sua derrota buscando
manter o orgulho da condição senhorial que então lhe era arrebatada. Na opinião do
panfletista Luis Barbosa da Silva,
Em geral ignorante e embrutecido, o grande lavrador, além dos gozos
materiais não compreende e não aspira a outros que não os de pompa e
aparato. Com os maus hábitos do mando absoluto, a aparência do poder e
da força é o que mais lisonjeia-lhe a imaginação. 17
Manter-se escravista além dos prejuízos financeiros causava-lhe também o
inconveniente de diminuir sua autoridade sobre a mão-de-obra. Leôncio, que, devido a sua
educação, conheceu apenas os meios escravistas para manter sua autoridade, ao
compreender que não poderia mais adotá-los optou pelo suicídio:
— Senhor, — bradou Leôncio com os lábios espumantes e os olhos
desvairados, — aí tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança,
mas eu lhe juro, nunca há de ter o prazer de ver-me implorar a sua
generosidade.
E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contígua à sala.
— Leôncio! Leôncio!… onde vais! — exclamou [sua esposa] Malvina
precipitando-se para ele; mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu-se
a explosão atroadora de um tiro.
— Ai… — gritou Malvina, e caiu redondamente em terra.
Leôncio tinha-se rebentado o crânio com um tiro de pistola. 18
Para além dos problemas enfrentados por Leôncio, a vitória de Álvaro, o senhor
emancipacionista, pode ser atribuída à sua prudência emancipacionista, que lhe garantiu
vantagens morais e econômicas. Como já havia destacado em meados de 1869 o jurista e
deputado Perdigão Malheiro, ―qualquer providência mal pensada, ou simplesmente
16
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 229.
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, pp. 14-15.
18
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 232. Grifo nosso.
17
63
precipitada, extemporânea [relativa à questão do elemento servil], pode causar, além de
uma incalculável desordem econômica, estremecimento nas famílias e na ordem publica,
cujas perigosas conseqüências não podem deixar-se temer‖.19 Talvez, tendo em conta uma
interpretação semelhante, nosso literato construiu uma ―sensata‖, ―inteligente‖ e
―prudente‖ personagem emancipacionista que,
conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta
submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos
em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a
um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes
vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A
fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles [os
libertos] sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só
preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham
segura a subsistência e podiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que
fizera com a sua emancipação.20
Tal compreensão não se constituía novidade. Aqui novamente, podemos retomar o
texto sobre a ―Agricultura em Minas‖ de autoria do irmão de nosso literato. Para ele,
―libertar um escravo é o mesmo que abandoná-lo aos seus vícios, e por conseguinte à
miséria; é uma ação imprudente, que não se pode qualificar de generosidade, é antes um
erro contra a experiência de todos os dias, que só a fraqueza pode aconselhar‖.21 Ao que
tudo indica, Bernardo Guimarães esteve atento às discussões em torno do ―elemento
servil‖, todavia não as apropriou inadvertidamente; pelo contrário fez uma leitura que via a
emancipação como uma tarefa que seria positiva à sociedade, desde que ―bem‖
encaminhada pela classe senhorial. Para sanar o ―problema‖, mencionado por seu irmão,
em sua obra colocou uma emancipação onde o liberto permaneceu sob a tutela senhorial,
preservando os libertos de se entregarem ―à ociosidade, ao vício e ao crime‖.
Perceba-se que as vantagens do processo de emancipação promovido pela
personagem Álvaro eram bastante amplas, abarcando do escravo ao senhor. Um tipo de
emancipação que era defendida por aqueles que julgavam que ela deveria ocorrer ―sem
dano para a nação‖, concepção na qual, ―libertar somente o escravo, é pois, um grande mal
19
Considerações realizadas, em cinco de julho de 1869, em virtude da discussão de uma proposta de lei que
visava proibir a ―venda de escravos em leilão‖. Cf. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs.
Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 3, 1869, p. 52. BPEB,
Periódicos Raros.
20
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114. Grifo nosso.
21
―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
34, 06/07/1859, p. 3. AEL/CECULT.
64
para a nossa sociedade e até para o próprio escravo‖; julgava-se necessário ―regras para se
obter a regeneração moral da raça, na pessoa de seus membros que passarem a gozar da
liberdade‖. 22 Para a prudente personagem emancipacionista as vantagens foram
essencialmente duas: evitou os custos com a manutenção da escravidão e vigilância sobre
os escravos – elementos que ampliaram as dificuldades do escravista Leôncio – bem como
garantiu sua autoridade moral sobre os ex-escravos. O que aflora no romance é a defesa do
protagonismo senhorial no processo de emancipação. Atente-se para que Isaura somente
foi libertada por Álvaro após este adquirir sua posse:
se esse algoz [Leôncio] ainda há pouco tinha em suas mãos a tua
liberdade e a tua vida, e não as cedia senão com a condição de desposasse
um ente disforme e desprezível, agora tens nas tuas a sua propriedade;
sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas, Isaura, tu és hoje a
senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há de recorrer à
nossa generosidade.23
Álvaro, de posse da fortuna de seu rival – o que incluía Isaura –, doou tudo à dócil
e educada escrava, tornando-a livre. É importante atentarmos para o fato de que, quando o
romance foi escrito, por Lei o senhor era obrigado a conceder alforria ao escravo que lhe
apresentasse seu valor, o que acirrou os conflitos entre senhores e escravos. Elemento que,
mesmo implicitamente, é retratado no romance de Bernardo Guimarães (o pai da
personagem Isaura, se propôs a pagar pela alforria da filha tendo recebido negativas de
Leôncio e seu pai, situação que acabou por ocasionar a fuga da escrava). A solução
apresentada pelo narrador bernardino para evitar tais situações era a classe senhorial atuar
como emancipacionista e assim obter a ―gratidão‖ do ex-escravo. O que foi praticado pela
personagem Álvaro e ignorado por Leôncio. Nessa história de conflitos entre personagens,
parece-nos que Bernardo Guimarães tenha, de alguma forma, adotado uma missão literária
que foi explicitada, em 1847, num periódico editado pelos acadêmicos paulistas (entre eles
nosso romancista), no qual o literato é exposto como um ―juiz imparcial‖ a quem cabe
julgar a sociedade, pensando em seu futuro:
Exprimindo a realidade do passado e do presente [o romancista] examina
os passos, que o homem tem dado nestas duas idades, analisa as
condições da existência de uma seção da sociedade, nossos sentimentos
22
23
MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 18.
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 231.
65
para reproduzir e comentar: e cercando de uma aureola brilhante a pureza
dos costumes de uma classe e de um individuo, e ferindo com a critica
severa do juiz imparcial a adoção de usos que a superstição, o prejuízo e a
ignorância arraigaram em seu animo absolve ou condena o passado; julga
o presente, prepara e purifica o futuro.24
Ao atribuir a vitória do senhor emancipacionista sobre o escravista, nosso literato,
também ele bacharel em direito, proferiu sua sentença que se desenrola em sua proposta
emancipacionista, na qual a figura senhorial era tida como peça principal. Provavelmente
por isso, nosso literato buscou ―iluminar‖ a mente dos senhores de escravos de que estava
em suas mãos – e era de seu incontestável interesse – realizar a emancipação, evitando sua
ruína moral e econômica.
Emancipar, um desígnio senhorial
Libertar Isaura para a personagem Álvaro ―foi uma missão santa, que julgo ter
recebido do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado. Deus enfim,
por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida, e esmaga o algoz‖. 25 Ademais, o
narrador do romance, de maneira teleológica, considerou que emancipar Isaura foi um
desígnio divino para o senhor emancipacionista:
O espírito de Álvaro firmou-se por fim na íntima e inabalável convicção
de que o céu, pondo em contato o seu destino com o daquela encantadora
e infeliz escrava, tivera um desígnio providencial, e o escolhera para
instrumento da nobre e generosa missão de arrebatá-la à escravidão, e
dar-lhe na sociedade o elevado lugar que por sua beleza, virtudes e
talentos, lhe competia.26
Atente-se para o fato de que Isaura merecia a liberdade por ―sua beleza, virtudes e
talentos‖, elementos que eram provenientes de seus aspectos fisionômicos brancos, questão
que trataremos mais detidamente no capítulo posterior, especialmente por ser um elemento
também explícito em outra obra que será nosso foco. A questão posta no romance não é a
escravidão, mas a escravidão de indivíduos dotados de nobres características, como Isaura,
que deveriam ser ―premiados‖ com a liberdade; nesse sentido, é significativa a ocultação
que o enredo romântico confere aos demais escravos, aos típicos escravos negros que
24
―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos,
1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, p. 7. AEL/CECULT.
25
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 231.
26
Ibidem, p. 226.
66
povoaram as fazendas brasileiras. Enfim, a questão da manutenção da escravidão de Isaura
era ―a impropriedade de sua presença naqueles lugares‖, para colocarmos a questão nas
palavras de José de Alencar. O literato se referia a Alice, filha de um comendador, que
então se ocupava dos preparativos para as festas de finais de ano. Como também –
implicitamente – fez Bernardo Guimarães, Alencar sugeriu que a beleza de características
européias deveria ser destinada às salas e salões. Como lemos logo nas primeiras páginas
do segundo volume do romance,
aqueles olhos azuis de uma luz tão cintilante; os cabelos de ouro riçados
em diadema; o níveo colo, cuja nascença se debuxa sob o talho afogado
de um vestido de seda cor de cinza; e sobretudo a mão pequenina,
melindrosa e afilada; são para a janela da rica sala, e não a porta da
copa.27
Voltemos ao ―desígnio‖ senhorial.
O comportamento emancipacionista (de Álvaro), ao que tudo indica, julgou-se
que deveria ser imitado: ―seja embora eu o primeiro a dar esse nobre exemplo, que talvez
será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto enérgico e solene contra a bárbara e
vergonhosa instituição‖, disse Álvaro, a respeito de sua ação emancipacionista, ao expor
seu julgamento a respeito do regime servil. 28 Tais representações e enredo do literato ligase à lei do ventre-livre, ou melhor, a uma oposição do literato a um dispositivo legal que
oficialmente buscava regular as relações entre senhores e escravos. A referida lei não foi
bem aceita pelos senhores, que acusaram o governo imperial de interferir nas relações
escravistas violando o direito de propriedade e de desorganizar o trabalho. No comentário
do narrador do romance O tronco do Ipê (1871), de autoria de José de Alencar, que havia
ocupado o cargo de Ministro da Justiça e questionava a atuação do governo na ―questão
servil‖,29 ―há tanto ministro leviano hoje em dia‖. 30 Ademais, tais senhores defendiam uma
27
ALENCAR, José de. O tronco do Ipê. vol. 2. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871, pp. 5-6. Grifo nosso.
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 168.
29
Em discurso na Câmara dos Deputados, realizado no dia 10 de julho de 1871, José de Alencar se
pronunciou nos seguintes termos: no país, ―se notava o movimento lento, mas seguro e eficaz da ideia da
emancipação voluntária‖, lamentando ter sido ―nessas circunstancias que o nobre presidente do conselho [de
ministros] […] promoveu a apresentação de uma proposta que vai abalar profundamente a sociedade‖. Para
ele, ―uma ideia funesta, que é a do ventre livre, contra a qual me empenharei com todas as forças, por que
entendo que há de ser fatal […] e há de produzir calamidades capazes de apavorar o próprio governo‖. Cf.
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta legislatura.
Sessão de 1871. Tomo 3. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1871,
pp. 87, 88-89.
30
ALENCAR, O tronco do Ipê, vol. 1, p. 135.
28
67
emancipação ―conduzida pelos mecanismos tradicionais de concessão de alforrias‖, como
forma de garantir uma ―transição ordeira‖, que mantivesse a autoridade (ex)senhorial sobre
a mão-de-obra liberta.31 Tal foi a oposição na província do Rio de Janeiro que, no ano
seguinte a aprovação da Lei, o presidente da província, em seu relatório apresentado à
Assembléia Provincial destacou que, a despeito dos receios, a referida lei era favorável à
classe senhorial. Talvez tenha tentado convencer os senhores de tal assertiva. Para ele,
A Lei de 28 de Setembro do ano passado, que se dizia fonte e origem de
violentas e tremendas perturbações da ordem publica, tem sido executada
sem o menor abalo; e aqueles que se receavam de suas disposições, vão
reconhecendo que, além de darem a melhor e mais conveniente solução à
questão social que nos afrontava, asseguram elas instrumentos de
trabalho da lavoura e legitimaram o seu emprego. Os perigos que se
atulhavam eram imaginários e vãos: a Província não sofreu em sua
tranqüilidade. 32
Julgou que a legislação emancipacionista de 1871 buscava assegurar
―instrumentos de trabalho da lavoura‖ naquele contexto de discussão sobre a extinção do
―elemento servil‖; e não abalar o domínio senhorial. Julgou que os senhores não tinham
motivos para recear das disposições postas na lei. Como vimos, no entanto, a despeito da
retórica dos defensores da lei do ventre-livre, a emancipação ideal apresentada na história
romântica de A escrava Isaura foi pautada na ação senhorial, não uma emancipação
conduzida pelo controle do Estado. Desde que era apenas uma proposta, a possibilidade de
tal controle já era visto com temores; e continuaria a preocupar muitos senhores mesmo
depois do projeto transformado em Lei. Com o dispositivo legal de 1871, já promulgado, o
enredo romântico bernardino indicou que o melhor caminho era os próprios senhores
realizarem a emancipação. Em relatório, referente ao ano de 1873, apresentado à
Assembléia Geral Legislativa, José Fernandes da Costa Pereira Junior, ministro da
Agricultura, destacou que ―as manumissões voluntarias continuam em larga escala. Por
toda a parte o sentimento público presta homenagem de sua aprovação à acertada
31
Sobre a oposição dos senhores a Lei ver, por exemplo: para a província da Bahia, FRAGA FILHO, Walter.
Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2006, pp. 49 e 117; para o município de Campinas, província de São Paulo, CANO,
Jefferson. ―Liberdade, cidadania e política de emancipação escrava‖. Revista de História, n. 136. São Paulo:
USP, 1º Sem., 1997, p. 115; e, para o império com o enfoque para o sudeste, MAESTRI, Mário. Uma
história do Brasil: Império. 3ª Ed. São Paulo: Contexto, 2002, p. 141.
32
Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na primeira sessão da
décima nona legislatura no dia 29 de setembro de 1872 pelo presidente Conselheiro Josino do Nascimento
Silva. Rio de Janeiro: Typographia Perserverança, 1872, pp. 14-15. Grifo nosso.
68
providência com que o legislador fez secar a fonte da escravidão no Império‖. Para a
referida autoridade, as manumissões realizadas por particulares significavam uma
aprovação às iniciativas do Estado em virtude da lei. 33 Todavia, tal iniciativa pode ter
significado justamente o contrário: uma emancipação promovida pela lei não era
necessária, já que os senhores estavam realizando a emancipação, eis um recado que pode
ter sido implícito nas referidas emancipações. Aliás, José de Alencar, em 13 de julho de
1871, ao protestar contra aquilo que chamou de ―grande calamidade social, que, sob a
máscara da lei ameaça a nação brasileira‖, argumentou que ―a causa da emancipação
espontânea há muito que está vencida no coração do povo brasileiro‖.34
Nem mesmo indivíduos que defenderam a ação do Estado para a realização da
emancipação deixaram de pôr tal iniciativa como uma ação senhorial (pelo menos
simbolicamente). Joaquim Manuel de Macedo, literato e historiador que gozava de
proximidade com a família imperial, justificou que a iniciativa do Estado para a causa da
emancipação era um clamor da classe proprietária. Segundo ele,
Sob as apreensões de uma crise social iminente, infalível, que a todos há
de custar direta ou indiretamente onerosos sacrifícios, o povo brasileiro, e
particularmente os lavradores, esperam ansiosos, entre os receios por
certo justificáveis e clamores que se explicam sem desar, o
pronunciamento legal e decisivo da solução do problema da emancipação
dos escravos.35
Tendo publicado sua obra, em 1869, propôs uma ―emancipação gradual iniciada
pelos ventres das escravas, e completada por meios indiretos no correr de prazo não muito
longo, e diretos no fim desse prazo com indenização garantida aos senhores‖. Proposta que
então era discutida por estadistas. Ciente de que ocorreria oposição, Macedo colocou sua
proposta de ação do Estado como uma reivindicação senhorial, destacando que as medidas
que ambicionava ver transformadas em Lei era um anseio da classe senhorial; o literato pôs
– simbolicamente – o controle do processo nas mãos da classe proprietária. Nem a
aprovação da Lei, nem tampouco sua execução, foi unanimidade para os senhores, pelo
contrário; os debates parlamentares em torno das propostas de emancipação são
33
Relatorio apresentado á Assembléa Geral Legislativa na terceira sessão da décima quinta legislatura pelo
Ministro e Secretario de Estado dos Negocio da Agricultura, Commercio e Obras Publicas José Fernandes
da Costa Pereira Junior. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1874, pp. 4-5.
34
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta
legislatura. Sessão de 1871. Tomo 3, pp. 133 e 139.
35
MACEDO, As vítimas-algozes, p. 7. Grifo nosso.
69
significativos da oposição em torno de uma emancipação guiada por lei, tida por alguns,
como o literato e deputado José de Alencar, como um elemento que acabaria por ―violar o
asilo do cidadão, perturbar a paz das famílias e espoliar uma propriedade‖.36 Debates que
fizeram um cronista da época ter uma visão irônica e curiosa a respeitos dos deputados que
deles participaram:
Quer na primeira, quer na segunda, quer na terceira discussão do projeto
semelhava-se mais a dita Câmara a um quintal de colégio em hora de
recreio, do que a um parlamento.
Ainda bem que no Senado não aconteceu o mesmo! Aí foi a matéria
discutida com verdadeira calma e sabedoria. E pode-se dizer, sem receio
de errar, que qualquer dos discursos nele proferidos valeu mais que todos
os da outra Câmara reunidos. 37
Com a Lei aprovada, a oposição a iniciativa do Estado não cessou, ocorrendo
inclusive casos de autoridades responsáveis pela sua efetivação que se recusavam a pô-la
em prática, o que ia desde a não realização – de forma intencional – da matrícula, como
mencionou Sidney Chalhoub;38 até casos de juízes que se recusaram a cumprir as
obrigações que a lei lhes incumbia. Em 1885, por exemplo, Francisco de Araujo de Aragão
Bulcão, juiz de órfãos da comarca de Santo Amaro na província da Bahia, ausentou-se do
termo ―para não dar audiência na qual devia entregar cartas [de] liberdade‖. 39 Joaquim
Manuel de Macedo, conhecendo os paradigmas da sociedade em que vivia, tentou evitar o
conflito entre os senhores e o Estado, buscando ―iluminar os proprietários de escravos e
convencê-los de que está em seus próprios interesses auxiliar o Estado na obra imensa e
escabrosa da emancipação‖; compreendeu que ―o costume e o interesse do senhor hão de
disputar ao Estado a opressão e o domínio do escravo‖. 40 Buscou evitar tal disputa,
apresentando uma proposta na qual o Estado e a classe proprietária atuassem juntos.
Para alguns, o projeto de lei foi visto com temores, tido como elemento que
poderia perturbar a ordem vigente, ao interferir na autoridade senhorial. Temores que
36
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta
legislatura. Sessão de 1871. Tomo 3, p. 139.
37
―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 4, n. 194, Rio de Janeiro, 16/09/1871, p. 710. BN, Periódicos
Digitalizados.
38
CHALHOUB, Machado de Assis, historiador.
39
Telegrama do Dr. Mendes ao presidente da província da Bahia, Santo Amaro, BA, 09/12/1885; e Carta de
Vital Ferreira, juiz de direito da comarca de Santo Amaro, ao presidente da província da Bahia, Santo
Amaro, BA, 15/12/1885. Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivos Coloniais e
Provinciais, Série Judiciário, Correspondência recebida dos juízes, Santo Amaro, maço 2588 (1876-1885).
40
MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9.
70
inclusive ocasionaram boatos cujos resultados poderiam ser trágicos. No relatório do chefe
de polícia da província fluminense, datado de 31 de julho de 1871, por exemplo, foi
mencionado o boato de que ―os escravos pertencentes aos estabelecimentos agrícolas, se
sublevassem nas noites de Santo Antonio, S. João e S. Pedro‖. Para a autoridade policial,
tais boatos ―eram espalhados por espíritos tímidos, algum tanto impressionados pelas
questões que se agitam no parlamento acerca do elemento servil‖. 41 Talvez, tais ―espíritos
tímidos‖ e ―impressionados‖ fossem na verdade contrários ao projeto de emancipação do
governo e julgassem que tal discussão, em torno da emancipação no parlamento, poderia
provocar agitação nas senzalas.42 Numa crônica publicada em A vida fluminense de nove
de setembro de 1871, quando ―a questão do dia e da noite é ainda […] o projeto do
gabinete de 7 de Março sobre o elemento servil‖, o cronista ironizou os opositores do
projeto e suas falácias em torno de uma eminente ―revolução‖ em virtude da proposta de
Lei. Em suas palavras,
dizem os jornais pela pequena boca que a revolução está roçando
lugubremente nos alicerces de nossa sociedade. Fala-se em motins dos
negros e no terror dos fazendeiros, etc.
O – O que é certo é que cada vez são surrados com mais garbo os pobres
diabos na casa de detenção, e os anúncios de ―negros fugidos‖
multiplicam-se como os peixes do Evangelho.43
Enfatizar que ocorreria ―desordem‖ ao retirar o ―poder‖ senhorial em conceder
alforria, foi um recurso utilizado por aqueles que defenderam a manutenção da autoridade
senhorial. Em tal discurso, a ordem só seria possível com a manutenção da obediência e
41
―Relatorio do Chefe de Policia‖, 31/07/1871. Anexo ao Relatorio com que o Conselheiro Theodoro
Machado Freire Pereira da Silva presidente da provincia do Rio de Janeiro passou a administração da
mesma ao exmo. sr. Dezembargador Manoel José de Freitas Travassos em 15 de março de 1871. Rio de
Janeiro: Typographia de Quirino e Irmão, 1871, pp. 3-4.
42
Para alguns, a própria idéia de discutir questões relacionadas ao ―elemento servil‖ poderia ―assustar o
país‖, como considerou, em 1869, o deputado Gomes de Castro sobre uma proposta para a realização da
matrícula dos escravos no Império. ―Vamos assustar o país, concluiu ele‖ ao mencionar que a questão da
―matéria é grave; […] envolve duas questões máximas da atualidade, a questão do imposto e a questão do
elemento servil‖. Em 10 de julho de 1871, o deputado Perdigão Malheiro também realizou considerações
semelhante: ―se a simples apresentação da proposta já tem produzido tão profundo abalo na sociedade, o que
não aconteceria se semelhante projeto fosse convertido em lei?‖. Cf. Annaes do Parlamento Brazileiro.
Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1869. Tomo 2. Rio de
Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1869, p. 194; Annaes do Parlamento
Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: terceiro anno da decima-quarta legislatura. Sessão de 1871. Tomo
2. Rio de Janeiro: Typografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1871, p. 52. BPEB, Periódicos
Raros.
43
―A vida fluminense‖. A vida fluminense, ano 4, n.193, Rio de Janeiro, 09/09/1871, p. 702. BN, Periódicos
Digitalizados.
71
―fidelidade‖ do negro (escravo, livre ou liberto) para com a classe proprietária. Os
conflitos entre autoridade do Estado e autoridade senhorial, paradoxalmente não escaparam
ao texto da Lei do ventre-livre. No quarto artigo, do dispositivo legal que visava regular a
relação entre senhores e escravos, deixou margem para o exercício da autoridade senhorial:
―é permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações,
legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e
economias‖.44 Tal questão reforça que a redação do texto final da Lei foi marcada por
disputas em torno do governo dos escravos, tendo seus adversários – apesar da aprovação
do projeto – conseguido vencer alguma barganha.
Com a Lei aprovada, a oposição à ―intromissão‖ do Estado na relação senhorescravo não cessou, a despeito das afirmações dos ministros da agricultura que destacavam
que ―a execução da lei de 28 de setembro de 1871, não tem encontrado embaraços por
parte da população‖. Em 1874, conforme dados do ministro José Fernandes da Costa
Pereira Junior, 49 municípios não haviam encaminhado os dados da matrícula dos escravos
(ou, talvez, sequer tenham realizado a matrícula como exigia a lei). Conforme o ministro,
as faltas com a lei ocorriam também no tocante ao fundo destinado à emancipação que não
havia sido aplicado em muitos lugares. No entanto, fez questão de enfatizar que tal
ocorrência era devida à falta de pessoal para a aplicação da lei. Tentou afastar a
possibilidade da existência de má vontade para com a emancipação,45 o que o caso do juiz
baiano, ocorrido em 1885, acima citado representa. Em 1876, outro ministro da agricultura,
Thomaz José Coelho de Almeida, reconheceu que havia embaraços para a realização da
emancipação proposta na Lei, também destacando o pouco efetivo para realização da
matrícula dos escravos e ingênuos e composição de ―juntas de classificação dos escravos‖;
todavia com a ânsia em afirmar que nada houve de intencional:
Entretanto, comprazo-me em poder declarar que não consta nenhuma
falta intencional de matrícula de ingênuos; e as informações de que a
Secretária de Estado se acha de posse dizem positivamente que as faltas
provém, ou das causas já apontadas ou de ignorância, e não do
propósito de prejudicar a liberdade.46
44
―Lei n. 2.040 – de 28 de Setembro de 1871‖. In: Collecção das Leis do Imperio do Brasil. Tomo XXXI,
Parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1871, p. 149. Grifo nosso.
45
Relatorio apresentado á Assembléa Geral Legislativa na quarta sessão da decima quinta legislatuura pelo
Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas José Fernandes
da Costa Pereira Junior. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1875, pp. 6 e 7.
46
Relatorio apresentado à Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro da Agricultura Thomaz Jose Coelho
de Almeida na segunda sessão da 16ª legislatura, 1876, Sem mais referências, p. 12. Grifo nosso.
72
A despeito das justificativas dadas pelos ministros a respeito das dificuldades
encontradas para a efetivação da Lei, temos que considerar que houve uma oposição real (e
intencional) a uma emancipação conduzida por iniciativa do Estado. Chalhoub, servindo-se
de documentos da diretória da agricultura – do ministério da agricultura –, indicou que
houve sim resistência à aplicação da referida Lei.47 Podemos considerar que a iniciativa
senhorial na concessão de alforrias – expostas como exemplo por Bernardo Guimarães em
A escrava Isaura e em outra história romântica publicada em 1871 48 – pode ter sido um
exemplo desta obstrução – intelectual – da Lei, mesmo que nem todas as ações deste
gênero possam ser consideradas sob esse prisma.
Emancipação e manutenção da ordem senhorial
A emancipação posta no romance bernardino ocorre na mais completa e perfeita
ordem através da ação senhorial. Os negros libertados por Álvaro permaneceram em sua
fazenda, escolha na qual ―preservavam-se de entregar à ociosidade, ao vício e ao crime‖
bem como ―podiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação‖.
Com tal discurso, implicitamente rejeitava a necessidade de leis que regulassem o processo
de extinção do regime servil, bastando que os senhores atuassem como emancipacionistas
a exemplo da personagem Álvaro. A questão implicitamente colocada foi a ―benignidade‖
da escravidão brasileira como sugeriu José de Alencar no romance O tronco do Ipê. Na
narrativa publicada em 1871, ao ser mencionada a festa ―permitida‖ aos negros, que
trajavam ―suas roupas de festa‖, em virtude dos festejos do natal, uma das personagens fez
a seguinte declaração: ―eu queria […] que os filantropos ingleses assistissem a este
espetáculo para terem o desmentido formal de suas declamações, e verem que o proletário
de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso escravo‖. Questão que logo obteve uma
consideração afirmativa de uma ―nobre‖ e ―inteligente‖ personagem que havia estudado
em Paris: ―a miséria das classes pobres na Europa é tal, que em comparação com elas o
escravo do Brasil deve considerar-se abastado‖.49
Outros literatos, pelo contrário, serviram-se de enredos românticos para
demonstrar a inviabilidade duma emancipação conduzida pela classe senhorial. Conforme
47
CHALHOUB, Machado de Assis, historiador.
Referimo-nos a ―Uma história de quilombolas‖ incerta nas Lendas e romances cuja publicação foi anterior
a aprovação da Lei do Ventre-Livre.
49
ALENCAR, O tronco do Ipê, vol. 2, pp.125-126.
48
73
Chalhoub, no contexto das discussões que levaria à lei de 28 de setembro de 1871,
Machado de Assis reivindicava que o poder privado dos senhores deveria ser submetido ao
domínio da lei. No conto ―Mariana‖, publicado em janeiro de 1871, ele enfatizou os
sofrimentos de uma escrava tratada ―quase‖ como um membro da família; um recurso para
demonstrar que o fim da escravidão deveria se dar pela intervenção do Estado; os senhores,
em sua perspectiva, não eram aptos a conduzir a emancipação.50 A personagem/escrava
Mariana após apaixonar-se pelo senhor moço e não ser correspondida praticou duas fugas
cuja última encerrou-se com o seu suicídio, após trágica ação senhorial na tentativa de
recapturá-la e reconduzi-la àquela escravidão que se considerava benigna. 51 Como veremos
no capítulo posterior, pelo contrário, em 1870, Bernardo Guimarães produziu uma
narrativa – publicada em 1871 – na qual, de forma semelhante a exposta em A escrava
Isaura, a emancipação ocorria perfeitamente, e sem embaraços, dentro da ordem
escravista.
Ao propor que os senhores imitassem a atuação de Álvaro, o narrador bernardino
talvez tenha adotado um recurso expresso em periódicos emancipacionistas, a saber,
elogiar a concessão de alforrias na tentativa de torná-la uma prática senhorial. Conforme
Robson Luís Machado Martins, para alguns, o método ideal para se extinguir a escravidão
era através da concessão de alforrias, que eram divulgadas em periódicos, como exemplos
a serem seguidos, buscando demonstrar que o Estado não necessitava intervir na questão
servil: defendiam uma solução senhorial. Tática utilizada por emancipacionistas capixabas,
paulistas e fluminenses.52 Tal ação poderia servir ainda ao propósito de criar uma
representação de caridosa para a classe senhorial. Atitude, aliás, ironizada por Machado de
Assis em crônica datada de 15 de junho de 1877. Para ele, ―os filhos do Evangelho
inventaram a caridade nas gazetilhas‖. 53 Com efeito, Álvaro é representado como uma
generosa e caridosa figura, diferente de Leôncio que na verdade é tido como representativo
de um desvio moral e intelectual.
Ademais, no romance de Bernardo Guimarães temos ainda uma personagem
bacharel em direito que, mesmo com relacionamento estreito com Álvaro, o senhor
50
CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 136-137 e 162-164.
ASSIS, Machado de. ―Mariana‖, jan., 1871. In: Contos de Machado de Assis, v. 5 (política e escravidão).
Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de janeiro: Record, 2008, pp. 67-88.
52
MARTINS, Robson Luís Machado. ―Os caminhos da liberdade: abolicionistas, escravos e senhores na
província do Espírito Santo, 1884-1888‖. Dissertação de Mestrado: UNICAMP, 1997, capítulo 3: ―A reação
dos senhores: alforrias e a abolição‖.
53
ASSIS, Machado de. ―História de 15 dias‖, 15/06/1877. In: Obra completa, v. 3. Org. Afrânio Coutinho.
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, pp. 367-369.
51
74
emancipacionista, que tinha por ele mais afeto e intimidade que a outros amigos, não
propôs nenhuma ação judicial em favor da liberdade da dócil escrava. A alegação
pretendida por Álvaro era de que a mãe de seu rival ―criou-a com todo o mimo, e a quem
ela deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas,
que por sua morte a deixaria livre‖, todavia, a ―generosa‖ senhora faleceu sem deixar
testamento. Geraldo então adverte seu amigo: ―se nada tens de valioso a apresentar em
favor da liberdade de tua protegida, ele [Leôncio] tem o incontestável direito de reclamar e
apreender a sua escrava onde quer que se ache‖.54 Mesmo com todo o sofrimento que
Geraldo conheceu ser a vida de Isaura perceba-se que o direito de Leôncio, o senhor
escravista, foi tido, pela personagem, como ―incontestável‖.
No diálogo entre Álvaro e Geraldo, o advogado, discute-se também a questão das
leis e conseqüentemente da ―intervenção‖ do Estado no tocante à escravidão – mesmo sem
especificar o dispositivo legal que estava em vigor desde 28 de setembro de 1871, afinal, o
enredo romântico se passa em meados do século XIX, quando tal dispositivo não existia.
Em meio às alegações de Álvaro quanto aos excessos e abusos cometidos por Leôncio e a
possibilidade de utilizá-los a favor de Isaura, o doutor, que é caracterizado como
inteligente, firme, esclarecido, sincero e nobre, faz a seguinte declaração:
meu caro Álvaro; esses excessos e abusos devem ser coibidos; mas como
poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico,
e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abomináveis e
hediondos mistérios, a que a escravidão dá lugar, não se passam por esses
engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os
vizinhos, deles tenham conhecimento?…55
Para a personagem Geraldo, a escravidão era uma questão de foro privado, apesar
de apresentar-se contrário a essa instituição. Sobre os abusos do escravista considerou:
―enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos. Uma instituição má produz
uma infinidade de abusos, que só poderão ser extintos cortando-se o mal pela raiz‖. 56 No
romance, Geraldo é a encarnação da sensatez, era contra a escravidão quanto era a favor de
uma solução senhorial para extingui-la. Sua caracterização certamente denota um pouco da
posição do literato a respeito da escravidão e a forma que julgava ideal para extingui-la. Na
descrição do narrador, Geraldo
54
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 117 e 164-165. Grifo nosso.
Ibidem, p. 165. Grifos nosso.
56
Ibidem, pp. 165-166.
55
75
Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente
conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que
cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate,
firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza,
davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. 57
Sua relação com Álvaro criava um elemento favorável às duas personagens e à
perspectiva de emancipação que resulta dos diálogos e divergências entre os amigos.
Conforme o narrador bernardino,
Seu [de Geraldo] espírito prático e positivo, como deve ser o de um
consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às insinuações e
mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em
completo antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu
amigo [Álvaro]; mas esse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a
recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes para
alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas
relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais
por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o
que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se
comunicarem, enjoadas de tanto se dizerem – amém, – ver-se-ão forçadas
a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra;
plácida, cômoda e sonolenta amizade!… De mais, a contrariedade de
tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos,
modificando-se e temperando-se uma pelas outras. É assim que muitas
vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam de
corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.58
Nem o radicalismo antiescravista (abolicionismo e seu ―desrespeito‖ à
propriedade) tampouco o apego demasiado à escravidão foram defendidos por Bernardo
Guimarães. A emancipação que garantiu a vitória moral e econômica de Álvaro – que
possuía cunho passional e racional simultaneamente – pode ser entendida como um
resultado de seu diálogo com o Dr. Geraldo. ―É do choque das idéias que sai a luz da
verdade‖, destacou outro indivíduo que se envolveu nos debates em torno da emancipação:
―é no desencontro das opiniões individuais, que se pode basear a síntese de um verdadeiro
sistema, que aproveite a humanidade‖.59 Talvez, tal característica ―prudente‖ tenha sido um
aprendizado extracurricular dos acadêmicos de direito (da personagem e do literato).
Conforme Sérgio Adorno,
57
Ibidem, p. 117.
Ibidem, pp. 117-118. Grifo nosso.
59
MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 3
58
76
o principal legado que a Academia de Direito de São Paulo transmitiu a
seus filhos foi o de um aprendizado que não encontrou espaço nas salas
de aula; o aprendizado de que o segredo da harmonia da vida civil e
política residia na descoberta de pontos de equilíbrio entre radicalismos
contrapostos, entre os avanços da história e a precaução própria aos
espíritos ―práticos e reflexivos‖.60
Não sem razão, a personagem Álvaro (ex-acadêmico de curso jurídico), que foi
descrito como ―abolicionista exaltado‖,61 ao libertar seus escravos o fez com toda a
prudência emancipacionista (ou de ―abolicionista moderado‖) que já apresentamos. Ao que
parece, o literato apresenta uma proposta de conciliação. Voltemos ao diálogo. Diante da
negativa do doutor, quanto à possibilidade de uma ação judicial em favor da liberdade de
Isaura, Álvaro declara:
A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na
face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo
enxergo para levar a esse ponto o respeito por um procedimento absurdo,
resultante de um abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado.
Seja embora o primeiro a dar esse nobre exemplo, que talvez será
imitado. Sirva ele ao menos de um protesto enérgico e solene contra uma
bárbara e vergonhosa instituição. 62
Não pense, no entanto, apesar do discurso exposto pela personagem Álvaro, que o
desfecho da história se dá com a extinção da escravidão de Isaura e dos demais escravos
emancipados através de leis (da intervenção do Estado), pelo contrário, os dois casos de
emancipação ocorridos no romance se dão pela ação direta de um senhor (Álvaro) que é
representado como um exemplo a ser seguido. A própria personagem senhorial imaginava
que poderia ser imitada em sua ação antiescravista como temos explicito no romance.
Poder-se-ia argumentar que se referindo aos ―primeiros anos do reinado do Sr. D.
Pedro II‖, Bernardo Guimarães não poderia apresentar uma proposta de emancipação
realizada através de leis (nesses tempos isso não existia). No entanto, o tempo histórico da
narrativa foi uma escolha do literato que poderia ter optado por tantos outros momentos da
história do Brasil. Talvez para dar à sua obra características históricas mais verossímeis o
literato tenha escolhido aquele tempo, no qual o governo imperial não buscava ―intervir‖
60
ADORNO, Os Aprendizes do Poder, p. 159.
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114.
62
Ibidem, p. 168. Grifo nosso.
61
77
na relação entre senhores e escravos. Tal escolha pode referir-se ao processo de
emancipação defendido pelo literato. Ademais, atente-se para o fato de o narrador ser
declaradamente contemporâneo ao período do lançamento do livro (meados da década de
1870), ou seja, narra a história sob a perspectiva e preocupações de seu tempo. No
romance, o narrador logo declara: ―era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,63
indicando se tratar de uma narrativa posterior aos acontecimentos narrados.
A respeito da proposta emancipacionista posta no romance, perceba-se ainda que
o argumento apresentado pela personagem Álvaro ao seu amigo bacharel, ao julgar que
poderia recorrer judicialmente em favor da liberdade de Isaura, nada mais era do que uma
reivindicação para que fosse cumprida a prerrogativa senhorial – mesmo depois da morte –
em alforriar seu escravo. Eis o argumento:
Isaura tem-me contado toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e
talvez provar direito à liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor,
a qual criou-a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação,
tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por sua morte a
deixaria livre; a morte súbita e inesperada desta senhora, que faleceu sem
deixar testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda entre as garras do
mais devasso e infame dos senhores. 64
Diante do argumento explicitado acima, a personagem emancipacionista pretendia
que Isaura fosse ―mantida em liberdade, e que lhe seja nomeado curador a fim de tratar do
seu direito‖. Enfim, como argumentamos, a trama posta no romance se antepõe à
legislação emancipacionista de 1871: defendia a prerrogativa senhorial em conceder a
liberdade. A proposta de ação judicial, neste sentido, não seria considerada uma
intromissão na vontade senhorial de Leôncio, que então se encontrava na posse ―ilegal‖ (ou
ao menos imoral) de Isaura; mas sim para que fosse comprida a vontade (prerrogativa) de
sua mãe que em vida era na prática a senhora da dócil escrava. Aliás, a própria prerrogativa
senhorial da mãe de Leôncio foi muitas vezes usurpada por seu filho e pelo comendador,
seu marido. Conforme foi narrado,
a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu testamento a fim de
garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o
comendador, auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos,
conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável e santo desejo de
63
64
Ibidem, p. 21. Grifo nosso.
Ibidem, p. 164.
78
sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataque de paralisia geral,
ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só momento de lucidez e
reanimação para expressar sua última vontade. 65
A imprudência escravista, que sequer levou em consideração os desejos de sua
mãe em alforriar Isaura, se liga aos elementos que acirraram os problemas do escravista
Leôncio: se tivesse libertado Isaura, ou permitido que sua mãe o fizesse, teria evitado a
quebra de sua autoridade moral (pela fuga de Isaura) e os dispendiosos esforços financeiros
em sua busca pela escrava. Mas como suas características e seu histórico escolar sugerem,
ele não tinha elevados dotes intelectuais para permitir-lhe perceber o quanto a escravidão
lhe era prejudicial. Se tivesse conduzido o processo de emancipação principiado por sua
mãe talvez tivesse evitado sua ruína. Para Álvaro, o escravista Leôncio
mancha a sua vida com uma nódoa indelével conservando na escravidão
essa mulher [Isaura]; cospe o desrespeito e a injuria sobre o túmulo de
sua santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero
essa escrava, para torná-la digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não
para satisfazer aos caprichos de V. Sª. Ela por certo lá do céu, onde está,
o maldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem
que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes,
prendas e beleza.66
É importante destacarmos que a progenitora de nosso perverso e irracional senhor,
agiu de forma tradicional nos moldes senhoriais ao indicar que Isaura ficaria livre por sua
morte. Era este um momento no qual o escravo poderia ter reconhecida sua obediência,
recebendo a alforria. O reconhecimento da autoridade senhorial, que não faltava em Isaura,
era um dos elementos que credenciavam o escravo à liberdade. A possibilidade da alforria,
conforme Márcio de Sousa Soares, ―era um elemento basilar nas políticas de domínio que
os senhores engendraram no intuito de obter o maior sucesso possível no governo dos
escravos‖.67 Foi com pesar, para o narrador e algumas personagens, que a emancipação
principiada pela velha senhora não ocorreu; afinal, elementos que habilitavam a escrava à
vida em liberdade não faltaram em sua caracterização (era branca, obediente, educada, ou
seja, satisfazia as expectativas senhoriais do ―bom‖, ―dócil‖ e ―fiel‖ escravo). Se tal
emancipação tivesse sido concretizada, no entanto, ficaria inviabilizado o enredo
65
Ibidem, pp. 36-37.
Ibidem, pp. 192-193.
67
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos
Campos dos Goitacases, c.1750-c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, pp. 85, 103 e 122.
66
79
romântico – ao menos como o conhecemos – já que estaria cessado o grande obstáculos à
felicidade de Isaura.
A imprudência escravista de Leôncio certamente não lhe foi muito proveitosa
tanto moralmente quanto economicamente, eis a mensagem posta no romance. Conforme
Arethuza Helena Zero, ―além das fugas representarem um mau exemplo aos escravos não
fugitivos, causavam prejuízos econômicos‖. 68 É importante destacarmos que Álvaro, o
senhor emancipacionista, é o grande protagonista da história da emancipação no romance,
ou seja, aquele que imprime as características do desfecho da trama: uma emancipação
prudente, ordeira e economicamente viável. O desfecho do romance, com a vitória do
senhor emancipacionista, configura-se como mais um ensinamento liberal: os mais hábeis
e preparados como Álvaro sobressairiam na sociedade pós-escravidão. A disputa entre as
personagens é significativa para compreendermos o pensamento liberal de uma parcela da
sociedade que julgava se preparar para novos tempos, os tempos ―competitivos‖ – também
para os senhores – de uma sociedade não-escravista.
Outros indivíduos, também, reconheceram que a escravidão era uma questão
econômica, a exemplo do literato Joaquim Manuel de Macedo que, em uma passagem de
sua nota ao leitor de As vítimas-algozes, asseverou que
a emancipação imediata e absoluta dos escravos, que aliás pode vir a ser
um fato indeclinável e súbito na hipótese de adiamento teimoso do
problema, e provocador do ressentimento do mundo, seria louco arrojo
que poria em convulsão o país, em desordem descomunal e em soçobro a
riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota o Estado. 69
Ou, ainda, para o deputado Gomes de Castro que, em 21 de junho de 1869, em
discussão sobre uma proposta para a realização de matrícula especial dos escravos
existente no Império, destacou a imprudência econômica da proposta que estipulava
liberdade para os escravos não matriculados e imposto de 500 rs. por escravo maior de dez
anos. Para o deputado,
vamos assustar o país (apoiados, muito bem) com essas medidas parciais
e indiretas, que não resolvem a questão, e apenas servem para depreciar o
capital que possuímos […].
68
ZERO, Arethuza Helena. ―O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888)‖.
Dissertação de Mestrado: IE/UNICAMP, 2004, p. 38.
69
MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9.
80
[…] é necessário que os representantes da nação ataquem o problema de
frente, e o resolvam de maneira condigna de sua ilustração, e compatível
com os legítimos interesses do país; mas não devemos minar essa
propriedade, que, com pesar confesso, é a fortuna de todos, […] de um
modo sutil e sorrateiro.70
Todavia, na literatura foi Bernardo Guimarães quem se serviu deste debate na
tentativa de convencer a classe senhorial ao enfatizar a vitória da personagem
emancipacionista. Joaquim Manuel de Macedo, a saber, optou por destacar a vingança
escrava como meio para ―iluminar os proprietários de escravos e convencê-los de que está
em seus próprios interesses auxiliar o Estado na obra imensa e escabrosa da
emancipação‖.71 Como já mencionamos, a emancipação para Macedo era uma tarefa do
Estado (através de uma lei) em que a classe senhorial deveria ―auxiliar‖, ao contrário da
perspectiva de Bernardo Guimarães cuja emancipação era tida como uma tarefa para a
classe senhorial. Macedo buscou uma emancipação em que o Estado e a classe proprietária
atuassem juntos, resultando num processo ―com a menor soma possível de sacrifícios‖.
Proposta que foi justamente a intenção do visconde do Rio Branco, conciliar o interesse
dos senhores com o interesse público, ao lutar por uma emancipação lenta e gradual
através de aparatos legais.72
Bernardo Guimarães e a lei do ventre-livre
Realizada nossas considerações, precisamos ressaltar que, no romance A escrava
Isaura, Bernardo Guimarães não tratou explicitamente da lei que então regulava a extinção
do ―elemento servil‖. Em 1882, no entanto, saudou-a (em verso) pelo seu mérito em
relação à ―emancipação da prole das escravas‖, inclusive, seguindo as concepções
históricas de sua época, atribuiu tais transformações aos grandes vultos (ao visconde do
Rio Branco e ao monarca D. Pedro II) que por sua sabedoria ―não mais nascerão escravos‖,
―sobre o solo brasileiro‖. Em seu ―Hino à lei de 28 de setembro de 1871‖, datado de 28 de
setembro de 1882, publicado no livro Folhas de outono, colocou a extinção da escravidão
70
Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados: primeiro anno da decima-quarta
legislatura. Sessão de 1869. Tomo 2, 1869, p. 194. Grifo nosso.
71
MACEDO, As vítimas-algozes, p. 9.
72
CARNEIRO, Édison. ―A lei do Ventre-livre‖. Afro-Ásia, 13, 1980, p. 22. Suspeita-se que As vítimasalgozes foi produzida sob encomenda do próprio imperador para ―preparar o ‗espírito‘ dos senhores para a lei
do Ventre Livre‖. Cf. AMARAL, ―Emancipacionista‖, pp. 200-210; e, ainda, TRÍPOLI, Mailde Jerônimo.
―Imagens, máscaras e mitos: o negro da literatura brasileira no tempo de Machado de Assis‖. Dissertação de
Mestrado: IEL/UNICAMP, 1997, pp. 87-88.
81
como tarefa dos grandes homens. Conhecendo a perspectiva posta em seu mais conhecido
romance, temos que considerar que em tal Hino tenha Bernardo Guimarães apresentado
mais do que um simples elogio ao monarca e ao visconde. Vamos ao hino em sua íntegra:
Quebrou-se a tremenda algema,
Que o pulso do homem prendia,
E resolveu-se o problema
Que tanto horror infundia.
Esta data gloriosa
Em letras de ouro grava:
— Em nossa pátria formosa
Não nasce mais prole escrava.
Na terra da liberdade
Destruiu-se o jugo vil;
Onde impera a cristandade,
Não há mais raça servil.
Esta data gloriosa, etc.
Graças ao sábio Monarca,
Da nação chefe eminente,
Não há mais do escravo a marca
No Brasil independente.
Esta data gloriosa, etc.
De Rio Branco à memória
Rendamos eterno culto;
Ergam-se hosanas de glória
A seu venerado vulto.
Esta data gloriosa, etc.
Ao Estadista eminente
Erga a pátria este padrão:
— No Brasil independente
Extirpou a escravidão.
Esta data gloriosa, etc.
Destruiu cruel vexame,
Que tanto nos humilhava;
Apagou labéu infame,
Que a fonte nos malsinava.
Esta data gloriosa, etc.
Da liberdade ao ruído,
Ante a nova geração,
82
É uma voz sem sentido
A palavra — escravidão.
Esta data gloriosa, etc.
Não mais nascerão escravos
Sobre o solo brasileiro;
Não mancha a terra dos bravos
O estigma do cativeiro.
Esta data gloriosa
Em letras de ouro grava:
— Em nossa pátria formosa
Não nasce mais prole escrava.73
Na poesia acima, Bernardo Guimarães sugeriu que, com a lei do ventre-livre, já
estava extinta a escravidão no império. Segundo Joseli Nunes Mendonça, em 1871, a lei,
que eliminou o nascimento de escravos no Brasil, foi vista como perturbadora da ordem e
―contra os direitos dos proprietários‖. Já nos momentos de discussão da libertação dos
sexagenários, nos anos de 1884 e 1885, os mesmos que fizeram oposição à lei de 1871 se
apegaram a ela para evitar novas leis que regulassem as relações entre senhores e
escravos.74 Nesta conjuntura, buscou-se impedir a criação de novas leis emancipacionistas.
Em 1882, chegou-se até a cogitar a formação de um ―novo partido‖ para coibir tais ações:
―fala-se na corte na formação de um partido, composto por liberais e conservadores, para
opor-se a idéia da ampliação, que porventura pretenda-se dar á lei de 28 de setembro‖.75
Também no início da década de 1880, Silvio Romero, que também se pronunciou contra
uma emancipação organizada pelo Estado, argumentou que ―depois da lei de 28 de
setembro de 1871, a escravidão é um fenômeno mórbido, uma instituição que vai morrer,
uma arvore daninha a que se cortaram as raízes‖. 76
Os opositores de novas ―intervenções‖ do Estado na ―questão servil‖
argumentavam que a lei 28 de setembro de 1871 era suficiente para extinguir a
escravidão.77 Bernardo Guimarães foi além, para ele com aquela lei já estava extinta a
73
GUIMARÃES, Bernardo. Folhas de outono, 1883 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org.
Alphonsus de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959), pp. 381-382.
74
MENDONÇA, Joseli Nunes. Entre a mão e os anéis: a leis dos Sexagenários e os caminhos da abolição
no Brasil. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp. 122-123.
75
―Novo Partido: Lê-se no Diario de Noticias‖. Echo Sant’amarense, ano 1, n. 166, Santo Amaro, BA,
15/01/1882, p. 2. BPEB, Periódicos Raros.
76
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 192.
77
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 48; COSTA, A abolição, pp. 59, 81 e 89.
83
escravidão. Teria Bernardo Guimarães que, em 1875, defendeu o protagonismo senhorial,
utilizado tal tática ao, em 1883, publicar seu elogio ao monarca, ao visconde do Rio
Branco e à lei de 1871? Não temos registros históricos suficientes para uma afirmação
categórica; todavia, a referência indireta que o literato fez ao referido dispositivo legal (na
década de 1870), bem como sua defesa da lei no ano de 1883 sugerem uma resposta
afirmativa. O literato não viveu ao ponto de ver promulgada a lei de 28 de setembro de
1885, pois faleceu em 10 de março de 1884, todavia, decerto, acompanhou debates em
torno da ―necessidade‖ de novas leis que regulassem o processo de transição do trabalho
escravo ao livre. Como vimos, ele não julgou que o melhor caminho para a emancipação
fosse através de intervenções do Estado. Provavelmente, julgou necessário coibir novas
leis emancipacionistas; já que, para ele, a lei de 1871 já havia ―decretado‖ o fim da
escravidão. De modo geral, podemos considerar que havia muitas semelhanças das
formulações de Bernardo Guimarães com as considerações de Silvio Romero publicadas
na Revista Brazileira em 1881 na qual considerava que
O melhor meio de acabar com a escravidão não é formular projetos
absurdos e combinações legislativas engenhosas. O melhor meio de
acabá-la é cerceá-la, pô-la em estado de sítio, estabelecer com ela a
concorrência, torná-la inútil, e depois impossível. É fazer crescer a seu
lado o trabalho livre, mais fecundo, e depois mais fácil, mais barato; é,
em uma palavra, matá-la economicamente. Aquele órgão se atrofiará por
falta de função. Não será preciso, portanto, pedir ao governo que decrete
leis contra a escravidão.78
Também da década de 1880 é o romance Rozaura, a engeitada, no qual no último
capítulo do primeiro volume, o narrador bernardino apresenta considerações que indicam
referir-se a lei do ventre-livre. Trata-se de uma breve passagem na qual é exposta uma
senhora/personagem que vivia da venda da cria de escravas. A referida personagem ―era
tida em conta de uma boa e honesta senhora, reputação que devia talvez mais aos seus
haveres do que a qualidades reais‖. Para o narrador, ―o amor ao dinheiro, o desejo de
engrossar cada vez mais o seu já sofrível mealheiro, era o móvel principal de todas as suas
ações‖. Vivia ela com o lucro que obtinha com o trabalho de sete escravas que herdou de
um irmão juntamente com os produtos (aguardente, fumo, quitanda) da quinta que
possuía.79 Todavia, seu maior lucro provinha de um ―viveiro de escravos‖:
78
79
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 196. Grifo do original.
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, pp. 249-250.
84
Um lucro porém mais avultado lhe provinha das sete escrava; ha doze ou
quatorze anos, que lhe pertenciam, estas escravas tinham dado já umas
vinte e tantas crias lindas e vistosas, as quais logo que chegavam à idade
de dez anos, a boa mulher tratava de vender pelo melhor preço que podia.
Seu estabelecimento bem se podia chamar um viveiro de escravos. Na
época em que nos achamos, já ela havia melhorado consideravelmente o
estado de sua burra, e tinha a casa cheia de uma chusma de crianças da
mesma procedência e condenados ao mesmo destino. Parece que ela
conhecia um anexim egoístico e desumano de nossos antepassados, que
diz: crioulos criá-los e vendê-los, – e sabia executá-lo à risca.80
Ao lermos tais críticas, devemos considerar que se tratava de outro momento,
quando a lei do ventre livre já estava em vigor há mais de uma década e já se cogitava a
criação de uma nova lei emancipacionista. Ademais, temos que considerar que criticar uma
ação não significa necessariamente que se considere que o Estado deva intervir para sanála. Nesse sentido, a proposta emancipacionista de A escrava Isaura – que mesmo
discordando da existência da escravidão, tem sua ―extinção‖ colocada como ação privada a
ser exercida pelo senhor – é significativa. Ademais, no próprio romance que retiramos a
citação posta acima, houve personagens que, ao tentar liberta uma escrava (vítima da dona
do ―viveiro de escravos‖), agiram de maneira tradicional, tentando comprá-la para depois
alforriá-la.81 Nem mesmo em ―Uma história de quilombolas‖, publicada em 1871 – quando
a emancipação era uma pauta de muitos intelectuais – Bernardo Guimarães se referiu
explicitamente à proposta de emancipação do governo. No segundo volume de Rozaura, a
engeitada, o narrador apresenta ainda a história de uma personagem que, tendo nascido de
pais livres, foi submetida ao cativeiro. No romance é reivindicada a liberdade de Rozaura
justamente por sua condição de nascimento: ―partus ventrem sequitur‖, ―a cria segue a
condição da mãe‖, 82 eis o que é indicado na história que, neste quesito, se aproxima da
concepção do romance publicado em 1875.
80
Ibidem, p. 250.
Na obra, publicada em 1883, só foi cogitada a possibilidade de recorrer à justiça para tentar provar a
condição de nascimento livre da ―escrava‖, cuja mãe era livre por nascimento. Todavia, foi uma ação de
outra personagem que tomou conhecimento da história da ―escrava‖. Cf. GUIMARÃES, Rozaura, a
engeitada, vol. 2.
82
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2.
81
ANSELMO, UM CAPITÃO-DO-MATO EMANCIPACIONISTA:
REPRESSÃO E ALFORRIA NA LITERATURA ROMÂNTICA
BERNARDINA
Para além de A escrava Isaura
A escrava Isaura não foi o único romance em que Bernardo Guimarães tratou da
escravidão; sendo mais vasto seu repertório de personagens que se envolveram em
conflitos em torno da emancipação e do controle dos escravos, a exemplo de Anselmo que
é uma das personagens – mais precisamente o herói romântico – de ―Uma história de
quilombolas‖ publicada, em 1871, no volume Lendas e romances.1 Obra que, ao que tudo
indica, não foi muito valorizada pelo mercado editorial, tendo o literato, provavelmente,
conhecido uma única edição.2 Mailde Jerônimo Trípoli julgou ser possível que ―Uma
história de quilombolas‖ tenha sido esquecida devido à transgressão do literato que trouxe
para o centro da ação ―personagens só permitidas na periferia‖. 3 Com efeito, negros e
quilombolas ocupam o centro da ação, todavia, como veremos, a ótica e o desfecho da
história condizem com a perspectiva senhorial. Outras versões existiram a respeito do
insucesso das Lendas e romances. Em 1914, Dilermando Cruz, biógrafo do poeta e
romancista Bernardo Guimarães, destacou:
Dificilmente, vendo-se a brochura, poder-se-há supor que se trate de um
livro em que se encontram tão interessantes trabalhos.
Imagine o leitor que a brochura, em sua capa azul, de ordinaríssimo papel
igual ao que é usado geralmente nas capas dos roes de roupa servida, não
tem, sequer, o nome do autor nem o título do livro!!
Pelo tipo das letras, pela impressão, pelo papel empregado, vê-se logo
que esse livro foi impresso ha muitos anos, e talvez não tenha tido outras
edições precisamente por ter sido impresso de tal forma que, colocado
nas vitrines, à vista do publico, este não poderá jamais supor que ele seja
o magnífico trabalho que é, e escrito por quem foi.
Um livro bem impresso tem meio sucesso garantido, e as ―Lendas e
Romances‖ de Bernardo Guimarães bem mereciam maior cuidado na sua
feitura material. 4
1
No referido volume constam ainda as seguintes narrativas: ―A garganta do inferno‖ e ―A dança dos ossos‖.
Cf. GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 5-105.
2
No derradeiro ano do século XIX houve uma ―Nova edição‖ também pela Casa Garnier. O literato faleceu
em 10 de março de 1884 na província de Minas Gerais.
3
TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖.
4
CRUZ, Bernardo Guimarães, p. 159.
86
As considerações do biógrafo sugerem que a referida obra tenha caído num certo
esquecimento devido à sua péssima composição material. Indica também que o exemplar
que se encontrava em suas mãos era a primeira edição publicada pelo editor Baptiste Louis
Garnier. Conforme o biógrafo,
a Casa Garnier, nesse particular, não é das mais zelosas; livros há de
Bernardo Guimarães, dos quais o sr. Garnier é editor-proprietário, se não
nos enganamos, e nos quais apenas se lêem estas palavras nas suas
respectivas capas: – Nova edição – mas não diz se é 2.ª, 3.ª, 4.ª, ou que
edição é. 5
Deixemos, no entanto, os problemas editoriais referentes à apresentação do
volume que, sem dúvidas, é, entre os livros de Bernardo Guimarães, um dos menos
conhecidos, não tendo sequer recebido comentários de Silvio Romero, um importante
crítico de finais do século XIX, que apenas o listou entre os livros do poeta e romancista,
ao contrário do que fez a respeito de A escrava Isaura.6 A despeito das considerações de
Dilermando Cruz temos que considerar que outros elementos foram importantes para o
esquecimento desta e de outras obras do literato. É provável que as Lendas e romances
tenham caído no esquecimento devido ao grande sucesso editorial de A escrava Isaura,7
que teria recebido uma ―edição magnífica: bom papel, feitura artística, impressão nítida e
revisão mais ou menos cuidada‖. 8 Conforme Alfredo Bosi, o romance A escrava Isaura
teve ―popularidade‖ devido ao problema explicitado, a escravidão.9 Esse que é o seu mais
conhecido romance logo seria comparado a um importante romance antiescravista
estadunidense: ―A Escrava Isaura pode bem rivalizar com a célebre Cabana do Pai
Thomaz‖, assim, foi anunciada a obra no Jornal do Comércio de 29 de maio de 1875;10
notícia que, como muitas outras, após a morte do literato, foram reunidas por José Maria
Vaz Pinto Coelho e publicadas no volume Poesias e romances do Dr. Bernardo
Guimarães (1885) pela tipografia de Laemmert (Rio de Janeiro).
5
Ibidem, p. 157.
ROMÉRO, Sylvio. Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II (1830-1877). Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1888, pp. 958-959.
7
ROLIM, Anderson Teixeira. ―Bandidos e santos: um diálogo literário‖. Dissertação de Mestrado:
PPGL/UEL, 2005, pp. 52-53.
8
CRUZ, Bernardo Guimarães, p. 158.
9
BOSI, História concisa da literatura brasileira, p. 143.
10
Apud COELHO, José Maria Vaz Pinto. Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães. Rio de Janeiro:
Typographia Universal de Laemmert & C., 1885, p. 153. BN, Livros, I,260,2,4.
6
87
As características físicas do volume A escrava Isaura é mais um indício que foi
publicado para ser consumido por classes mais abastadas da sociedade. Com as Lendas e
romances a história não foi diferente. Em 1873, exemplares do referido livro eram
vendidos por 3$000 em versão encadernada e 2$000 em brochura. 11 É provável que ao
oferecer duas opções de venda para a referida obra, o editor Garnier estivesse se ajustando
aos novos tempos de um mercado editorial de edições mais baratas, todavia sem abandonar
seu tradicional público de edições melhor elaboradas. Conforme Alessandra El Far,
tratando da década posterior ao lançamento das Lendas e romances,
uma obra destinada ao povo variava de $100 (cem réis) a 1$ (mil réis) ou
2$ (dois mil réis), conforme o número de páginas, o tratamento editorial e
o gênero em questão, enquanto o romance vendido pela Garnier girava
em torno de 3$ (três mil réis) e 4$ (quatro mil réis), e até mais,
dependendo do tipo de encadernação.12
Ademais, talvez, ao produzir um ―romance histórico‖, nosso literato tenha
explicitado o público leitor por ele almejado, ―a classe elevada‖. Em novembro de 1847,
nos Ensaios Litterarios – periódico que, como já mencionamos, contou com a colaboração
de Bernardo Guimarães – foi destacada a diferenciação entre romance de imaginação (ou
ficção) e o romance histórico que ―concentra sua atenção num fato, e faz reflexionar sobre
ele‖;13 bem como sugeriu para que público recaia cada uma das formas do romance.
Questão que talvez tenha sido um aprendizado para os acadêmicos que adentraram ao
mundo das letras. Conforme o articulista, o romance de ―imaginação‖ ou ―ficção‖
é por sua essência mais adequada à classe proletária, que balda de
instrução aprecia mais a ficção do que a realidade, e muitas vezes
confunde aquela com esta. Sem educação literária ela não tem dados para
a justa apreciação de fatos comentados pelo romancista histórico, e no
entretanto que a ficção é para ela um deleite, em que expande-se sua alma
e coração, porque não lhe falta imaginação antes lhe sobra.
O romance da vida real [histórico] é porem de mais sólida instrução e
mais agradável e adequado a classe elevada da sociedade do que o
romance todo fictício.14
11
Tais valores são mencionados na primeira edição em volume de O indio Affonso (1873).
EL FAR, ―Livros para todos os bolsos e gostos‖, p. 333.
13
―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos,
2ª série, n. 1 (dezembro). São Paulo, 1847, p. 10. AEL/CECULT.
14
―Breves considerações sobre o romance‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de Academicos,
1ª série, n. 3 (novembro). São Paulo, 1847, p. 6. Grifo nosso. AEL/CECULT.
12
88
A saber, em ―Uma história de quilombolas‖ o literato retratou o período préindependência do Brasil, quando Minas Gerais, onde se passa a história, era ainda uma
capitania, em finais do período colonial. A despeito desta provável tentativa do editor em
atingir um público mais amplo, a julgar pelo discurso em torno da questão do elemento
servil (discurso essencialmente direcionado à classe senhorial) o literato ao escrever tal
história com um cunho histórico teve seu próprio público em mente. ―Uma história de
quilombolas‖ (inclusa nas Lendas e romances) foi publicada justamente no ano em que foi
promulgada a lei que ficou conhecida como do ―ventre-livre‖, tendo sido sua publicação
efetivada antes dela. Em 29 de junho de 1871 – três meses antes da promulgação da
referida lei – foi anunciada sua publicação no Jornal do Comércio:
A pena elegante e o fulgente engenho do Dr. Bernardo Guimarães são tão
conhecidos, que anunciar uma obra dele é alvoroçar quantos prezam as
boas letras. Agora mesmo temos diante dos olhos mais um livro deste
autor, de quem apenas se pode sentir que não sejam mais amiudadas as
produções. Intitula-se Lendas e Romances e contém três contos de vivo
interesse: Uma História de Quilombolas, A Garganta do Inferno e A
Dansa dos Ossos. É editor o Sr. B. L. Garnier.15
Todavia, diferentemente de Machado de Assis que naquela conjuntura destacou a
incapacidade senhorial para conduzir a emancipação,16 nosso literato apresentou uma
narrativa na qual a emancipação ocorria – de forma bem sucedida – sob os auspícios da
ordem escravista (como também ocorreu no romance A escrava Isaura, publicado em
1875). Tal história estava, assim como muito do que se produziu no império de finais de
1860 a meados da década seguinte, relacionada ao embate – em pauta, não somente no seio
parlamentar, mas também na imprensa e na literatura – em torno da ―melhor‖ forma para
se conduzir a emancipação, quando uma das questões discutidas era evitar as propaladas
insurreições escravas. Aliás, em sua província natal, no ano em que foi publicada ―Uma
história de quilombolas‖, o vice-presidente Francisco Leite da Costa Belem destacou que
―diversas tentativas de insurreição de escravos tem-se dado em alguns municípios‖.17 É
significativo que na narrativa de nosso literato vigore o conflito entre a ―boa sociedade‖ e
os quilombolas que ―aterrorizavam‖ as mentes de senhores e autoridades.
15
Apud COELHO, Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães, p. 134.
ASSIS, ―Mariana‖; CHALHOUB, Machado de Assis, historiador, pp. 136-137 e 162-164.
17
Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no acto da abertura da
sessão ordinaria o vice-presidente Francisco Leite da Costa Belem. Ouro Preto: Typographia de J. F. de
Paula Castro, 1871, p. 7.
16
89
Provavelmente, a questão da insurreição escrava fez com que o literato se
colocasse como porta-voz de uma parcela da classe senhorial que visava eliminá-la. Por
isso, a despeito do esquecimento que a referida história tenha sofrido, julgamos que a
perspectiva emancipacionista de Bernardo Guimarães pode ser mais bem compreendida se
confrontarmo-la com um de seus mais conhecidos romances; ambas as obras, como
veremos, formaram um imbricado conjunto romântico-emancipacionista que estabeleceu
relação com as discussões em torno das iniciativas do Estado na chamada ―questão servil‖,
bem como através delas percebemos a perspectiva antiescravista de nosso literato com
maiores detalhes.
Visando atingir nosso alvo, nos serviremos especialmente das caracterizações das
personagens envolvidas na captura de escravos fugidos, presente em ambas as obras.
Nosso objetivo é analisar as representações de tais personagens e as intenções do literato
com dadas representações. É importante destacarmos que não estamos tratando de
personagens que atuaram profissionalmente enquanto capitães-do-mato, ofício que,
conforme Luiz Mott, as primeiras referências remontam ao século XVII. Todavia, a
oficialização do cargo e suas atribuições foi um processo lento, tendo sido atividade
esporádica e temporária sendo exercida por qualquer indivíduo que poderia receber
recompensa. Segundo Silvia Hunold Lara, ―as primeiras referências documentais a uma
certa especialização na caça aos fugitivos datam de meados do século XVII. Algumas
indicam haver pessoas nomeadas especificamente para essa tarefa, outras se referem a
recompensas em dinheiro, fixadas pelas câmaras, por cativo apreendido‖.18 Enfim, ao nos
referirmos aos capitães-do-mato, tratamos de personagens que em dado momento atuaram
na tentativa de capturar um escravo fugido, como também ocorreu para além das margens
das páginas dos contos e romances.
Por ora, podemos adiantar que as caracterizações das personagens envolvidas na
captura (ou tentativa) de escravos fugidos produzidas por Bernardo Guimarães se
relacionam com os comportamentos que o literato considerava adequado para os escravos.
Comportamentos insubmissos não eram por ele tolerados, para estes casos, propôs
18
Cf. MOTT, Luiz. ―Santo Antônio: o divino capitão-do-mato‖. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos
Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 123; e LARA, Silvia Hunold. ―Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos
escravos‖. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 83, 88 e 98.
90
punições, inclusive a pena de morte como ocorre com as personagens/quilombolas. 19
Liberdade apenas para os ―bons‖ escravos, ou seja, aqueles que se comportavam de acordo
às expectativas senhoriais. Enfim, as representações do capitão-do-mato dão-se em
oposição às dos escravos fugidos e seus comportamentos. Assim, consideraremos também
as representações dos fugitivos como forma de compreender a mensagem do literato.
Afinal, a existência de capitães-do-mato – sempre, seja na história real ou ficcional – se dá
em virtude da existência da fuga escrava, do escravo fugido. Bernardo Guimarães
publicou, num curto espaço de tempo, duas representações divergentes a respeito dos
capitães-do-mato. Questão que, talvez, num olhar aligeirado pudesse ser entendida como
uma transformação no pensamento antiescravista do literato; no entanto, veremos que tais
representações estiveram intimamente ligadas formando o que podemos definir como um
projeto romântico-emancipacionista cujas representações dos escravos perseguidos são
fundamentais para se compreender.
Os capturadores ficcionais da obra de Bernardo Guimarães
Eis uma das personagens, Anselmo, e sua idílica aparição que é narrada no
romance:
Pela estrada que vai do arraial da Cachoeira, onde outrora houve
coudelaria imperial, para o de Congonhas, célebre por sua romaria do
Bom Jesus Matosinho, um rapaz montado em um lindo cavalo preto
galopava cantarolando uma modinha amorosa. Era um moço bem
disposto, de fisionomia agradável, de olhos negros e expressivos; trajava
com asseio e esmero, e os arreios de sua cavalgadura cintilava ao sol,
cobertos de prataria. Posto que de tez clara, todavia pela aspereza de seus
cabelos negros e crespos, se conhecia claramente que tinha nas veias
sangue africano. Em seu semblante risonho e expressivo transluzia a
felicidade em toda sua plenitude. O cavalo, caracolando e relinchando
através daquelas aprazíveis campinas, aos primeiros raios de uma linda
manhã de abril, parecia partilhar as alegrias de seu amo.20
Dirigia-se ele para uma fazenda aonde ―chegava, com o coração a pular de
emoção e de felicidade, a primeira pessoa que avistava era uma linda rapariga de quatorze
a quinze anos, que sempre, impreterivelmente, o esperava à porta, com o sorriso nos lábios
e os olhos radiantes de prazer‖. Na ocasião, no entanto, teve uma triste surpresa. Florinda
19
20
GUIMARÃES, Lendas e romances.
Ibidem, p. 14.
91
havia sumido: ―Anselmo sentiu gelar-se-lhe o coração, os olhos se lhe escureceram, e
quase caiu do cavalo abaixo‖. 21 Florinda havia sido raptada e levada para um quilombo, o
que provocou a atuação de Anselmo como ―capitão-do-mato‖.22 Aqui, o obstáculo ao feliz
desenlace romântico também é a escravidão, todavia, ao contrário do que ocorre em A
escrava Isaura, não é um perverso senhor que impõe os óbices e sim os quilombolas.
Anselmo é caracterizado como nobre, corajoso e leal; um perfeito herói
romântico. Corajoso, saiu em caçada aos quilombolas apesar das advertências quanto aos
perigos da empreitada: ―Não faça tal, bradou o patrão; está doido, homem! Olhe que eles
são muitos. Depois quem sabe de que quilombo são e que rumo levaram? Há tantos
quilombos por esses matos…‖; ―Mas o senhor sozinho nada pode fazer, Sr. Anselmo‖.
Com a recusa de Anselmo em ficar, o ―patrão‖ ofereceu-lhe dois companheiros para a
empreitada: ―já que assim o quer a todo transe, espere um momento; não vá sozinho; leve
dois dos meus camaradas‖. Iniciada a busca, ―descobriram a direção que tinham tomado os
quilombolas‖. ―Mais adiante reconheceram que os negros tinham largado a estrada, e tinha
trepado a serra procurando os lados dos pequenos arraiais chamados José Correia e Itatiaia,
em cujas imediações havia famosos e formidáveis quilombos‖. 23 A cada instante
aumentava-se os perigos da ação sem que esmorecesse a coragem do valente Anselmo.
Conforme é narrado,
O terreno tornava-se cada vez mais rude e impraticável, e era gravíssimo
o perigo que corriam, caso encontrassem os quilombolas. Seus
companheiros, que não tinham a sua coragem, nem eram animados do
mesmo estimulo que ele para prosseguir em tão arriscada empresa,
começaram a desanimar, e em vão tentavam dissuadi-lo de seu propósito.
— Ainda que gaste oito dias e oito noites por estas brenhas sem comer e
sem dormir, hei de segui-los, e hei de descobrir o quilombo, ainda que
seja no inferno. Vamos, vamos, meu valente cabiúna; é só contigo que eu
conto, dizia Anselmo batendo na tábua do pescoço do seu brioso cavalo.
Vamos salvar a pobre Florinda, ou morrer com ela. 24
De feito, somente o corajoso Anselmo e seu ―brioso cavalo‖ prosseguiram no
encalço dos quilombolas, elemento que fortalece a caracterização de valente e corajoso de
nosso herói romântico. Acabou, enfim, sendo capturado pelos quilombolas, seus
antagonistas na história. Todavia, por ―tino‖ e ―reflexão‖, optou por não oferecer
21
Ibidem, pp. 14-15.
Ibidem, pp. 15-16.
23
Ibidem, pp. 16-17.
24
Ibidem, p. 18.
22
92
resistência: ―de que lhe serviria isso, senão para assanhá-los mais, e tornar inevitável a sua
morte sem poder salvar Florinda, que era o seu principal e único fim?‖. 25 Conseguindo
fugir dos quilombolas com uma incrível epopéia no acidentado terreno em torno de Vila
Rica providenciou de imediato nova empreitada contra os quilombolas. Desta vez, foi na
posição de chefia de um grupo de cinqüenta capitães-do-mato, homens do ―governadorgeneral D. Manuel de Portugal e Castro, que foi o último governador da capitania, e o
primeiro presidente da província de Minas Gerais‖, e mais alguns voluntários. Ação que
evidencia uma possível reivindicação do narrador para que o poder público – enquanto
auxiliar – e o dos senhores atuassem juntos em prol da manutenção da ordem, 26 que muitos
envolvidos nos debates em torno da emancipação julgavam que a existência de uma lei
(proposta pelo governo) regulando as relações entre senhores e escravos poderia
prejudicar. Em virtude do empenho do governador-geral, Anselmo colocou sua cabeça à
disposição caso não desse conta dos quilombolas. Mais uma prova de sua valentia. 27
Deixemos, no entanto, a coragem de nossa personagem e vejamos resumidamente um
grande exemplo de sua lealdade, característica bastante acentuada na história. Assim como
Álvaro do romance A escrava Isaura, Anselmo é o típico protagonista romântico que, por
suas características, deveria ser almejado e imitado.
Tendo chegado novamente ao quilombo, nosso ―capitão-do-mato‖ teve logo em
seguida a surpresa de ver Florinda ameaçada por um quilombola. Alguns instantes depois
houve um revés na história, ficando Florinda sob ameaça de Zambi Cassange, o chefe dos
quilombolas. Diante da situação, que lhe era favorável, Cassange faz a seguinte proposta:
―vai já pôr em liberdade toda minha gente, e nos deixa em paz; e você levará Florinda‖.
Perante tal proposta, ―Anselmo recuou dois passos; a proposição era altamente
comprometedora, e punha em sério perigo sua cabeça‖ que estava comprometida com o
governador-general. Todavia, ―tratava-se de salvar Florinda, e não haveria sacrifício a que
se recusasse para esse fim‖: aceitou o acordo.
Quando o acordo foi firmado, ―os milicianos e capitães do mato tinham já
amarrado todos os quilombolas, à exceção de uns dois ou três que morreram, e outros
tantos que sempre lograram evadir-se‖. Os companheiros de Anselmo reconhecendo sua
25
Ibidem, pp. 18-19.
Conforme Pereira, o Estado e classe senhorial muitas vezes agiam unidos no intuito de preservar a ordem
vigente no século XIX. O primeiro se incumbia de destruir quilombos e evitar insurreições escravas e os
senhores ofereciam recompensas para quem capturasse os escravos fugidos. Cf. PEREIRA, ―As
representações da escravidão‖, p. 52.
27
GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 74-75.
26
93
vantagem julgavam que o ideal era agir contra os quilombolas e descumprir o acordo do
qual tomaram conhecimento: ―não há lei nenhuma que nos obrigue a guardar lealdade para
com semelhantes feras‖, disse um dos capitães-do-mato, acrescentando, ―demos cabo desta
canalha, enquanto está em nossas mãos‖. Anselmo, no entanto, não quebraria o acordo:
―por mim não quebrarei nunca meu juramento‖. Foi então que ―os companheiros de
Anselmo, vendo a disposição horrível do negro contra a pobre Florinda, e por outro lado
admirados da lealdade e coragem do moço a quem começavam a estimar e a respeitar, não
ousaram mais insistir‖. 28 Para evitar a possível desgraça de Anselmo, um indivíduo leal e
corajoso, um de seus companheiros propõe:
mas para satisfazer o Sr. governador e desempenharmos nossa palavra,
cortemos a cabeça àqueles sete que ali estão enforcados, e mais a esses
dois que matamos, e levemos para Vila Rica. Nove cabeças de
quilombolas já não é um mimo para se desprezar, e S. Ex. não deve ficar
mal satisfeito.
— Bravo! muito bem, exclamaram alguns; façamos isso e ficará tudo
remediado. Diremos que os outros escaparam, e nenhum de nós baterá
com a língua nos dentes sobre o acontecido.
— Nenhum, nenhum de nós, repetiram muitas vozes. 29
Proposta que, mesmo colocando sua cabeça em evidência, Anselmo recusa-se a
aceitar por não julgar digna:
— Nada disso, meus amigos, bradou Anselmo; semelhante procedimento
não seria digno de mim, nem de vocês; eu vou contar ao governador, com
toda a franqueza, toda esta história tal qual tem acontecido, e lhe direi que
tudo isso foi feito por mim e por minha ordem, para salvar esta infeliz. O
governador me confiou a honra de dirigir e comandar esta diligência;
vocês nada fizeram senão me obedecer como deviam, a eu afianço que
nada sofrerão. Quanto a mim, que me importa! minha cabeça rolará no
chão, porém ao menos terei salvado Florinda. 30
Enfim, o capitão-do-mato Anselmo é caracterizado na história como uma digna e
admirável figura; assim como Álvaro, era um perfeito herói romântico, um protagonista
que é fundamental para a concretização do bom e feliz desfecho romântico
emancipacionista. Por outro lado, em 1875, o literato apresenta de maneira depreciativa a
personagem Martinho que também atuou enquanto capitão-do-mato. Martinho,
28
Ibidem, pp. 81-85.
Ibidem, pp. 85-86.
30
Ibidem, p. 86.
29
94
personagem que assume a tarefa de capturar Isaura, é caracterizado por ―seu satânico
instinto de cobiça‖ que o fez ―farejar uma escrava na pessoa daquele anjo!‖. Era um
estudante que se mantinha do ―rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista‖,
mas pelo ―espírito de cobiça, e de sórdida ganância‖ atuou nas buscas por Isaura. Era um
acadêmico e freqüentador dos fictícios bailes de Recife, mas não é totalmente identificado
com a ―sua‖ classe; eis o que diz outra personagem após Martinho ter desmascarado
Isaura, que se fazia passar por livre, em pleno baile: ―este homem, se não é um insolente,
ou está louco ou bêbado […]. Em todo caso deve ser enxotado como indigno desta
sociedade‖. É caracterizado, pelo narrador, como um estudante que ―pelo desalinho do
trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão‖. Aliás,
um contraste com a personagem Anselmo que possuía ―fisionomia agradável‖ e ―trajava
com asseio e esmero‖.31 Foi, no entanto, principalmente por sua atuação no caso de Isaura
que pretendiam extingui-lo da sociedade:
— Forte miserável… disse um dos comparsas — que vil ganância de
ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender aquela
moça aqui mesmo em pleno baile.
— Por cinco contos [de réis] é capaz de todas as infâmias. Tão vil
criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos
conspirar para expeli-lo da Academia. 32
Ao apresentar a personagem, que irá ―tomar parte um tanto ativa nos
acontecimentos desta história‖, o narrador destaca:
o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais
velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça
grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmensuradamente
ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que na opinião de
Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O
todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito
egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo
espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as
palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos
pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria.33
As feições (formes e deformes) das personagens são associadas às suas
características psicológicas e morais. O literato recorreu a um discurso ―científico‖ de sua
31
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 138, 153 e 157.
Ibidem, p. 146.
33
Ibidem, p. 138. Grifo nosso.
32
95
época para apresentar pejorativamente a personagem que atuou enquanto capitão-domato.34 Mailde Jerônimo Trípoli, em sua dissertação de mestrado sobre a imagem do
―negro na literatura brasileira no tempo de Machado de Assis‖, cita o mesmo trecho do
romance de Bernardo Guimarães para demonstrar que o discurso científico racialista que
buscava legitimar a escravidão ―não se limitou às páginas científicas e aos discursos
escravocratas‖.35 Aliás, o literato cita o nome de um indivíduo influente nesta corrente de
pensamento, o suíço Johann Caspar Lavater que, em 1780, ―sistematizou a fisiognomonia‖,
método ―segundo o qual poder-se-ia detectar todas a qualidades de um indivíduo pela sua
fisionomia‖. 36 Conforme Lilia Moritz Schwarcz, a partir do século XIX, uma postura
influente foi estabelecer ―correlações rígidas entre patrimônio genético, aptidões
intelectuais e inclinações morais‖. 37
Ao contrário de Anselmo, Martinho não era um indivíduo leal visto o espanto do
senhor emancipacionista, Álvaro, que ao ser informado por ele que Elvira – nome adotado
por Isaura quando fugida – era uma escrava fugida não tinha motivos para acreditar
naquela personagem. Conforme o narrador,
Álvaro, se bem que conhecesse a vilania e a impudência do caráter de
Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita e
imprevista delação. Não podia dar-lhe crédito, e refletindo um instante
confirmou-se mais na idéia de que tudo aquilo não passava de uma farsa
posta em jogo por algum indigno rival, com o fim de desgostá-lo ou
insultá-lo. A pessoa do Martinho, que não poucas vezes, na qualidade de
truão ou palhaço, servia de instrumento às vinganças e paixões
mesquinhas de entes tão ignóbeis como ele, servia para justificar a
desconfiança de Álvaro, que acabou por não sentir senão asco e
indignação por tão infame procedimento. 38
Conhecendo o quanto Martinho agia muitas vezes motivado pelo seu ―espírito de
cobiça, e de sórdida ganância‖, Álvaro declarou: ―Senhor Martinho, […] se alguém pagoulhe para vir achincalhar-me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou pronto a
dar-lhe o dobro para nos deixar em paz‖. 39 Ademais, sua atuação enquanto capitão-do-
34
Sobre os discursos científicos no Brasil de finais do século XIX e inícios do XX ver: SCHWARCZ, O
espetáculo das raças.
35
TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, pp. 49-50 e 56.
36
SILVEIRA, Renato da. ―Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia
ocidental‖. Afro-Ásia, 23, 1999, p. 101.
37
SCHWARCZ, O espetáculo das raças, p. 47.
38
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 152-153.
39
Ibidem, p. 153.
96
mato nada tinha de nobre, ao contrário da de Anselmo, era unicamente motivada por
questões econômicas como bem concebia o senhor emancipacionista:
— Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Álvaro em voz baixa,
tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo
principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher,
que nunca o ofendeu. Está em seu direito, eu reconheço, e a soma não é
para desprezar. Mas se quiser desistir completamente desse negócio, e
deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro dessa quantia.
— O dobro!… dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os
olhos.
— Justamente; dez contos de réis e hoje mesmo. 40
Quando ocorreu o diálogo acima, Martinho já havia se empenhado com Leôncio,
o senhor de Isaura, todavia, por suas características, diferente do capitão-do-mato da
história de 1871, não seria leal ao seu compromisso. Voltemos à conversa:
— Mas, senhor Álvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da
escrava, dei passos para esse fim, e…
— Que importa!… diga que ela evadiu-se de novo, ou dê outra qualquer
desculpa…
— Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª?…
— Ora!… isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e
atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca coisa!…
— Vá, feito — disse Martinho depois de refletir um instante. — Já que
V. S.ª tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi-lo com
semelhante negócio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Aceito a
proposta.41
Capturar Isaura era uma ação que na ―verdade bem me repugna‖, dizia Martinho;
todavia não fosse a proposta de Álvaro, que lhe era economicamente mais vantajosa, sem
dúvidas isso não lhe traria grandes preocupações. Sua consciência poderia ser comprada
por quem melhor pagasse. Feito o acordo, restou armar um plano para ludibriar o senhor da
escrava, questão que pelas características da personagem não seria tarefa das mais
complicadas como podemos observar no diálogo abaixo:
— Mas que volta darei eu ao negócio para sair-me bem dele?
— Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar-lhe algum
meio de safar-se de dificuldades com a maior limpeza.
40
41
Ibidem, p. 174.
Ibidem, pp. 174-175.
97
Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os
olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levantando à testa
o dedo índice:
— Atinei! exclamou. — Dizer que a escrava desapareceu de novo, não é
conveniente, e iria comprometer a V. S.ª, que se responsabilizou por ela.
Direi somente que, bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que V.
S.ª tem em seu poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado.
— Essa não é mal achada… mas foi um negócio tão público…
— Que importa!… não se lembra V. S.ª de um sinal em forma de
queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio?
direi, que não se achou semelhante sinal, que é muito característico, e está
destruída a identidade da pessoa. Acrescentarei mais que a moça, por
quem V. S.ª se interessa, vista de noite é uma coisa, e de dia é outra; que
em nada se parece com a linda escrava que se acha descrita no anúncio, e
que em vez de ter vinte anos mostra ter seus trinta e muitos para quarenta,
e que toda aquela mocidade e formosura era efeito dos arrebiques, e da
luz vacilante dos lustres e candelabros.
— O senhor é bem engenhoso, — observou Álvaro sorrindo-se; — mas
os que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém, ainda
uma dificuldade, senhor Martinho; é a confissão que ela fez em
público!… isto há de ser custoso de embaçar-se.
— Qual custoso!… alega-se que ela é sujeita a acessos de histerismos, e é
sujeita a alucinações.42
Martinho era hábil em enganar:
— Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e
habilidade. E depois?
— E depois comunico tudo isso ao chefe de polícia, declaro-lhe que nada
mais tenho com esse negócio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou
capitão-do-mato, que se queira encarregar dessa diligência, e em ato
contínuo escrevo ao senhor da escrava comunicando-lhe o meu engano,
com o que ele por certo desistirá de procurá-la mais por aqui, e levará a
outras partes as suas pesquisas. Que tal acha o meu plano?…
— Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho. 43
Firmado o acordo – para ludibriar Leôncio – e o plano de sua concretização, o
―capitão-do-mato‖ não ficou totalmente satisfeito continuando a agir e pensar a partir de
sua ―vil ganância‖: ―Não há dúvida! — continuou ele consigo mesmo; — isto vai a dobrar
como no lansquenê. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada‖;
afinal era de um ―caráter desprezível e abjeto‖.44 Para além, Martinho é caracterizado na
obra como a encarnação dos ―desprezíveis‖ e usurários capitães-do-mato que continuariam
42
Ibidem, pp. 175-176.
Ibidem, p. 176.
44
Ibidem, p. 177.
43
98
a agir a despeito da solução encontrada pela personagem Álvaro. Segundo destacou o
sensato Dr. Geraldo,
não faltarão malsins igualmente enganados por dinheiro, que pelos cinco
contos de réis, que para estes miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham
à cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o
alarma, e que esse negócio tem atingido a um certo grau de celebridade,
em vez de um, aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e
não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro. 45
Depreciar o capitão-do-mato foi também o empenho de outros indivíduos que
trataram da escravidão nas derradeiras décadas do regime servil. Mello Moraes Filho, em
poema intitulado ―Escravo fugido‖, publicado em seus Cantos do equador qualificou os
capitães-do-mato como ―frios‖, ―algozes‖ e ―traidores‖:
E que direito a grandes recompensas
Tem quem prendê-lo? respondei senhores!
Procuram-no, portanto, homens sem crenças,
Folga a traição a bem dos opressores.
Povo sem coração, algozes frios,
Almas de esquife e túmulos branqueados,
Porque abrir os mausoléus sombrios
Que não podem conter mais desgraçados?!…46
Além de Bernardo Guimarães e Mello Moraes Filho, outros literatos que
encontramos textos que trataram do capitão-do-mato foram o teatrólogo Martins Pena e
Machado de Assis. Em 1845, foi encenada a comédia ―O terrível capitão do mato‖, na qual
a principal personagem, além de não ser honesta, trata sua filha e sua esposa praticamente
como escravas fugitivas, vigiando-lhes todos os passos. Enfim, transpõe as relações de sua
atuação para seu âmbito familiar.47 No pós-abolição, Machado de Assis publicou, em suas
Relíquias de Casa Velha, o conto ―Pai contra mãe‖, no qual, a despeito de tratar
implicitamente da crueldade da atuação do capitão-do-mato, deixa implícito que por vezes
ela era uma questão de sobrevivência para o indivíduo e sua família. 48 Todavia, ao que
45
Ibidem, p. 178.
MORAES FILHO, Cantos do equador, p. 138.
47
PENA, Martins. ―Os ciúmes de um pedestre [ou O terrível capitão do mato]‖, 18/11/1845. In: Comédias de
Martins Pena. Edição crítica por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Edições de Ouro),
1968, pp. 507-527.
48
ASSIS, Machado de. ―Pai contra mãe‖, 1906. In: Contos de Machado de Assis, v. 5 (política e escravidão).
Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 179-191.
46
99
tudo indica, o único caso de literato que apresentou caracterizações divergentes sobre a
figura do capitão-do-mato foi Bernardo Guimarães. Divergência que, em nossa
compreensão, está relacionada ao resultado de sua atuação e ao perfil de escravo que era
alvo da empreitada dos referidos capitães-do-mato.
Os escravos fugidos e suas características
Quais eram as características das personagens/escravos perseguidos por Anselmo
e por Martinho? Eis um questionamento que nos auxiliará a compreender a divergência
entre as representações dos indivíduos que atuaram enquanto capitães-do-mato. Isaura, a
personagem mais conhecida de Bernardo Guimarães, era uma escrava ―branca‖ criada e
educada por sua senhora no intuito de ―torná-la digna da liberdade que pretendia darlhe‖. 49 Não representa ameaça à sociedade como os quilombolas da história de 1871. Ao
contrário, representa, na perspectiva do literato, o modelo ideal para a extinção da
escravidão. Bernardo Guimarães, em seu conhecido romance, apresenta como mote a
questão da ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade. Nessa perspectiva, produziu
uma narrativa na qual as personagens que tentaram obstruir tal projeto – seja um senhor
demasiadamente apegado à escravidão como Leôncio, ou quem buscasse reinserir na
escravidão determinado escravo, como foi o caso da personagem Martinho – foram
caracterizados pejorativamente. Eis as características físicas da dócil e educada escrava,
―uma bela e nobre figura de moça‖:
As linhas do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa do
piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e
suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam
toda análise. A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra,
embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve
palidez ou cor-de-rosa desmaiada.50
Era tal a beleza ―caucasiana‖ de Isaura, que é descrita como ideal de perfeição a
ponto de ser comparada a Vênus (deusa romana da beleza):
Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe perfeitamente
com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e
desdobrando-se-lhe em roda amplas ondulações parecia uma nuvem, do
49
50
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 192.
Ibidem, p. 24.
100
seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do mar,
ou como anjo surgido dentre brumas vaporosas.51
Isaura encarnava perfeitamente o ideal de beleza européia como nas pinturas de
artistas do velho continente de finais do século XIX. Determinadas imagens produzidas
pensando no contexto europeu, facilmente, poderiam ter sido utilizadas para ilustrar a
história de Bernardo Guimarães ficando perfeitamente condizente com a descrição da dócil
escrava que talvez mais se assemelhasse com uma camponesa européia (ou mesmo uma
senhora) do que com uma típica escrava negra do continente americano. Não obstante, a
escrava ainda possuía uma esmerada educação:
À medida que a menina [Isaura] foi crescendo e entrando em idade de
aprender, foi-lhe ela mesma [sua senhora, mãe de Leôncio] ensinando a
ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres
de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe
livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina
educação, como o faria para uma filha querida. Isaura, por sua parte, não
só pelo desenvolvimento de suas graças e atrativos corporais, como pelos
rápidos progressos de sua viva e robusta inteligência, foi muito além das
mais exageradas esperanças da excelente velha, a qual em vista de tão
felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e
polir aquela jóia, que ela dizia ser a pérola entrançada em seus cabelos
brancos.52
Desnecessário, talvez fosse, reafirmar a cor ―branca‖, ―como o marfim do
teclado‖, de Isaura, que ―és formosa, e tens uma cor linda que ninguém dirá que gira em
tuas veias uma só gota de sangue africano‖; 53 todavia, tal condição, na obra, são
indicadores de suas qualidades e características psicológicas e morais. Lembremos que ao
descrever o ―capitão-do-mato‖ Martinho, o narrador destacou que suas características
físicas, ―na opinião de Lavater, é indício de espírito lerdo e acanhado a roçar pela
estupidez‖;54 questão que textualmente, o literato volta a sugerir em 1883, todavia sem
referenciar nenhum teórico.55 Segundo Renato da Silveira,
51
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 25. A comparação de Isaura à deusa é novamente lembrada ao ser
exposto o anúncio no qual apresenta as características da escrava fugida: ―— Deveras, Martinho? —
exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de
Vênus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!…‖ (pp. 143-144).
52
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 34.
53
Ibidem, p. 25.
54
Ibidem, p. 138.
55
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, pp. 127-128. O narrador bernardino destacou que a figura,
tipo físico, de uma personagem ―estava em perfeita harmonia com sua natureza‖, ou seja com suas
características morais. A saber, a personagem possuía ―boas‖ características.
101
Com a sucessão das obras de Lavater, todos os povos do vasto mundo
começaram a ser enquadrados pela doutrina fisiognomonista,
pretendendo-se estabelecer o caráter de cada qual pelo exame de traços
faciais individuais e logo também pela cor da pele, considerada
reveladora da alma. A pele escura, previsivelmente, era tida pela
fisiognomonia como signo de uma alma pervertida, enquanto a pele clara
conotava um caráter nobre. 56
Poderá facilmente notar o leitor dos referidos romances que tal assertiva é
aplicada também aos demais personagens descritos. Conforme Mailde Jerônimo Trípoli,
quando ―Uma história de quilombolas‖ foi escrita, ―lealdade e coragem‖, características
presentes em Anselmo, ―não eram atribuíveis aos da raça escravizada‖. 57 Temos, no
entanto, que relativizar a condição de negro de Anselmo, ―um moço bem disposto, de
fisionomia agradável‖, ―posto que de tez clara‖.58 Tanto Anselmo quanto Isaura possuem
características físicas que denotam que em suas veias também ―corria‖ sangue europeu,
eram mestiços. Conforme Lilia Moritz Schwarcz, as teorias evolucionistas, que tiveram, no
Brasil, os anos de 1870 a 1930 como de maior influência, ―não só elogiava o progresso e a
civilização, como concluía que a mistura de raças heterogêneas era sempre um erro, e
levava à degeneração não só do indivíduo como de toda a coletividade‖. Todavia não
foram elas assimiladas no Brasil, um país mestiço, sem ressalvas: ―aceitar a idéia da
diferença ontológica entre as raças sem a condenação à hibridação‖, eis a saída de muitos
intelectuais da época.59 Por aqui, ―certos rearranjos teóricos, não impediam pensar na
viabilidade de uma nação mestiça‖. 60 Questão programaticamente defendida pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), instituição norteadora do pensamento social
brasileiro da época. Nas palavras de Carlos Frederico Ph. de Martius, em dissertação aceita
pelo IHGB como norteadora da historiografia brasileira,
Tanto a história dos povos quanto a dos indivíduos nos mostram que o
gênio da historia (do mundo), que conduz o gênero humano por
caminhos, cuja sabedoria sempre devemos reconhecer, não poucas vezes
56
SILVEIRA, ―Os selvagens e a massa‖, p. 102.
TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, p. 62.
58
GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 14.
59
SCHWARCZ, Lilia Moritz. ―Espetáculo da miscigenação‖. Estudos Avançados, v. 8, n. 20, 1994, pp. 138139; SCHWARCZ, O espetáculo das raças, pp. 18-19.
60
SCHWARCZ, O espetáculo das raças, p. 65.
57
102
lança mão de cruzar as raças para alcançar os mais sublimes fins na
ordem do mundo. 61
Concepção na qual se projetava um futuro de população ―embranquecida‖ para a
nação: ―jamais nos será permitido duvidar que a vontade da Providência predestinou ao
Brasil esta mescla. O sangue Português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos
confluentes das raças Índia e Etiópica‖. 62 Questão que ganha outros contornos com a
disseminação do darwinismo que também foi apropriado pelas Ciências Sociais. Em 1875,
mesmo ano de publicação de A escrava Isaura, o darwinismo, que já era conhecido no
meio acadêmico, foi disseminado no meio letrado do Rio de Janeiro tendo obtido grande
aceitação.63 É importante destacarmos que, mesmo morando em sua província natal, nosso
literato não ficou distanciado totalmente da corte: continuou, por exemplo, mantendo o
contato com o editor Garnier, responsável pela publicação de suas obras, possuindo ainda
outros contatos; em carta a Garnier datada de 25 de fevereiro de 1870, solicitou que o
editor, entregasse ―aos Srs. João Antonio de Mattos e Cia‖ os quinhentos mil réis que lhe
cabia pela publicação do romance O garimpeiro (publicado somente em 1872).64 Ademais,
tendo si estabelecido em sua província natal desde 1866, se casou no ano seguinte indo
residir, com sua esposa e sua sogra, na fazenda da Rancharia que servia de pouso para os
viajantes que enfrentavam o trajeto Rio-Minas e vice-versa, 65 provavelmente tendo
dialogado com alguns (ou muitos) deles.
Mesmo Bernardo Guimarães não tendo se referido explicitamente às idéias de
origem darwinistas (incorpora muitos de seus elementos), tais dados referentes à
divulgação e aceitabilidade do darwinismo na sociedade letrada da corte, são significativos
na perspectiva que tais idéias acabaram por reforçar ―cientificamente‖ concepções de
muitos letrados inclusive de outras localidades que provavelmente tomaram conhecimento
61
MARTIUS, Carlos Frederico Ph. Von. ―Como se deve escrever a Historia do Brazil‖. Revista trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. Tomo VI, v. 6. Rio de
Janeiro, 1844, p. 383.
62
Ibidem, p. 383.
63
Sobre a disseminação do darwinismo no Rio de Janeiro, ver: CARULA, Karoline. A Tribuna da Ciência:
as Conferências Populares da Glória e as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880). São
Paulo: Annablume; FAPESP, 2009, p. 79.
64
Carta de Bernardo Guimarães ao editor B. L. Garnier sobre o contrato para a publicação de O
Garimpeiro. Ouro Preto, 25/02/1870. BN, Manuscritos, I,07,09,017.
65
GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, p. 141.
103
de tais discussões.66 Sabemos que não era raro as discussões ocorridas na corte logo
circularem nas cidades de outras províncias, a exemplo da própria discussão sobre o
―elemento servil‖. 67 Ademais, é provável, que ao caracterizar suas personagens mestiças
como de tez clara, quase caucasiana, tenhamos explícito uma idéia de cunho racialista que
advogava que a mestiçagem era favorável, pois acabaria por gerar uma população com
maiores semelhanças com as ―raças‖ européias. Voltemos às características da mestiça
Isaura que são ―condizentes‖ com a sua boa fisionomia.
Isaura ―era sempre alegre e boa com os escravos, dócil e submissa com os
senhores‖; ―era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e
submissa‖. Características que indicam que ela era uma escrava preparada para a liberdade:
―por que razão não libertaram esta menina?‖, questionava uma personagem destacando,
―uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava‖. 68 Também no romance
Rozaura, a engeitada, publicado em 1883, há uma comoção ante uma escrava que era uma
―muito linda criatura‖, posto que ―branca‖:
até faz pena ver no cativeiro um menina tão mimosa. Se ela for boa
mesmo, como parece, hei de tratá-la com todo o carinho, mais como uma
companheira, uma irmã de meus filho, do que como escrava; e até, se for
possível, o meu desejo é dar-lhe a liberdade. Uma criatura tão bela e
interessante não nasceu para o cativeiro.69
Com efeito, Rozaura, por nascimento, não deveria ser escrava (seus pais naturais
eram livres; era na verdade uma filha enjeitada da mulher que, sem saber, a tinha como
escrava); todavia, na obra, é colocada uma comoção em virtude de suas características; era
―uma jóia, e não aí qualquer crioula beiçuda, ou mula encarapinhada‖; ―é uma menina
branca, rosada e mimosa como um anjo‖ que ―parece mais outra sinhazinha‖; sendo ainda
―dócil‖ e ―mimosa‖.70 A saber, Rozaura
66
Karoline Carula, em estudo sobre as discussões do darwinismo na imprensa carioca da década de 1870,
menciona que muitas dos debates sobre o tema acabaram por ser reproduzidos e discutidos em outras
províncias. Cf. CARULA, A Tribuna da Ciência.
67
A questão da reforma do ―elemento servil‖ logo que foi posta em discussão no seio parlamentar, situado na
corte, adentrou nos jornais mineiros – como também de outras províncias – que reproduziam notícias
provenientes da capital do império. No jornal Noticiador de Minas, logo após a apresentação do projeto na
Câmara dos Deputados foi ele reproduzido seguindo de diversos artigos sobre a ―reforma do elemento servil‖
e a proposta do governo. Cf. Noticiador de Minas: 17/06/1871, pp. 2 e 3; 08/07/1871, pp. 2-3; 11/07/1871,
pp. 1-3; 14/07/1871, pp. 3-4; 18/07/1871, pp. 1-2; e 21/07/1871, pp. 2-3. APM, Jornais Mineiros.
68
GUIMARÃES, A escrava Isaura, pp. 34-35 e 36.
69
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 9. Grifos nosso.
70
Ibidem, pp. 7, 8 e 76.
104
Era uma menina, que parecia ter quatorze anos, de belo porte, cabelos de
azeviche, não muito finos e sedosos, mas espessos e de um brilho
refulgente como o do aço polido. – Os olhos grandes e da mesma cor dos
cabelos tinham tal expressão de ingenuidade e doçura, que cativavam
logo a simpatia, a afeição de todos. A boca pequena, com lábios carnudos
do mais voluptuoso e encantador relevo formava com o queixo algum
tanto pronunciado e o nariz reto e afilado um perfil das mais delicadas e
harmoniosas curvas. A tez do rosto e das mãos era de um moreno algum
tanto carregado; mas quem embebesse olhar curioso pelo pouco que se
podia entrever do colo por baixo do corpilho do vestido, bem podia
adivinhar que era o sol, que tinha assim crestado, e que sua cor natural
era fina e mimosa como a do jambo.71
Ademais, note o leitor que, para além das ―boas‖ características, há nas obras do
literato um discurso que para adquirir a liberdade um escravo deveria ser digno de tal
dádiva. Conforme Manuela Carneiro da Cunha, em cartas de alforrias, insistia-se na
generosidade do senhor, mas também em elementos que tornavam os escravos elegíveis à
liberdade.72 Acreditamos que o narrador bernardino buscou incutir na mente de seus
interlocutores qual era o perfil do escravo que era digno de ser agraciado com a liberdade.
Perfil que, sem dúvida, incluía Isaura, Florinda, Anselmo e a enjeitada Rouzara.
Mesmo digna da liberdade, Isaura foge. Iniciativa, no entanto, que não se deu de
forma tranqüila para sua consciência, elemento que fortalece a tese de que estava preparada
para a liberdade. Ao ouvir de seu pai – depois de insistente recusa senhorial em concederlhe a liberdade, com a ―devida‖ recompensa pecuniária – a proposta para que fugissem,
Isaura disse: ―vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?… Posso acaso ser mais desgraçada
do que já sou?…‖, numa explícita referência que a fuga se dava porque já vivia uma
desgraça, uma escravidão na qual, enquanto donzela, era constantemente assediada pelo
senhor. Ao questionar: ―posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?‖, a escrava deixa
uma importante dúvida. Seria a situação de fugitiva melhor?73 ―Fugira em companhia de
seu pai, para escapar ao amor de um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de
violências e tormentos tentava forçá-la a satisfazer seus brutais desejos‖. 74 Mesmo assim,
71
Ibidem, p. 5. Grifo nosso.
CUNHA, Manuela Carneiro da. ―Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX‖. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense; Editora da Universidade de São Paulo, 1986, pp. 136-137.
73
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 102.
74
Ibidem, p. 162.
72
105
sentiu remorsos! Com efeito, ela correspondia às expectativas de uma parcela real da classe
senhorial que almejavam escravos dóceis e submissos.
Outro episódio é interessante para compreendermos o dilema de Isaura enquanto
fugitiva, ou melhor, o quanto o narrador bernardino caracterizou a personagem como digna
da liberdade que almejava. Estando, após a fuga, já em Recife, em um sarau ―dos ricos e
dos fidalgos‖ Isaura comenta o seguinte com seu pai: ―é um crime que cometo,
envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade‖, ressaltando, ―se estas nobres senhoras
adivinhassem que ao lado delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida‖. 75 É
importante atentarmos que a condição de miserável é acentuada pela situação de fugida,
que não a agradava. Conforme o narrador,
Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de sua
verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se
consigo mesma de impor às poucas pessoas, que com ela tratavam de
perto, um respeito e consideração a quem nenhum direito podia ter. Mas
considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à
sociedade, conformava-se com sua sorte.76
Eis, acima, as características da escrava/personagem para a qual recairia a ação do
satânico ―capitão-do-mato‖ Martinho que, diferente de Isaura, Álvaro, Anselmo e Florinda
(os dois últimos personagens de ―Uma história de quilombolas‖), é caracterizado para ser
detestado e repugnado naquela sociedade que buscava ser civilizada aos moldes europeus.
Sociedade na qual não cabia espaço para satânicas criaturas, nem tampouco para bárbaros
quilombolas como os apresentados na história de 1871. Até mesmo os aspectos culturais
relacionados à cultura africana a exemplo do entrudo buscou-se que fossem substituídos.
No jornal A actualidade que, logo abaixo do subtítulo, listava Bernardo Guimarães como
um de seus redatores, reconheceu-se com pesar que o entrudo fosse mais aceito e
entendido pela população do que o carnaval que se buscava implantar em ―proveito‖ da
civilização: ―foi sem duvida uma boa obra, e reclamada pela civilização a substituição do
entrudo pela festa do carnaval‖; ―lastimamos, que o carnaval ainda não se ponha em
prática entre nós de modo a destruir todas as saudades, que pudéssemos ter daquele outro
75
76
Ibidem, p. 118.
Ibidem, p. 127.
106
divertimento‖.77 Compactuando com os aspectos da cultura de matriz européia, Isaura
representa bem o perfil de escravo ―digno‖ de ser alforriado.
Anselmo, moço ―civilizado‖ que aflora ―lealdade e coragem‖ (nosso digno herói
romântico), por outro lado, é caracterizado em oposição aos quilombolas comandados pelo
terrível Zambi Cassange, personagens que além de fugidos, viviam de furtos e zombavam
das autoridades. 78 Nas obras de nosso literato, há um jogo de caracterizações –
adjetivações – que muito se prestou à estética romântica que valorizava o herói, questão
que, como vimos nos capítulos anteriores, se dá em relação ao conflito entre escravistas e
emancipacionistas, mas também nas caracterizações de escravos e ―capitães-do-mato‖.
Como destacou, em 1888, o crítico Silvio Romero, o romantismo foi criticado justamente
pelos seus exageros nas adjetivações:
Em 1836, em artigo inserto na Revue dês deux Mondes, satirizava a
literatura corrente [romântica], mostrando não ter ela nada avançado além
da que precedera a não ser o emprego abusivo de adjetivos… O primeiro
poeta francês deste século pôs o dedo em cima de uma das chagas da
romântica.79
Ao apresentar Cassange, personagem que se opõe a Anselmo, o narrador também
relaciona suas características físicas com as psicologias criando adjetivações que reforçam
a coragem e a perspicácia do herói romântico que, apesar das dificuldades e do grande
valor de seu adversário, sobressai como valente, inteligente e vitorioso. Conforme é
descrito pelo narrador,
Zambi um negro colossal e vigoroso, cuja figura sinistra e hedionda se
refletia ao clarão do fogo, com as faces retalhadas, beiços vermelhos, e
dentes alvos e agudos como os da onça; mas o nariz acentuado e curvo, e
a vasta testa inclinada para trás revelavam um espírito dotado de muito
tino e perspicácia, e de extraordinária energia e resolução.80
Ao apresentar características físicas consideradas positivas dos quilombolas,
apresenta ressalvas, como no seguinte exemplo: ―era um cabra ainda muito novo, bem
77
―O carnaval no Rio de Janeiro‖. A actualidade: jornal politico, litterarios e noticioso, Rio de Janeiro, ano
2, n. 70, 25/02/1860, pp. 1-2. AEL/CECULT.
78
GUIMARÃES, Lendas e romances.
79
ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, p. 687.
80
GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 12.
107
feito, bonito e reforçado, porém de má catadura‖.81 Perceba-se que na nomenclatura do
chefe quilombola há uma dupla referência ao elemento africano. Primeiramente, Zambi
pode muito bem representar Zumbi82 – dos Palmares – chefe dos quilombos dos Palmares
que, como conhecido e lembrando por intelectuais e autoridades do século XIX, ofereceu
grande resistência às autoridades coloniais. Quilombos que, conforme Joaquim Manuel de
Macedo – em manual didático publicado em 1865 – ―era um perigo para as capitanias onde
existiam e que se avizinhavam com esses quilombos‖; ―mandaram contra eles por vezes os
governadores de Pernambuco expedições sucessivas, os Palmares zombaram das forças de
governo, até que […] o paulista Domingos Jorge Velho obrigou-se a destruir aqueles
quilombos e a aprisionar os quilombolas‖. 83 Com efeito, no período histórico retratado pelo
narrador bernardino, quilombos existiram na província de Minas Gerais provocando nas
autoridades coloniais o receio da formação de um ―novo‖ Palmares nas paisagens mineiras,
questão que, segundo Carlos Magno Guimarães, ocorreu muito em virtude da realidade
mineira que apresentava elementos da rebeldia escrava. 84 Não podemos afirmar, no
entanto, que o objetivo de nosso literato tenha sido somente a fidelidade histórica ao
retomar aspectos da realidade mineira colonial. Afinal, vivia ele num momento em que se
rememorava a história da rebeldia escrava/africana que, conforme alguns discursos,
poderia ressurgir em virtude das discussões em torno da emancipação que se agitava no
parlamento. Nesse sentido, é significativa a utilização do termo Cassange para nomear o
chefe quilombola. Trata-se da denominação dada a um grupo de africanos que foram
aportados no Brasil, provenientes da região centro-ocidental do continente – de um
―povoado situado no interior de Angola‖. 85 Enfim, as personagens perseguidas por
Anselmo personificavam o ―bárbaro‖ elemento africano.
Ademais, para o narrador da história, os quilombolas eram elementos
perturbadores da ordem estabelecida e um risco à segurança da região:
81
Ibidem, p. 10. Grifo nosso.
Conforme Décio Freias, apesar de a grafia Zumbi ser mais freqüente na documentação portuguesa referente
aos quilombos dos Palmares, a grafia Zambi também aparece na documentação. Cf. FREITAS, Décio.
Palmares: a guerra dos escravos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982, p. 126.
83
MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de história do Brasil para uso das escolas de instrucção primaria.
Edição Revista e Actualizada. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1907 [1865], pp. 224-225.
84
GUIMARÃES, Carlos Magno. ―Mineração, quilombos e Palmares: Minas Gerais no século XVIII‖. In:
REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 139-163.
85
MATTOS, Regiane Augusto de. ―De cassange, mina, benguela a gentio da Guiné: grupos étinicos e
formação de identidades africanas na cidade de São Paulo (1800-1850)‖. Dissertação de Mestrado:
FFLCH/USP, 2006, pp. 29 e 56.
82
108
eram o terror das imediações do Ouro Preto, havia perto de vinte anos,
em um raio de cinco a seis léguas em redor. Não havia segurança alguma
para os viandantes e tropeiros; o roubo nas estradas e a pilhagem nas
fazendas eram cotidianos. Em vão os capitães do mato traziam quase
todos os dias, metida em um saco, a cabeça de um quilombola e recebiam
por cada cabeça cinqüenta oitavas de ouro; em vão as milícias e os
apenados batiam aqui ou ali um quilombo; acolá ressurgia outro mais
forte e numeroso, e a pilhagem e o roubo continuavam sempre, cada vez
com mais audácia e mais freqüência. Chegou o negócio a ponto que
alguns donos de tropa e fazendeiros, vendo a impotência do governo para
protegê-los, estipulavam com os chefes de quilombo, obrigando-se a
pagar-lhes uma certa contribuição, para que os não incomodassem. 86
Eram ainda, conforme o narrador,
o flagelo dos tropeiros e dos caminhantes, e o terror dos fazendeiros. As
milícias e os capitães do mato do governador, a despeito dos esforços que
empregavam, eram impotentes para dar cabo deles. Eram como os
formigueiros; se aqui extinguia-se um, acolá organizava-se outro com os
restos daquele e com uma chusma de outros negros, que incessantemente
fugiam a seus senhores, certos de achar agasalho e vida regalada nos
covis de seus parceiros quilombolas.87
Enfim, a atuação de Anselmo enquanto capitão-do-mato, pela perspectiva do
literato, foi tida como necessária; ao contrário da de Martinho tida como desmesurada,
cruel e prejudicial. A partir das representações dos ―capitães-do-mato‖ de Bernardo
Guimarães podemos perceber para quem deveria recair a repressão, a saber, aos
considerados insubordinados que procuravam a liberdade para além da ordem vigente, ou
seja, para os negros insubmissos. O posicionamento antiescravista não implicava numa
radicalização no discurso, assim, não é difícil aceitarmos que a figura do capitão-do-mato
tenha sido tolerada por alguns emancipacionistas. Para além, é provável que o literato
tenha julgado a atuação do capitão-do-mato como um mecanismo de controle da
moralidade e manutenção da autoridade senhorial assim como indicou um senhor baiano
ao anunciar – num periódico declaradamente emancipacionista – a fuga de um escravo
declarando: ―quem o apreender, ou der notícia certa, será muito bem recompensado pelo
anunciante, não porque o escravo tenha valor algum; mas para exemplo e moralidade dos
86
87
GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 74.
Ibidem, p. 11.
109
demais seus parceiros‖.88 A questão da captura ter servido como um ensinamento moral
aos escravos não fugitivos foi também indicada em verso – na poesia ―Escravo fugido‖ –
por Mello Moraes Filho que assim cantou ironizando a entrega de escravos fugitivos ao
senhor por capitães-do-mato:
Á fazenda chegou, e meia noite
Batia no terreiro
O feitor o recebe, o dono, os servos,
No dia derradeiro.
— Que toque o sino, e os negros formem todos,
O fazendeiro fala.
Os negros vêm saindo, uns após outros,
De dentro da senzala.
— Que se acenda a fogueira, e que o castigo
Comece já, comece!
E a turma cabisbaixa dos cativos
Se confrange e entristece. 89
Conforme Massaud Moisés, em ―Uma história de quilombolas‖, Bernardo
Guimarães demonstra o relativismo de sua tese antiescravista. O literato era contra a
escravidão tanto quanto era contra os comportamentos considerados insubmissos dos
escravizados. O problema colocado é o ―cativeiro quando imposto a figuras da estirpe de
Isaura‖.90 Questão que implica numa escravidão de indivíduos semelhantes aos da classe
senhorial, sendo o caso de Rozaura – uma menina/personagem que, sendo enjeitada,
acabou por ser comprada para servir de mucama para sua própria irmã –, o ápice da
tentativa do narrador bernardino para sensibilizar o leitor para os problemas da sociedade
brasileira que submetia à escravidão indivíduos com ―boas‖ características. 91 Assim, nada
há de surpreender que o literato, que tentou comover o leitor para a situação de Isaura,
tenha reivindicado ação enérgica contra insurretos e quilombolas, 92 questão contrária às
88
―Escravo Fugido‖. Echo Sant’amarense, ano 1, n. 263, Santo Amaro, BA, 23/05/1882, p. 3. BPEB,
Periódicos Raros.
89
MORAES FILHO, Cantos do equador, p. 140.
90
MOISÉS, História da literatura, v. 1, pp. 484-486.
91
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2.
92
Um episódio real, segundo o literato, mencionado em sua nota ―Ao leitor‖ de O indio Affonso, ocorrido em
1872, é significativo do empenho do literato em destacar que não compactuava com certos tipos de
comportamentos. Antes da publicação em volume, da referida história, foi veiculada a notícia de um
―horroroso atentado perpetrado pelo Índio Affonso, e acompanhado das circunstâncias mais atrozes e
revoltantes‖. A respeito dessa suposta notícia que, conforme Bernardo Guimarães, ―a ser exata vem
desmanchar completamente a figura do meu herói, a quem atribui caráter magnânimo, índole bondosa e
110
concepções de base iluminista. Nosso literato afasta-se daquela vertente do pensamento
que muito serviu ao discurso emancipacionista, especialmente neste aspecto em que ela se
choca com elementos do pensamento racialista. Nosso literato, assim como muitos outros
seus contemporâneos, não julgava que o escravizado tinha direito a rebelar-se.93
A escrava Isaura e ―Uma história de quilombolas‖ foram escritas num período em
que a escravidão perdia sua legitimidade social, quando os mecanismos de dominação –
como o constante estado de vigilância da sociedade – não se constituíam mais como uma
prática generalizada a ponto de coibir o sucesso de muitas fugas de escravos.94 Enfim,
modificavam-se as relações escravistas provocando o descontentamento de alguns, como
de uma ressentida personagem senhorial machadiana que expôs: ―hoje os escravos estão
altanados‖, ―se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia.
Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto
escorrendo em sangue‖. 95 Tendo publicado duas representações divergentes sobre o
capitão-do-mato, Bernardo Guimarães oferece elementos para melhor compreendermos
sua perspectiva emancipacionista. Era também um contexto de discussão em torno da
emancipação, especialmente em virtude dos debates e da aprovação da lei do ―ventrelivre‖, questão que como vimos nos capítulos anteriores não foi desprezada pelo literato.
Tanto ―Uma história de quilombolas‖ quanto A escrava Isaura possuem seus enredos em
tempos passados, todavia, os narradores são declaradamente contemporâneos ao período de
lançamento dos livros, ou seja, narram a história sob a perspectiva e preocupações de seu
tempo. A primeira história ocorre sob o governo de D. Manuel de Portugal e Castro
―último governador da capitania, e o primeiro presidente da província de Minas Gerais‖,
ou seja, por volta de 1820; publicada em 1871, o narrador declara: ―esta cena se passava,
sentimentos generosos‖. Por isso, o literato logo buscou se defender: ―para que se não pense que em meu
conto tive o propósito de fazer a apologia de um facínora, cumpre-me declarar o que há de real e de fictício
em minha narrativa, e em que me baseei para prestar ao Índio Affonso o caráter com que aparece em meu
romance‖; ―para desenhar-lhe o caráter baseei-me no que em Catalão ouvia dizer a todo o mundo. Todos o
pintavam com o caráter e costumes que lhe atribuo, e era voz geral que ele só havia cometido um homicídio,
e isso para defender ou vingar um seu amigo ou pessoa da família‖. Cf. GUIMARÃES, O indio Affonso, pp.
V-IX.
93
―Enquanto um povo é obrigado a obedecer e o faz, age bem; assim que pode sacudir esse jugo e o faz age
melhor ainda‖, escreveu o filósofo suíço que é referenciado por nosso literato. ROUSSEAU, O contrato
social, pp. 9 e 12.
94
SILVA, ―Fugas, revoltas e quilombos‖, pp. 66-67; MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão:
trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 17-18, 32 e
34.
95
ASSIS, Machado de. ―História de 15 dias‖, 01/10/1876. In: Obra completa, v. 3. Org. Afrânio Coutinho.
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, p. 352.
111
há cerca de 50 anos‖.96 Em A escrava Isaura, já mencionamos, o narrador logo declara:
―era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II‖,97 indicando se tratar duma
narrativa posterior aos acontecimentos. Ou seja, os narradores serviram-se da discussão em
torno da atuação do Estado na ―questão servil‖.
Ademais, Bernardo Guimarães pretendia ―civilizar‖ o país, ou seja, produzir
libertos que não ameaçassem o domínio (ex)senhorial e o futuro da nação. Talvez aqui
esteja um ensinamento extracurricular do bacharel que, durante sua estada na acadêmica
cidade de São Paulo, contribuiu e, certamente também leu, o jornal Ensaios Litterarios,
cujos redatores ―irão entrar em contato com as idéias de civilizar a nação a partir do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro‖. 98 É importante destacarmos que a questão da
educação – enquanto meio civilizador – esteve presente em muitas obras de nosso literato.
Hélder Garmes, em estudo sobre os acadêmicos contemporâneos de Bernardo Guimarães,
menciona a existência de uma concepção histórica que pensava na constituição de uma
civilização branca e européia na América que teria sido compartilhada pelos acadêmicos.
Como considerou Garmes,
Ao que tudo indica, nossos acadêmicos compartilharam tais concepções
históricas e entenderam o Brasil a partir de tal prisma. Conscientes de sua
condição de futura elite dirigente, imbuíram-se desde cedo do papel
―iluminado, esclarecido e civilizador‖ do Estado, escrevendo para um
―povo‖ branco e europeu. Esse papel era reforçado pelas leituras de
cursos.99
Também, ao que tudo indica, na perspectiva de Bernardo Guimarães, o ápice do
processo de emancipação era a aproximação do (ex)escravo ao modelo de civilização que
se almejava, tal qual a própria Isaura, que não se distinguia de nenhuma outra ―senhora‖.
Aproximação que se daria, ainda em tutela senhorial, através da educação. Conforme
Azevedo, os abolicionistas (no caso de Bernardo Guimarães, emancipacionista) brasileiros
guiaram-se no darwinismo social de Herbert Spencer para ―fundamentar seu pressuposto
de que os ex-escravos passariam por um desenvolvimento mental favorável às
96
GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 10 e 74.
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 21. Grifo nosso.
98
GARMES, Hélder. ―Os ensaios literários (1847-1850) e o periodismo acadêmico em São Paulo de 1833 a
1860‖. Dissertação de Mestrado: DTL/UNICAMP, 1993, p. 80; estudo publicado em 2006: GARMES,
Hélder. O romantismo paulista: os Ensaios Literários e o periodismo acadêmico de 1833 a 1860. São Paulo:
Alameda, 2006, p. 71. Doravante, faremos referência à versão em dissertação e à publicação em livro. As
citações correspondem à versão da dissertação defendida em 1993.
99
Ibidem, pp. 81-82; GARMES, O romantismo paulista, pp. 72-73.
97
112
necessidades da vida civilizada‖. 100 Este é o caso de Isaura, mas também de Anselmo cujas
características que apresentamos denotam que ele era digno da liberdade que gozava. Tal
questão foi, em 1860, posta em cena na cidade de Ouro Preto – através do drama A voz do
Pagé – por nosso literato. Na história que se passa na capitania de Pernambuco de finais do
século XVI, há um índio escravizado que é estimado por suas características semelhantes
as do europeu, mas também por ser ―tão submisso, tão delicado‖: ―eu amo Henrique, esse
nobre e valente índio, que me salvou a vida, esse índio tão civilizado como nós, e capaz de
fazer inveja aos mais ilustres e valentes cavalheiros portugueses‖, declarou uma das
personagens. 101 A esse escravo índio/personagem também não faltou uma educação que o
tornava credor de confiança: ―batizado com o nome de Henrique, e educado […] com todo
esmero, mostrou-se sempre dócil, tratável e submisso, e, por sua inteligência, vivacidade e
boas qualidades, tornou-se credor da estima e distinção de todos‖.102 Possuía características
que, como vimos, estavam presentes na dócil e estimada Isaura.
A questão da ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade não foi
exclusividade de nosso literato, tendo sido explicitada e defendida por opositores e
defensores da idéia de liberdade do ventre. Em 1869, por exemplo, Adolfo Bezerra de
Menezes, defensor da libertação do ventre como solução para a extinção da escravidão,
declarou ser este ―o meio mais simples, mais fácil e mais cômodo entre todos de quantos se
tem, até hoje, cogitado‖, pois oferece ―liberdade a indivíduos nas condições de receberem
uma educação apropriada a seus novos destinos‖. 103 Tal preocupação liga-se aos perigos
que imaginavam uma educação inadequada traria para a família e a autoridade senhorial.
Como pensava o Dr. Bezerra de Menezes,
Tão desumano modo de criar, de educar e tratar o escravo, não produz
somente o mal horrendo do embrutecimento e da degradação moral de
uma raça humana; acarreta também consigo os maiores e os mais
invencíveis perigos que podem ameaçar a paz e a felicidade das famílias.
O escravo embrutecido pela educação que recebe e pela vida que leva,
não conhece o que seja honra, nem o que seja dever; não conhece a
repressão moral, só obedece a repressão material.
100
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. ―Imagens da África e da Revolução do Haiti no abolicionismo dos
Estados Unidos e do Brasil‖. Anais da Biblioteca Nacional, v. 116 (1996). Rio de Janeiro: A Biblioteca,
1999, p. 62; e, da mesma autora, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, p. 139.
101
GUIMARÃES, Bernardo. A voz do Pagé: drama em 5 actos, Ouro Preto, 1860 (In: CRUZ, Dilermando.
Bernardo Guimarães: perfil bio-biblio-litterario. 2ª Ed. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de
Minas, 1914), pp. 80-81
102
Ibidem, p. 86
103
MENEZES, A escravidão no Brasil e as medidas que convem tomar para extinguil-a, p. 20.
113
Resulta daí que a prostituição, com o cortejo de vícios humanos, é a
condição da mulher escrava; e que o ódio e o desejo ardente, insaciável
de vingança, é o sentimento mais forte do coração do negro para com a
raça branca em geral, e para com seu senhor em particular.104
Com essa perspectiva, rejeitava-se qualquer proposta que indicasse uma extinção
imediata da escravidão; o que, na referida perspectiva, colocaria na sociedade indivíduos
não preparados para gozar da liberdade:
Pode haver perigo maior para a nação, quer no sentido moral, quer no
sentido social, do que esse projeto de soltar no meio da população,
homens até aqui dominados pelo jugo da escravidão, agora armados com
o poder, e até certo ponto com o direito de saciarem todas as paixões
ruins que sua primitiva condição excitava e reprimia ao mesmo tempo? 105
Com efeito, não era esse o liberto que Bernardo Guimarães pretendia para a
sociedade. Ao contrário, em suas obras temos uma descrição do liberto ideal. Como
mencionamos, tal discussão, em torno de uma emancipação não planejada, não foi
exclusividade de nosso literato, tendo sido exposta em dois de julho de 1859, no jornal A
actualidade (em texto de autoria do irmão de nosso literato). O referido periódico contava
com Bernardo Guimarães em seu quadro de redatores, por isso julgamos possível que ele
tenha sugerido a publicação do referido texto – publicado em partes – que é datado de 15
de março de 1858. Vejamos, numa longa citação, as considerações de Joaquim Caetano da
Silva Guimarães, irmão de nosso literato, sobre o liberto que são vistos com desconfiança
justamente por sua condição:
Um dos maiores males, que também reside da escravatura, é a classe dos
libertos que dela procede; classe que seria numerosíssima, se […] todos
os vícios não fizessem nela tamanho estrago.
A imoralidade e mortalidade dos libertos é um fato reconhecido nos
Estados-Unidos, onde a polícia é mais vigilante, e a preguiça geralmente
detestada. A vista do que lá se observa, qualquer pode fazer idéia do
excesso de imoralidade a que pode chegar essa classe no Brasil, onde
uma carta de alforria é um titulo de cidadão, onde a lei mais protege do
que castiga os vadios.
O liberto entrega-se por tal forma a indolência, que a fome e a miséria
causam-lhe menos horror que o trabalho.
Com os mesmos vícios do escravo, mas sem o freio que o pode coibir,
dá-se inteiramente à preguiça, à devassidão, à embriaguez, ao furto, e à
toda a sorte de vícios por modo tal, que as leis da natureza, mais severas,
104
105
Ibidem, p. 6. Grifo nosso.
Ibidem, p. 15.
114
se encarregam de puni-los em menoscabo das leis civis; os libertos se
extinguem. 106
Ao contrário de seu irmão, no entanto, Bernardo Guimarães enxergou a
possibilidade de promover a emancipação, o que perpassava por criar um liberto ideal, que
não ameaçasse a ordem vigente e o futuro da nação. Todavia, não resta dúvidas que
Bernardo Guimarães entrou em contato com as discussões em torno da emancipação e a
propalada incapacidade do liberto viver em sociedade. Não tendo se apropriado
estaticamente de tal debate, ele apresentou uma ―solução‖: era sim possível conceder
alforrias (desde que prudentemente), eis o recado que parece ter sido explicitado em A
escrava Isaura e ―Uma história de quilombolas‖, obras emancipacionistas que primavam
pela prudência para uma tranqüila extinção da escravidão no Império do Brasil. Todavia,
sem rejeitar a ―necessidade‖ de repressão para conter comportamentos ―inadequados‖ dos
escravos como os quilombolas da história de 1871. Comportamento adequado aos
escravos, aliás, também foi apresentado, em 1871, por José de Alencar. No romance O
tronco do Ipê, o literato que também defendeu a solução senhorial – mesmo não sendo o
foco de sua narrativa – apresentou uma personagem escravizada de nome Benedicto que se
comportava quase como um guardião da família senhorial. 107
Libertos ideais em enredos românticos bernardinos
Conheçamos um pouco mais a personagem Anselmo. Era ele filho de uma
escrava: ―Eu também tenho sangue da África nas veias, e minha mãe penou no cativeiro‖;
nascido cativo ―foi fôrro na pia‖, 108 ou seja, na ―primeira chance de alforria para aqueles
que já nasciam sob o jugo do cativeiro‖; tipo de alforria que, geralmente, ocorria devido à
estima do senhor para com as mães dos libertandos, questão para a qual a ―obediência‖
escrava poderia contribuir. 109 Durante toda a história – já enfatizamos – tal personagem é
caracterizada como corajosa e leal. Enfim, demonstrava-se merecedor da liberdade que
gozava. Para além, o ―capitão-do-mato‖ demonstrava-se apto a auxiliar na difusão do
processo de emancipação. Ademais, a própria atuação de livres e libertos em funções como
feitores, capitães-do-mato e milicianos submetiam esses indivíduos a certas relações de
106
―Agricultura em Minas VI‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n.
33, 02/07/1859, p. 3. AEL/CECULT.
107
ALENCAR, O tronco do Ipê.
108
GUIMARÃES, Lendas e romances, pp. 20 e 35.
109
SOARES, A remissão do cativeiro, pp. 67 e 73.
115
compadrio e clientelismo. 110 Situação que, para além do aparato repressivo, aumentava o
domínio senhorial pela formação de um ―exército‖ de agregados.
Anselmo era um liberto ideal, aquele que auxiliava a classe senhorial. Nada mais
adequado ao discurso emancipacionista, que, aliás, também foi expresso em outros
registros históricos. Em 31 de dezembro de 1876, o Jornal do Comércio, noticiava ter
ocorrido, no dia anterior, audiência para a entrega de 131 cartas de alforrias ―por conta do
fundo de emancipação distribuído ao município da corte‖, das quais apenas 83 foram
entregues devido à ausência de alguns senhores. Na mesma ocasião ―dois ou três senhores
[…] declararam livre seus escravos classificados, renunciando generosamente à
indenização a que tinham direito‖. O juiz João Lustosa da Cunha Paranaguá, que conduziu
a audiência, mencionou o ato dos senhores; destacou os esforços provenientes da
―humanitária lei de 28 de setembro de 1871‖; e ―nessa mesma ocasião o douto juiz dirigiu
aos libertandos palavras de conselho, estimulando-os a honrarem por seu procedimento a
nova condição a que a lei os havia chamado‖.111
Lembremos que atuação de Anselmo na caça aos quilombolas foi motivada pela
tentativa de resgatar Florinda, sua amada, que havia sido raptada. A pretensão de Anselmo,
o ―capitão-do-mato‖ emancipacionista, para com a escrava Florinda, era ―forrá-la para
casar-me com ela, com consentimento do senhor‖, ou seja, atuava dentro da ordem
senhorial defendida pelo narrador bernardino como o modelo ideal para realizar a
emancipação. Foi, no entanto, impedido pelo rapto da rapariga que foi roubada ―à força da
casa de seu senhor‖ e levada para o quilombo de Zambi Cassange. 112 Enfim, além de
zombarem das autoridades e sobreviverem de furtos, tais quilombolas poderiam, na
perspectiva colocada na história, prejudicar – ainda mais – o processo de emancipação
considerado ideal, a saber, através de um processo lento e gradual, com preparação do
escravo para viver em liberdade e com o devido consentimento senhorial. Florinda, a
personagem alvo da ação emancipacionista de Anselmo, também apresenta características
físicas e morais que a tornavam digna de obter a liberdade. Conforme o narrador,
Era com efeito uma linda criatura, e sua bela figura ainda mais sobressaía
à luz de um fraco fogo, no meio dos hediondos objetos que a circulavam.
Seus cabelos, que estavam soltos, eram compridos, e desciam-lhe em
110
PEREIRA, ―As representações da escravidão‖, p. 47.
―Libertações. – Lemos no Jornal do Commercio de 31 do passado‖. Jornal da Bahia, ano 24, n. 3,
Salvador, 05/01/1877, p. 1. APEB, Setor Republicano. Grifo nosso.
112
GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 27. Grifo nosso.
111
116
ondas miúdas pelo colo, que naquele lugar onde só se viam através de
quase completa escuridão vultos negros como a noite, quase parecia alvo.
Seus olhos grandes, pré-pálpebras arroxeadas pelo pranto à sombra de
espessas sobrancelhas, pareciam dois pombos negros, espreitando cheios
de pavor à porta do ninho o vôo do gavião. As feições, a não serem os
lábios carnosos e as narinas móveis, que se contraíam e dilatavam ao
arquejo violento de seu coração, eram quase de pureza caucasiana.113
Suas características psicológicas e morais, como também ocorre com outras
personagens do literato, relacionam-se com suas características físicas, com sua beleza
―quase de pureza caucasiana‖. Estava ela de tal forma preparada para a liberdade que seu
senhor, quando deu por sua falta, não acreditou na possibilidade de que tivesse ela fugido,
proferindo as seguintes palavras:
Não, decerto; era incapaz disso. Sem dúvidas foi roubada… os malditos
quilombolas… O cabra Mateus também já [há] dias que desapareceu…
decerto foi obra daquele malvado… Ela tinha o costume de levantar-se
muito cedo, antes que os outros se achassem de pé, e saía a lavar o rosto
na fonte… foi por certo nessa ocasião… 114
Florinda era de ―feições suaves e sedutoras‖, ―corpo tão formoso‖, ―rosto de uma
pureza e serenidade angélica‖, ―seio inofensivo, mimoso ninho de meiguice e de
ternura‖.115 Anselmo e Florinda são caracterizados como nobres ao ponto de se ressentirem
pela morte de Mateus que tanto sofrimento lhes provocou, visto ter sido ele a raptá-la e
levá-la para o quilombo, provocando toda a história de perigos e sofrimentos que é narrada
na ―História de quilombolas‖:
Quando Florinda, radiante de prazer no braço de seu esposo, ao sair da
igreja, punha o pé no alpendre da porta principal, por acaso dirigiu os
olhos para o Morro da Forca, e vendo ali povo reunido, e um cadáver que
ainda oscilava pendurado no patíbulo, perguntou assustada:
— Que é aquilo?…
— É o cabra Mateus que acaba de ser enforcado, responderam-lhe
— Coitado!… exclamaram ambos os noivos, com verdadeira e íntima
compunção, e, voltando para dentro da igreja, ajoelharam-se e rezaram
pela alma de Mateus Cabra.116
113
Ibidem, p. 22.
Ibidem, p. 15.
115
Ibidem, p. 79.
116
Ibidem, pp. 105-106.
114
117
Conforme Massaud Moisés, a personagem Florinda foi precursora de Isaura. 117 A
respeito disto também mencionou Flávio dos Santos Gomes, que destacou que ―na
descrição do autor da ‗mulatinha Florinda‘ já se esboçava a imagem da escrava ‗quase
branca‘ do romance A escrava Isaura, publicado posteriormente‖.118 De fato, as descrições
são semelhantes, talvez tendo sido ―aprimorada‖ (no sentido de uma maior aproximação ao
padrão estético branco) no romance de 1875. Vejamos cronologicamente. Em 1871,
Florinda: ―As feições, a não serem os lábios carnosos e as narinas móveis, que se
contraíam e dilatavam ao arquejo violento de seu coração, eram quase de pureza
caucasiana‖.119 Isaura, em 1875: ―A tez é como o marfim do teclado, alva que não
deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou
cor-de-rosa desmaiada‖.120 Ambas possuem seus caracteres morais associados às suas
características físicas – assim como outras personagens do literato – todavia com mais
riqueza de detalhes em A escrava Isaura.
As duas obras de Bernardo Guimarães possuem relação entre si. Ambas
apresentam história de sofrimentos de escravas – uma pela ação senhorial, outra pelos
quilombolas que a raptaram – que são remidas pela liberdade e união matrimonial com
seus benfeitores. Nelas, o literato indica sobre quais escravos deveria recair a repressão,
bem como sugere qual era o comportamento considerado adequado aos libertos ou àqueles
que pretendiam a liberdade; mas, principalmente, sugere à classe senhorial como deveriam
conduzir o processo de emancipação. Para Trípoli, A escrava Isaura foi um romance ―com
propósito de propaganda abolicionista‖, todavia a respeito de ―Uma história de
quilombolas‖ destacou que foi ―apenas uma história‖, na qual o autor não discutiu a
escravidão e suas implicações. Com estas considerações, conclui-se que a ―história de
quilombolas‖ ―não se apresenta com qualquer propósito‖, consideração que, a partir do que
vimos, não pode ser verdadeira. Para ela, tal história foi apenas ―um causo, à moda
mineira, cheio de silêncios, para o leitor preencher‖.121 Tal concepção que implicitamente
enfatiza certa ingenuidade em Bernardo Guimarães pode estar relacionada à interpretação
do crítico literário Machado de Assis, que, em 1873, quando ―Uma história de
117
MOISÉS, História da literatura, v. 1, pp. 484-485.
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidade de senzalas no Rio de
Janeiro, século XIX. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 8.
119
GUIMARÃES, Lendas e romances, p. 22. Grifo nosso.
120
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 24.
121
TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, p. 67.
118
118
quilombolas‖ já havia sido publicada, escreveu que Bernardo Guimarães ―brilhante e
ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu‖.122
A partir de ambos os romances, podemos concluir que, na perspectiva de
Bernardo Guimarães, para o negro o bom destino somente era possível quando este recebia
uma educação e/ou apresentava qualidades como as apresentadas por Florinda, Anselmo e
Isaura, indivíduos dignos da liberdade que gozavam ou pretendiam gozar. Para os demais
(como o cabra Mateus e o chefe quilombola Zambi Cassange, ambos da história de 1871)
não restava senão a punição. Para Bernardo Guimarães, não havia um direito natural à
liberdade, como destacou Rousseau,123 filósofo setecentista que muito serviu aos
argumentos emancipacionistas. Ao contrário, a liberdade era um direito conquistado
através de elementos físicos e morais que tornavam os indivíduos dignos de gozá-la. O
literato, cujos narradores se apresentam como sectários de Rousseau, se afastou da
concepção iluminista rousseauniana justamente num aspecto que contradizia com a
proposta emancipacionista que ele advogava. Em suas obras, o literato também demonstra
para que tipo de escravo recaia sua compaixão, questão já explicitada, em 1852, na poesia
intitulada ―À sepultura de um escravo‖, na qual o cantor se comove ante a sepultura de um
―fiel escravo‖, não qualquer escravo:
Também do escravo a humilde sepultura
Um gemido merece saudade:
Uma lágrima só corra sobre ela
De compaixão ao menos….
Filho da África, enfim livre dos ferros
Tu dormes sossegado o eterno sono
Debaixo dessa terra que regaste
De prantos e suores.
Certo, mais doce te seria agora
Jazer no meio lá dos teus desertos
À sombra da palmeira, — não faltará
Piedoso orvalho de saudosos olhos
Que te regasse a campa;
Lá muita vez, em noites d‘alva lua,
Canção chorosa, que ao tanger monótono
De rude lira teus irmãos entoam,
Teus manes acordara:
122
ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade‖, 24/03/1873. In: O
ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 110.
123
Para Rousseau, ―se há, pois, escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza‖; ―nenhum
homem tem autoridade natural sobre seu semelhante‖. Cf. ROUSSEAU, O contrato social, pp. 11 e 13.
119
Mas aqui — tu aí jazes como a folha
Que caiu na poeira do caminho,
Calcada sob os pés indiferentes
Do viajor que passa.
Porém que importa — se repouso achaste,
Que em vão buscavas neste vale escuro,
Fértil de pranto e dores;
Que importa — se na há sobre esta terra
Para o infeliz asilo sossegado?
A terra é só do rico e poderoso,
E desse ídolos que a fortuna incensa,
E que, ébrios de orgulho,
Passam, sem ver que com as velozes rodas
Seu carro d‘ouro esmaga um mendicante
No lodo do caminho!…
Mas o céu é daquele que na vida
Sob o peso da cruz passa gemendo;
É de quem sobre as chagas do inditoso
Derrama o doce bálsamo das lágrimas;
É do órfão infeliz, do ancião pesado,
Que da indigência no bordão se arrima;
É do pobre cativo, que em trabalho
No rude afã exala o alento extremo;
— O céu é da inocência e da virtude,
O céu é o infortúnio
Repousa agora em paz, fiel escravo,
Que na campa quebraste os ferros teus,
No seio dessa terra que regaste
De prantos e suores.
E vós, que vindes visitar da morte
O lúgubre aposento,
Deixai cair ao menos uma lágrima
De compaixão sobre essa humilde cova;
Aí repousa a cinza do Africano,
— O símbolo do infortúnio.124
A referida poesia, acredita-se, foi uma homenagem ao fiel e dedicado escravo
Ambrósio, que acompanhou nosso literato durante sua vida acadêmica em São Paulo.125
Conforme informações de José Armelim Bernardo Guimarães, neto e biografo de nosso
literato que além de documentação escrita obteve dados de familiares que conviveram com
o literato, (incluindo Teresa Gomes de Lima, viúva do poeta e romancista) ―para
companheiro do novo acadêmico, deu-lhe João Joaquim [pai de Bernardo Guimarães] um
124
GUIMARÃES, Cantos da solidão, pp. 53-54.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. ―Introdução, cronologia e notas‖. In: Poesias completas de
Bernardo Guimarães. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959, p. 469.
125
120
préstimo e dedicado escravo, o Ambrósio‖. 126 Já deve ter notado nosso leitor que o
problema colocado por Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura, não foi a escravidão em
si. De acordo com Alfredo Bosi, ―o nosso romancista estava mais ocupado em contar as
perseguições que a cobiça de um senhor vilão movia à bela Isaura que em reconstituir as
misérias do regime servil‖. 127
Nas obras e nas caracterizações das personagens de Bernardo Guimarães há muito
da forma de pensar de seu tempo. Representações que se referem ao pensamento de uma
parcela de uma classe social num contexto de transição.128 Quando por um lado, a
escravidão, enquanto sistema juridicamente legítimo dependia da atuação dos capitães-domato, ―necessária‖ para a manutenção da ordem e extinção de determinados focos
considerados avessos à civilização como os quilombos. Assim, capturar fugitivos
configurava-se como uma ação digna e necessária como nos tempos de Palmares. Por outro
lado, a função de capitão-do-mato, tornava-se desnecessária diante de uma retórica de
―civilização‖ e ―preparação‖ do escravo para a vida em liberdade. Nessa perspectiva,
converte-se o capitão-do-mato num ser ―satânico‖ como a personagem Martinho, ou seja,
contrário à civilização. Eis a perspectiva de Bernardo Guimarães, que julgava que a
extinção da escravidão deveria se dar por meio da ação senhorial. Tais representações
indicam aquilo que o literato planejava para a sociedade, as razões de sua representação. A
pesquisadora colombiana Nara Fuentes Crispín, analisando (a ausência das) vozes dos
escravos numa obra literária colombiana de finais do século XIX, argumenta que tais vozes
foram silenciadas na perspectiva de que as personagens assumem ―comportamientos y
actitudes que corresponden al autor y su imaginario de civilización paternalista‖. Para
Crispín, uma das razões que guiaram o literato em sua produção, que oculta as injustiças
do regime escravista – criando a imagem de um paraíso sem conflitos – foi o peso do
discurso civilizador, projeto que define a fazenda escravista como espaço de civilização e
de construção de um modelo de nação. 129
Conforme Chartier, as representações não são discursos neutros, ao contrário,
―produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e
126
GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 33 e 35.
BOSI, História concisa da literatura brasileira, pp. 143-144.
128
Conforme Moisés, na obra de arte, ―o autor insufla um pensamento e um sentimento que, embora
pessoais, representariam os padrões de certa classe ou casta social‖. Cf. MOISÉS, A criação literária, v. 1, p.
169.
129
CRISPÍN, Nara Fuentes. ―‗Nos damos por convidados‘, la vos de esclavos en la hacienda ‗el paraiso‘‖.
Tabula Rasa, n. 4. Bogotá, Colombia: Universidade Colegio Mayor de Cundinamarca, jan./jun., 2006, p. 220.
127
121
mesmo legitimar escolhas‖. Assim, as representações se inserem na luta intergrupos.
Formulações que, de acordo com Francismar Alex Lopes de Carvalho, situam-se na
―revisão do marxismo proposta por Bourdieu‖,130 filósofo e sociólogo que considerava
haver uma estreita relação entre a produção artística e os anseios das classes dominantes,
especialmente em conjunturas em que artistas e intelectuais não possuíam certa autonomia
frente às camadas dominantes. Em suas palavras,
quando se trata de explicar as propriedades específicas de um grupo de
obras a informação mais importante reside na forma particular da relação
que se estabelece objetivamente entre a fração dos intelectuais e artistas
em seu conjunto e as diferentes frações das classes dominantes. À medida
que o campo intelectual e artístico amplia sua autonomia, elevando-se, ao
mesmo tempo, o estatuto dos produtores de bens simbólicos, os
intelectuais e artistas tendem progressivamente a ingressar por sua conta,
e não mais apenas por procuração ou por delegação, no jogo dos conflitos
entre as frações da classe dominante. 131
Com efeito, as representações do capitão-do-mato que apresentamos situam-se nas
disputas em torno do processo de emancipação, são exemplos da proposta do literato para
efetivá-lo. Produzidas num contexto de acirramento das críticas ao regime servil, existia
base sociocultural para se firmar representações de caráter mais depreciativo sobre aqueles
que atuaram na captura de fugitivos, porém os limites do discurso emancipacionista do
literato – que buscava garantir o controle senhorial sobre a mão-de-obra liberta e ao mesmo
tempo coibir os focos considerados avessos ao processo de emancipação – limitaram tais
caracterizações. Escrito mais enérgico que retrata ―o quadro das caçadas aos negros‖,
todavia se referindo especialmente aos Estados Unidos (tendo um romance como fonte),
foi produzido por Joaquim Nabuco. Ressalvou, entretanto, que ―entre nós as barbaridades
não são levadas a esse excesso na maioria dos casos, ainda que deploráveis exceções
tenham-se visto que pareçam dobrá-las‖:132
Vivo e palpitante está nesse belo romance, que foi antes de tudo uma boa
ação, a Cabana do Pai Tomás, de uma senhora cujo nome ilustre honra a
130
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand, 1988, p. 17; CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. ―O conceito
de representações coletivas segundo Roger Chartier‖. Diálogos, v. 9, n. 1. Maringá, PR: DHI/PPH/UEM,
2005, pp. 149-150.
131
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 191.
132
NABUCO, A escravidão, p. 54. Grifo nosso. A referida obra foi escrita na juventude de Joaquim Nabuco,
em 1870, e somente publicada, em 1949, quando se comemorava o centenário de seu nascimento.
122
América, Mrs. Beecher Stone, o quadro das caçadas aos negros.
Adestravam-se cães para esse mister e aperfeiçoavam-se armas de
alcance. Atirava-se aos escravos como a um animal bravio, e os que eram
presos tinham os dentes da frente quebrados. Muitas eram as crueldades
com que essa raça [branca] intolerante e exclusiva tratava seus
escravos.133
Ou, ainda, na caracterização de outro contemporâneo dos debates que considerou
que numa sociedade escravista um escravo – um negro, de modo geral – só obteria
vantagens aliando-se ao senhor contra seus parceiros visto que do seu trabalho,
Por maior que seja seu esforço, por mais inteligente que seja a aplicação
do mesmo, por mais abundante o seu resultado, a desditosa sorte em nada
melhorará, nenhum gozo moral ou material lhe pode provir de esforço
seu, mas tão somente do acaso encarnado no capricho do senhor, e por
ventura do maior desenvolvimento das más qualidades da natureza
humana.134
Era assim que para o panfletista Luis Barbosa da Silva existiam capitães-do-mato,
e outros indivíduos negros que atuavam em proveito do senhor de escravos; estes, em sua
perspectiva, buscavam benefícios que dentro do quadro tradicional do trabalho exercido
pelo negro jamais teriam. Fez uma interpretação bastante diferente da de Bernardo
Guimarães para o auxilio que indivíduos que apresentavam sangue africano davam à classe
senhorial. Ao contrário, para ele tal comportamento dos descendentes de africanos era
moralmente prejudicial, pois as vantagens que tinha com tal atitude deveriam ter em
virtude de seu trabalho, o que, em sua visão, só seria possível com o trabalho livre. Nas
palavras do panfletista,
Si se fizer colaborador do branco na opressão dos parceiros, si for delator
de seus irmãos de infortúnio, si, como um cão, der-lhes caça quando
fugirem, se os zurzir quando quiseram furtar-se por um instante ao
cansaço sem tréguas que os oprime, si se fizer corretor dos lascivos
apetites dos senhores e de seus prepostos, oh! então pode obter algum
favor, algum alívio a seus tormentos. Do exercício do bem, da aplicação
em produzir mais e melhor nenhum beneficio colhe, mas das indústrias
perversas e estéreis, que fazem prosperar a depravação de escravos e
senhores, aumentando as desgraças de uns e de outros, pode esperar
alguma material vantagem. 135
133
Ibidem, p. 54.
PARKER (pseudônimo), Elemento servil, p. 13.
135
Ibidem, p. 13.
134
123
Enfim, existiram indivíduos que pensaram na existência em si do capitão-domato, de feitores e outros agentes da autoridade senhorial – especialmente se fossem
negros – como algo extremamente prejudicial à sociedade. Bernardo Guimarães, por outro
lado, ao que tudo indica, enxergava a existência desses ofícios como agentes essenciais de
manutenção da autoridade e da moral da classe senhorial, desde que agissem com
prudência para não prejudicar o processo de emancipação em curso, ou seja, sua ação
deveria ser dirigida para um determinado tipo de escravo, àqueles não ―preparados‖ para a
vida em liberdade como o cabra Mateus e o chefe quilombola Zambi Cassange.
As representações do capitão-do-mato expostas por Bernardo Guimarães estavam
relacionadas aos anseios de uma fração de uma classe em determinado contexto, ao mesmo
tempo em que estavam informadas por questões sociais movidas pelo prisma desta mesma
fração, pretendiam ―impor‖ um projeto que se relaciona com o atendimento destes mesmos
anseios. Enfim, nada havia de ingênuo nas histórias de Bernardo Guimarães. Ao contrário,
sabia ele, muito bem, que projeto defendia, tendo exposto tal questão não apenas nos dois
romances aqui mais referenciados. No romance O ermitão de Muquém, por exemplo, o
literato expôs ao publico a idéia de que a educação poderia tornar o indivíduo útil à
sociedade, questão que certamente o autor de ―Uma história de quilombolas‖ e de A
escrava Isaura continuou concordando. A questão da educação parece ter sido uma tônica
recorrente em obras do literato mineiro. Em 1883, por exemplo, no romance Rozaura, a
engeitada, o narrador destacou o seguinte sobre uma das personagens: ―formosa e dotada
de bastante espírito e inteligência, teria sido uma das mais perfeitas criaturas, se não fosse
a falsa e má educação que lhe perverteu consideravelmente a excelente índole, de que a
dotara a natureza‖.136 O ermitão de Muquém foi publicado em São Paulo em formato de
folhetim, em 1858, conhecendo posteriormente duas edições pela Garnier, 1869 e 1873.
Certamente sua história ainda tinha algo a dizer naquele contexto emancipacionista, em
que se discutia a ―preparação‖ dos escravos para a vida em liberdade. Vejamos uma breve
descrição de Gonçalo, que de alguma forma corrobora também com a idéia da necessidade
da tutela para uma boa formação do indivíduo:
Era filho de pais abastados e de boa família; porém educado à larga,
abandonado desde a infância a si mesmo, sempre em meio de más
companhias, dotado além de tudo de índole inquieta e fogosa, este rapaz,
que poderia ser um homem de bem e útil à sociedade, se uma educação
136
Cf. GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 125.
124
regular tivesse dado salutar direção aos instintos de sua natureza, foi-se
tornando um valentão famoso, talhado a molde para as galés ou para o
patíbulo.
[…]
Ainda para maior desgraça de Gonçalo, antes de chegar aos vinte anos
de idade, tinha perdido pai e mãe.
Desde então senhor absoluto de suas ações e de uma tal ou qual fortuna,
não encontrou mais paradeiro a seus desvarios e paixões
desordenadas.137
Note a ênfase no abandono sofrido pela personagem, elemento que contribuiu e
muito para a sua péssima formação. Concepção, ao que parece, também relacionada ao
filósofo Rousseau, que acreditava que ―no estado em que agora as coisas estão, um homem
abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de
todos‖.138 Assim, para Bernardo Guimarães, da mesma forma, os escravos não deveriam
ser abandonados, deveriam ser emancipados, como fez a personagem Álvaro, e educadas
como Anselmo, Isaura e Florinda evitando ameaçarem a sociedade senhorial. Tem-se aqui,
uma suposta preocupação com o liberto. Lembremos que em A escrava Isaura, o literato
destacou que permanecendo na lavoura, os libertos ―preservavam-se de entregar-se à
ociosidade, ao vício e ao crime‖. 139 Conforme Mendonça, de 1871 a 1888 argumentava-se
sobre a incapacidade do (ex)escravo viver em liberdade sem a tutela senhorial. Ainda
segundo a autora, a idéia de proteção ao liberto, muitas vezes, foi utilizada para legitimar a
legislação emancipacionista.140 Não foi, no entanto, isso que defendeu Bernardo
Guimarães que, como temos observado, não julgou necessária a existência de leis para
conduzir a emancipação. Facilmente perceberá o leitor, que as personagens emancipadas
permaneceram na companhia de seus benfeitores, mesmo apresentando características que
justificassem sua liberdade: os libertos de Álvaro permaneceram em sua fazenda; Isaura
casou-se com Álvaro; e Florinda casou com o ―capitão-do-mato‖ emancipacionista. Neste
quesito, implicitamente o literato trata da questão da gratidão do liberto para com o seu
benfeitor, aquele que concede a liberdade. Em um dos artigos da lei do ventre-livre, que
teve a oposição de Bernardo Guimarães, proibiu-se a prática de revogar a alforria por
ingratidão. Questão que, na perspectiva senhorial, comprometia a formação de uma mão-
137
GUIMARÃES, O ermitão de Muquém, pp. 17-18. Grifos nosso.
ROUSSEAU, Emílio, ou, Da educação, p. 7.
139
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 114.
140
MENDONÇA, Cenas da abolição, pp. 29 e 31.
138
125
de-obra livre subordinada, grata ao senhor pela concessão da alforria. 141 Ademais,
seguindo-se o texto da lei o senhor era obrigado a alforriar o escravo que lhe apresentasse
seu valor.142 Conforme Mendonça, a alforria obrigatória privou os senhores de um
―importante meio de produção de dependentes‖, 143 gratos ao senhor pela concessão da
alforria da qual então era o detentor da prerrogativa. 144
Ao que tudo indica, Bernardo Guimarães atuou como porta-voz de uma parcela da
classe senhorial que se opôs ao referido dispositivo legal. Trípoli considerou que Bernardo
Guimarães, em ―Uma história de quilombolas‖, não partiu da ótica senhorial. Ressaltou
ainda que a imagem das personagens, ao não produzir os estereótipos atribuídos aos
negros, ―não interessava às camadas dirigentes, pois refutava alguns critérios de valor por
elas estabelecidos‖.145 Discordamos de tal interpretação. Como temos observado, as
representações valorativas dos ―negros‖, nas obras do literato – inclusive em ―Uma história
de quilombolas‖ –, recaíam apenas para as personagens que estavam alinhadas com o perfil
considerado ideal para o escravo/liberto: dóceis e submissos . Ademais, nas obras do
literato, os traços positivos de personalidade para os ―negros‖ existem à medida que estes
apresentavam certa mestiçagem que lhes fizeram herdar aspectos fisionômicos e morais
―brancos‖, eis os casos de Isaura, Anselmo e Florinda.
Senhores, feitores e capitães-do-mato emancipacionistas
Provavelmente, foi seguindo uma perspectiva senhorial de oposição à lei de 1871
que o literato apresentou, em suas obras, personagens emancipacionistas, inclusive um que
atuou como capitão-do-mato, que em nada agridem o domínio senhorial. Tais personagens
emancipacionistas apenas intentaram contra a prerrogativa senhorial em casos extremos.
Foi, por exemplo, nessa perspectiva que Álvaro – juntamente com o ―satânico‖ Martinho,
este cuja motivação nada tinha de nobre – agiu para ludibriar o senhor de Isaura a respeito
141
A possibilidade de revogação da alforria – mais do que sua efetividade –, assim como a possibilidade de
concessão da liberdade, era um importante meio de manutenção da autoridade senhorial. Cf. SOARES, A
remissão do cativeiro, p. 197.
142
―Lei n. 2.040 – de 28 de Setembro de 1871‖, pp. 149-150.
143
MENDONÇA, Cenas da abolição, p. 85; e, ainda, CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador,
pp. 182-192.
144
Diversos estudos apontam que a concessão de alforria foi uma tática senhorial utilizada na tentativa de
assegurar seu controle sobre a mão-de-obra. Cf., por exemplo, SALLES, Ricardo. ―Vassouras – século XIX.
Da liberdade de se ter escravos à liberdade como direito‖. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e
cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 298 e 302; FRAGA
FILHO, Encruzilhadas da liberdade, especialmente, p. 117; PEREIRA, ―As representações da escravidão‖,
p. 30.
145
TRÍPOLI, ―Imagens, máscaras e mitos‖, pp. 65-66.
126
de seu paradeiro como vimos páginas atrás. Na referida ocasião, o jovem Álvaro foi
reprimido pelo sensato Dr. Geraldo: ―tu não vês que semelhante procedimento não é digno
de ti?… que assim incorres realmente nos epítetos afrontosos, com que obsequiou-te o tal
Leôncio, que te tornas verdadeiramente um sedutor e acoitador de escravos alheios?…‖.146
Repreensão que logo a personagem responde:
— Desculpe-me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimida.
Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias
especialíssimas em que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu não dou
couto, nem capeio a uma escrava; protejo um anjo, e amparo uma vítima
inocente contra a sanha de um algoz. Os motivos que me impelem, e as
qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitam o meu
procedimento, e são bastantes para justificar-me aos olhos de minha
consciência.147
Da mesma forma justifica-se a atuação de Miguel, pai de Isaura, na fuga de sua
filha. Era uma ação extrema e justificável. Miguel tentou pelos meios tradicionais alforriar
Isaura, a saber, com o devido consentimento senhorial. Por diversas vezes suplicou ao
comendador – que sempre se recusou – para que colocasse preço na escrava, sua filha. O
pai da personagem Leôncio, no entanto, ao colocar preço para o resgate de Isaura o fez
indicando um valor bastante elevado para aquela transação:
Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!… Miguel,
sobrepujando todo o ódio, repugnância e asco, que lhe inspirava a pessoa
do comendador, não hesitou em ir humilhar-se diante dele, importuná-lo
com suas súplicas, rogar-lhe com as lágrimas nos olhos, que abrisse preço
à liberdade de Isaura.
— Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha, — respondia
com orgulhoso cinismo o inexorável senhor ao infeliz e aflito pai.
Um dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas de Miguel,
disse-lhe com mau modo:
— Homem de Deus, traga-me dentro de um ano dez contos de réis, e lhe
entrego livre a sua filha e… deixe-me por caridade. Se não vier nesse
prazo, perca as esperanças.148
O valor era demasiadamente alto, uma extorsão, tendo como objetivo evitar que
Miguel conseguisse acumular tal quantia e libertar sua filha (questão que compactua com a
146
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p. 178.
Ibidem, p. 178. Grifo nosso.
148
Ibidem, p. 65.
147
127
caracterização que o narrador fez sobre a personagem senhorial, um indivíduo devasso e
cruel). Todavia, Miguel não mediu esforços:
— Dez contos de réis! É soma demasiado forte para mim… mas não
importa! Ela vale muito mais do que isso. Senhor comendador, vou fazer
o impossível para trazer-lhe essa soma dentro do prazo marcado. Espero
em Deus, que me há de ajudar.
O pobre homem, à força de trabalho e economia, impondo-se privações,
vendendo todo o supérfluo, e limitando-se ao que era estritamente
necessário, no fim do ano apenas tinha arranjado metade da quantia
exigida. Foi-lhe mister recorrer à generosidade de seu novo patrão, o
qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha seu feitor, e do
vexame e extorsão de que era vítima, não hesitou em fornecer-lhe a soma
necessária, a título de empréstimo ou adiantamento de salários. 149
No entanto, diante da quantia estipulada pelo acordo, Leôncio, como
representante de seu pai, não somente se recusou a alforriar a escrava – descumprindo um
acordo anteriormente acertado (o que diminuía a força moral de sua palavra) – como num
período não muito distante já começaria a imputar a Isaura severos tratamentos, que
fizeram a moça, inclusive, pensar num ―recurso extremo‖, o suicídio. Pensamento que foi
reprovado por seu pai: ―não, minha filha; não serão necessários tais extremos‖, destacando:
―o dinheiro, que não me serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para
arrancar-te às garras desse monstro. Tudo está já disposto Isaura. Fujamos‖.150
Perceba-se que antes de propor a fuga, Miguel tentou atuar dentro da ordem
senhorial estabelecida: se predispôs a pagar pela liberdade de Isaura, mesmo sendo o valor
acertado uma ―extorsão‖; somente atinou com a possibilidade da fuga quando sua filha
vivia ―o mais cruel e aviltante cativeiro, um martírio continuado da alma e do corpo‖.151
Ademais, atente-se para o fato de Leôncio somente exercer a prerrogativa senhorial sobre
Isaura por ter usurpado tal prerrogativa de sua falecida mãe, como vimos no capítulo
anterior. Voltemos à caracterização da personagem Miguel, um feitor que também atuou
enquanto emancipacionista:
Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre e
aberta transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.
Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas
maneiras e conversação, conhecia-se que aquele homem não viera ao
149
Ibidem, p. 66.
Ibidem, p. 101.
151
Ibidem, p. 100.
150
128
Brasil, como quase todos os seus patrícios, dominado pela ganância de
riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de acurada
educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada família de
miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas de
perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho, que
deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem meios e sem
proteção, viu-se forçado a viver do trabalho de seus braços, metendo-se a
jardineiro e horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto,
ativo e inteligente, desempenhava com suma perícia e perfeição. 152
Esta personagem foi feitor da fazenda do comendador, pai de Leôncio, nos
momentos em que a mãe de Isaura conheceu os piores momentos de sua fictícia vida, por
resistir a sanha de seu senhor, que
Enfureceu-se com tanta resistência, e deliberou em seu coração perverso
vingar-se da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-a de
trabalhos e castigos. Exilou da sala, onde apenas desempenhava levianos
e delicados serviços, para a senzala e os fragueiros [sic] trabalhos da roça,
recomendando bem ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo.
O feitor, porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e
que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido
pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava
carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz
da vida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato veio exacerbar
ainda mais a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu com
impropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes
trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no túmulo,
antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha.153
Como já se deve ter notado era ele uma nobre personagem, um ―bom‖ feitor.
Aliás, no próprio romance é destacado que quem ocupava esta posição na sociedade
escravista era geralmente detestado, especialmente pelos escravos:
— Um raio que te parta, maldito! — Má lepra te consuma, coisa ruim! —
Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! — Estas e outras
pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor,
apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os
escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios. É abominado mais
do que o senhor cruel, que muniu do azorrague desapiedado para açoitálos e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do
juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a
executa.154
152
Ibidem, p. 64.
Ibidem, p. 33.
154
Ibidem, p. 77.
153
129
Tal ódio, no entanto, não atingia Miguel: ―isso é que era feitor bom!… todo
mundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco, que aí anda agora,
cruz nele!… é a pior peste que tem botado os pés nesta casa‖. Como já destacamos, Miguel
também era um emancipacionista, visto ter atuado na tentativa de libertar sua filha.
Todavia, ainda antes, ―o siô Miguel gostava muito de Juliana [mãe de Isaura], e trabalhou,
trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ela‖, não concretizou seu plano, no entanto,
devido ao falecimento da escrava. Se esforçar pela emancipação parece ter sido uma sina
de tal nobre personagem. Miguel era um português, sendo então a razão para que Isaura
tenha herdado as características físicas e morais ―brancas‖. 155 Provavelmente, na
caracterização desta personagem, o literato tenha se utilizado do perfil de outra
personagem emancipacionista, o ―capitão-do-mato‖ Anselmo. Aliás, Anselmo foi o nome
adotado pelo feitor Miguel quando se encontrava fugido com sua filha.
Ao que tudo indica, Bernardo Guimarães defendeu que a solução para a extinção
da escravidão salvaguardando o futuro da nação era a educação – para tornar os indivíduos
preparados para a liberdade – e o ―branqueamento‖ – que os dotaria de características
físicas e morais que os tornariam hábeis à ―nova‖ sociedade sem a escravidão. Ademais, há
no discurso de Bernardo Guimarães uma prudência emancipacionista que não lhe permitiu
de todo depreciar as figuras do feitor e do capitão-do-mato. A emancipação em suas obras
ocorre na mais perfeita ordem escravista ou desvia-se apenas em casos extremos e
justificáveis. É assim, que para além de senhores, temos um feitor e até um ―capitão-domato‖ emancipacionistas, todos com características físicas e morais ―brancas‖. Anselmo,
como vimos, era ainda um liberto. Não é novidade a atuação de libertos – e até escravos –
como capitães-do-mato,156 todavia tal questão toma um tom significativo no enredo
romântico bernardino cujo capitão-do-mato era um emancipacionista: provavelmente,
visava indicar que a própria ordem senhorial era capaz de reger a emancipação. Em 1871,
em pleno debate sobre a proposta de emancipação do governo, o deputado e jurista
Perdigão Malheiro, defendeu que a melhor opção para extinguir a escravidão era incentivar
a iniciativa senhorial de conceder alforrias. Defendeu que a própria sociedade, a ordem
155
Ibidem, p. 73.
Em estudo sobre quilombos em Minas Gerais colonial, Carlos Magno Guimarães mencionou a existência
de libertos e até escravos atuando como capitães-do-mato, seja por iniciativa própria ou encaminhado por seu
senhor. Para o autor, isso se justificava pelo conhecimento que os escravos possuíam sobre os
comportamentos dos fugitivos. Apesar de muitos forros atuarem a favor dos quilombolas, muitos defenderam
a ordem senhorial, o que, na perspectiva de Carlos Magno Guimarães, se deu devido à defesa dos próprios
interesses de alguns libertos que se tornaram senhores de escravos. Cf. GUIMARÃES, ―Mineração,
quilombos e Palmares‖, pp. 144, 151 e 152-153.
156
130
escravista, já conduzia a emancipação; retórica adotada para justificar que não havia,
naquele momento, necessidade de uma lei para tal fim. Em suas palavras,
as libertações vão-se sucedendo como os pequenos rios a formarem um
grande rio (apoiados); por atos entre vivos e de ultima vontade, com
cláusula ou sem ela, gratuitamente ou a título oneroso, de todas as idades,
sexo e condição, e até a geração futura das escravas. Concorrem de modo
notável em subscrições para tão caritativo e nobre fim. Liberta-se até
ultimamente em massa, aos 20, 30, 40 e 100, por ato de ultima vontade
sobretudo! E, não satisfeitos, dão-lhes educação, casam-nos, e
estabelecem-nos. Por fim deixam-lhes legados, às vezes valiosos, e
instituem seus herdeiros. (Apoiados.)
De sorte que o progresso da libertação, da alforria, é exatamente um dos
elementos mais poderosos com que devemos contar; que não devemos
desprezar, ao inverso animar; e muito menos contrariar. (Apoiados.)
Desde que se pretenderem providências que possam de algum modo
afetar este progresso, por meios artificiais e prejudiciais, devemos evitálo deixando a idéia seguir seu caminho.
Entendo que não devemos fazer nesta questão, senão auxiliar o
movimento espontâneo da emancipação (apoiados); essas medidas de
nascimento livre, resgate forçado absoluto, alforrias forçadas sem
critério, e semelhantes, são perigosas, inconvenientes, vão fazer grande
mal á idéia, grande mal ao país.157
Para o jurista e deputado, destacar que a própria classe senhorial conduzia um
processo de emancipação que deveria ser estimulado servia ao propósito de tentar
convencer seus pares na Assembléia Geral que aquele não era o momento para o Estado
intervir na questão servil. Bernardo Guimarães publicou duas histórias românticas nas
quais a emancipação ocorre – de forma bem sucedida – pela ação senhorial. Publicada em
princípios de 1871 (provavelmente finalizada em 1870) ―Uma história de quilombolas‖
pode ter implícito o mesmo propósito apresentado por Perdigão Malheiro, a saber, evitar a
transformação da idéia de libertação do ventre em Lei. Em 1875, no entanto, quando A
escrava Isaura foi publicada (provavelmente escrita em 1874), já estava promulgada a Lei.
Provavelmente, nosso literato tenha buscado evitar que ela se convertesse em ação prática
do Estado: ―como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico,
e ingerir-se no governo da casa do cidadão?‖, questionou o sensato doutor Geraldo,
personagem do romance de 1875.158
157
MALHEIRO, Discurso proferido na sessão da Camara Temporaria de 12 de Julho de 1871, pp. 43-44.
Grifo nosso.
158
GUIMARÃES, A escrava Isaura, p, 165.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escrava Isaura é sempre identificada como uma obra em que o autor apresentou
os sofrimentos de uma escrava branca para comover o leitor. Por isso, não poderíamos
finalizar este estudo sem algumas considerações a respeito da classificação racial de suas
personagens. A emancipação e o futuro da nação, na perspectiva do literato, dependiam de
uma maior aproximação da sociedade brasileira aos padrões culturais e estéticos europeus;
o caso de Isaura, Florinda e Anselmo, personagens educados e – apesar de mestiços – com
características fisionômicas predominantemente brancas são exemplos de um pensar na
formação de uma sociedade européia nos trópicos. Questão que se tornou mais
preponderante com a adesão e re-significação dos letrados ao darwinismo, formulando uma
concepção que compreendia o homem branco como ápice de desenvolvimento e
civilização.1 Pensamento ―civilizador‖ que, ao que tudo indica, não foi desprezado por
nosso literato. Na opinião de Silvio Romero, publicada em 1888, em sua Historia da
Litteatura Brazileira, Bernardo Guimarães
não era um desses espíritos curtos, maldizentes, que praguejavam contra
todo o progresso, um desses obcecados que desejariam ficasse o Brasil
perpetuamente entregue aos caboclos na sua inveterada estupidez. Muito
pelo contrário, Bernardo foi sempre avesso aos caboclismos exagerados.
Era um espírito liberal e progressivo.
Amava a civilização, não levava o seu amor pela paisagem, ao ponto de
gostar mais de uma bela mata do que de uma bela cidade. 2
É importante destacarmos que ―progresso‖ e ―civilização‖, para o referido
período, significava estar pautado em parâmetros considerados científicos provenientes das
luzes européias, entre eles os das Ciências Naturais e Econômicas. O que não significava
transformar a produção literária num tratado científico. Romero ao analisar o romance O
seminarista (1872) – que julgou ser um dos quatro romances mais significativos de
Bernardo Guimarães (inclui O garimpeiro, Mauricio, e A escrava Isaura) – destacou o que
provavelmente ele considerou ser válido também para A escrava Isaura. Conforme o
crítico, o referido romance
1
2
Sobre o darwinismo ver: CARULA, A Tribuna da Ciência, pp. 108-109.
ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, p. 946.
132
Não tem aquele aspecto doutrinário, escavador, científico, técnico, que
vai invadindo o romance moderno, às vezes levado a tal exagero que
antes ler um tratado de patologia, especialmente de moléstias do sistema
nervoso e das faculdades mentais, do que ler tais livros, que, afinal de
contas, nem ciência, nem arte são. O nosso livro não tem aquele aspecto
demonstrativo de uma equação algébrica nem o tom realista de um
processo crime. 3
É importante destacarmos que Romero criticou aqueles que exageravam ao se
servir de elementos ―científicos‖ em suas obras literárias e não a sua simples utilização.
Aliás, o próprio crítico, ao analisar as transformações na poesia brasileira, utilizou
elementos provenientes das ciências naturais destacando a existência de uma ―filogenia
literária‖, ou seja: ―cada nação tem seu patrimônio de idéias representativas do seu
desenvolvimento natural‖. 4 Para ele,
A literatura rege-se pela lei do desenvolvimento à maneira das formações
biológicas, ela tem a sua luta pela existência, onde as idéias mais fracas
são devoradas pelas mais fortes e tradicional e um elemento novo de
adaptação a novas necessidades e a novos meios.5
O próprio crítico reconheceu a relação entre ciência e arte. Para ele, ―a diferença
existente entre a literatura do século XIX e a literatura dos outros tempos é a mesma que
existe entre a ciência e a filosofia do século XIX e a ciência e filosofia dos outros
tempos‖.6 Ciência que, aliás, era pensada como uma forma de garantir um melhor futuro
para as nações que somente com ela progrediriam chegando aos níveis de civilização e
povo então encontrados na Europa em oposição aos negros tidos como bárbaros. Não é
novidade que a questão da presença africana preocupou os intelectuais no Brasil, tendo
sido discutida desde os primórdios da institucionalização da historiografia brasileira
através do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, cuja perspectiva
historiográfica, que também esteve presente na produção literária, indicava que se
conheceria melhor o país apreciando os elementos raciais (o branco, o negro e o índio) que
compunham a jovem nação. Em 1843, Carlos Frederico Ph. Von Martius, que concebeu o
europeu/português como elemento civilizador, ao propor ―Como se deve escrever a
Historia do Brazil‖, estabeleceu a seguinte questão sobre a presença do negro no Brasil:
3
Ibidem, pp. 959.
Ibidem, pp. 691-692.
5
Ibidem, p. 691.
6
Ibidem, p. 689.
4
133
Não ha duvida que o Brasil teria tido um desenvolvimento muito
diferente sem a introdução dos escravos negros. Se para o melhor ou para
o pior, este problema se resolverá para o historiador, depois de ter tido
ocasião de ponderar todas as influencias, que tiveram os escravos
Africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente
população. 7
Questão que logo obteve resposta. Francisco Adolfo de Varnhagen, por exemplo,
julgou que por um lado, os ―escravos africanos concorriam a aumentar a riqueza pública
com o seu trabalho, por outro pervertiam os costumes, por seus hábitos menos decorosos,
seu pouco pudor, e sua tenaz audácia‖. 8 Bernardo Guimarães não foi indiferente a tal
questão; todavia, não compactuou com uma perspectiva na qual a miscigenação era tida
como prejudicial, como alguns sugeriram na época:
quanto à raça brasileira, mistura de sangue europeu, americano e africano,
tem toda a indolência crioula, é fraca, abastarda, muito inteligente e não
menos orgulhosa. É evidente que é ao comércio com os negros que se
deve em parte a deterioração dessa raça. As negras, com seus ardores
africanos, estiolam a juventude do Rio de Janeiro e de suas províncias.
Há em seu sangue um princípio acre que mata o branco.9
É bastante provável que nosso literato tenha entrado em contato com tal discussão
ainda em São Paulo quando freqüentava a Academia de Ciências Sociais e Jurídicas (18471851). Entre 1847 e 1850, o bacharelando Bernardo Guimarães foi sócio do Instituto
Literário Acadêmico que editava o jornal Ensaios Litterarios que, conforme Hélder
Garmes, apresentava uma proximidade, ao menos historiográfica, com o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Segundo ele,
podemos ver nos artigos históricos dos Ensaios Literários uma
ramificação das concepções vigentes no Instituto Histórico e Geográfico
brasileiro, o que vem corroborar a idéia de que o Instituto Literário
Acadêmico realmente funcionava, ao menos quanto às diretrizes
historiográficas, em consonância com aquela instituição. 10
7
MARTIUS, ―Como se deve escrever a Historia do Brazil‖, p. 397.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia geral do Brazil. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: E. & H.
Laemmert, 1854, pp. 179-180 e 185.
9
TOUSSAINT-SAMSON, Uma parisiense no Brrasil, p. 100.
10
GARMES, ―Os ensaios literários (1847-1850)‖, p. 89; GARMES, O romantismo paulista, p. 78.
8
134
Tal questão, encontramos explicita, por exemplo, num artigo sobre a ―Historia dos
paulista‖, publicado em 1850 nos Ensaios Litterarios, onde se destaca uma certa tendência
à miscigenação que seria proveitosa ao futuro da sociedade brasileira. Tratando, no entanto
dos primórdios dos tempos coloniais, o autor menciona as relações entre brancos e
indígenas, todavia fez questão de generalizar seu pensamento, o que, sem dúvidas, incluía
pensar a sociedade brasileira de meados do século XIX. Conforme pensava o autor do
referido artigo, e, talvez, outros acadêmicos de sua geração,
A coexistência prolongada de duas raças, qualquer, que seja a distancia
social, que as separe, produz a final em um período mais ou menos longo
a sua fusão, meio pacífico e providencial, pelo qual tende sempre a
restabelecer-se a igualdade e unidade nacional, e a harmonizarem-se os
seus heterogêneos, ou hostis interesses; fora deste meio não restaria
nenhuma outra solução a esse grande problema social senão a expulsão,
ou extermínio de uma raça pela outra.11
É importante destacarmos que um princípio romântico, muito explicito por José
de Alencar, que não via o negro como personagem, como participante da sociedade
brasileira, foi explicitado por Bernardo Guimarães em artigo publicado nos Ensaios
Litterarios. Nosso literato, enquanto estudante da Academia de Ciências Sociais e
Jurídicas, pensou no índio, ―a raça extinta‖ – como enfatizou o jovem Bernardo –, e/ou
branco (a raça ―dominadora‖) como elemento de inspiração para a poesia brasileira,
ignorando ou omitindo o elemento negro. Conforme Garmes, Bernardo Guimarães, assim
como outros literatos (José de Alencar, Aluísio Azevedo, Almeida Pereira), manteve de
alguma forma certa coerência entre as diretrizes que ele indicou no meio acadêmico e suas
futuras produções literárias. 12 Para o jovem Bernardo, que iniciava suas investidas na senda
da crítica literária,
duas fontes se abrem fecundas de inspiração para a musa brasileira – o
nosso passado, e o nosso futuro – a raça extinta [indígena] e a
dominadora [européia]. Naquele que é os nossos tempos heróicos,
acharemos essas aventuras que tão vasto assunto dão para o gênero
histórico, como o drama e a epopéia: a historia, as tradições, os usos e
costumes bizarros e bárbaros das tribos brasileiras, suas contínuas lutas,
já entre si, já com os europeus, todas essas reminiscências de nossa
11
―Historia dos paulistas‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850, p. 43.
AEL/CECULT.
12
GARMES, ―Os ensaios literários (1847-1850)‖, pp. 116 e 150; GARMES, O romantismo paulista, pp. 98 e
123.
135
história primitiva tão cheias de heróicos acidentes e aventuras
romanescas, são ricos tesouros de poesia nacional que devemos nos
apressar em salvar das garras do olvido, consagrando-os perduravelmente
nossos cantos.13
Com efeito, em muitos dos romances escritos por Bernardo Guimarães há
menções aos elementos brancos, considerados como o futuro pelo jovem crítico, e
indígenas (tidos como nosso passado). O elemento negro, não era muito benquisto naquela
sociedade na qual os intelectuais projetavam um magnífico futuro. Foi nessa perspectiva,
por exemplo, que Perdigão Malheiro rejeitou a possibilidade da introdução de africanos
livres no Brasil, por conta da possibilidade da extinção da escravidão; julgava que o ideal
era a imigração de elementos europeus:
Houve já quem se lembrasse da introdução de negros livres. Basta,
porém, o elemento que existe entre nós; fiquem eles na sua África, que
bem precisa, e tal parece ter sido o seu destino. – Falou-se em coolies
(caulis) ou Índios da Ásia; porém Índios também temos nós, e
descendentes deles. – A experiência dos Chins está feita.
É outra a raça que devemos preferir. Convém insistir na imigração de
raça Européia. Todas as Nações da Europa e da America podem fornecêlos; se uns não são inclinados à lavoura, outros o são; empregar-se-hão
todos nas diversas industrias e serviços. O Português, o Ilhéu é muito
bom colono ou imigrante para as cidades, para o comércio, e outras
indústrias. O Alemão deve ser o preferido para a lavoura; neste intuito é
ele o melhor colono até hoje conhecido em toda a parte para onde tem
emigrado. O Norte-Americano é empreendedor, arrojado, inventivo, e
aplica-se a todas as indústrias.14
Já se chegou a afirmar que a principal personagem romântica de Bernardo
Guimarães (Isaura) somente poderia ser branca, pois exclusivamente desta forma se
sensibilizaria a classe senhorial, afirmando que ―preta no tronco, apanhando de chicote, era
coisa de todos os dias e de todos os lugares do Brasil, ao vivo‖. Concepção que ou ignora a
ocorrência de um debate racialista no tempo de Bernardo Guimarães, ou ignora que nosso
literato entrou em contato com tal debate pelo menos desde a sua vida acadêmica.
Conforme Schwarcz, a década de 1870 – período em que o romance A escrava Isaura foi
escrito e publicado – é um marco para a história das idéias no Brasil, pois representa um
13
GUIMARÃES, Bernardo. ―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma
Associação de Academicos, 1ª série, n. 2 (outubro). São Paulo, 1847, pp. 16-17. AEL/CECULT.
14
MALHEIRO, A escravidão no Brasil (Parte 3ª: Africanos), pp. 192-193.
136
momento em que ―os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental‖. 15 Sobre
a personagem Isaura, José Armelim Bernardo Guimarães, neto de nosso literato, declarou:
A principal figura será, como não poderá deixar de ser, uma escrava.
Preta? Claro que não! Escrava comum não comoverá ninguém. O que é
mesmo preciso é que a sinhazinha se sinta no lugar da negra, e que o
senhor desalmado veja sua própria filha debaixo do azorrague do feitor,
lá fora, amarrada ao tronco!…
[…]
Em Isaura moreninha de luso sangue, apenas filha de escrava, em lugar
da africana de puro sangue como as demais, percebe-se a perspicácia
acutíssima e inteligentíssima do autor, o talento sobremaneira atilado do
romancista que, por esse modo, realizou a contento a sua ardorosa
campanha contra o cativeiro. Atingiu estrategicamente em cheio o alvo
que mirava. Ele não seria o grande lidador que foi na peleja da abolição
se Isaura fosse de cor, essa é a verdade!16
A razão para Isaura e outras nobres personagens – como Anselmo e Florinda –
serem ―brancas‖, como temos implicitamente sugerido, é que as características positivas de
personalidade não eram atribuíveis aos da raça negra. A solução do literato foi
embranquecer – miscigenar – estas personagens. Ademais, temos que levar em
consideração que, como argumentamos, a justificativa central do emancipacionismo
expresso em A escrava Isaura não foi um apelo para a sensibilidade senhorial quanto aos
sofrimentos do escravo, que Isaura representa. Eventualmente, o literato fez críticas ao
preconceito de cor,17 todavia, as características positivas das personagens, a exemplo de
Isaura, ocorrem em decorrência de seus aspectos ―brancos‖.18 No romance Rozaura, a
engeitada, por exemplo, diferentemente do que ocorre com Isaura, uma personagem
mestiça tem sua beleza e características morais apresentadas com ressalvas: ―não era
Adelaide uma beleza completa e sem senão‖.19 Conforme é descrito,
Era um desses tipos singulares, que atraem e fascinam por sua
encantadora originalidade. Era de porte alto, bem feita e garbosa; de
feições era engraçada e bonita, como bem raras se encontrarão. Grandes
olhos de uma negridão e brilho incomparáveis abriam-se suavemente
15
SCHWARCZ, O espetáculo das raças.
GUIMARÃES, E assim nasceu A escrava Isaura, pp. 159-160.
17
Tal questão está mais explicitada no romance Rozaura, a engeitada, publicado, em 1883, pelo famoso
livreiro Garnier. Romance, no qual, no entanto, também fica muito implícito certo preconceito de cor por
parte do literato que caracteriza positivamente as personagens a medida de suas características ―brancas‖.
18
Sobre tal questão, que é mencionada por Alfredo Bosi, já enfatizamos. Cf. BOSI, História concisa da
literatura brasileira, p. 144.
19
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, p. 35.
16
137
entre longos cílios da mesma cor, como dois lagos onde se espelhavam o
amor e a voluptuosidade. A tez tinha a cor, que o leitor pode imaginar
seria a da filha de gentil mulata e de um belo e robusto descendente dos
Tibiriçás; era morena, mas de uma matiz suave e transparente, através
do qual via-se animar e colorir-lhe as faces o sangue ardente das duas
raças de que procedia.20
A beleza da mestiça, aliás, também é atribuída às suas características herdadas da
―raça‖ branca: ―na bem proporcionada e delicada conformação das mãos e dos pés, bem
como na finura do talhe e na elegância do porte, era ela também representante dos mais
belos e genuínos tipos europeus‖.21 Como outras personagens do literato, as feições morais
e psicológicas da personagem estão associadas às suas características físicas, ou seja, era
mestiça também neste aspecto. Como lemos no romance,
Sua natureza moral era também um composto inexplicável de qualidades
opostas, que deveriam excluir-se umas as outras, ou andar em perpetua
colisão. Fosse por índole ou por defeito de educação, era ela um misto
incompreensível de desenvoltura e recato, de meiguice e esquivança, de
ingenuidade e malicia. Nas maneiras, nos ademanes, nas palavras era às
vezes de tal desembaraço, que degenerava em estouvamento; e outras
vezes de tal timidez e acanhamento, que roçava pela imbecilidade. 22
Neste quesito, temos uma concepção que não foi exclusividade de nosso literato:
associar as características físicas aos caracteres psicológicos e morais. No já aqui
referenciado artigo ―Historia dos paulistas‖, publicado em 1850, o autor – um acadêmico
de ciências sociais e jurídicas – também destacou ocorrer uma miscigenação de atributos
morais e psicológicos. Para o acadêmico,
Eram os mamelucos o resultado desse cruzamento operado no período de
quase um século. Tinham eles herdado o valor e audácia de seus pais
[brancos], unidos à resignação, e perseverante impassibilidade de suas
mães [indígenas] […].
[…] Em grau iminente união [sic] os mamelucos [herdaram] todas as
vantagens de sua dupla origem, e em sua fisionomia se desenhavam ainda
mais vigorosamente os mesclados traços dos tipos primitivos; porem ao
mesmo tempo esta raça meio civilizada, e meio selvagem compartia os
defeitos, os vícios, e as paixões de um e outro estado. 23
20
Ibidem, p. 36. Grifo nosso.
Ibidem, p. 37.
22
Ibidem, p. 37.
23
―Historia dos paulistas‖. Ensaios Litterarios: jornal academico, s.n., São Paulo, 1850, p. 43.
AEL/CECULT.
21
138
Segundo Karoline Carula, tal questão também foi expressa por Aluísio Azevedo,
no romance O mulato (1881), que, seguindo uma concepção pautada no darwinismo,
apresenta uma história na qual a personagem principal herdou características físicas e
morais de seus ascendentes, numa explícita utilização de elementos considerados
científicos numa produção literária. 24 A escrava Isaura, a julgar pelo comentário crítico de
Silvio Romero – defensor do imigrantismo – publicado em 1888 em sua Historia da
Litteratura Brazileira, ecoou bem nos indivíduos adeptos da solução imigrantistas que
essencialmente acreditavam na superioridade da ―boa raça ariana‖ e que ―o negro é um
ponto vencido na escala etnográfica‖. 25 Ao se referir à obra, o crítico, que desprezava
abertamente a ―raça‖ africana e defendia a não necessidade de leis para extinguir a
escravidão,26 elogiou justamente as características da personagem não ignorando a solução
emancipacionista apresentada por Bernardo Guimarães. Para ele,
A Escrava Isaura é um estudo social. Assenta sobre o fato da escravidão
existente entre nós. Trata-se de uma bela rapariga, inteligente, graciosa,
prendada e alva, como um exemplar de boa raça ariana. A pobre,
entretanto, era cativa e requestada pelo senhor…
Consegue fugir em companhia de seu pai, e da cidade de Campos na
província do Rio de Janeiro, onde se passa o principal da ação, vai ter ao
Recife.
Aí passa por livre, freqüenta boas rodas, vai a reuniões, tem admiradores.
É descoberta e presa afinal, voltando ao poder do cruel senhor, de cujas
garras é arrancada por um moço riquíssimo que se tornara por ela de
profundo afeto.
O fato é possível e deu-se até mais de uma vez; há veracidade em geral,
apesar de algumas incongruências e ficelles.27
O crítico Silvio Romero, é importante destacarmos, compreendia a diversidade no
discurso antiescravista, tendo se colocado contra determinadas concepções que julgou
como intransigentes e infrutíferas, sendo assim percebemos o quanto o crítico teve em boa
conta a obra do mineiro Bernardo Guimarães, a julgar pelo elogio exposto acima e as
observações sobre a emancipação citadas abaixo:
Quem já não vê que a questão [da emancipação dos escravos] passou de
seu momento agudo sem que nada se haja resolvido, sem que outra coisa
tenhamos apreciado além das coquetices do pedantocrata Joaquim
24
CARULA, A Tribuna da Ciência, p. 141.
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 197.
26
AZEVEDO, Onda negra, medo branco, pp. 59-60.
27
ROMÉRO, Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II, pp. 959-960. Grifos nosso.
25
139
Nabuco e das declamações ingênuas e inofensivas de um ou outro
sangmêle transformado de chofre em vidente e diretor da opinião
brasileira?28
Ao que tudo indica, para o nosso literato, a solução para o futuro de progresso do
Brasil era uma mestiçagem que tendesse ao ―branqueamento‖. Sobre a personagem
Adelaide, que possuía ―mescla de sangue caboclo e africano‖, o narrador de Rozaura, a
engeitada declarou: ―se realmente ela participava das duas raças, era evidente que deixara
com seus ascendentes o que nelas há de ruim, grosseiro e imperfeito, e só herdará o que
porventura nelas há de bom, de belo e de perfeito‖. A personagem Rozaura era filha
natural de Adelaide. Mesmo com tal ascendência, a menina é descrita como branca e de
excelentes qualidades. Enfim, nosso literato foi contrário a uma perspectiva na qual a
miscigenação fazia prevalecer as heranças negativas dos indivíduos. 29 Como temos notado,
as características positivas para Bernardo Guimarães eram oriundas da ―raça‖ branca, vide
Isaura, Anselmo e Florinda. Ademais, considerou ser difícil – vide o termo ―porventura‖ –
encontrar características de caráter a serem valorizadas nas duas raças que formaram a
personagem Adelaide, que ―é na verdade uma bonita mocetona; mas tem os instintos da
raça; o sangue africano, que lhe gira nas veias, faz com que não tenha lá muito bom gosto
na escolha dos amantes‖, como declarou uma personagem.
Sobre a existência de escravas brancas, aliás, temos uma interessante declaração
de uma nobre e inteligente personagem – um acadêmico de ciências sociais e jurídicas da
Faculdade de São Paulo –, que, de certa maneira, apresenta o tom do pensamento do
literato: ―com a continuação do cruzamento, a raça africana se depura e aperfeiçoa, e eu
tenho visto mais de uma escrava branca e mais bonita que sua senhora‖. 30 Com isso,
podemos considerar que a representação de escravos brancos na obra bernardina se refere
ao otimismo do literato quanto ao futuro da nação que, na perspectiva de muitos
indivíduos, dependia de um aperfeiçoamento da ―raça brasileira‖.
A partir das obras, percebemos um literato que oscilava entre uma concepção de
base iluminista e a – florescente – concepção de base racialista, mesmo apresentando
declarações contrárias ao preconceito de cor expresso principalmente, em 1883, no
romance Rozaura, a engeitada: ―que significava aos olhos de um jovem poeta e filósofo,
sectário de J. J. Rousseau, alguma gota de sangue servil que circulasse nas veias de
28
ROMÉRO, ―A questão do dia: a emancipação dos escravos‖, p. 192.
Sobre as teorias raciais no século XIX ver: SCHWARCZ, O espetáculo das raças, pp. 56-57.
30
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 2, p. 227.
29
140
Adelaide?‖;31 não obstante, no referido romance também esteve explícita uma concepção
de base racialista (vide a declaração, da nobre e inteligente personagem, que apresentamos
no parágrafo anterior). Questão nada incomum numa sociedade que já discutia os ―males‖
da escravidão, como também explicitava uma concepção na qual o negro era considerado
social e biologicamente inferior. Conforme Célia Maria Marinho de Azevedo, a
convergência entre liberalismo e teorias raciais foi uma importante base para o discurso
antiescravista brasileiro: ―argumentos liberais e raciais convergiam para que a suposta
irracionalidade da escravidão fosse explicada‖. 32
Em Bernardo Guimarães, não encontramos um discurso radical como o escrito,
em 1870 (publicado somente em 1949), pelo jovem Joaquim Nabuco, em seu ensaio
diacrônico sobre a escravidão, que levou mais ao extremo seu discurso de base iluminista,
considerando a escravidão como
um fato criminoso, que como a pirataria, como o tráfico, como a
inquisição, pode e deve acabar sem que a sociedade deva conta aos
senhores de sua extinção, da mesma sorte que não se indenizou aos
piratas pelos cristãos, que poderiam ainda vender, nem ao Santo Ofício
pelos judeus que ainda poderiam queimar vivos. 33
Ao contrário, ao propor uma solução senhorial para a extinção da escravidão,
Bernardo Guimarães reconheceu as deficiências do regime servil, todavia, primou por sua
legitimidade. Ao aderir parcialmente a duas correntes antagônicas, uma de base racialista
(que pregava a desigualdade moral e de caráter com base nas características físicas do
indivíduo) e o iluminismo (que defendia a igualdade), o literato construiu um discurso
próprio, pautado nos interesses da classe senhorial que ele reivindicava representar. Tal
ambigüidade filosófica, que buscava conciliar tendências conflitantes, não foi uma
característica exclusiva de nosso literato. Conforme Adorno, na Faculdade de Direito de
São Paulo do século XIX, que foi freqüentada por muitos indivíduos que seguiram carreira
literária, havia uma ―vã esperança de conciliar tendências opostas‖. 34 Não podemos ignorar
que foi o curso jurídico da Academia Paulista um dos espaços de formação acadêmica,
cultural e intelectual de Bernardo Guimarães. Por fim, como observamos, nosso literato
não fez somente um discurso de interpretação da realidade em que vivia, e sim, também,
31
GUIMARÃES, Rozaura, a engeitada, vol. 1, pp. 100 e 117.
AZEVEDO, Onda negra, medo branco, p. 55.
33
NABUCO, A escravidão, p. 61.
34
ADORNO, Os Aprendizes do Poder, pp. 96-97 e 102.
32
141
um discurso que visava guiar os agentes sociais para a intervenção naquela realidade.
Intervenção que visava ―garantir‖ o futuro da nação.
REGISTROS HISTÓRICOS
Poesias, dramas, romances e artigos de Bernardo Guimarães
―[Carta de despedida aos amigos, editores e leitores do A actualidade]‖. A actualidade:
jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 2, n. 110, 19/12/1860, p. 1.
―Á memoria de João Joaquim da Silva Guimarães, no anniversario de sua morte (24 de
junho)‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro, ano 1, n. 35,
09/07/1859, pp. 3-4.
―Reflexões sobre a Poesia Brasileira‖. Ensaios Litterarios: jornal de uma Associação de
Academicos. São Paulo, 1847-1849 (publicado em partes).
―Revista Litteraria‖. A actualidade: jornal politico, litterario e noticioso, Rio de Janeiro,
ano 1, n. 54, 01/10/1859, p. 2.
A escrava Isaura. Biografia, introdução e notas por: M. Cavalcanti Proença. Rio de
Janeiro: Editora Tecnoprint (Edições de Ouro), 1967 [1875].
A voz do Pagé: drama em 5 actos, Ouro Preto, 1860 (In: CRUZ, Dilermando. Bernardo
Guimarães: perfil bio-biblio-litterario. 2ª Ed. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado
de Minas, 1914).
Cantos da solidão, 1852 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus
de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959).
Carta de Bernardo Guimarães ao editor B. L. Garnier sobre o contrato para a publicação
de O Garimpeiro. Ouro Preto, 25/02/1870. BN, MSS, I,07,09,017.
Folhas de outono, 1883 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus
de Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959).
Lendas e romances. São Paulo: Livraria Martins, 194? [1871].
Novas poesias, 1876 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de
Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959).
O ermitão de Muquém, 1858 (In: Quatro romances. São Paulo: Livraria Martins, 1944).
O garimpeiro, 1872 (In: Quatro romances. São Paulo: Livraria Martins, 1944).
O indio Affonso. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro Editor, 1873.
Poesias, 1865 (In: Poesias completas de Bernardo Guimarães. Org. Alphonsus de
Guimaraens Filho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959).
Rozaura, a engeitada. 2 vols. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1914 [1883].
Textos sobre ou que mencionam Bernardo Guimarães e/ou suas obras
―Bernardo Guimarães‖. Liberal Mineiro, ano 7, n. 28, Ouro Preto, MG, 11/03/1884, p. 1.
APM, Jornais Mineiros.
143
―Folhetim: A Escrava Isaura por Bernardo Guimarães – XIX‖. Gazeta da Tarde, ano 2, n.
134, Bahia, 23/06/1881, p. 1. CEDIG, Vários Periódicos, R0046 (1871-1892).
ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade‖,
24/03/1873. In: O ideal do crítico. Org. Miguel Sanches Neto. Rio de Janeiro: José
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ASSIS, Machado de. ―O velho senado‖, jun., 1898. In: Contos de Machado de Assis, v. 5
(política e escravidão). Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Record, 2008,
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COELHO, José Maria Vaz Pinto. Poesias e romances do Dr. Bernardo Guimarães. Rio de
Janeiro: Typographia Universal de Laemmert & C., 1885. BN, Livros, I,260,2,4.
ROMÉRO, Sylvio. Historia da Litteratura Brazileira. Tomo II (1830-1877). Rio de
Janeiro: B. L. Garnier, 1888.
Crônicas, romances, cartas, críticas, poesias e teatro de outros literatos
ALENCAR, José de. O demônio familiar: comédia em 4 atos. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2003 [1857].
ALENCAR, José de. O tronco do Ipê. 2 vols. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871.
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ALVES, Castro. A cachoeira de Paulo Afonso, 1876 (In: Obra completa. Org. Eugênio
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