Arquitectura indo-portuguesa na região do sul da Índia
e o impacto da arte dos cristãos de São Tomé da Índia na formação de
tipologias e linguagens da arquitectura colonial
HÉLDER CARITA
In: V Colóquio Luso-Brasileiro de História de Arte. Faro: Universidade do Algarve, 2002, p. 3957.
I - Introdução
Nas costas marítimas do Sul da Índia e no interior do Estado do Kerala distribui-se um
largo património de arquitectura indo-portuguesa que não foi, até hoje, objecto de estudo
sistemático. Igrejas, casas paroquiais, escolas e uma tipologia de arquitectura civil pontuam
estes territórios testemunhando uma influência portuguesa profunda que a posterior
ocupação holandesa e inglesa não dissolveu. Esta influência regista-se igualmente na
língua malaiala onde encontramos um significativo número de palavras de origem
portuguesa ligadas à arquitectura e à habitação caso de janela, portal, varanda, ripa,
cozinha, armário, mesa, banco, cadeira 1 .
Uma simples observação deste património permite detectar núcleos de produção com
características específicas. Referimo-nos a título de exemplo à produção da Costa do
Coromandel que, de uma forma peculiar, apresenta uma tipologia de igreja com nave de
cobertura em abóbada de berço com características muito diferenciadas da Costa do
Malabar e Kerala.
Num quadro de núcleos de arquitectura diferenciada encontra-se igualmente a arquitectura
religiosa dos antigos cristãos de São Tomé, espalhada pelo interior do Kerala. Aqui
encontramos um modelo de igreja indo-portuguesa que, formulada entre os finais do XVI e
XVII, é reproduzida até ao séc. XIX como arquétipo de igreja para as comunidades
autóctones e que se afasta de uma forma particularmente significativa das tipologias
desenvolvidas em Goa e nas chamadas praças do Norte.
1
Este tema tem sido objecto de estudo de Francis Arackal , que apresentou uma comunicação intitulada “The
Influence of the Portuguese on Sanskrit and Malayalam”. In: International Seminar on the Portuguese and
the Social-Cultural Changes in India (1500-1800), Pondicherry, Dez. 1999.
A análise e levantamento sistemático que temos vindo a realizar nestes últimos anos
permite não só alargar o quadro do património arquitectónico indo-português como
estabelecer a origem e percurso de algumas das primeiras influências indianas na
arquitectura indo-portuguesa. Neste quadro encontram-se os grandes cruzeiros dos cristãos
de São Tomé, cujo modelo influenciou os cruzeiros indo-portugueses, espalhando-se por
toda a Índia portuguesa e que irão circular para o Brasil, ou ainda a tipologia de igreja de
galerias laterais que atesta a formação de uma arquitectura tropical de grande coerência
arquitectónica, num período precoce do séc. XVII.
Por natureza, o fenómeno da arte indo-portuguesa apresenta-se duma particular
complexidade ao constituir-se ao longo de mais de quatro séculos por uma inter-relação
entre duas grandes culturas com tradições estéticas e mundividências profundamente
diferentes. No caso da arquitectura indo-portuguesa do Sul da Índia esta complexidade
acentua-se, ao diluir-se a influência portuguesa logo em meados do séc. XVII, com a
ocupação holandesa.
Diferente da arquitectura produzida em Goa e nas chamadas praças do Norte, onde a
influência estética portuguesa se manteve durante os séculos XVIII e XIX, no Sul da Índia
este património vai ser entendido e vivido por uma estética e sensibilidade eminentemente
indiana. O estudo desta produção arquitectónica requer assim um recuo aos quadros não só
estéticos como mentais da historiografia europeia. O entendimento do seu significado e
evolução exige uma aproximação a um fundo cultural onde as noções de sagrado e de
tempo se revelam profundamente distintas das europeias, tornando obsoleto o uso
exclusivo de categorias estilísticas como clássico, maneirista ou barroco. Igualmente o
estudo desta arquitectura remete para uma vivência da igreja como “templo”, lugar onde
habita o Deus e são realizados os rituais de culto à divindade. Esta visão, que atravessa de
uma forma mais ou menos clara toda a arquitectura indo-portuguesa, afasta-se do conceito
de “igreja romana” como lugar de assembleia dos fiéis acentuando ao espaço valores
processionais e de hierofania.
II - A arquitectura dos cristãos sírios do Malabar
A existência de uma arquitectura cristã milenar na Índia terá forçosamente influenciado a
produção de arquitectura religiosa de influência portuguesa na Índia. Para além do facto de
ser cristã, esta comunidade detinha grande parte da produção da pimenta da zona do
2
Kerala, o que aumentava o interesse das autoridades políticas e dos grupos económicas em
encetar laços de boa convivência.
Embora as relações com este grupo tenham sido muito complexas e conflituosas, as
grandes clivagens registaram-se entre autoridades eclesiásticas, pela enorme diferença de
tradições litúrgicas e de organização do clero. Fora deste contexto, situações houve em que
estas relações foram pacificas e cooperantes, possibilitando uma influência mútua.
Entroncando na própria organização social e na identidade cultural desta comunidade, os
seus costumes serão porém durante séculos motivo de discórdias que se mantêm ainda
hoje. Entre tais costumes encontravam-se os privilégios dos sacerdotes, que constituíam
uma oligarquia de grandes famílias e cuja passagem ao rito latino punha em causa, não só
todas as suas regalias económicas, como a própria estrutura social.
O estudo do impacto das igrejas dos cristãos de São Tomé na arquitectura indo-portuguesa
passa obrigatoriamente pelo conhecimento das suas características anteriores à chegada dos
portugueses. Dada a concentração da historiografia indiana de arte nos grandes
monumentos hindus e mogóis, esse estudo nunca foi realizado de uma forma sistemática2 .
A esta lacuna junta-se o facto de todas as igrejas terem sido profundamente transformadas
na sua aproximação à igreja católica e à liturgia romana obrigando o seu estudo a uma
recorrência sistemática a fontes escritas antigas.
O cruzamento da documentação portuguesa do século XVI com algumas igrejas que
receberam menores transformações ou que apresentam estruturas mais antigas permite-nos,
mesmo que de uma forma provisória, desenhar os contornos de modelo de igreja dos
cristãos de São Tomé e detectar certas invariantes que perduram mesmo após a influência
portuguesa e que não encontramos na produção indo-portuguesa da região de Cochim e das
comunidades de casta mucua 3 da Costa do Malabar.
Como elemento peculiar e caracterizador, estas igrejas apresentam um corpo torreado
sobre o altar mor, com uma cobertura de telhado de quatro águas, denominado em malaio
2
A enciclopédia editada por George Menachery inclui dois artigos sobre arquitectura religiosa do Kerala,
mas não apresenta dados concludentes sobre este tema. Cf. The St. Thomas Christian Encyclopedia, II vols.,
B.N.K. Press Private Lta., Madras, 1973, p. 137-152.
3
O termo provem do malaiala: mukkuvan (pl. mkkuvar). Literalmente a palavra queria dizer mergulhador,
mas designava a casta de pescadores que se vivia nas Costas do Malabar que se converte ao cristianismo a
partir de 1544.
3
de madubaha, que não aparece na produção de influência portuguesa das outras regiões do
Sul da Índia.
Esta acentuação aproxima-se formalmente da shicara dos templos hindus, que
simbolicamente, marca uma ligação entre a terra e o céu e se constitui igualmente como o
elemento fundamental da arquitectura religiosa indiana. Em termos funcionais este corpo
torreado divide-se em dois andares sendo o superior marcado para o exterior por pequenas
frestas ou orifícios que conferem ao conjunto um aspecto de reduto defensivo, função que
as igrejas assumiam e de que encontramos frequentes registos do séc. XVI 4 .
Pela documentação sabemos que este corpo torreado não tinha quaisquer funções de torre
sineira, pois os cristãos da Serra usavam para chamar à missa um sistema de paus
suspensos que ressoavam com o bater de um bastão em marfim. D. João III envia sinos, a
pedido de frei Vivente de Lagos, para serem distribuídos pelas antigas igrejas dos cristãos
de São Tomé. É igualmente revelador de tal prática o facto de o Sínodo de Diampar, num
dos seus decretos, determinar a obrigatoridade da existência de sino nas igrejas, permitindo
que pudessem entretanto usar” os paus que até agora costumavam pera chamar o fiéis ou
fazer sinal à missa 5 .
A resistência deste corpo torreado à influência portuguesa, como elemento fundamental da
morfologia da igreja dos cristãos de São Tomé, requer uma significação mais simbólica
que funcional para explicar a sua persistência ao longo dos séculos. Uma carta jesuítica de
1600 ao descrever o já então antigo ritual do ofertório, refere este espaço como dedicado à
elaboração das hóstias durante a missa. No momento do ofertório estas hóstias “...eram
lançados sobre o altar como se caisse do ceu...” 6 As palavras do padre Sebastião
4
“...os quais se recolheram com suas mulheres e familias à igreja que para semelhantes casos (de guerra) é
cercada de paredes altas toda ao redor...”. In: Frei Paulo da Trindade – Conquista Espiritual do Oriente. Int.
e notas de F. Félix Lopes, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1962, Parte II, p. 357.
5
Arquivo Portuguez Oriental - Os Concilios de Goa e o Synodo de Diampar, Fasciculo IV, Nova-Goa, 1862,
p.480 (Decreto n. 29).
6
A descrição deste facto é relatada numa carta jesuítica do ano de 1600 “Em hua destas igrejas estavão
huuns chavões de pao dependurados na capella mor com os quais antigamente figuravão nas hostias:
enquanto o sacerdote começava a missa, que he bem comprida, estava o sacristão em sima da capella
cozendo hu bolo de arroz, E no tempo do ofertório o lançava sobre o altar como se caisse do ceu E o
sacerdote dizia cõ elle missa” Archivum Romanum Societatis Iesu – Goa 55, fl. 33v (Carta do anno de 600
da Provincia da India do Oriente).
4
Gonçalves são bem eloquentes das funções simbólicas desta torre nas suas relações de
ligação ao céu.
Frei Paulo da Trindade, numa narração deste ritual da missa, avança um pouco mais quanto
à estrutura interior da capela mor, ao mencionar “...e ao tempo da consagração o deitavam
por um buraco que no taboado da torrinha que tinham sobre o altar, metido num cestinho
de folhas frescas” 7 . Esta descrição permite-nos abordar o tipo de cobertura da capela mor
em estrutura de madeira que formava o piso do andar superior. Desaparecida na sua
totalidade esta estrutura é substituída, mesmo em pequenas igrejas, por abóbada de berço
em caixotões de desenho clássico. A sua divulgação sistemática torna-se elemento
caracterizador dos interiores das igrejas dos cristãos de São Tomé separando-as da
produção corrente indo-portuguesa onde a cobertura da capela mor permanece em estrutura
de madeira.
Através de um dos decretos do Sínodo de Diampar, podemos visualizar que a capela mor
formava um recinto fechado, referindo o texto: “as capellas mores são muito escuras e
abafadiças, se abram nelas frestas com suas grades... em proporção que deem luz e ar”. 8
Este ambiente escuro e fechado aproximava-se da câmara onde se encontra a divindade
principal nos templos hindus.
No altar mor e estendo-se ao corpo da igreja as cruzes eram o único elemento iconográfico
permitido, facto constatado pelo padre Penteado logo nos inícios do séc. XVI: “...tem em
suas igrejas cruzes em os alltares e asy em os telhados, não tem outras imagens nem
vulltos. Espantam-se de as nos termos, que dizem que samtome lhas defendeo; digo vulltos,
porque ya os nos qua começamos a ter e elles a ver” 9 . A frase não é clara quanto á
colocação de cruzes no corpo da igreja. Uma outra descrição é mais precisa ao descrever o
interior das igrejas “todas cheias de cruzes destas que chamam de são tomé que são como
as dos comendadores de Aviz” 10 .
Apenas assim decorado por cruzes, o corpo da igreja era entendido com um valor
simbólico radicalmente diferente da capela mor. Ainda hoje nas igrejas do Kerala,
7
8
9
TRINDADE, Frei Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente, ob. cit., Parte II, p. 326.
Arquivo Portuguez Oriental - Os Concilios de Goa e o Synodo de Diampar, ob. cit., Fasciculo IV, p. 479.
REGO, António da Silva. Documentação Para a História, F.O.-CNCDP., Lisboa, 1992, vol. III, p. 545.
10
TRINDADE, frei Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente, ob. cit, Parte II, p. 328.
5
sobretudo do interior, a capela-mor é separada do corpo da nave por um grande cortinado
diferenciando níveis de sacralidade. Ao altar-mor tem acesso, apenas o sacerdote e os
diáconos, facto igualmente observável nos templos hindus. O entendimento do corpo da
igreja como lugar subsidiário e de apoio ao altar-mor causou grandes perturbações na
mentalidade católica ocidental da época, que o interpretou erradamente como descuido e
falta de religiosidade. Nas referências criticas apercebemo-nos que este espaço servia para
guardar os apetrechos para a preparação das refeições: não porão bategas, nem caldeirões
nem outras coisas muy indecents para igrejas, (decreto 27) Outra função deste espaço era
a sua frequente utilização para acolher doentes que aqui pernoitavam com toda a família 11 ,
o que remete mais uma vez para uma vivência desta zona como local de uso quotidiano
não se afastando da vivência do templo hindu.
Referência sistemática na documentação é a forte presença de alpendres nas igrejas. Estes
espaços cumpriam funções mais importantes comparativamente às igrejas europeias. Com
uma preocupação, afim a toda a cultura indiana, com a pureza do sangue e com a
intocabilidade, os alpendres serviam como lugares destinados aos crentes de outras castas
assistirem à missa, ou outras cerimónias sem se tocarem.
Além destas funções, os alpendres eram local habitual de refeição após a missa como
refere uma carta: “...depois da missa todos os ricos e pobres pequenos e grandes se çentão
nos alpendres da igreja... onde também se assentão os cléricos por sua ordem e alguns
despachados repartem o comer alguas vezes he de bolo com figos ...” 12
As formas dos alpendres não mereceram referências especiais concluindo-se que não se
afastariam significativamente dos modelos europeus. Nas duas igrejas que encontramos
com menores influências europeias, caso de Kalloppara e São Jorge de Puthupalli, estes
alpendres surgem apensos ao alçado lateral conformando-se como uma estrutura de salahipóstila, com grossas colunas repousando num soco largo onde ainda hoje os crentes se
reúnem no dia à dia.
11
“Neste bispado muito ordináriamente dormem nas igrejas os doentes , ainda casados, com suas mulhers e
familias por muitos dias, por devoção”. In: Arquivo Portuguez Oriental - Os Concilios de Goa e o Synodo de
Diampar, ob. cit., Fasciculo IV, p. 481 (Decreto n. 31).
12
Archivum Romanum Societatis Iesu – Goa 55, fl. 286v (Anua de 1612).
6
Numa aproximação à arquitectura dos antigos cristãos de São Tomé, as estruturas de
organização de conjunto edificado e da sua implantação assumem particular significado.
Aproximando-se de uma estrutura espacial de templo, estas igrejas têm tendência a
localizar-se no centro de um terreiro cercado por altos muros, formando um recinto
interior 13 que permite a circulação de rituais processionais à sua volta. Este terreiro era
provido de poço ou tanque de abluções, como descreve o padre Penteado ainda em carta ao
rei D. Manuel “ao entrar da igreja am-de lavar os pes em hum poço que tem, em hum
pateo a entrada de todas as suas igrejas”14
Na valorização duma ritualidade processional, o terreiro era marcado pela presença de um
cruzeiro que formava conjunto com o edifício. Em granito, uma grande cruz assenta sobre
uma base decorada com baixos relevos afectos a uma estética hindu. Este elemento elevase a par da torre da capela mor como um dos elementos de máxima hierofania nas igrejas
dos cristãos de São Tomé sendo lugar constante de ritual e oração.
No seu conjunto, a vivência e morfologia das igrejas dos cristãos de são Tomé anteriores à
influência portuguesa desenham-se com uma forma muito aproximada aos templos hindus
da região do Kerala. Neste sentido, Frei Paulo da Trindade, que nasceu e viveu toda a sua
vida no Oriente, realiza uma síntese despreocupada ao descrever “as antigas eram feitas
ao modo de pagodes” 15 .
Se estes elementos dispersos não fornecem uma visão completa para uma reconstituição
desta produção arquitectónica, alguns elementos identificados permitem-nos com mais
segurança estabelecer parâmetros, analisar evoluções e influências no quadro geral da
história da arquitectura indo-portuguesa do Sul da Índia.
III – Formação das primeiras tipologias do Séc. XVI
As primeiras tipologias de influência portuguesa nas igrejas dos cristãos de São Tomé
coincidem com o estabelecimento de contactos estáveis com estas comunidades, cuja
13
“é cercada de paredes altas toda ao redor...”. In: Trindade, Frei Paulo da. Conquista Espiritual do
Oriente. Int. e notas de F. Félix Lopes, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1962, Parte II, p.
357.
14
REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente
- Índia. ob. cit., vol. III, 1991, p. 549.
15
TRINDADE, frei Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente ob. cit., Parte II, p. 328.
7
finalidade era a tentativa de as aproximar ao rito latino e acabar um largo conjunto de ritos
e costumes considerados inaceitáveis para a mentalidade religiosa europeia da época 16 .
A complexidade da situação, onde liturgia e rito se interligavam com os costumes e a
cultura, exigia não uma acção pastoral, tentada com pouco êxito nas primeiras décadas,
mas a formação de clero autóctone que possibilitasse uma alteração realizada com o apoio
das próprias estruturas eclesiásticas. Neste processo foram os franciscanos o primeiro
grupo a desenvolver esforços com a criação em Cranganor de um seminário para a
formação de sacerdotes naturais da região. A razão da escolha desta cidade tinha a ver com
a convergência de vários factores que tornavam a comunidade de cristãos de São Tomé
favorável aos portugueses. Em 1526, guerras entre o Samorim de Calicute e o rei de
Cochim tinham destruído a sua antiga igreja, que é reconstruída à custa da fazenda real
com o apoio das autoridades portuguesas. Por outro lado a fortaleza contava com um
capitão, João Pereira, nascido na Índia, conhecedor da lingua malaiala e dos costumes da
terra 17 . Quanto ao apoio das autoridades eclesiásticas autóctones, em Cranganor
encontrava-se o Bispo sírio Mar Jácome. Por influência de frade dominicano João Caro
este bispo tinha iniciado uma aproximação ao rito latino em oposição a outro bispo sírio,
Mar Tomé que no Sul se mantinha numa posição mais renitente à influencia da igreja
romana.
O seminário ficou a cargo do fraciscano frei Vicente de Lagos, que viera na comitiva de D.
João de Albuquerque, primeiro bispo da Índia e também franciscano. A partir dos
princípios da década de quarenta inicia com êxito a formação de sacerdotes autóctones que
se irradiam para o interior do Kerala. Paulo da Trindade descreve a acção de Frei Vicente
de Lagos junto dos cristãos: “...e dali ( Cranganor ) ia muitas vezes pregar às suas igrejas
e edificou algumas entre eles ao nosso modo” 18 .
Neste caminho para o interior os franciscanos contaram com o apoio diplomático das
autoridades portuguesas de Cochim e do seu convento nesta cidade, estabelecendo relações
16
Para além do rito eram, talvez, os costumes como o sacerdotes poderem casar e terem uma formação
religiosa elementar ou os sacramentos serem pagos, que fazia com que grande parte da população não fosse
baptizada, que constituíam os elementos que mais perturbavam a mentalidade dos religiosos da época.
17
João Pereira era filho de Diogo Pereira, chefe de fila do grupo dos casados de Cochim e conhecido com o
nome do Malaio. A sua amizade ao Rei de Cochim levara o rei a doar-lhe a ilha de Benduruti em frente a
Cochim e os seus conhecimentos da lingua e costumes malaios eram famosos.
18
TRINDADE, frei Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente, ob. cit., Parte II, p. 332.
8
com as cortes dos pequenos reinos situados na sua periferia, como Betimene, Mangate e
Porakade 19 . É esta acção que explica a construção de uma igreja anterior à construção do
seminário de Cranganor descrita pelo fraciscano Frei Lorenço de Goes em carta a D. João
III, datada de 1536, referindo esta igreja construída por um “destes muito velho e honrado
que se chamam Simão e vive nove ou dez léguas de Cochim. Eu fui ja em sua casa. Este foi
o primeiro que fez igreja ao noso costume” 20 .
Realizada por volta dos anos quarenta, é esta primeira acção dos franciscanos que pode
explicar uma tipologia de igreja que encontramos pontualmente na zona do Norte e na
região do Lago de Vembanad. De pequenas proporções, estas igrejas apresentam uma
morfologia simples com telhado de duas águas, com uma fachada sem decoração rematada
em triângulo com óculo de iluminação. Como variante podem apresentar torre sineira,
adossada a um dos lados, ou em casos mais simples campanário. Uma escada estreita de
acesso ao sino corre do lado de fora da empena, sendo protegida das chuvas por beirado
saliente à maneira de alpendre. O interior segue a contenção do exterior, com uma nave
rectangular com arco de volta perfeita abrindo-se para a capela mor. Junto à fachada
principal forma-se um coro de estrutura de madeira suportado em alguns casos, por duas
colunas.
Num desenho simples de tradição tardo manuelina, apresentam semelhanças com um outro
pequeno grupo de igrejas franciscanas da zona de Bardez, em Goa. Mas a sua tipologia
afasta-se da do grupo de Bardez por tenderem a apresentar um alpendre de entrada com
telhado de três águas, enquanto os exemplos de Goa tem tendência a apresentar nártex
saliente.
Em termos evolutivos o tipo da pequena igreja franciscana terá sofrido rapidamente um
aumento de escala de decoração, de acordo com a visão autóctone onde a comunidade se
via espelhada na grandeza da sua igreja. Esta adaptação a uma tal mentalidade é bem
descrita por frei Vivente quando pede desculpa ao Rei: “verdade hee que tenho alguma
culpa hee pola obra hum pouco gramde, e nam se pode menos fazer pelos muitos moços e
19
Este pequeno reino de Porakade situado a Sul de Cochim e na região da actual cidade de Kotayam era
referido na nossa documentação como o Reino de Porca.
20
REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente
- Índia. ob. cit., vol. II, p. 245.
9
mais a terra o requere... e ( o edifício ) se feze faz atee quy com hum sacerdote meu
decipolo malavar que he o mestre das obras” 21
Se na morfologia e linhas estéticas esta tipologia, introduzida na Índia a partir das
primeiras décadas do séc. XVI, manifesta poucas alterações ao modelo português, a
implantação paisagística e urbana revela, em oposição, uma estrutura que perdura as
tradições das antigas igrejas de cristãos de São Tomé.
A igreja tende a organizar-se como um núcleo autónomo em relação às povoações,
cercado de muros com um portal de entrada. Igualmente, o corpo da igreja tende a
localizar-se ao centro deste terreiro marcado da mesma forma emblemática pela presença
de um grande cruzeiro que de granito passa a uma estrutura de alvenaria. Conforme a
importância da comunidade à volta deste terreiro dispõem-se a casa paroquial e uma escola
formando um conjunto arquitectónico coerente.
IV - A igreja de galerias laterais
Espalhada por toda a região de Cochim e interior do Kerala encontramos um vasto grupo
de igrejas, com referências maneiristas caracterizadas por fachada dividida em tramos
verticais com uma forte acentuação plástica de pilastas, colunas, frontões, frisos, pináculos
e baixos relevos.
No seu conjunto este modelo revela uma clara autonomia face à produção de Goa por não
optar por uma tipologia de fachada com duas torres simétricas, como encontramos na
generalidade das igrejas de Salcete e Bardez.
Numa primeira fase este modelo apresenta uma fachada de três tramos evoluindo
posteriormente para uma fachada de cinco tramos. Atestando um processo evolutivo por
fases, nesta tipologia de cinco tramos encontramos ainda uma fase de transição até um
modelo final caracterizado pela formação de galerias ao longo das fachadas laterais. A
originalidade plástica desta solução, onde a fachada e planta se articulam com as galerias
num todo coerente, conferem a esta tipologia final um significado particular na história da
arquitectura indo-portuguea e no contexto das arquitecturas ditas coloniais. Repetido ao
longo dos séculos XVII e XVIII e XIX, com pequenas variações, este modelo apresenta
21
REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente
- Índia. ob. cit, vol. IV, p. 201-202.
10
dificuldades de estudo quanto à sua formação e evolução, dada uma convergência de
factores como o desaparecimento dos grandes edifícios religiosos da cidade de Cochim, a
substancial alteração que a maioria destas igrejas sofreu e a escassez de documentação.
Do inquérito realizado em toda esta região do Kerala encontramos um conjunto de igrejas
de cristãos de São Tomé situada na zona de Angamaly 22 com fachada de três tramos, mas
de características mais eruditas e próximas a um desenho europeu, sugerindo um modelo
de referência centrado nesta cidade.
A construção destas igrejas parece coincidir com um nova etapa de relações com os
cristãos de São Tomé que, implementada pelos jesuítas, é apoiada por um seminário
construído precisamente na cidade de Angamaly. Os portugueses contavam nesta operação
com o apoio do arcebispo Mar Abraham que assumira em 1565 a chefia de um novo
arcebispado criado pelo Papa, cuja sede tinha lugar precisamente em Angamaly. Depois de
alguns anos de complicadas negociações as autoridades portuguesas celebram com
intervenção do próprio Rei de Cochim um acordo oficial em 1577 com Mar Abraham 23 . A
assinatura do acordo é realizada em Cochim, com grande pompa, fazendo-se o Arcebispo
de Angamaly acompanhar de uma extensa comitiva “de cerca de mil christãos com suas
armas e com a grita que costumam os malabares ... era gente mui lustrosa e appesoada” 24 .
O modelo de igreja que encontramos na região de Angamaly caracteriza-se por uma
fachada de composição clássica ainda de três tramos e sem torres, semelhante às primeiras
igrejas edificadas em Goa segundo o esquema do Bom Jesus. A sua erudição revela-se por
uma maior proximidade, em termos do desenho de fachada, a um léxico tratadístico. A
fachada principal é coroada ao centro por frontão de linhas clássicas e pináculos em
pirâmide sem a ondulação e exuberância que a pouco e pouco se irá manifestando com a
evolução desta tipologia. Tal como em Goa, as fachadas são divididas em vários andares,
com cornijas salientes que a percorrem de lado a lado, salientando essa divisão. A esta
22
Neste conjunto encontra-se a igreja de São Sebastião e São Jorge e nos arredores desta cidade a igreja de
São Tomás de Paravoor.
23
Acabou se de concluir a comunicação e amizade que se desejava com o arcebispo dos cristâos de são
Tomé e a entrada na Serra (Anua1 de 1577 do Colégio de Cochim, Coulão, Costa de Travancor, e da
Pescaria). In: REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português
do Oriente - Índia. ob. cit, vol.XII, p. 379.
24
In: REGO, António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do
Oriente - Índia. ob. cit, vol. XII, p. 379.
11
marcação da horizontalidade com fortes cornijas, associa-se uma compartimentação
vertical, com colunas geminadas e pilastras, cuja tendência decorativa é acrescida pela
introdução de molduras, nichos, baixos relevos de anjos, animais e elementos florais. Esta
acentuação responde a uma mundividência indiana marcada por uma rigorosa
hierarquização da sociedade que tende a determinar um lugar e um plano para cada
elemento cultural.
Num processo de adaptação às tradições indianas, verificamos que este primeiro modelo de
Angamaly vai espraiar-se pontualmente pelo interior do Kerala, nas comunidades de
cristãos de São Tomé, tornando-se a decoração mais exuberante e com mais referências à
iconografia indiana. Os frontões ondulam, as cornijas e entablamentos desdobram-se, as
pirâmides tomam forma de bolbos e figuras preenchem as superfícies, afastando-se todo o
desenho do seu léxico inicial.
Facto curioso, este modelo mantêm-se no seu conjunto afastado das igrejas dos arredores
de Cochim, que apresentam uma fachada com tramos marcados por pares de colunas
adossadas. As igrejas dos cristãos de São Tomé mantêm na estrutura da sua fachada uma
matriz de memória mais clássica, dividindo-se os seus tramos por fortes pilastras nos
extremos, a delimitarem a composição do alçado, e colunas geminadas ao centro, solução
no seu conjunto esteticamente mais elaborada, de que não encontramos hoje exemplos na
região de Cochim.
Esta evolução, que terá levado algumas décadas, corresponde à acentuação das influências
portuguesas e à imposição do rito latino, que teve o seu culminar com o Sinodo de
Diampar em 1599. A partir deste ano e coincidindo com uma progressiva hegemonia
portuguesa sobre os reinos do Malabar, toda a igreja de São Tomé passa oficialmente para
a jurisdição do arcebispado de Goa. Se na primeira acção iniciada pelos franciscanos se
observa uma lenta alteração das antigas igrejas por assimilação do rito latino, o Sínodo de
Diampar, com todos os seus decretos e peso institucional, impõe estas transformações. A
organização eclesiástica adoptada obriga à construção de novas igrejas por paróquias
levando à construção de mais igrejas, casas paroquiais e escolas. Após aquele sínodo, D.
Frei Aleixo de Menezes nomeia arcebispo de Angamaly o jesuíta Francisco de Roz,
consolidando a posição da Companhia sobre toda a comunidade dos cristãos de São Tomé
e naturalmente sobre as suas soluções arquitectónicas.
12
Imbuída de rigor e determinação reformista, esta etapa de relações terá porém o seu
reverso em 1652, quando, em pleno início da decadência política portuguesa se dá a
chamada revolta de Mattanchery, que dá inicio a uma ruptura com as autoridades
eclesiásticas portuguesas e à divisão da comunidade dos cristãos de São Tomé em várias
Igrejas 25 .
A formação do modelo de igreja com cinco tramos e galerias laterais parece ter evoluído
lentamente por etapas dado que encontramos exemplos de transição: com cinco tramos,
mas apenas com uma varanda lateral virada a Sul, apresentando frequentemente torre
sineira na fachada oposta, caso das Igrejas de Ramapuram, Lalame New em Palai ou de
Santo André em Artunkal.
Na sua estrutura interior verificamos igualmente uma evolução marcada pela ampliação da
nave em termos de largura e altura. Caracterizando-se no seu todo por uma planta
rectangular com arco triunfal na passagem para o altar mor, os alçados interiores tendem a
ser divididos em dois andares com janelas ao nível do primeiro. Este alargamento vai
permitir a colocação simétrica de dois altares na parede do arco do altar mor, passando os
três retábulos a formarem conjunto. Este esquema parece decorrer directamente das
disposições do Sínodo de Diampar, registando o seu decreto 29 a obrigatoriedade de “ feito
primeiro o (retábulo) do altar mor procurem logo os dos altares colateraes” 26 . Sem uma
clara formulação, a análise dos decretos do Sínodo de Diampar transparece a ideia de um
modelo de igreja que se pretendia implementar em toda a comunidade dos cristãos de São
Tomé.
Ao aumento de escala e à preocupação de dignificar a nave central liga-se um maior
investimento decorativo que se reflecte nos interiores ao nível do tecto, coro e púlpito.
Facto referido frequentemente, o Kerala e o Sul da índia dispunham de uma antiga tradição
25
Na sua generalidade os estudos sobre a história dos cristãos de São Tomé são marcados por fortes
controvérsias que perdem rigor cientifico. Embora com uma clara tendência papal e anti portuguesa a história
mais conhecida é sem dúvida do Cardeal Eugéne Tisserant –Eastern Christianity in India- A History of the
Syrio-Malabar Church from the earliest Time to the Present day. Ed. Ort Longmans, Bombaim-CalcutaMadrasta, 1957.
26
Arquivo Portuguez Oriental - Os Concilios de Goa e o Synodo de Diampar, ob. cit., Fasciculo IV, p. 479
(Decreto n. 29).
13
de marcenaria que Pyrard de Laval descrevia: “a sua obra de carpintaria e de marcenaria
é a mais linda que se pode ver” 27 .
Esta perícia artesanal vai inscrever-se nas grandes traves do tecto e de suporte do coro,
profusamente entalhadas, em misúlas, púlpitos e naturalmente na decoração dos retábulos.
Com mais incidência que na marcenaria religiosa goesa, vemos emergir toda uma fauna de
animais e figuras míticas ligadas às tradições culturais do Kerala, como é o caso dos
elefantes, leões, pavões, nagas, que se imbricam num mar de enrolamentos e folhagem,
pontuado por anjos e querubins.
O alargamento da nave permite enfatizar a visão frontal do altar mor, ladeando-o por
altares surge intimamente ligado à solução de alargamento da fachada com mais dois
tramos articulando-se com galerias.
O significado particular destas galerias revela-se pelo facto de se afastarem de um conceito
de alpendre, como elemento de adição, funcionando a um nível da concepção global do
edifício, na sua articulação implícita entre fachada, planta e alçados laterais.
Acompanhando uma mutação tipológica global ela sofre, igualmente, uma transformação
progressiva evoluindo de galeria formada por arcada simples para uma galeria de dois
pisos com varanda no primeiro andar que, por sua vez, estabelece ligação directa com o
coro. Correndo ao longo das fachadas laterais estas galerias-varanda além de funcionarem
como um elaborado sistema de protecção solar e arejamento da nave interior dotam o
edifício de um clima de lazer e usufruto sensorial afecto a um tempo e a uma mentalidade
tropical.
A originalidade arquitectónica de que se reveste o modelo de igreja de fachada de cinco
tramos com galerias-varanda, impõe, pela sua importância, uma particular atenção na
tentativa de determinar com rigor a cronologia da sua formação e evolução. Neste quadro,
o estudo das igrejas da missão jesuítica de Santo André possibilitam-nos estudar a
formação desta tipologia pela convergência de documentação coeva com um relativo bom
estado de conservação dos edifícios.
Estas igrejas faziam parte de uma missão jesuítica situada a Sul de Cochim no reino de
Muthedath e Porakad, cuja primeira igreja, dedicada a Santo André, deu nome à missão.
27
Pyrard de Laval, Francisco. Viagem de ..., trad. de Joaquim Cunha Rivara, Lisboa: Livraria Civilização
Editora, 1944, vol. I, p. 300.
14
Situada na orla marítima, polarizava à sua volta uma população de casta baixa mucua,
pontuada por comunidades mais ricas de cristãos de São Tomé.
Pelo facto desta missão estar dependente do Colégio de Cochim, o seu desenvolvimento
era objecto de informação no relatório anual que o responsável do Colégio devia enviar
para Roma. Caso raro, a história desta missão foi tratada por Schurhammer 28 que, ao
levantar um conjunto de fundos documentais, permitiu a prossecução de um estudo
centrado agora na produção arquitectónica.
Na sequência de outra missão de Palluruty fundada em 1568, a missão de Santo André é
iniciada em 1581 com a autorização de construção de uma igreja de madeira pelo rei de
Muthedath. O estabelecimento de relações de amizade e cooperação entre o rei e a missão
levam a que em 1590, seja autorizada a transformação da igreja para um edifício de pedra e
cal 29 . A sua construção arrasta-se por oito anos como informa a Anua de 1608 afirmando
“a igreja que avia alguns anos se começou se acabou este ano de esmollas” 30 .
A fachada apresenta uma estrutura de cinco tramos com torre lateral ( hoje neo-gótica ) e
uma vasta galeria de dois pisos ao longo da fachada lateral, acusando porém alterações
posteriores ao projecto inicial. A partir de 1611 toda a região é assolada por guerra entre o
rei de Muthedath e o rei de Cochim. A igreja de Santo André serve como custódia dos
tesouros de ambos os reis. No final da guerra o estado da igreja requer obras que se
prolongam entre 1619 e 1622 31 . Pensamos ser desta época a actual fachada, assim como a
extensão da galeria lateral que envolve inusitadamente a cabeceira do altar mor, porém a
estrutura interior, pela sua rara unidade, não sofreu porém alterações ao projecto inicial. A
proporção da nave desenha-se estreita, sem lugar para os altares junto ao arco do altar mor.
Em contraponto a nave forma cruzeiro por duas capelas laterais, cujos arcos sobem à altura
do arco da capela mor formando uma sequência marcada por grandes pilastras que se
prolonga pelos alçados laterais num programa decorativo de grande rigor compositivo.
28
SCHURHAMMER, Georg. The Mission Work of the Jesuits in Muthedaty (alias: Arthunkal) and Porakad
in tye 16 th and 17 th centuries, Santa Cruz Press, Allepy, 1957.
29
30
Idem, ibidem,p. 12.
WICKI, Joseph. Documenta Indica, IHSI, Roma, 1988, vol. XVII, p. 905.
31
SCHURHAMMER, Georg. The Mission Work of the Jesuits in Muthedaty (alias: Arthunkal) and Porakad
in tye 16 th and 17 th centuries, ob., cit., p. 28.
15
Pelo ano de 1600, o crescimento da missão determinava a construção, mais para o interior,
em Porakad, de uma igreja de invocação a Nossa Senhora e, mais a Sul, em Thumpoly,
outra de invocação a São Tomás. Em toda a Costa do Malabar este período marca o apogeu
político português na região. A fortaleza de Cunhale, refúgio dos piratas do Malabar, é
destruída em 1599, dando por fim aos ataques de pirataria que assolavam constantemente
aquela Costa 32 .
Ao sucesso da missão liga-se, por outro lado, a inteligência e energia de Giacomo Fenicio
que progressivamente se impõe como mediador entre os reis da região graças ao seu
prestígio na corte do rei de Cochim. Entre as qualidades de Fenicio destacavam-se os seus
conhecimentos em matemática e astronomia, cuja fama levou o Príncipe reinante de
Cochim a pedir-lhe para se deslocar á corte a fim ensinar os sábios brâmanes. Para lá se
dirigiu, com a sua famosa esfera, relatando numa carta de 1603 “...estava o principe
desejoso de ver a esphera que nunca tinha visto... e pusla na altura de Calicut em doze
graus e depois na de portugal” 33 .
A formação matemática passava, na época, por uma forte aproximação à arquitectura, o
que pode explicar o caracter experimental de Thumpoly. Construída apenas dez anos
depois de Arthunkal, esta igreja ensaia uma nova proposta arquitectónica.
Ainda em cobertura vegetal, Thumpoly é iniciada em 1600, sendo queimada e destruído o
seu cruzeiro por dois naiques, chefes militares na região. O facto inusitado na cultura
indiana onde qualquer edifício religioso tende a adquirir um valor sagrado, motivou a
intervenção das autoridades portuguesas e do próprio Rei de Cochim, sendo os
responsáveis presos e executados. Por indicação régia é determinada a construção de uma
nova cruz e uma igreja de maiores proporções, facto que explica a sua grandiosidade,
quase excessiva para uma pequena aldeia de pescadores. Com grande solenidade marcada
pela presença do Rei de Cochim, em 1602 é consagrado o cruzeiro e colocada a primeira
pedra para a nova igreja. O cruzeiro toma, porém, a forma inusitada de capela numa planta
quadrada com cobertura de cúpula octogonal sem paralelo no Sul da Índia nem em Goa. A
32
Cunhale era um espécie de pirata que atacava as costas do Malabar com apoio e financiamento dos grupos
islâmicos conhecidos por chatins que até à chegada dos portugueses dominavam todo o comércio marítimo
do Malabar.
33
Archivum Romanum Societatis Iesu – Goa 55, - Anua de 1604, (Treslado da carta de Jacome Fenicio no
ano de 1603).
16
recorrência ao cubo e uma geometria de grande pureza de linhas, onde a decoração se torna
supérflua, manifestam uma erudição que mais uma vez indiciam a cultura estética de
Jacome Fenicio e o seu gosto pela arquitectura.
Não encontramos referência ao acabamento da igreja, mas a sua monumentalidade terá
requerido largos anos, como aconteceu com Arthinkal. Afastando-se da planta da sua
antecessora, a estrutura espacial de Thumpoly desenha-se com uma planta mais larga e
ampla. O cruzeiro desaparece e todo o enfoque é feito em direcção ao altar mor cujo arco
triunfal passa a ser ladeado por dois altares com retábulos em sintonia com as
determinações do Sínodo de Diampar, a que nos referimos anteriormente. Ainda no interior
o tratamento dos alçados laterais revelam um esquema decorativo em gesso vincadamente
arquitectónico. Num sistema de pilastras e arcos de volta perfeita de gosto clássico, os
alçados dividem-se em dois andares através de uma cornija saliente. Ao nível do primeiro
andar rasgam-se janelas, que abrindo-se sobre a galeria exterior, permitem a circulação de
ar.
Na estrutura da sua fachada, dividida por colunas adossadas, destacam-se dois tramos em
forma de torreões que reforçam a articulação com galerias laterais, servindo no andar
térreo de acesso às galerias. Estas torres, hoje pouco salientes e alteradas nos seus remates
superiores, são uma excepção à tipologia comum das igrejas indo-portuguesas do Sul da
Índia, acentuando uma vez mais a atitude experimental de Giacomo Fenicio.
A ocupação holandesa e subsequente declínio português a partir de meados do séc. XVI
reduz esta missão a pequenos comunidades católicas reunidas à volta da memória de um
padre que ficou conhecido na região como o Apóstolo de Santo André. O novo contexto
socio-económico não teria sido naturalmente propício a grandes transformações na igrejas
de Thumpoly, dada a assumida monumentalidade do seu projecto inicial. Ao definir-se
como uma igreja construída nos inícios do séc. XVII, com galerias ao longo dos alçados
laterais, São Tomás de Thumpoly permite-nos estabelecer um primeiro marco essencial ao
estudo da evolução desta tipologia particularmente interessante na história da arquitectura
indo-portuguesa.
17
Download

Arquitectura indo-portuguesa na região do sul da Índia