O peso dos seus olhos A questão do olhar na clínica da obesidade - Pedro Chaves1 O trabalho no serviço de Psicologia de um hospital da rede federal do Rio de Janeiro, atuando especificamente na rotina da cirurgia bariátrica, forneceu estimulantes dados clínicos que reforçam a importância do olhar na constituição do sujeito e de seu corpo. A proposta deste trabalho é pensar a importância do olhar para o psiquismo e, principalmente, que lugar do olhar está reservado ao corpo obeso. Usaremos como foco os conceitos junguianos de sombra e complexo cultural para pensar a representação em torno da obesidade, dialogando com o conceito do “corpo abjeto” da filósofa estadunidense Judith Butler. A questão do corpo é central na clínica bariátrica. O paciente bariátrico é, a priori, um sujeito em conflito com sua matéria, expressa no corpo indesejado. O peso deste corpo é sentido na forma de males orgânicos – diabetes, hipertensão, problemas respiratórios etc. –, mas também na forma de ansiedade, depressão, baixa autoestima ou, genericamente, na vivência subjetiva de um peso sobre a vida. Além da alusão de nossos pacientes à percepção do peso como algo que lhes soterra a vida, percebemos a reincidência especial de uma das queixas: o olhar do outro. O olhar também pesa e, não raro, parece ser o olhar do próximo que introduz ao paciente a interrogação sobre seu corpo. Essa dimensão relacional nos chama atenção. A vergonha ao sofrer uma ofensa ou sentir o desprezo culturalmente reservado ao corpo obeso parece engatilhar um processo. Por vezes, temos nos deparado com discursos sobre o próprio peso que não era sentido, mas que passou a ser depois de refletido nos olhos do semelhante: a paciente Elis, 51 anos, atribui duas razões para ter procurado o serviço de cirurgia bariátrica: a artrite nos joelhos e o estopim de um dia, ao descer escadas na rua, fazendo-o vagarosamente por conta do peso e dos joelhos, ter sido empurrada por um senhor de idade, que a chamou de “gorda” e “mula manca” (sic). Depois disso, ela alega que “nunca mais passará por uma vergonha como essa”. 1 Jornalista pela PUC-Rio. Graduando em Psicologia pela UNESA. Pós-graduando em Psicologia Junguiana pela UNESA. Estagiário do serviço de Psicologia no Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE) do Rio de Janeiro. Mais uma vez parecemos lançados àquela dinâmica da infância, quando primeiro nos constituímos ao sermos olhados e ao olhar, assim antecipando a imagem de uma unidade corporal (LACAN, 2006, pg. 146). Isto nos é tão estruturante que Neumann (1995, p. 16) nos diz: “(...) na relação primal da criança com sua mãe, aquilo que a consciência posteriormente tenta manter separados e distintos como opostos – o físico e o psíquico, o biopsíquico e o objetivo — ainda constituem uma só e única unidade”. Precisamos também analisar que recursos têm o ego do paciente candidato à cirurgia para sustentar a sua decisão pelo corpo emagrecido. Será possível se apropriar desse corpo como seu, ou algo permanece como a forma arcaica do ego que, para se formular, precisa ser olhado, olhar e imitar? Essa dimensão constituinte nos põe não apenas diante do que o olhar veicula (rejeição, aprovação, desprezo, desejo), mas o ato em si de olhar: os olhos parecem constituir um símbolo, uma vez que insinuam um mistério vívido, ambivalente e nunca resolvido. “O símbolo é sempre um desafio à nossa reflexão e compreensão” (JUNG, OC 15, p. 78). Também por isso, o olhar se apresenta como algo intensamente psicoide (OC 8/2, p. 122-125), servindo de emblema daquilo que é intangível, mas se faz sentir e se materializa. A imagem amplamente difundida do novelista Jean-Baptiste Alphonse Karr dos olhos como “janela da alma” os confirmam nesta ponte quase-material, quase-psíquica e ponte para o numinoso. Chama atenção quando nossos pacientes, ao diferenciar fome de voracidade, recorrem a alusões do tipo “comer com os olhos”. O corpo não está separado da urgência dos olhos, e nele se prontifica a urgência da alma. Nosso olhar alveja o objeto do desejo e, reciprocamente, sentimos na pele um olhar de julgamento ou reprovação. O peso dos seus olhos é facilmente somatizado. Tal modo de olhar e sermos olhados está inscrito num campo cultural. O olhar dirigido ao corpo obeso está atravessado por uma série de representações. Podemos citar Birman (2012, p. 92): “(...) como a magreza é um de nossos códigos de beleza, já que quem é gordo não tem qualquer sensualidade e na sua feiura não tem qualquer poder de sedução, a voracidade tem que ser controlada, custe o que custar. Foi nesse contexto que o gordo foi transformado não apenas num doente, mas também num monstro. A obesidade é um dos signos da monstruosidade na atualidade, condensando em si as representações da deformidade, da feiura e do antierotismo”. Se o corpo obeso se inscreve numa representação cultural de monstruosidade, podemos pensar que a obesidade personifica uma sombra da nossa cultura. A sombra, como nos diz Jung (OC 16/2, p. 148-149), é aquilo que o indivíduo não quer ser: o monstro facilmente projetado no bode expiatório. O corpo disforme, “antierótico”, provoca repulsa e hostilidade (reações tipicamente sombrias), e sua aparição é como um constrangimento para a beleza de Narciso – um embaraço à nossa idealização narcísica. Pensar que representação o corpo obeso ocupa no imaginário cultural é imprescindível para a clínica de nossos pacientes. Jung (1966, p. 265) pode vir em nosso auxílio: “Sempre encontramos no paciente um conflito que em certo ponto está conectado com os grandes problemas da sociedade. Daí, quando a análise é levada a esse ponto, o conflito aparentemente individual do paciente se revela como um conflito universal do seu ambiente e de sua época. A neurose é assim nada menos que uma tentativa individual, embora fracassada, de resolver um problema universal”. Esse problema de nossa época que Jung menciona perpassa diretamente a construção de significados do que é o corpo. Nas palavras de Birman (ibid, p. 70): “Qual a razão desse prestígio conferido ao corpo? Pode-se afirmar que o corpo, para nós, cidadãos do mundo contemporâneo, é nosso único bem. Todos os outros desapareceram, ou foram relativizados no seu valor. (...) Nem Deus, nem tampouco a alma ocupam mais este lugar de destaque na cosmologia íntima do sujeito na contemporaneidade – apenas o corpo. Portanto, se o bem supremo se aloja no corpo, a saúde se transformou em nosso ideal supremo”. O corpo magro é uma bandeira desse ideal de saúde. Se vivemos uma crescente hegemonia do discurso biomédico e da soberania farmacêutica, associados à galopante medicalização do Ocidente, começada no séc. XIX, temos nisso o indício de um mito específico sobre o corpo, sua doença e sua cura. Esse mito pode ser entendido como a materialização do corpo. A filósofa estadunidense Judith Butler, ao trabalhar especialmente o discurso sobre o sexo e a construção dos gêneros, nos atende quando estuda como os corpos são reiterados através de um discurso que serve como prática regulatória, que normatiza e enquadra as diferenças. A reiteração dessas normas demarca o corpo ao materializar o discurso sobre ele. O corpo, então, tende a ser pensado literalmente, dificilmente entendido como uma prática de ideias. Facilmente podemos aproveitar o pensamento de Butler no nosso estudo sobre o erotismo do corpo magro e a monstruosidade do corpo obeso, principalmente quando a autora nos fala sobre o “corpo abjeto”: aqueles a quem não se reconhece legitimidade, que não deveriam existir numa matriz cultural e, como tal, são marginalizados. “O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e "inabitáveis" da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do "inabitável" é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual — e em virtude do qual — o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida”. (Butler, 1999, p. 3). Essa zona de “inabitabilidade” onde habitam “aqueles que não gozam do status de sujeito” é certamente análoga ao que a psicologia analítica cunhou como sombra, circunscrevendo o domínio do sujeito consciente, que se vacina contra as fronteiras do “local de temida identificação”. O olhar mergulhado na sombra do narcisismo cultural confirma no obeso o lugar do monstro. Se considerarmos que a pesquisa Vigitel 12 (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), feita pelo Ministério da Saúde, constatou que 51% dos brasileiros com mais de 18 anos sofrem de algum excesso de peso, temos configurado um cenário de sofrimento potencial, onde a sombra, ameaçadoramente presente, assombra nosso ideal de corpo. No caso da obesidade mórbida, esse atravessamento se torna mais explícito. No entanto, o olhar para esse lugar de sofrimento pode também engatilhar um processo de renovação criativa. Butler ainda nos ajudará a pensar esse processo (ibid, p. 2): “O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória.” Essa rematerialização, que certamente coaduna com a ideia de desliteralização de James Hillman (2010), é própria ao movimento de engendramento do psiquismo, do fazer da alma. Na nossa clínica, reparamos que esse desejo por rematerialização está projetado no próprio ato cirúrgico, capaz de dar cabo de um corpo antigo e inaugurar um novo, emagrecido. Cabe-nos auxiliar o paciente a pensar a demanda cirúrgica e o corpo também simbolicamente. Além disso, nossa clínica permitiu perceber que o desejo de rematerializar esse corpo é uma demanda de renascimento. Dentro de alguns tipos mitológicos de renascimento listados por Jung, vale destacar (grito do autor): “(...) a ressurreição, pensada como um ressurgir da existência humana, após a morte. Há aqui outro matiz, o da mutação, da transmutação, ou da transformação do ser. Esta pode ser entendida no sentido essencial, isto é, o ser ressurrecto em um outro ser; ou a mutação não é essencial, no sentido que somente as condições gerais mudaram, como quando nos encontramos em outro lugar, ou em um corpo diferentemente constituído” (JUNG, OC 9/1, pg. 117). Portanto, a crise do olhar, com a qual o paciente bariátrico se depara, é uma instabilidade através da qual este corpo, então materializado no lugar de abjeto, pode se rearticular – ou renascer simbolicamente. A função do psicólogo no momento dessa crise encontra especial serventia na reflexão sobre o corpo magro enquanto ideal de saúde, sobre a história particular da abjeção onde se formou aquele corpo obeso e sobre por que e para quê o psiquismo do paciente até então se constituiu naquele corpo. A fantasia sobre a nova vida porvir é de especial valor. A paciente Rosana, 57 anos, relata que “fez as pazes com o espelho” no decorrer de seu tratamento com a psicologia, durante a rotina de atendimento da cirurgia bariátrica. Antes disso, ela “evitava se olhar”. Essa resistência previne simultaneamente a visão do monstro e a pergunta do por que e para quê deste corpo na sua história particular. Olhar para o espelho foi, neste caso, poder começar a se reconstruir como uma nova unidade: encontrar uma possibilidade de rematerialização, além da obesidade crescente e do sofrimento correspondente. O “corpo abjeto” parece não se conformar enquanto não puder ser olhado por outro ângulo, enquanto não tiver voz. O efeito terapêutico de se lidar com a sombra encontra tanto dificuldade como liberação de energia. Vale notar que o trabalho da psicologia em nosso serviço é frequentemente descrito como um “olhar para si”, o que é uma imagem emblemática desse processo de transformação. Portanto, vimos a importância do olhar como estruturante do sujeito e como o corpo obeso está inscrito na cultura, cujo discurso define a abjeção de corpos, colocados nas zonas inabitáveis do desejo consciente. Em termos clínicos, precisamos nos perguntar: qual a dependência deste nosso paciente do olhar do outro, e até que ponto este olhar constitui sua unidade corporal? Como será possível fazer a transição deste corpo como objeto do olhar para um corpo integrado no processo de individuação do paciente? Butler (2006, p. 52) pode vir mais uma vez em nosso auxílio: “(...) a pele e a carne nos expõe a vista dos outros, porém também ao contato e a violência, e também são corpos que nos põem em perigo de nos converter em agentes e instrumento de tudo isso. Mesmo que lutemos pelos direitos sobre nossos próprios corpos, os corpos pelos quais lutamos nunca são suficientemente nossos. O corpo tem uma dimensão invariavelmente pública. Constituído na esfera pública como um fenômeno social, meu corpo é e não é meu”. Pensando o corpo obeso como este fenômeno psicossocial de visibilidade, vulnerabilidade e violência, integrar a obesidade ao processo de transformação pessoal passa pela articulação do social num indivíduo capaz de refleti-lo. Apropriar-se do próprio corpo é, portanto, também admitir que sobre ele continuarão sendo impressas as demandas do outro, e que as exigências por beleza e aceitação precisam ser digeridas. Estar no mundo é ser atravessado por esses olhares, e ser capaz de flexibilizá-los é sinal de saúde psíquica. Bibliografia geral: BIRMAN, Joel. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. IN: LOURO, Guacira L.(org.), O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ____________. Violencia, duelo, política. IN: Butler. Vida precária: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. HILLMAN, James. Re-vendo a Psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010. JUNG, Carl Gustav. Two essays on analytical psychology. New York: Princenton University Press, 1966. ______________. A natureza da psique (OC 8/2). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. ______________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. ______________. O espírito na arte e na ciência (OC 15). Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. ______________. 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