“A CIDADE É UMA SÓ?”, LUTA POR RECONHECIMENTO NA RELAÇÃO CENTRO-PERIFERIA EM BRASÍLIA Luciana Saboia Universidade Federal de Brasília - UNB [email protected] Liz Sandoval Universidade Federal de Brasília - UNB [email protected] RESUMO Através da analise da narrativa cinematográfica do longa-metragem de Adirley Queirós, A cidade é uma só?, o artigo enfoca a contradição entre a Brasília, capital moderna símbolo de um projeto novo de país, e a Brasília que não foi exceção quanto à segregação social frente ao rápido crescimento urbano. A nova capital, mesmo antes de sua inauguração em 1960, teve a sua população mais carente removida para áreas distantes a 30 km do núcleo originalmente projetado por Lucio Costa, o Plano Piloto. Os novos assentamentos, conhecidos como Cidades Satélites, foram projetados segundo as mesmas premissas modernistas. Entretanto, a violência na remoção das famílias e a falta de infraestrutura geraram imensos conflitos na satélite de Ceilândia retratados no longa-metragem. Enfoca-se o paradoxo de quem mora na periferia: “ser e não ser de Brasília.” O objetivo é discutir os processos de reconfiguração sócio-espacial em Brasília, geradas tanto na Ceilândia como no Plano Piloto, particularmente a rodoviária, como centralidade destas várias brasílias de sua periferia. Coloca-se a questão: Brasília capital moderna marcada por graves conflitos sociais, como o novo, o planejado, o moderno pode ser configurado como lugar de memória e reconhecimento pela totalidade de seus habitantes? Palavras-chave: Brasília. Reconhecimento. Narrativa. Cinema. Arquitetura Moderna ABSTRACT By the analysis of the Adirley Queiroz’s film “Is the city a unique whole?,” this article brings about the Brasília’s contraditions, a modern capital designed as a symbol of social and economical emancipation; and on the other hand, Brasilia as a concretization of traditional social segregation as consequence of rapid urbanization. Even before its inauguration in 1960, most of poorest inhabitants were displaced to new settlements 30 km away from the originally planned area by Lucio Costa, the Plano Piloto. Such new nuclei, the so-called Sattelite Towns, were designed according to the same modernist assumptions. However, social violence and lack of infrastructure in the new áreas generated great conflicts in Ceilândia as portrayed in the film. This narrative focuses on the paradox of those who live in the suburbs, "be and not be in Brasilia." The main goal is to discuss the processes of socio-spatial reconfiguration in Brasilia, generated both in Ceilândia as the Pilot Plan, particularly the Bus Station, considered as the Brasilia’s centrality among several brasílias of its periphery. The question comes to the fore: how can the new, planned, modern can be configured in Brasilia as a place of memory and recognition by all of its inhabitants? Keywords: Brasília. Recogniton. Narrative. Cinema. Modern Architecture INTRODUÇÃO: BRASÍLIA, RELAÇÃO ENTRE CENTRO E PERIFERIA A paisagem cotidiana da centralidade de Brasília é marcada por mais de 800.000 pessoas que circulam nos setores centrais da capital brasileira. Há um movimento pendular diário entre a área inicialmente planejada por Lúcio Costa em 1957, o Plano Piloto, e as cidades satélites, construídas mesmo antes da inauguração da capital em 1960. Os percursos cotidianos são percebidos tanto pelos congestionamentos das vias de alta velocidade entre os dispersos núcleos urbanos e a área central da capital, como pelos transeuntes que deixam suas marcas nos amplos gramados da Esplanada dos Ministérios em direção à rodoviária. A rodoviária torna-se, então, não somente o ponto de cruzamento do Eixo Rodoviário e Monumental, mas também o cruzamento dessas diversas Brasílias na sua periferia. Vale ressaltar que Taguatinga, Núcleo Bandeirante, Gama, Sobradinho, Ceilândia, Samambaia, Santa Maria entre outras cidades satélites nunca constituíram núcleos autônomos em relação ao Plano Piloto. Ao contrário, a capital moderna projetada como um único núcleo, logo foi acrescida de novos assentamentos distantes na maioria a 30 km da área originalmente projetada, como no caso de Taguatinga em 1958. Pode-se afirmar que Brasília consolidou-se como capital polinucleada ao longo das primeiras três décadas, e configura-se hoje como uma conurbação urbana contínua com mais de 2.500.000 de habitantes em 2010. Entretanto, será que a cidade é uma só? Figura 1 – Vista aérea de Brasília e Cidades Satélites. As metrópoles brasileiras passaram por processos conhecidos como dispersão urbana e gentrificação. A disputa por solo urbano teve como consequência a precariedade de mobilidade e infraestrutura, aliados a fortes conflitos sociais. Em Brasília não foi diferente, apesar do pouco tempo de construção da capital, a cidade projetada como símbolo da construção coletiva, teve sua população mais pobre removida para fora dos limites da bacia do lago Paranoá reservada somente para a ocupação prevista no Plano Piloto. O discurso oficial pregava o crescimento urbano em áreas distantes do lago para preservação ambiental, justificado pela preocupação futura de abastecimento de água. A ação governamental advogava que a dispersão da cidade no território em nada comprometeria a coesão entre as partes, afinal como a propaganda oficial pregava: ‘a cidade é uma só’. No discurso oficial as invasões representavam uma quebra nos padrões de habitabilidade, por isso a necessidade da transferência a fim de oferecer condições melhores para aquela gente. Para a população carente que vivia em acampamentos e favelas no Plano Piloto, chamadas de ‘invasões,’ a remoção significava a promessa de compra da casa própria, que mesmo localizadas em áreas distantes, teriam a mesma infraestrutura e princípios de planejamento moderno. Entretanto, o discurso democrático desapareceu frente à precariedade dos novos assentamentos e à violência na remoção das famílias faveladas em invasões no Plano Piloto. Figura 2 - Vila do IAPI, 1971 O longa-metragem dirigido em 2011 por Adirley Queirós, A cidade é uma só? , vencedor do prêmio de Melhor Filme pela crítica do Festival de Cinema de Tiradentes, retrata e interpreta a realidade da Ceilândia, cidade satélite localizada a 26 km do Plano Piloto, hoje com mais de 300.000 (332.455 população urbana, Fonte: SEPLAN/CODEPLAN – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios - PDAD 2004) habitantes. A cidade satélite surgiu com a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), em 27 de março de 1971, na tentativa de erradicar os quase 80 mil moradores de invasões que se espalhavam pela recém-construída cidade de Brasília. Operários da construção que estavam sem trabalho, famílias e pessoas que vieram nas grandes massas migratórias, em busca do eldorado tiveram seus barracos de madeira destruídos e foram expulsos de maneira abrupta. Receberam em troca moradias precárias quanto ao saneamento básico e infraestrutura. Cena como essa foi registrada também por Vladimir Carvalho em seu documentário “Conterrâneos Velhos de Guerra”, finalizado em 1991, após 19 anos de trabalho. Queirós, diretor e morador de Ceilândia, descreve a sua própria realidade ao filmar a cidade satélite: Meus pais foram expulsos da cidade de Brasília, sou da primeira geração pós-aborto territorial. Moro em CEILÂNDIA, periferia de Brasília, há mais de 30 anos. Eu me tornei cineasta e grande parte do meu trabalho está relacionada a este tema. Tudo aquilo que sou, que penso, tudo aquilo que minha geração é, como ela age, é fruto desta contradição de ser e não ser de Brasília. É fruto do acúmulo da experiência de 50 anos desta cidade-capital Brasília. Essa experiência nos faz refletir sobre a cidade. Ao contrário do tom afirmativo do jingle oficial que embalava a criação de Ceilândia (A cidade é uma só!), inevitavelmente temos que respirar, dar um passo atrás e nos questionar: a cidade é uma só? A partir dessa “contradição de ser e não ser de Brasília,” como habitantes de uma capital moderna, planejada e artificial narram, constroem e lutam para terem seu espaço e identidade reconhecidos? Desta forma, pretende-se relacionar a narrativa do longa-metragem sobre o questionamento da configuração da Brasília-Plano-Piloto e a luta por reconhecimento social e cultural da Brasília-periferia. Este artigo está estruturado em três partes. A primeira trata da delimitação do problema: a questão da falta de reconhecimento social ao longo do tempo frente à construção da capital brasileira. Pretende-se compreender a narrativa cinematográfica do longa-metragem dirigido de Adirley Queirós, A cidade é uma só?, em paralelo às análises dos movimentos sociais e configurações da Brasília projetada, construída e vivenciada. Para Paul Ricoeur (1998), a identidade assim como a narrativa, no caso o longa-metragem, é uma ação mimética da capacidade humana de reconhecer a si mesmo ao longo do tempo. O ato de narrar, assim como o ato de construir são ações configurantes que implicam em uma seleção crítica de memórias e promessas, fatos e premissas, condições e critérios que edificam uma trama continua ou uma luta incansável. Estas questões serão tratadas na segunda parte, onde se pretende relacionar a necessidade de luta por reconhecimento e a capacidade de construir seu próprio espaço. E por fim, à guisa de conclusão, coloca-se novamente em foco os processos de reconfiguração mútua em Brasília, tanto as práticas sociais nos espaços edificados na Ceilândia como a apropriação social em algumas áreas do Plano Piloto. Retoma-se a questão: no caso do espaço planejado de Brasília marcada por graves conflitos sociais, é possível configurar o novo, o planejado, o moderno como um lugar de memória e reconhecimento pela totalidade de seus habitantes? 1 PLANO PILOTO E CEILÂNDIA: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS DE LUTA POR RECONHECIMENTO A cidade é uma só? pode ser definido como um documentário histórico que mescla em alguns momentos a ficção, colocando cara a cara versões do real e do imaginário, revelando tensões e conflitos no nascimento da Ceilândia a partir da remoção dos moradores da Vila do IAPI, localizada próxima ao Plano Piloto. A personagem Nancy conduz a narrativa através das lembranças da campanha que ajudou a construir quando foi selecionada para o coro infantil que entoava o jingle: “Vamos sair da invasão, você que tem um bom lugar pra morar, nos dê a mão, ajude a construir nosso lar. Para que possamos dizer juntos ‘A cidade é uma só!”. Ela busca por documentos da época, reportagens, fotos e vídeos na tentativa de encontrar e reconstruir o passado, ao mesmo tempo, mesclam-se cenas do cotidiano da cidade, e retratam os sonhos dos moradores que lutam por reconhecimento. Figura 3 – Cena do filme: Imagens do coro Infantil, jingle da campanha. Ao final da década de 1960, se verificou que inúmeras favelas, as “invasões”, e acampamentos de construtoras, tidos como “localidades provisórias”, já contavam com cerca de 82.000 habitantes e ocupavam territórios estratégicos nas proximidades do Plano Piloto. Foi instituída a Campanha de Erradicação de Invasões a CEI, que entre 1971 e 1972 cadastrou os barracos existentes nas vilas periféricas ao Núcleo Bandeirante, transferindo posteriormente sua população para a nova localidade de Ceilândia. Em razão desta campanha organizada, a transferência ocorreu sem que a poeira, lama, falta de água e de trabalho causasse revolta na população transferida. Este “comportamento” foi também atribuído à promessa de legalização dos terrenos a baixo custo e instalação de equipamentos e infraestrutura, que não eram encontradas nos acampamentos e favelas da periferia do Núcleo Bandeirante. (PAVIANI, 1998) Neste período (década de 70) Brasília se consolidou como capital administrativa do país e, avaliando sua constituição no sentido da preservação do que foi planejado, historicamente o que se vê é a tentativa de afastar e controlar o fator de aglomeração que se forma inevitavelmente em torno do Plano Piloto. Hoje a pressão das cidades satélites, distantes de vinte a trinta quilômetros do plano piloto, com 74% da população total do DF somando 80% de sua população economicamente ativa, cria uma polaridade que começa a transformar e alterar áreas significativas do Plano Piloto. (QUINTO e IWAKAMI, 1998). No documentário de Adirley Queiros, mistura-se a esta narrativa da campanha feita pelo governo com a população e seu jingle, a campanha eleitoral de um candidato fictício, Dildu e, do também o personagem vendedor de terrenos Zé Antônio, que buscam cada um a sua maneira, sobreviver nesta realidade da periferia com um sonho de vida melhor ao representar personagens que se tornaram emblemáticos na construção da capital: o político e o incorporador imobiliário. Mesmo planejada, a satélite de Ceilândia foi acrescida de loteamentos clandestinos e apropriações indevidas do espaço público. O desenho, com ruas retilíneas e longas, sem o cuidado das áreas verdes do Plano Piloto, formaram becos e espaços exageradamente amplos e áridos, propiciando a ocupação irregular. Pelas ruas da Ceilândia, Zé Antônio se surpreende ao ver como a cidade cresceu e nota que onde antes havia roça, agora existem muitas casas e declara que “as pessoas querem morar”, admitindo que os terrenos que ele mesmo ajudou a dividir sofrem com a falta de organização e arruamentos desordenados, becos e vielas. Em seus passeios de carro atrás de boas oportunidades de negócio não deixa de comparar os dois ambientes (Ceilândia e Plano Piloto), principalmente no que diz respeito à especulação imobiliária e os altos preços dos imóveis. A recente verticalização da periferia também é assunto tratado no filme, que encerra com a frase: “os barracos verticalizados sobem sobre concretos de especulação imobiliária: o entorno nos espera.” Hoje em dia, de acordo com a CODEPLAN, 90% da população de Ceilândia conta com redes de saneamento básico e ruas asfaltadas. No entanto, o que se vê nas cenas filmadas dentro do automóvel nas ruas de Ceilândia, o ambiente natural dos personagens parece caótico, com ruas sem calçamento, arruamento desalinhado. Mesmo com a paisagem árida e empoeirada, mas também bastante espontâneo e familiar, os personagens têm facilidade em encontrar os endereços que procuram. Porém, quando estão dirigindo pelo eixo residencial do Plano Piloto, ao buscar endereços e saídas não conseguem se orientar pelas letras e números, sentem-se fora de lugar. Para o morador do Plano Piloto é muito natural orientar-se num mapa cartesiano simples, onde as quadras numeram-se em sequencia crescente em direção norte e sul. Paradoxalmente, para quem vive fora, sente-se um estranho no centro Plano Piloto, apesar dos mesmos princípios de endereçamento. Ceilândia, de forma geral, possui elementos urbanísticos modernistas semelhantes aos do Plano Piloto, modelo evidenciado e representado nos diversos assentamentos implantados a partir de 1964, na época do regime militar. Figura 4 – Cena do filme: Dildu caminha pelo Plano Piloto Figura 5 – Cena do filme: Ruas de Ceilândia O filme mostra o contraste entre os dois ambientes, de um lado o espontâneo e caótico e de outro o planejado e estéril, mas não consegue deixar de revelar o quanto um ambiente depende do outro, no sentido que são os dois lados de um mesmo acontecimento e que se juntam tanto na realidade quanto na ficção. O filme consegue mostrar que esta segregação não fez uma cidade acabada e, como ilumina Paviani, no processo de fazer a segregação, se constrói a consciência que a destruirá. Em A cidade é uma só? , a voz da narração de discursos históricos é ouvida diversas vezes durante o filme, vozes como a de Oscar Niemeyer e de Luiz Jatobá (nas reportagens de Jean Manzon) em entoação épica ao descrever o que representava a construção de Brasília para o país. A voz em off (voice ove) é frequentemente relacionada ao personagem Dildu, que trabalha no Plano Piloto e faz o percurso entre a rodoviária e a Ceilândia, assim como outros 80% dos moradores da satélite que se deslocam para trabalhar no Plano Piloto ou em Taguatinga. Dildu, na sua função de servente é personagem quase invisível no Plano Piloto, mas em seu ambiente (Ceilândia) é reconhecido e mostra a indignação com a situação da periferia através da sua campanha para deputado distrital, contando com a ajuda de amigos, frequenta festas e participa de movimentos culturais. Dildu, em um de seus discursos eleitorais, reclama por moradia popular no setor noroeste: “nós também queremos morar em Brasília”. E escolhe o X como símbolo para estampar sua campanha eleitoral, como representação da escolha do voto, mas também para narrar um marco simbólico exposto como uma cicatriz aberta. A imagem mais conhecida da demarcação da cidade de Brasília é um grande X marcado num solo aparentemente estéril e vazio, simbolizando o cruzamento dos dois eixos principais do plano de Lucio Costa (exatamente onde se localiza a rodoviária). Paradoxalmente, Nancy relata, em tom emocionado, que na época das remoções os barracos eram marcados com um X pintado à porta, que fatidicamente foram interpretados como os barracos escolhidos para a remoção e que seus moradores não tinham mais opção: Era ir para a nova cidade ou buscar outro lugar para fixar moradia. A cidade demarcada e segmentada, traçada com um “X” gigante nas portas de quem deveria obrigatoriamente seguir outro caminho, poderá ser uma só? O longa metragem reivindica o reconhecimento de uma população que foi ignorada e ainda não se sente ‘incorporada’ na cidade que viu nascer. Figura 6 – Cena do filme: Campanha eleitoral da rodoviária. 3 LUTA POR RECONHECIMENTO, APROPRIAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS Como a luta por reconhecimento foi, de alguma forma, representada na construção identitária de Brasília? Em La lutte pour La Reconnaissance, de acordo com Paul Ricoeur, baseado nos escritos de Hegel, Axel Honneth retoma três modelos hegelianos de reconhecimento mútuo: do amor, do direito e da estima social (HONNETH, 2000, apud RICOEUR, 2006, p. 202). Essas três dimensões de atestação das dimensões afetiva, jurídica e da estima social representam a prática das lutas sociais. Na dimensão afetiva, reconhecer-se como filho ou filha implica na ação recíproca de ser reconhecido por seus pais. O eu filial será a primeira forma de reconhecimento como indivíduo dentro de um grupo social. Como cidadão, toda pessoa é livre e igual à outra. Trata-se da dimensão jurídicosocial, onde ser-reconhecido juridicamente é ter o acesso de igualdade de direitos e oportunidades. Segundo Ricoeur (2006, p.211), o sentimento de consideração e respeito toma lugar da autoconfiança do nível afetivo no reconhecimento filial. Para exemplificar esta questão, a atribuição igual dos deveres e direitos e a distribuição desigual das riquezas de um país, passam a ser um problema moral e ético. A desigualdade social e a negação dos direitos humanos desrespeitam a população, e por consequência, são formas de negação de reconhecimento civil. Estes sentimentos de exclusão podem gerar guerras ou violências urbanas. Entretanto, Ricoeur argumenta que a indignação pode tanto desestimular como mobilizar, como é ilustrado no filme quando um dos personagens moradora da Ceilândia, Nancy, desestimulada canta a música: “Eu tinha o plano de morar no plano, viver no plano, trabalhar no plano (...), tantos planos jogaram meus planos na periferia.” Por outro lado, Dildu em seu discurso eleitoral tenta mobilizar a população quando diz: ”Chega desse negocio de só comer o pão e o resto ficar só vendo o que a rodoviária tem”. E reconhecem o quanto fazem parte da cidade quando os habitantes da periferia vão ao plano diariamente: “Sem eles a cidade para”. Retomando o último dos três modelos de reconhecimento mútuo, o reconhecimento pela estima social, Ricoeur ressalta que esse modelo resume todas as formas de reconhecimento mútuo, pois a ‘vida ética’ pressupõe-se aos valores jurídicos pois busca também os valores afetivos. Baseado na argumentação de Honneth, Ricouer aponta que a estima mútua é enfatizada pelos valores morais e éticos de cada pessoa ou mesmo pelo prestígio e consideração que uma sociedade faz de si mesma. As pessoas atestam, validam, avaliam, reconhecem o outro a partir de seus próprios valores: “é com os mesmos valores e com os mesmos fins que as pessoas avaliam a importância de suas qualidades próprias para a vida do outro” (Ricoeur, 2006, p. 216) A partir desta pressuposição, abrem-se perspectivas multidirecionais que anunciam um horizonte amplo de mediações sociais e concepções culturais. Em outras palavras, esta comunidade de valores depende das “condições interpretativas solidárias do caráter simbólico das mediações sociais” (Ricoeur, 2006, p. 216). O tipo da relação social torna a pessoa ou o espaço ‘estimável’. Na busca por estima social, há uma correlação entre o reconhecimento do plano jurídico e do plano afetivo representado nas novas capacidades adquiridas como a confiança em si mesmo, o respeito, a dignidade, a autoestima. Porém, quando o agente responsável por suas ações sente-se verdadeiramente reconhecido? O estado de dúvida implica em dissonâncias, ausências, incertezas e inquietudes. A luta por reconhecimento faz com que as ações e esforços empenhados sejam um combate ‘interminável’. A sensação de impotência, chamada por Hegel de ‘consciência infeliz’, traz o perigo de vitimização, de desânimo, como bem é representado no longa-metragem analisado ‘A cidade é uma só?.’ Os ideais de luta tornam-se inalcançáveis e a obtenção dos objetivos de mudança social fica muito distante de serem atingidos na sua plenitude. Entretanto, é no conceito de ação conveniente que Ricoeur (2004, p. 339) propõe uma trégua nas ansiedades e angústias do mundo moderno. Ele afirma que o poder de lutar pelos direitos, principalmente por formas pacíficas de reivindicação, pode dar dignidade à condição humana. Pode-se afirmar que a luta por reconhecimento pelo seu próprio espaço na cidade significa a luta por dignidade. Ao invés de eliminar os conflitos existentes, a ação conveniente é uma melhoria, um ato pontual, uma ação apropriada neste ‘combate interminável’ pelo reconhecimento social. Transpondo estas análises da luta por reconhecimento social para a reflexão sobre a construção da identidade coletiva, qual o ‘espaço estimável’ para os habitantes da periferia de Brasília? Como a luta por reconhecimento social configurou ao longo do tempo os espaços planejados da capital brasileira? 4 BRASÍLIA ENTRE O MONUMENTAL E O COTIDIANO: A CIDADE É UMA SÓ? Ao analisar cenas como os trajetos de Dildu, que trabalha como servente numa universidade particular no Plano Piloto e viaja diariamente de ônibus da rodoviária até a sua casa na Ceilândia, nota-se que o cenário da rodoviária aparece inúmeras vezes durante o filme. A rodoviária não é somente o ponto de centralidade do projeto de Lucio Costa, mas é também o grande vazio monumental onde cruzam as diversas narrativas do Plano Piloto e Cidades-Satélites. A população que mora fora do Plano Piloto faz da área central de Brasília a parada e momento para compras, serviços e lazer antes da volta para casa. Duas Brasílias entram em convergência: a Brasília construída e idealizada em 1960 e as brasílias periféricas em contínuo crescimento. Na verdade, a plataforma da rodoviária é um imenso viaduto de 200m de largura que abriga amplos espaços de fluxos de pedestres e veículos, onde a escala humana é muitas vezes esquecida. Essa mesma plataforma também se configura como um belvedere que se debruça sobre o vazio monumental entre a Esplanada da Torre de TV e a Esplanada dos Ministérios, pois se localiza exatamente no cruzamento dos eixos principais da capital. Figura 7 – Vista dos três níveis da rodoviária. Foto Cleber Figueredo A centralidade de Brasília foi projetada como uma paisagem urbana aberta com amplos terraplenos entrecortados pelo fluxo intenso de veículos. Em um percurso pelo Eixo Monumental da Torre de TV até a Praça dos Três Poderes seguem-se um conjunto de três terraplenos sucessivos: o primeiro, onde se localiza a Torre de TV e o segundo, onde está a Esplanada dos Ministérios. A praça representativa da capital, a Praça dos Três Poderes, pertence ao terceiro terrapleno, seguido por um campo de vegetação nativa do cerrado. A rodoviária pode ser interpretada como um imenso viaduto que une a parte norte e sul da cidade, e ao mesmo tempo, desmaterializa-se na paisagem urbana. Ao recuar seus pilares do piso inferior e ressaltar sua laje de bordo da plataforma, a plataforma vista da Esplanada dos Ministérios configura-se somente com uma linha na paisagem monumental que é percebida como uma linha horizontal abaixo da Torre de TV. É neste ambiente, diante do intenso fluxo de pessoas, subindo e descendo as enormes escadarias que Dildu tenta mostrar suas propostas como candidato entregando seus panfletos, na tentativa de captar eleitores que como ele, conhece a realidade da periferia, pois não pode correr o risco de se tornar mais uma vitima e, neste ato pontual, exerce sua luta pela dignidade. Essas práticas sociais são na verdade ações convenientes que abrem oportunidades para reconfigurar a realidade em vez de sentimentos de perda e impotência diante da interminável luta por reconhecimento. Ao apropriar-se constantemente do espaço cotidiano da rodoviária, o habitante da periferia apropria, adapta-se, torna-a adequada, atribui valores, impressões, leituras que constroem não apenas o espaço projetado, mas também torna-se agente responsável pela ação. O habitante constrói e reconstrói seu próprio espaço na cena cotidiana. Essas ações convenientes podem ser consideradas como práticas sociais de apropriação. É relevante destacar aqui os dois sentidos de apropriação relacionados à noção de “ação apropriada” reivindicada por Ricoeur. Em primeiro lugar, apropriação deriva do verbo apropriar tem como sentido primeiro acomodar, tornar ou ser adequado ou conveniente, apossar-se. O segundo sentido da apropriação, que tem maior relevância neste estudo, é a apropriação no sentido de apropriado, que é bom ou próprio, que lhe cai bem. É o reconhecimento que a sociedade faz de si mesmo e do seu habitat social, depois do uso e ocupação pelos habitantes de seus espaços cotidianos. No caso das práticas sociais de apropriação mesmo em espaços segregados socialmente, a ação apropriada é a forma de luta por dignidade. A ação apropriada é agir conscientemente em determinados espaços, o que implica não só a ação de adequação, mas a ação social impregnada de propriedade, com algo que pertence a ele, que é bom para ele. A ação apropriada permite a ressignificação da realidade e de si mesmo e reconfiguração na construção do próprio espaço coletivo. A estrutura urbana da cidade projetada por Lucio Costa é principalmente criada a partir da paisagem natural e espaços abertos do que por suas edificações. O vazio da rodoviária configura o cruzamento entre o espaço citadino e o espaço representativo da capital brasileira, entre a escala gregária e monumental, entre o burburinho dos transeuntes nos setores centrais e a Esplanada dos Ministérios. A área central, particularmente a rodoviária, foi reconfigurada principalmente não por dinâmicas sociais próprias do Plano Piloto, e sim a partir de diferentes vivências e apropriações externas ao Plano, a população que vive nas Satélites. Costa reconhece essa apropriação em entrevista na rodoviária: “Ali é a casa deles, é o lugar onde se sentem à vontade” (Costa, 1995) Pode-se afirmar que a apropriação cotidiana dessa população da paisagem monumental da Esplanada dos ministérios da rodoviária e possibilidade de ocupação efetiva da Esplanada pelas massas podem ser ambas ações convenientes de luta pela consciência de uma dignidade cívica. Entretanto, o reconhecimento da estima social transborda os limites do reconhecimento jurídico enquanto cidadão. O reconhecimento mútuo implica nas ‘condições interpretativas’ das lutas e práticas sociais em todas as suas dimensões. Na noção de mutualidade está o princípio da solidariedade que considera a experiência efetiva em relação ao outro em seu espaço cotidiano. A luta ‘interminável’ por estima social é marcada por estas ações convenientes nos espaços de vivência cotidiana ao longo do tempo, que são espaços estimáveis. São as pequenas ações que determinam territórios e que criam significação como o violeiro, pedintes, vendedores ambulantes ou grupos artísticos que vivenciam a rodoviária diariamente. A construção indenitária é feita por tramas narrativas ao longo do tempo, como a narrativa de 'A cidade é uma só?', que revelam o empenho por dignidade cívica e a luta por autonomia e autoestima. REFERÊNCIAS COSTA, L. (1995). Considerações sobre arte contemporânea (1940). In: L. Costa, Registro de uma vivência (p. 608). São Paulo, SP: Empresa das Artes. Costa, L. (1995). Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, . Honneth, A. (2000.). La lutte pour la reconnaissance. (P. Rusch, Trad.) Paris: Cerf. 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