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O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura dos Carmelitas
O Convento do Carmo de Lisboa, situado, paradoxalmente, no que se costuma
designar como a Baixa, na linguagem comum dos lisboetas, constitui pela sua
localização actual, pelo volume arquitectónico que ainda hoje se destaca no casario, e
pelo seu estado de ruína, uma das edificações de origem medieval mais
impressionantes e carismáticas da cidade de Lisboa. Para essa valorização contribui,
certamente, o facto da igreja conventual se apresentar como um dos raros vestígios de
construções medievais na capital, e a sua ligação à figura de D. Nuno Álvares Pereira.
A primitiva edificação encontra-se, há muito, bastante transformada e em grande parte
arruinada pelo terramoto que em 1755 devastou a cidade, com uma destruição
prolongada pelos incêndios que se seguiram. O que chegou até aos nossos dias
merece, no entanto, uma análise cuidada, permitindo reflectir sobre as origens da
arquitectura construída para a Ordem do Carmo, em território português. A
importância dos vestígios arquitectónicos medievais da igreja conventual assume
também especial relevo na medida em que o primeiro convento dos carmelitas,
erigido em Moura (e a exigir um amplo estudo arquitectónico e especiais cuidados na
sua reabilitação), sofreu alterações profundas a partir do século XVI, levando à
ocultação e ao desaparecimento das primitivas construções conventuais.
Em Lisboa, o Convento do Carmo foi edificado numa colina, longe da velha Alcáçova,
de origem islâmica, e onde permanecia, numa continuidade dos centros de poder, o
Paço Real. Desta forma, o convento localizava-se no exterior, em relação ao poder,
simbolizado pelo castelo e pelas estruturas palatinas, residência do rei D. João I. A
constatação desta diferença de ordem espacial, na organização do espaço urbano
medieval, tem conduzido à valorização desta escolha realizada por D. Nuno Álvares
Pereira, segundo as crónicas monásticas. Esta escolha tem sido interpretada como um
sinal da independência, senão mesmo de afronta do Condestável em relação a D. João
2
I.
Os problemas anteriormente anunciados, respeitantes à interpretação da escolha do
local, como expressão das tensões e rivalidades entre D. Nuno Álvares Pereira e D.
João I, associadas ao conhecimento das origens da própria Ordem, não nos devem
fazer esquecer a relação com a arquitectura sua contemporânea, nomeadamente a
arquitectura das Ordens Mendicantes, em relação à qual deve ser pensada.
A interpretação geral da arquitectura do Convento dos carmelitas de Lisboa tem-se
baseado nas comparações com a Batalha, o denominado Mosteiro de Santa Maria da
Vitória, da Ordem dos Dominicanos. Podemos considerar esta via interpretativa,
comparando uma construção patrocinada por D. João I com uma edificação
patrocinada pelo Condestável D. Nuno Álvares Pereira, paralela à análise quanto à
localização do convento: em ambos os casos, a relação entre o rei e o condestável
parecem decidir dos destinos da realidade material da casa dos carmelitas. A relação
entre ambos encontra igualmente expressão, tendendo a corroborar essas
interpretações, nas invocações escolhidas para cada uma das casas conventuais:
Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora do Carmo, e posteriormente do Vencimento
do Carmo, ambas com o mesmo significado de vitória em acontecimentos militares.
Estas similitudes entre uma casa fundada por um nobre e uma fundação real, já foram
vistas como um sinal da “ambição desmedida” de D. Nuno Álvares Pereira, como
escreveu António José Saraiva, para quem, inclusive, a edificação da casa dos
carmelitas procuraria rivalizar não só com o Mosteiro da Batalha, então em construção,
como também com o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, uma das maiores
construções monásticas existentes em Portugal1. A possibilidade de comparação com
a grande igreja dos cistercienses seria naturalmente importante, pela antiguidade
desta casa monástica, pelas dimensões da sua igreja, com mais de 100 metros mas,
igualmente, pelo prestígio que lhe advinha de ser o último panteão régio.
Na realidade, não possuímos nenhum testemunho da época que permita afirmar como
intenção primeira do Condestável, ou sequer como um seu propósito, colocar a
edificação que patrocinava ao lado das duas maiores igrejas então existentes no
Reino. O propósito de construir uma casa religiosa que se impunha pela sua escala
não parece deixar dúvidas, como, ainda hoje, a visão do convento pelo lado do Rossio
deixa entender.
Mas esta conduta não se diferenciaria, verdadeiramente, do comportamento da
maioria dos grandes senhores, interessados em patrocinar a construção de uma nova
1
António José SARAIVA, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva, Lisboa, 1990, p. 213.
3
casa religiosa, ou em oferecer um objecto litúrgico precioso, de molde a prestigiaremse pela magnanimidade, e a propiciarem para si a salvação da alma. Para qualquer
destes aspectos a escala construtiva, ou o valor material e simbólico dos objectos, não
era secundário. Daí o facto da igreja dos carmelitas de Lisboa ser, a par das igrejas de
Santa Clara de Santarém e de Santa Maria da Vitória, uma das 3 das igrejas das Ordens
mendicantes que tinha mais de 70 metros. Estas 3 igrejas possuem em comum o
patrocínio da construção ficar a dever-se a personalidades laicas, com poder
económico e político, qualidades também presentes no rei D. Afonso III, o grande
apoiante da criação do Convento de Santa Clara de Santarém. Compreende-se que a
historiografia dê particular ênfase ao Rei ou ao Condestável, pela sua qualidade de
patrocinadores de obras medievais, e como tal com particular importância na
orientação do que poderemos chamar o programa arquitectónico.
Por outro lado, importa destacar o modo como estamos necessariamente
condicionados, na apreciação da volumetria e do peso visual do conjunto conventual,
pela disposição da construção no actual Rossio e nas ruas que conduzem ao Largo do
Carmo, quando, diferentemente, nos tempos medievais, da colina do castelo se
destacaria o Convento dos Carmelitas, mas igualmente o Convento dos Trinitários,
fundado em 1218 mas cujas obras se prolongaram pela primeira metade do século
XIV, e que lhe ficava junto, bem perto ambos do grande Convento de S. Francisco
Desta forma, o que seria destacado visualmente seria o conjunto de casas das ordens
mendicantes, situadas num extremo da cidade, num lugar integrado no espaço da
cidade com a construção da muralha fernandina, em 13702.
Este conjunto de casas religiosas mantinha uma situação espacial vulgar no
respeitante às casas de religiosos mendicantes na Idade Média: erigidas fora da urbe,
perto das muralhas, ou em terrenos mais afastados do centro, ou dos pólos mais
importantes da cidade medieval, onde haveria mais espaço disponível, ou onde os
terrenos seriam mais baratos.
Era vulgar, em várias cidades europeias, encontrarem-se juntas as várias casas de
religiosos mendicantes, proporcionando proteção e possibilitando pela concentração
e pela vivência reforçar a mensagem dos mendicantes3. A tradição da implantação
mendicante revela-se na cidade de Lisboa, com a proximidade destes 3 conventos de
mendicantes, mas menos próximos dos frades dominicanos, situados numa zona baixa,
significativa, igualmente, da expansão urbana. Por ter sido fundado anteriormente, em
2
Sobre o Convento dos Trinitários de Lisboa ver Bernardo de Vasconcelos e SOUSA (dir.),Isabel Castro PINA, Maria
Filomena ANDRADE, e Maria Leonor Ferraz de O. Silva SANTOS, Ordens Religiosas em Portugal. Das Origens a Trento-Guia
Histórico, Livros Horizonte, Lisboa, 2005, p. 445.
3
Panayota VOLTI, Les Couvents des Ordres Mendiants et leur Environnement à la fin du Moyen Âge, CNRS editions, Paris,
2003, p.191.
4
meados do século XIII, este último convento apresentava menor afastamento do
antigo centro da cidade.
Atendendo à já sublinhada implantação tradicional das casas mendicantes, e à
proximidade do prestigiado convento dos Frades Menores, parece mais frágil a
argumentação que privilegiava as tensões entre o rei e o condestável para explicar a
opção por aquele espaço. Também as origens místicas da própria ordem, no Oriente,
no cimo do Monte Carmelo, pelo profeta Elias, são, sem dúvida, simbolicamente fortes,
mas não contrariam a argumentação anteriormente deduzida.
Ao contrário de um sítio elevado, o caso exemplar da implantação do Convento do
Carmo de Moura bem demonstra a insuficiência da explicação das origens. Situado
numa zona de declive, num sítio relativamente baixo e numa zona oposta ao
desenvolvimento urbano medieval, o Convento dos carmelitas de Moura mostra, entre
outros aspectos, a importância do espaço livre na implantação urbana.
O conjunto conventual de Lisboa encontra-se ocupado desde o século XIX por forças
policiais; primeiro a Guarda Municipal, desde 1836, e até aos dias de hoje a Guarda
Nacional Republicana, a sua sucessora, com as inevitáveis transformações sofridas
pelos espaços para novas funcionalidades. Perante a inexistência de trabalhos
arqueológicos profundos é difícil ter um conhecimento rigoroso da organização
concreta desses espaços, embora devessem obedecer ao modelo com origem no
modelo monástico da alta Idade Média. No entanto, para comparação com a realidade
arquitectónica dos mendicantes em Portugal, esse desconhecimento é menos gravoso
que os problemas de reconstituição da igreja medieval coloca, dado o
desaparecimento e a falta de estudos arqueológicos dos conjuntos conventuais
medievais.
A igreja conventual, de 3 naves, apresenta, em grande parte restaurada, uma tipologia
da cabeceira composta por uma abside rodeada por dois absidíolos de cada lado. Esta
disposição, como já sublinhou Mário Tavares Chicó, representava uma opção menos
vulgar na arquitectura portuguesa dos tempos medievais, encontrando-se apenas em
poucas igrejas pertencentes aos conventos dos franciscanos e das clarissas de
Santarém, aos Dominicanos de Elvas e da Batalha4.
4
Mário CHICÓ, A Arquitectura Gótica em Portugal, 2ª edição, Livros Horizonte, Lisboa, p. 90.
5
A maior complexidade da cabeceira mostrava um desejo de edificar um convento
prestigiado, que se impusesse pela escala, como sublinhámos anteriormente, como
pela organização da zona da cabeceira, a zona mais sagrada do espaço sagrado. Esta
escolha para a planimetria da cabeceira trazia no entanto problemas relacionados com
as características do terreno, com forte declive, como ainda é possível verificar
actualmente, apesar de todas as modificações do espaço urbano, na implantação das
construções e na sua altura. Foi esse declive, possivelmente associado às próprias
características do solo, que conduziu a dois desmoronamentos durante a construção
da igreja. O cronista José Pereira de Santa Ana regista a existência desses dois
desmoronamentos, dando conta dos esforços de D. Nuno Álvares Pereira para tal facto
não se voltar a verificar. Esse empenho, sem dúvida destacado para permitir enaltecer
a figura do Condestável, possibilita-nos conhecer o nome dos pedreiros encarregues
da feitura dos novos alicerces da cabeceira, a zona mais sensível sob o ponto de vista
estrutural, sobre a encosta. São eles: Lourenço Gonçalves, Estevão Vasques, Lourenço
Afonso e João Lourenço5.
O número elevado de pedreiros indicados pelo cronista certamente seria necessário
para a obra se realizar solidamente e rápida, numa igreja cujo tempo de edificação já
tinha sofrido contratempos inesperados, pelas dificuldades estruturais que
enfrentava, ainda mais de realçar numa obra em que, tanto quanto conhecemos da
capacidade financeira do Condestável, não seria por questões de falta de capital que a
construção poderia estar sujeita a demoras. Segundo o mesmo cronista, esses
pedreiros seriam considerados dos melhores pedreiros existentes em Lisboa, capazes
de realizar o desenho que lhes seria fornecido quanto à planimetria e elevação da
cabeceira.
Numa época em que o desenho de arquitectura tinha um claro aperfeiçoamento e
utilização, revelado pela modelação por exemplo do portal principal da igreja,
certamente que haveria a transmissão de muitos elementos à escala de 1:1,
possibilitando a feitura mais rigorosa das várias peças construtivas.
Note-se, corroborando este mesmo aspecto da utilização e difusão de um desenho
arquitectónico rigoroso quanto às construções geométricas, a realização de elementos
arquitectónicos na pedra no campo da escultura tumular na 2ª metade do século XIV e
ao longo do século XV, uma Microarquitectura reveladora, igualmente, de um gosto
artístico.
5
Fr. José Pereira de SANTA ANA, Chonica dos Carmelitas, Lisboa, 1745, vol. I, p. 346-347; Sousa VITERBO, Diccionario
Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Constructores Portuguezes ou a Serviço de Portugal, vol. I, Imprensa
Nacional, 1899, p. 30-31.
6
Numa altura em que se procedia à construção do Mosteiro da Batalha, obra de grande
vulto pelas suas dimensões, e na qual, necessariamente o rei D. João I teria utilizado
os melhores mestres e pedreiros conhecidos do reino, não seria fácil conseguir mãode-obra com reconhecida qualidade e prestígio. È possível ser também esta uma razão
para as dificuldades que a edificação dos Carmelitas teve para enfrentar os graves
problemas estruturais existentes, continuados mesmo depois da edificação da
cabeceira com uma rotura no muro, do lado ocidental, entre a fachada e o cunhal. A
solução encontrada para este problema consistiu na realização de arcobotantes no
lado sul do templo, em número de 5, e dos quais apenas resta hoje um.
A observação deste elemento de reforço mostra, claramente, ser um elemento
colocado posteriormente à feitura do muro, não apresentando uma ligação entre os
silhares de pedra da estrutura murária e os blocos pétreos que lhe estão contíguos,
solução existente, por exemplo na cobertura do deambulatório do Mosteiro de Santa
Maria de Alcobaça.
Esta má solução estrutural, sem dúvida indiciadora dessa feitura posterior, mostra,
igualmente, a menor experiência na utilização deste recurso estrutural e estético no
desenvolvimento do Gótico em Portugal, com um emprego mais repetido a partir de
finais do século XV. A fraca e tardia utilização de arcobotantes é expressiva,
paralelamente, das características do Gótico em Portugal, diferenciando-o do Gótico
então edificado na Europa do Norte, nomeadamente na arquitectura das catedrais,
aspecto que costuma, justamente, ser destacado quanto às características desse
Gótico Setentrional.
As referências dos cronistas quanto à mão-de-obra, comparadas com as informações,
sempre imprescindíveis de Sousa Viterbo, no seu Dicionário de Arquitectos, conduzem
ao conhecimento de um documento descoberto por este historiador em que se fala, a
propósito de um escambo de terrenos com o Almirante Pessanha, para aumentar a
área pertença do convento, do nome Gomes Martins, Mestre da Obra do Conde. À
semelhança das informações anteriores, indicando a existência de 3 mestres que
seriam os responsáveis pela obra da igreja do convento, na medida em que a
informação do cronista não permite aferir do seu trabalho nas instalações
conventuais, este outro documento traz-nos a presença de um 4º mestre, Gomes
Martins, nas obras desta casa religiosa, conduzindo a historiografia a colocar hipóteses
sobre o estatuto e as funções de cada uma destes responsáveis.
Sousa Viterbo e Mário Tavares Chicó apontaram Gomes Martins como o verdadeiro
mestre da obra, aquele pedreiro possuindo o estatuto de mestre, responsável pelos
oficiais, (pedreiros acima dos aprendizes), mas também o responsável por toda a cons7
trução, a quem os outros mestres pedreiros estariam subordinados6. Seria um mestre
pedreiro, segundo as práticas medievais da construção, responsável perante o
encomendador da obra, necessariamente com anteriores realizações arquitectónicas
significativas, em número e qualidade, para assumir essas funções e ter adquirido esse
estatuto.
Paulo Pereira, numa diferente interpretação, atendendo à informação do cronista
carmelita, considerou a existência, numa primeira fase, de 3 mestres principais, acima
referidos, a que se terá seguido o mestre Gomes Martins7. O seu aparecimento
encontraria razão de ser na própria evolução dos trabalhos, uma vez estar resolvido o
problema dos alicerces da cabeceira, e avançar-se para a elevação do restante espaço
do templo. Corroborando esta via interpretativa, indica a repetição da sigla Gomez no
portal lateral Sul, indício do papel fundamental que então desempenharia. Esta
hipótese francamente interessante, permitindo a compreensão do aparente paradoxo
quanto à sobreposição de funções no interior do estaleiro, possui dificuldades devido
às lacunas do conhecimento actual sobre os estaleiros no Portugal medievo, a sua
hierarquia e a diferenciação de funções aí existentes em cada caso concreto.
Em Portugal, o conhecimento da mais antiga actividade de um estaleiro diz respeito ao
Mosteiro da Batalha, de que se conservaram documentos fornecendo-nos informações
sobre a sua organização e diversas funções8. No entanto, esse conjunto documental
deve ser lido com cautela, quando se pretendem tirar ilações para outros estaleiros.
Com efeito, tratava-se de uma obra excepcional, não apenas por ser de encomenda
real, mas igualmente pela grandiosidade da própria obra, exigindo uma quantidade
significativa de pedreiros e uma organização ausente em estaleiros de arquitectura de
menor dimensão. Na construção desta casa dos Dominicanos da Batalha parece existir
o mestre da obra, a quem estão subordinados os “ mestres menores” e os “artistas
especiais”. É possível, similarmente, ter havido a presença no Convento do Carmo de
um mestre principal, caso de Gomes Martins, a quem os outros mestres estariam
subordinados, eventualmente artífices com conhecimentos especiais, em que se
poderiam incluir as técnicas de abrir alicerces e construir fortes contrafortes. Sendo
plausível, parece-nos, no entanto, uma questão em aberto.
O responsável pela organização planimétrica do convento, seguindo as indicações do
Condestável, vai criar uma cabeceira ambiciosa com 5 capelas escalonadas.
6
Sousa VITERBO, Obra citada, idem, p.31; Mário CHICÓ, “ O Mosteiro da Batalha e a Arquitectura em Portugal no Século
XV” em História da Arte em Portugal, dir. Aarão de LACERDA, vol. II, Portucalense Editora, Porto, p. 68-69.
7
Paulo PEREIRA, “ A Igreja e o Convento do Carmo: do Gótico ao Revivalismo”, em Comemoração dos 600 Anos da
Fundação do Convento do Carmo em Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1989, p.95-96.
8
Sobre o estaleiro da Batalha ver Saul António GOMES, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XV; Instituto de
História da Arte, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 1990, Cap. I.
8
A capela-mor poligonal, à semelhança das capelas laterais, permitindo criar um
complexo jogo de superfícies ainda susceptível de ser apreciado, pesem as
modificações efectuadas nos panos murários conservados. Nesta solução distingue-se
da igreja da Batalha, em que as capelas laterais se apresentam com igual altura e
profundidade, embora continuando uma prática corrente na arquitectura dos
mendicantes, com essa diferença de altura e profundidade entre capelas laterais.
A igreja mostra-nos um programa ambicioso, de um nobre, com recursos financeiros,
capaz de obter mão-de-obra especializada para esse efeito, numa solução presente
em igrejas das ordens mendicantes mas que constituíam verdadeiramente a
encomenda de um encomendador laico, mais do que a realização de um programa de
uma comunidade mendicante, como os Carmelitas. Note-se, no entanto, a existência
de passagens entre as capelas laterais, de que ainda subsiste uma original, com
terminação em arco quebrado, solução cara aos Mendicantes. Apesar de D. Nuno
Álvares Pereira só ter doado o convento depois de terminado, certamente que os
contactos com a ordem eram anteriores, não só pela sua ligação paternal à Ordem do
Hospital, ordem militar associada aos Carmelitas, como este pormenor arquitectónico
parece denunciar., como pela frequência do Convento do Carmo em Moura9.
A cabeceira revela também a grandiosidade do programa, e a adaptação às condições
do terreno, pela solução da capela-mor com 2 andares, solução certamente
influenciada pela capela-mor levantada por D. Afonso IV para a Sé de Lisboa, e que
encontrará outro exemplo na igreja do Mosteiro da Batalha. Estes exemplos: uma Sé,
uma Igreja de fundação real e um Convento de Carmelitas, mostram como esta casa de
Mendicantes se pretendia distinguir, buscando uma tipologia experimentada em
realizações arquitectónicas régias, possibilitando a sua afirmação pela escala e pelas
soluções no campo da arquitectura perante as outras Ordens Mendicantes,
particularmente os Franciscanos e os Dominicanos, as ordens com maior número de
conventos em Portugal e por toda a Europa.
Da escultura arquitectónica do convento pouco subsistiu, destruídos os elementos
pétreos de suporte e de cobertura, e com eles os capitéis, as chaves, as cadeias, as
molduras, os frisos, bem como quase todas as superfícies da pedra susceptíveis de
receber trabalho escultórico.
9
Maria de Lurdes ROSA, “ A Santidade no Portugal Medieval”, em Lusitânia Sacra, 2ª série, (t. XIII-XIV), Centro de
Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2001-2002, p.433.
9
Da fachada, restou o portal principal, conjuntamente com o portal Sul, pouco para
avaliar a escultura arquitectónica numa igreja que se queria afirmar na cidade de
Lisboa, mas também em todo o território, pela sua grandiosidade e pelas soluções
utilizadas.
O portal principal, sempre o mais significativo simbolicamente, nas relações entre o
espaço profano, no exterior, e o espaço sagrado, no interior, recebe por isso um
programa escultórico mais ambicioso, patente na existência de um cuidado desenho
que serviu de base para a realização de 6 arquivoltas, nas quais a qualidade da oficina
se traduz na boa modelação dos seus elementos. Todo este conjunto se encontra no
interior de um arco contracurvado, elemento muito de preferência do Gótico Final,
nomeadamente em Portugal. Também a complexidade das bases, com diferentes
níveis, mostra como se procurou dignificar este espaço, alteando o desenvolvimento
dos fustes, numa solução que o Gótico Tardio também muito irá apreciar.
Os capitéis, no estado em que se encontra a fachada, com o desaparecimento do
óculo, de que apenas resta uma pequena parte da moldura, são o elemento
escultórico mais em destaque. Para isso contribui a qualidade da oficina que aí
trabalhou, realizando capitéis com motivos vegetalistas desenvolvendo-se em dois
níveis, solução que encontramos nas construções góticas em Portugal a partir de
meados do século XIV, mais vulgares em finais do século e no século XV.
Merece destaque a presença em qualquer dos capitéis de vegetalistas de grande
qualidade, pelo desenho e movimento da folhagem, com relevo pronunciado,
proporcionando diferentes zonas de claro-escuro conforme as horas do dia. Mário
Tavares Chicó destacou, justamente, estes capitéis, associando elementos vegetalistas
a pequenas cabeças, em representações nas quais o homem e a natureza se
procurariam unificar, segundo as suas palavras10.
Merece atenção a representação destas cabeças na pedra, apesar da sua degradação,
patente numa erosão nalguns casos pronunciada. Por vezes, as superfícies muito
degradadas não permitem caracterizar o tipo de penteado, a modelação dos rostos,
embora a apreciação conjunta desses rostos revele o cuidado que houve em criar
diferenças individuais de uma para outra escultura, sinal não apenas do vulgarmente
declarado naturalismo, mas indício da qualidade oficinal.
10
Mário CHICÓ, A Arquitectura Gótica em Portugal, idem, p. 126-127.
10
Ao longo das várias colunas existe um mesmo modelo, com um fuste relativamente
fino, terminando num anel, encimado por um alto capitel, possibilitando dessa
maneira a representação de cabeças na sua parte superior, sobre os já indicados dois
andares de folhagem. Por entre os fustes, dispõem-se, por sua vez, outras cabeças,
criando um ritmo entre elementos vegetalistas e representações humanas cujo
significado concreto não tem merecido análise por parte da historiografia da arte.
Apesar da erosão da pedra parece ser possível identificar alguns religiosos nessas
imagens dos capitéis, pelo cabelo, enquanto outras parecem representar laicos pela
cobertura da cabeça. Nas imagens dispostas entre os fustes várias das cabeças dão a
sugestão de representarem claramente motivos não religiosos, igualmente pela
cobertura da cabeça. Parece, desta forma, que encontramos neste portal a
representação conjunta de religiosos e laicos, sem ser possível esclarecer se
pretendem representar alguma, ou algumas personagens concretas, ou apenas um
tipo, social ou sagrado, como a existência de personagem com longa barba pode dizer
respeito11.
A existência destas representações possibilita, mais uma vez, a aproximação entre
este portal e o trabalho existente nos absidíolos do Mosteiro da Batalha, pela
presença, nos vários capitéis, de imagens de cabeças humanas associadas ao mesmo
tipo de folhagem e uma idêntica composição destes elementos escultóricos12.
Também na Casa do Capítulo do Mosteiro da Batalha, encontramos o mesmo tema, já
classificado como máscaras entre folhagem 13 .Deve, no entanto, destacar-se a
presença, no portal dos Carmelitas, de um programa diferenciado, em que ao contrário
da repetição do mesmo tipo de cabeças, de cabelo e de cobertura se encontram as
distinções anteriormente sublinhadas.
O portal Sul, situado no lado oposto ao claustro medieval, contido num gablete,
apresenta apenas 3 arquivoltas, mostrando a menor importância que lhe é concedida
em relação ao portal axial. Os capitéis, sendo idênticos aos do portal principal, no
respeitante à presença do mesmo tipo de folhagem, desenvolvendo-se em 2 andares,
não possuem, no entanto, qualquer imagem de cabeças humanas. Este tipo de
representação está reservado para os fustes, como encontrámos no portal principal.
Diferenciam-se pela colocação das cabeças ao nível dos anéis, pela sua dimensão
mais reduzida e, principalmente, pela sua forma distinta, parecendo a sua feitura ser
obra de outras mãos. Merece destaque neste portal a existência repetida, no espaço
intercolúnio, de flor-de-lis, tema que também se exibe no portal axial do Mosteiro da
Batalha. Já foi assinalado relativamente a esta imagem, tão ostensivamente represen11
Paulo PEREIRA, obra citada, p. 99, não desenvolve a análise das várias cabeças esculpidas, colocando a hipótese de
serem iconograficamente “ destituídas de sentido”.
12
Mário CHICÓ, A Arquitectura Gótica em Portugal, idem, p. 126-127.
13
José Custódio Vieira da SILVA e Pedro REDOL; Mosteiro da Batalha, IPPAR, Scala, Lisboa, p. 29.
11
tada, como significando lírios, símbolo da Virgem, numa evocação associada à
importância do culto Mariano em D.Nuno Álvares Pereira14.
As análises anteriores destacaram a adopção de soluções na Igreja do Carmo de
Lisboa precedentes do Mosteiro da Batalha, embora com alterações formais, nuns
casos, e algumas simplificações quanto à sua arquitectura. Em relação a algumas
soluções escultóricas, pese embora a simplificação patente no programa do portal
axial da Igreja do Carmo face ao programa historiado da Igreja dos Dominicanos, a
figuração de cabeças humanas como significativas para exprimir a diferenciação social
não parecem ter como modelo a construção régia.
Constitui um aspecto conhecido no desenvolvimento do Gótico Final o papel de
relevo desempenhado pelo Mosteiro da Batalha, pelo seu prestígio como grande obra
régia, só possível, importa destacá-lo, por ter constituído um importante estaleiro, a
laborar durante anos, e consequentemente um importante centro de formação,
nomeadamente para a aprendizagem dos pedreiros. O fim desse estaleiro permitiu a
circulação de mão-de-obra aí formada, com a consequente difusão de saberes.
Merece reflexão o problema da transmissão e circulação desses modelos, questão que
se deve colocar, do mesmo modo, quanto ao papel que a própria Igreja do Carmo, pelo
seu prestígio, terá tido, por sua vez, na difusão de modelos, nomeadamente na Ordem
Carmelita, mas também na cidade de Lisboa. Quais as formas e elementos
arquitectónicos cuja origem se encontrava no Convento do Carmo? Por onde
circularam imagens e tipologias escultóricas aí desenvolvidas?
Um conhecimento mais concreto desse mundo dos artífices, da circulação das formas
e das ideias permitiria um entendimento mais rigoroso sobre o papel do Convento do
Carmo de Lisboa na arquitectura da própria ordem e na difusão do Gótico Tardio em
Portugal. Constitui um campo em grande parte a explorar, um espaço cheio de vazios,
de incertezas, em grande parte devido à destruição das construções góticas em Lisboa,
mas com um ou outro ponto susceptível de servir de apoio, à semelhança do modo
como actualmente se apresentam as naves da Igreja do Carmo de Lisboa.
14
Paulo PEREIRA, obra citada, p. 100.
12
Fig. 1 - Convento do Carmo, cabeceira
Fig. 2 – Arcobotante
13
Fig. 3 - Portal principal
Fig. 4 - Portal principal, capitéis
14
Fig. 5 - Portal principal, cabeça humana
Fig. 6 - Portal principal, cabeça humana
15
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O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da arquitetura