Capítulo VIII 6. Jesus crucificado e os ladrões. Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de espinhos, foi fortemente abalada e derramou grande abundância de sangue. Também das chagas das mãos e dos pés correu sangue em torrentes. Os algozes subiram então pelas escadas e desataram as cordas com que tinham amarrado o santo corpo, para que o abalo não o fizesse cair. O sangue, cuja circulação fora quase impedida pela forte pressão das cordas e pela posição horizontal, afluiu-lhe então de novo por todo o corpo e as chagas, renovando todas as dores e causando-lhe um forte atordoamento. Jesus deixou cair a cabeça sobre o peito e ficou suspenso como morto, cerca de sete minutos. Houve um momento de calma. Os algozes estavam ocupados em repartir as vestes de Jesus. O som das trombetas perdia-se no ar, todos os assistentes estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei, cheia de susto e compaixão, para meu Jesus, meu Salvador, a Salvação do mundo. Vi-o imóvel, desfalecido de dor, como morto e eu também estava à morte; pensava antes morrer do que viver. Minha alma estava cheia de amargura, de amor e dor. Minha cabeça, que eu sentia cercada de uma rede de espinhos, fazia-me quase endoidecer de dor. Minhas mãos e meus pés eram como fornalhas ardentes; dores indizíveis passavam-me, como milhares de raios, pelas veias e nervos, encontrando-se e lutando em todos os membros interiores e exteriores de meu corpo, tornando-se uma nova fonte de sofrimentos. E todos esses terríveis tormentos não eram senão amor e todo esse fogo penetrante de dores era contudo uma noite, em que não via senão meu Esposo, o Esposo de todas as almas, pregado à cruz e contemplava-o com muita tristeza e muita consolação. A cabeça de Jesus, com a horrível coroa, com o sangue que lhe enchia os olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio entreaberta, tinha caído sobre o peito e também mais tarde só podia levantar-se com indizível tortura, por causa da larga coroa de espinhos. O peito do Divino Mártir estava violentamente dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos distendidos até saírem fora das articulações; o sangue corria-lhe das largas feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em baixo uma cavidade profunda; o ventre estava encolhido e diminuído; como os braços, estavam também as coxas e pernas horrivelmente deslocadas. Os membros estavam tão horrivelmente distendidos e os músculos e a pele a tal ponto esticados, que se podia contar os ossos. O sangue escorria-lhe em redor do enorme prego que lhe traspassava os pés sagrados, regando a árvore da cruz. O santo corpo estava todo coberto de chagas, pisaduras vermelhas, manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares escoriados. As feridas reabriram-se, pela violenta distensão dos músculos e sangravam em vários lugares. O sangue que corria era a princípio vermelho, mas pouco a pouco se tornou pálido e aquoso e o santo corpo cada vez mais branco; por fim tomou a cor de carne exangue. Mas, apesar de toda essa cruel desfiguração, o corpo de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto extremamente nobre e comovedor. Na verdade, o Filho de Deus, o Amor Eterno, que se sacrificou no tempo, permaneceu belo, puro e santo nesse corpo de Cordeiro pascoal moribundo, esmagado pelo peso dos pecados de toda a humanidade. A cútis da Santíssima Virgem, como a de Nosso Senhor, tinha por natureza uma bela cor ligeiramente amarelada, mesclada de um vermelho transparente. As fadigas e as viagens do Mestre nos anos anteriores lhe tinham tornado as faces sob os olhos e a cana do nariz um pouco tostadas pelo sol. Jesus tinha um peito largo e forte, branco e sem pelo, enquanto o de João Batista estava todo coberto de pelo ruivo. Tinha ombros largos e os músculos dos braços bem desenvolvidos. As coxas eram nervosas e musculosas, os joelhos fortes e robustos, como os joelhos de um homem que tem andado muito e rezado muito de joelhos. Tinha as pernas compridas e a barriga das pernas fortes, de muito viajar em terras montanhosas. Os pés eram belos e bem desenvolvidos, a planta dos pés tinha se tornado calosa, porque geralmente andava descalço por caminhos rudes. As mãos eram de bela forma, com os dedos longos e delgados, não delicados demais, mas também não como as de um homem que as emprega em trabalhos pesados. Não tinha o pescoço curto, mas forte e musculoso. A cabeça tinha boas proporções, não grande demais; a testa era alta e larga e todo o rosto de um belo e puro oval. O cabelo, de um castanho avermelhado, não muito grosso, singelamente repartido no alto da cabeça, 1 caia-lhe sobre os ombros; a barba não era comprida, mas aparada em ponta e repartida sob o queixo. Agora, porém, o cabelo fora arrancado em grande parte, o resto colado com sangue; o corpo era uma só chaga, o peito estava como que despedaçado, o ventre escavado e encolhido. Em vários lugares se viam as costelas, através da pele lacerada, todo o corpo estava de tal modo distendido e alongado que não cobria mais inteiramente o tronco da cruz. O madeiro era um pouco arredondado do lado posterior, na frente liso, com várias escavações, a largura igualava a grossura. As diversas partes da cruz eram de madeira de diferentes cores, umas pardas, outras amareladas; o tronco era mais escuro, como madeira que tem estado muito tempo na água. As cruzes dos ladrões, trabalhadas mais grosseiramente, foram instaladas do lado direito e esquerdo do cume, a tal distância da cruz de Jesus que um homem podia passar a cavalo entre elas, estavam um pouco mais baixo e colocadas de modo que olhavam um para o outro. Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para baixo, disse uma coisa a Dimas. O aspecto dos ladrões na cruz era horrendo, especialmente o do que ficava à esquerda, celerado enraivecido, embriagado, de cuja boca só saíam insultos e imprecações. Os corpos, pendentes da cruz, estavam horrivelmente deslocados, inchados e cruelmente amarrados. Os rostos tornaram-se-lhes roxos e pardos, os lábios escuros, tanto da bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e vermelhos, quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que lhes causavam as cordas. Gesmas praguejava e blasfemava. Os pregos com que os madeiros transversais foram ajustados ao tronco forçavam-nos a curvar a cabeça. Moviam-se e torciam-se convulsivamente na tortura e apesar das pernas estarem fortemente amarradas, um deles conseguiu puxar um pé para cima, de modo que o joelho dobrado se lhe ergueu um pouco. 2