ISSN 1809-9815
ano 3 | janeiro > abril | 2009
09
SESC | Serviço Social do Comércio
INTELECTUAIS E ESTRUTURA SOCIAL: UMA
PROPOSTA TEÓRICA
SESC | Serviço Social do Comércio
Daniel de Pinho Barreiros
CULTURAS URBANAS E EDUCAÇÃO
EXPERIMENTAÇÕES DA CULTURA NA EDUCAÇÃO
Ecio Salles
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
UMA INTRODUÇÃO AO SEU ESTUDO
771809 981005
9
ISSN 1809-9815
www.sesc.com.br
ano 3 | janeiro > abril | 2009
01
Franklin Trein
A EVOLUÇÃO FAZ SENTIDO. INCLUSIVE NA
ATIVIDADE FÍSICA?
Hugo Rodolfo Lovisolo
‘DESIGNERS’, SUJEITOS PROJETIVOS OU
PROGRAMADOS?
Marco Antonio Esquef Maciel
09
v.3 nº9
janeiro > abril | 2009
SESC | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional
iSSN 1809-9815
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional
PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC
Antonio Oliveira Santos
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC
Maron Emile Abi-Abib
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
Sebastião Henriques Chaves
CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito
Luis Fernando de Mello Costa
Mauricio Blanco
Raimundo Vóssio Brígido Filho
secretário executivo
Sebastião Henriques Chaves
assessoria editorial
Andréa Reza
EDIÇÃO
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
projeto gráfico
Vinicius Borges
assistência editorial
Rosane Carneiro
revisão
Elaine Bayma
Sonia Oliveira Lima
Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio.
Departamento Nacional - vol.3, n.9 (janeiro/
abril) - Rio de Janeiro, 2009
v. ; 29,5x20,7 cm.
Quadrimestral
ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil.
I. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO5
EDITORIAL7
SOBRE OS AUTORES8
Intelectuais e estrutura social: uma
proposta teórica10
Daniel de Pinho Barreiros
Culturas Urbanas e Educação46
Experimentações da Cultura na Educação
Ecio Salles
RELAÇÕES INTERNACIONAIS76
UMA INTRODUÇÃO AO SEU ESTUDO
Franklin Trein
A evolução faz sentido. Inclusive
na atividade física?114
Hugo Rodolfo Lovisolo
‘Designers’, sujeitos projetivos
ou programados? 150
Marco Antonio Esquef Maciel 
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.3 nº9 | p. 1-190 | janeiro > abril 2009
3
APRESENTAÇÃo
A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um es-paço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje.
A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus
no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar.
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores
maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”
Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa,
sem ajustes aos padrões estabelecidos.
Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação
teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das idéias
tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que
acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo.
O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes,
de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões
como para segmentos do grande público interessados em se informar e se
qualificar para uma melhor compreensão do país.
Disseminar idéias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais.
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho Nacional do SESC
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
5
EDiToRiAl
Este número abriga, em suas páginas, um conjunto de artigos que trazem à
reflexão de todos questões da contemporaneidade sobre as quais a academia
tem se detido de forma intensa, na busca de sua compreensão.
Questões que dizem respeito a cada indivíduo e à sociedade como um
todo. São emergências resultantes do acelerado processo de mudança e transformação das sociedades e, como decorrência, do estar-no-mundo dos indivíduos.
Mudanças que exigem, dos que sobre elas se debruçam, uma nova compreensão existencial, uma revisão conceitual e, fundamentalmente, discuti-las
com a academia e a sociedade.
A ação reflexiva na modernidade se dá sobre um quadro de incertezas derivadas dos limites das teorias em captar situações que inexistiam quando das
suas formulações.
Pensar e agir sobre a sociedade contemporânea é um exercício desafiador
e necessário. Desafiador pelas dificuldades teóricas e conceituais que se apresentam; necessário porque entender o mundo é criar condições que possibilitam ao homem fazer-se o agente da sua história.
Nesta perspectiva, a revista Sinais Sociais, no número 9, traz em suas páginas artigos que cobrem temas como: intelectuais e estruturas sociais; relações
internacionais; a relação entre atividade física e saúde; os desafios para os designers na atualidade; e a contribuição das culturas urbanas à educação.
Temas que, em sua diversidade, procuram aproximar os leitores de questões que lhe envolvem e dizem respeito, em que pese muitas vezes delas não
se aperceberem.
Com a publicação deste número, a revista Sinais Sociais, mais uma vez,
cumpre o papel de ser um espaço democrático de reflexão ao divulgar a produção acadêmica de qualidade e aproximá-la daqueles que buscam uma melhor compreensão do mundo em que vivem e de si mesmos.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
7
SobRE oS AUToRES
Daniel de Pinho Barreiros
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, com tese intitulada “Estabilidade e crescimento: a elite intelectual moderno-burguesa
no ocaso do desenvolvimentismo (1960-1969)”. Cumpriu estágio de pósdoutoramento em História na mesma instituição, com pesquisa intitulada
“A intelectualidade como grupo funcional: um modelo para a análise do
intelectual em sociedades ocidentais modernizadas”. É professor adjunto
de História Econômica do Instituto de Economia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Economia
Política Internacional do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas/UFRJ.
Publicou em 2008, pela EdUFF, o livro Debates sobre a transição: idéias e
intelectuais na controvérsia sobre a origem do capitalismo. Seus artigos mais
recentes são “Os intelectuais contra o Estado: a defesa da livre iniciativa no
Jornal dos Economistas em fins do oitocentos” (Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, v. 13, 2008) e “Historiografia do pensamento
econômico brasileiro: o Cebrap e seus limites” (Intellèctus – Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, v. 8, 2008).
Ecio Salles
Escritor e pesquisador em cultura. Nasceu no bairro de Olaria, subúrbio carioca, na borda do Complexo do Alemão. Autor de Poesia revoltada, um estudo
sobre a produção textual da cultura hip-hop no Brasil, e co-autor de História e
memória de Vigário Geral. Fez mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense e cursa o Doutorado em Comunicação e Cultura
pela Escola de Comunicação da UFRJ. É Secretário Adjunto de Cultura em
Nova Iguaçu, Consultor do Programa Onda Cidadã, do Itaú Cultural, e autor,
em parceria com Marcus Vinícius Faustini, do blog Na Periferia, veiculado pelo
Globo Online.
8
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
Franklin Trein
Doutor em Filosofia Política pela Universidade Livre de Berlim (1977) e pósdoutorado nas Universidades de Estrasburgo/França (1983/84) e Livre de Berlim/Alemanha (1990). Atualmente professor na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), onde exerce as funções de professor/pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, de coordenador do Programa de Estudos Europeus da UFRJ e de coordenador do Centro
de Informação Europeia da UFRJ.
Hugo Rodolfo Lovisolo
Formado em Sociologia, mestre e doutor em Antropologia Social e pós-doutor
em Ciências dos Esportes. Professor da Faculdade de Comunicação Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É pesquisador do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cinetífico e Tecnológico (CNPq). Tem publicado numerosos artigos e livros, com destaque na área da Educação Física para
Educação Física: arte da mediação.
Marcos Antonio Esquef Maciel
Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), qualificado para defesa de tese com a pesquisa “Desenho industrial e desenvolvimentismo no Brasil”. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2004), especialista em Tecnologia Educacional, bacharel em Desenho
Industrial pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Licenciado em Desenho (Universidade Tecnológica Federal do Paraná).
Professor de Ergonomia e Ilustração do curso de Design Gráfico do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, e Gerente de Design
Institucional deste. Publicou pela Editora Essentia o capítulo “Design: telos humanista ou para o mercado?” (2006), no livro Educação Profissional e Tecnológica: memórias, contradições e desafios; na Revista Vértices, o ensaio “A ‘mão
invisível’ tardia do Design” (2005); na Revista Trabalho necessário (Núcleo de
Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação /UFF), “O feitiço
do Design” (2008).
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
9
iNTElECTUAiS E
ESTRUTURA SoCiAl: UMA
PRoPoSTA TEóRiCA
Daniel de Pinho Barreiros
10
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
O presente artigo tem por finalidade discutir, numa dimensão teórica, a relação entre os intelectuais e a estrutura social nas sociedades ocidentais do
pós-1945, a partir da tradição sociológica. Neste trabalho, propomos que os
intelectuais sejam entendidos como um grupo funcional multiclassista, multiprofissional e inerentemente desorganizado, dotado de estratificação interna
cujo topo é ocupado pelas diversas elites intelectuais, cujas organização e preservação no tempo dependem da defesa de “princípios éticos fundamentais”.
Assim, objetiva-se a proposição de um conceito de intelectual que incorpore
não somente as contribuições clássicas da sociologia a respeito da estratificação
social e das classes sociais, mas também a filosofia ética.
This article aims at discussing, in a theoretical dimension, the relationship between intellectuals and the social structure in post-war western societies, from
a point of view based on the sociological tradition. Intellectuals are understood
as a functional group with a multiclassist, multiprofessional, inherently disorganized composition. Its internal stratification is topped by intellectual elites,
whose organization and continuity depend on the defense of “fundamental
ethical principles”. Thus, we suggest a concept of “intellectual” that encompasses not only classical contribuitions in sociology concerning social stratification and social classes, but ethical philosophy as well.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
11
Os intelectuais compõem um grupo funcional com forte presença
nas sociedades humanas, especialmente nas sociedades industriais.
Ao longo da História, o grupo dos intelectuais ganhou diversificados
formatos, tendo os seus padrões de ação, os critérios de legitimação e o conteúdo de suas ideias variado fortemente. Não pretendemos estabelecer aqui princípios que sejam válidos para a análise
teórica dos intelectuais com base em fatores a-históricos; antes,
voltar-nos-emos para uma definição instrumental que estabeleça
bases provisórias (portanto, um ponto de partida hipotético) para o
entendimento da natureza deste grupo nas sociedades industriais
ocidentais do pós-Segunda Guerra Mundial, abstendo-nos portanto de defender a pertinência da aplicação destes mesmos pressupostos em qualquer outro recorte espacial e cronológico além do
demarcado.
1. oS iNTElECTUAiS CoMo UM GRUPo FUNCioNAl
O conceito de grupo funcional é derivado da teoria funcionalista da estratificação social, especialmente sintetizada nos trabalhos
de Kingsley Davis e Wilbert Moore1, cujo importante precursor fora
o sociólogo francês Émile Durkheim2. Em linhas gerais, o funcionalismo entende que as sociedades organizam-se, necessariamente,
como um todo orgânico, em que cada uma das suas instituições atua
de modo a conferir coesão ao conjunto. Em seus estágios iniciais,
a teoria funcionalista buscava controversas analogias com fenômenos biológicos, e o relativo abandono deste enfoque “biologizante”
não tornou o funcionalismo menos passível de críticas. Robert Merton3 introduziu variações de análise que contribuíram para relativiDAVIS, Kingsley e MOORE, Wilbert E. “Alguns Princípios de Estratificação”.
Trad. Luiz Antonio Machado da Silva. In: VELHO, Otávio Guilherme et alii
(org). Estrutura de classes e estratificação social. 6ª ed. Rio de Janeiro, Zahar,
1976.
2
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico e outros textos. Trad.
José Arthur Giannotti, Miguel Lemos, Margarida Garrido Esteves. São Paulo,
Abril Cultural, 1973.
3
MERTON, Robert. Sociologia: teoria e estrutura. Trad. Miguel Maillet. São
Paulo, Mestre Jou, 1970, cap. 1.
1
12
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
zar a ideia de harmonia incondicional no conjunto das instituições,
atribuindo a existência de fatores funcionais (portanto, tendentes a
manter a coesão e o funcionamento do sistema) e de fatores disfuncionais (que atuariam no sentido oposto). Ainda, criticando o pensamento durkheimiano, afirmara que uma mesma instituição poderia
ser funcional ou disfuncional dependendo da sociedade em questão
e dos condicionantes sociais presentes, como afirmava ser o caso
da religião (que fortalecia a coesão social em alguns casos, como
defendido por Durkheim, mas que em outros seria fonte de conflitos
e instabilidade). Além disso, existiriam instituições afuncionais, ou
seja, que não cumpririam qualquer função na coesão ou desagregação da sociedade, conceito este herdado da própria contribuição
durkheimiana.
Os avanços de Merton, contudo, não tornaram o funcionalismo
menos problemático na medida em que a unidade de análise permanecia sendo a “sociedade” entendida de forma absolutamente
abstrata, vista como um conjunto coeso. Se é fundamental a ideia
de que instituições sociais cumprem determinadas funções na sociedade, e que esta se forma da interligação e das múltiplas influências entre estas instituições, compreender o fim último de cada
instituição como estabilizar ou corromper o conjunto impede a percepção indispensável de que o todo social não é um todo, e sim a
coexistência de múltiplos, e que seu “estado natural” seria antes o
conflito que a harmonia. Se as instituições cumprem funções – com
o que concordamos –, é preciso definir que funções são estas, e logo
após, indispensavelmente, para que partes do todo – ou seja, para
que interesses sociais definidos – esta função é “agregadora” e para
quais não o é. Nesta perspectiva basearemos nossa compreensão a
respeito dos intelectuais.
Entendemos o grupo funcional dos intelectuais como uma categoria
multiclassista, multiprofissional e inerentemente desorganizada. Entre
seus membros perfilam indivíduos provenientes de todas as classes sociais, tornando o grupo funcional notadamente plural, o que faz com
que a interseção entre a identidade de classe e as atribuições da condição de intelectual tenha resultados diversos. Considerando, como o
fez Georges Gurvitch, que as classes sociais – definidas segundo seu
lugar no processo produtivo – são grupos suprafuncionais, ou seja, são
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
13
capazes de desempenhar funções múltiplas, e penetram a maioria dos
grupos funcionais integrando parcialmente seus quadros, entendemos
que uma das tarefas das quais são capazes é a de integrar o grupo dos
intelectuais4.
É claro também que nas sociedades industriais do pós-guerra as
classes sociais mais privilegiadas na divisão do excedente econômico
(as frações burguesas e as classes médias de alta extração) tendem
a fornecer mais membros para o grupo dos intelectuais do que a
classe trabalhadora, por uma razão específica que se encontra nos
próprios critérios de acesso ao grupo funcional. Via de regra, a atividade intelectual requer adequada formação acadêmica, sendo,
portanto, o nível educacional um dos fatores que permite a inclusão
de um indivíduo no grupo. Exceções à regra nas sociedades contemporâneas existem, consistindo em pessoas que pela própria iniciativa
conseguiram substituir funcionalmente a Universidade na tarefa de
empreender sua formação intelectual. Contudo, na maior parte dos
casos, a falta de recursos financeiros somada à possibilidade de se
afastar satisfatoriamente de atividades laborais (ou seja, permitindo
Para Gurvitch, uma das principais características das classes sociais é a sua
suprafuncionalidade, que advém do fato de ser o nível de estratificação mais
amplo identificável. Uma classe é um grupamento de grupamentos unifuncionais ou multifuncionais, englobando famílias, profissões, grupos de idade,
produtores, consumidores, entre outros. Sendo, então, uma unidade coletiva
suprafuncional, sua expressão seria somente perceptível pela multiplicidade
de órgãos unifuncionais ou multifuncionais dos quais faz parte. Uma instituição, seja ela qual for, jamais teria o poder de exprimir a totalidade das funções exercidas por uma classe social, o que resultaria assim na tensão entre
estas instituições – partidos, sindicatos, associações diversas – em pugna pelo
título de representantes legítimas da classe como um todo. As classes, contudo, só podem se identificar com as instituições uni ou multifuncionais de
um modo parcial, e estas jamais teriam a capacidade de representar a classe
completamente. Cada classe social seria “um mundo à parte”, representaria
uma vertente totalizante, e por esta razão seria o único nível de extração
social totalmente incompatível com outras classes (um membro pode fazer
parte de vários grupos funcionais ou ocupacionais, mas nunca de duas classes
ao mesmo tempo). GURVITCH, Georges. “Definição do Conceito de Classes
Sociais”. Trad. Rosa Maria Ribeiro da Silva. In: VELHO, Otávio Guilherme et
alii (org). Op. cit. pp. 94-101.
4
14
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
dedicação plena ou quase plena à preparação acadêmica) são óbices
inegáveis à presença das classes trabalhadoras no grupo funcional
dos intelectuais.
Entretanto, a expansão dos programas governamentais de fomento, da educação pública em geral, a melhoria histórica nos padrões
de vida e de renda da classe trabalhadora no pós-guerra, mesmo em
economias periféricas, e, mais recentemente, políticas compensatórias
têm permitido a um contingente cada vez mais amplo de indivíduos
da classe trabalhadora e das classes médias de extração baixa obter
credenciais de acesso ao grupo dos intelectuais por meio dos diplomas
universitários.
Segundo a análise funcionalista de Kingsley Davis e Wilbert Moore, as desigualdades de renda e de prestígio profissional são absolutamente funcionais: sendo os cargos que mais exigem competências
específicas e raras aqueles mais bem remunerados, além de serem
os que mais conferem prestígio ao indivíduo, isso seria um incentivo
para atrair os mais qualificados – únicos, portanto, aptos a executar
satisfatoriamente as tarefas esperadas – e excluir os menos capazes.
A função de estratificação seria, assim, motivar e situar os indivíduos
na estrutura social de uma forma ótima, na qual os cargos mais complexos seriam ocupados pelos membros mais capazes em função da
recompensa material e imaterial5.
Decerto trata-se de uma visão simplista, idealista e excessivamente
comprometida com a ideia de harmonia social. Ainda que a familiaridade com o pensamento social (entendido de forma ampla) seja
um requisito para a atuação no grupo funcional dos intelectuais, é
evidente que o acesso a ele e a seus mais altos níveis de estratificação interna não se encontra condicionado a demonstrações de mérito excepcional, o que, se seguimos na linha argumentativa de Kingsley e Davis, nos levaria a pensar em uma pirâmide escalonada, na
qual os mais altos graus seriam ocupados por indivíduos de incomum
“capacidade intelectual”, seguidos abaixo por outros menos “capazes”. Veremos que os critérios de ascensão interna e expressão intra
e extragrupo não passam pelo “excepcionalismo intelectual”, e sim
pelo domínio de um conjunto de habilidades sociais determinadas.
5
DAVIS, Kingsley e MOORE, Wilbert. Op. cit., pp. 115-118.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
15
Desta forma, nos resta por hora dizer que, na maior parte dos casos,
o diploma acadêmico (ou seu substitutivo funcional) é condição para
o exercício funcional do intelectual, mas não o “mérito” tal como
entendido pelo funcionalismo.
Definimos intelectual como todo aquele que exerce integralmente
a função de organizar a cultura, preservar a memória social, disseminar valores, símbolos e representações coletivas, bem como sistematizar compreensões acerca da realidade social e visões de mundo.
Pelo manejo de instrumental teórico adequado, ou somente pelo
domínio da escrita formal e do conhecimento geral, os intelectuais
mais destacados exercem a função de elaborar explicações sobre
os fenômenos sociais, de interpretar aspectos existenciais relativos
à experiência humana, de preservar a memória, de propor soluções
para problemas presentes e opinar sobre perspectivas futuras. Muitos
outros – a maioria dos membros do grupo – exercem prioritariamente a função de disseminadores de visões, concepções e valores previamente elaborados. O critério que define o grupo é justamente o
exercício de sua função e a dedicação integral a ela (ou pelo menos
uma dedicação preponderante no conjunto das atividades desempenhadas pelo indivíduo).
O produto da atividade criadora e/ou disseminadora dos intelectuais é lançado na sociedade através de instrumentos e instituições voltados para este fim (escolas, universidades, publicações,
televisão, rádio, em tempos mais recentes a internet, seminários
e outros eventos similares, etc.). Considerando a diversidade de
opiniões, trajetórias, filiações paralelas a outros grupos (políticos,
ocupacionais, religiosos, etc.) e origens de classe social dos intelectuais formadores do grupo funcional, este output é igualmente
variado, expressando visões de mundo usualmente concorrentes.
Uma vez disponível o produto intelectual na sociedade, os diversos
grupos sociais irão selecionar e se apropriar destas ideias de acordo
com seus interesses, com particular destaque para os interesses de
classe. Os intelectuais não criam a estrutura social real, e ao mesmo
tempo não são completamente condicionados por ela. Orientados
em maior ou menor grau por desafios impostos pela realidade social, os intelectuais oferecem respostas que serão mais ou menos
“consumidas” pelos grupos sociais na medida em que mais efi-
16
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
cientes forem para satisfazer anseios e solucionar dilemas impostos
àquele determinado grupo. A independência relativa do intelectual
perante a realidade permite inclusive a formulação de ideias voltadas para um determinado momento histórico contemporâneo ao
pensador, mas baseada em pressupostos datados, relativos a um
contexto histórico-social superado. Ou ainda, podem ser geradas
ideias totalmente inaplicáveis aos interesses de qualquer grupo social, isto porque o exercício intelectual depende muito mais do que
da realidade sócio-histórica concreta, da concepção subjetiva que
tem o intelectual desta mesma realidade. Assim, o produto de intelectuais determinados pode até mesmo ser afuncional, ainda que
dificilmente o seja; mesmo as ideias mais deslocadas das condições
concretas podem ter alguma serventia para algum grupo. Em geral, a funcionalidade do grupo intelectual – considerando a função
“positiva” que as variadas ideias exercem sobre os variados grupos
sociais – está garantida.
O output do processo de elaboração intelectual tem impactos políticos mais ou menos diretos de acordo com sua natureza, e segundo
o modelo pelo qual os grupos “consumidores” de ideias irão absorvêlas. As concepções formuladas pelos intelectuais não se tornam prática, entretanto, preservando sua “pureza” de origem. O impacto concreto do produto intelectual não é controlável pelo grupo funcional,
na medida em que as ideias são, via de regra, adaptadas e limitadas
pelos próprios grupos consumidores, o que significa dizer que a transposição de uma ideia do campo intelectual para o campo político ou
econômico resulta em intensa ressignificação, normalmente além do
controle dos intelectuais. Quanto mais próximo da base de um determinado grupo social chegam as ideias formuladas pelos intelectuais,
maior será a sua simplificação e maniqueização, com resultados, em
casos extremos, que tornam o produto final diametralmente oposto à
sua concepção inicial.
A legitimidade desfrutada pelos intelectuais provém do relativo “monopólio” sobre o discurso de que desfruta o grupo, e tem sua base nas
credenciais que justificam a inclusão do indivíduo no grupo funcional.
Além disso, uma importante característica da prática do intelectual
consiste em evidenciar sua identidade funcional (e ocupacional, em
alguns casos), minimizando a exposição de sua filiação de classe so-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
17
cial, partido6, ou outros grupos aos quais possa pertencer em paralelo,
e que inegavelmente exercem influência sobre o output intelectual.
Assim, sob o manto de uma relativa neutralidade, os intelectuais são
tomados pelos grupos sociais em conflito como o “fiel da balança” na
luta pelo poder ou pela divisão do excedente econômico, como aqueles que, baseados em critérios objetivos e desinteressados, e como
portadores do legado intelectual de gerações passadas, oligopolizam
os critérios de construção da Verdade.
A obtenção de credenciais não garante o ingresso de um indivíduo
no grupo funcional dos intelectuais. É preciso que exerça, em tempo
integral, as funções que conferem identidade ao grupo, quais sejam, a
formulação de visões de mundo, a avaliação de perspectivas e dilemas
sociais futuros, a disseminação da cultura (hegemônica ou não) e a
manutenção da memória social. Indivíduos “credenciados” (portadores de formação superior ou de notório saber) e que se dediquem a
atividades outras mas também ligadas ao campo das ideias (técnicas,
científicas, tecnológicas, por exemplo) podem fazer parte de outros
grupos funcionais (dos tecnólogos, dos cientistas naturais), mas não
do grupo dos intelectuais. Eventualmente um indivíduo “credenciado”
que atue em outros grupos funcionais pode migrar para o grupo dos
intelectuais se passar a cumprir as funções próprias deste último, abandonando ou reduzindo sua inserção nas funções do grupo de origem.
Existem determinados campos do conhecimento humano mais ligados à formação dos intelectuais que outros, e existem dados grupos
ocupacionais que fornecem mais membros para o grupo dos intelectuEntendemos partido na acepção de Max Weber, que os define como grupamentos organizados, provenientes de uma ordem racional e de comunidades
socializadas, que visam ao “poder social”, que em suma é a capacidade de
influência sobre a ação comunitária. Partidos podem ser classistas, estamentais, expressar o predomínio de qualquer outro grupo, ou mesmo não ser
objeto da hegemonia de grupo algum. O conteúdo de sua luta pelo poder
pode variar de “causas” ideais a “metas” pessoais. De qualquer forma, um
partido para Weber não se confunde necessariamente com partidos políticos
convencionais, constituindo-se portanto em qualquer grupamento humano
com as características citadas. GERTH, Hans e MILLS, C. Wright (org). Max
Weber: Ensaios de Sociologia. Trad. Waltensir Dutra. 2ª ed. Rio de Janeiro,
Zahar, 1971, p. 227.
6
18
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
ais do que os demais. Geralmente os intelectuais são especialistas em
áreas vinculadas às ciências humanas e ciências sociais aplicadas, ou,
se são diletantes, dominam satisfatoriamente as categorias e o léxico
comum a especialidades dentro destas ciências. Dentre os grupos ocupacionais com maiores interseções com o grupo dos intelectuais estão
aqueles ligados às atividades de ensino (com destaque especial para
o ensino superior), de pesquisa acadêmica (geralmente associado ao
ensino de mesmo nível), e de formação de opinião pública (profissionais da mídia, principalmente). Ocorre que a formação em uma destas
áreas ou o exercício profissional em um dos grupos privilegiados não
garante, a rigor, a condição de intelectual para um determinado indivíduo. É preciso que a formação, somada ao exercício profissional,
resulte no cumprimento da função que define o grupo funcional dos
intelectuais. A falta de formação ou mesmo o não exercício profissional nos campos citados não impede o surgimento de um intelectual,
como já indicamos no que diz respeito àqueles que lograram acessar
substitutivos funcionais ao ensino universitário e aos “cargos preferenciais” para exercerem a função-chave. Entretanto, o mais observado é
a confluência entre formação e ocupação privilegiadas na composição
do grupo dos intelectuais.
Por fim, o grupo funcional dos intelectuais não se constitui em uma
comunidade. A sua existência não compõe um grupamento consciente de sua unidade, e não gera automaticamente qualquer princípio de
solidariedade entre seus membros. Entendemos que os grupos funcionais compartilham com as classes sociais, tal como teorizadas por Max
Weber, a característica de não se constituírem comunitariamente, sendo apenas uma base possível para uma ação comunal7. O grupo tende
a não ter interesses específicos voltados para a dominação política, o
que não significa dizer que seus membros, de forma individual, não
tenham aspiração ao poder e que efetivamente não escalem degraus
na hierarquia política de uma sociedade ao atuarem em partidos ou
na burocracia estatal.
O espírito de grupo aparece em situações nas quais a legitimidade
de seu exercício de produção de verdades e o “monopólio” do discurso são ameaçados ou questionados por outros grupos (o que não
7
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Id. ibid, p. 212.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
19
é a mesma coisa que determinadas frações do grupo funcional sejam desafiadas ou desautorizadas). Ainda, uma mentalidade de grupo
tende a emergir quando as condições sociais necessárias para o livre
exercício funcional são limitadas pela interferência política ou de outra natureza. De qualquer forma, a mera existência de um grupo não
garante o surgimento de uma comunidade. A existência de instituições
voltadas para a facilitação do exercício funcional (grupos de pesquisa,
centros culturais, universidades, institutos de pesquisa) auxilia na comunitarização de membros do grupo8, mas não garante unidade na
defesa dele como um todo.
2. FRAGiliDADE Do CoNCEiTo DE ‘iNTElECTUAl oRGâNiCo’
Apesar das múltiplas identidades sociais paralelas de que um intelectual dispõe, com destaque para sua inserção de classe, discordamos da existência de algo como “intelectuais orgânicos”, tal como
estabelecido na famosa análise de Antonio Gramsci, retomada por
um sem-número de acadêmicos ao longo das últimas décadas, com
diferenciados graus de coerência e fidelidade à concepção original.
A visão do intelectual defendida por Gramsci foi fortemente marcada
pela sua militância de esquerda num contexto de expansão do fascismo, bem como pela incômoda expansão, para os defensores do
marxismo, da teoria das elites de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto.
Tais condicionantes permitiram a origem de uma das mais originais
e frutíferas concepções sobre os intelectuais como grupo social já
elaboradas, que pela sua importância deve ser levada em conta sempre que se trate deste mesmo objeto. No entanto, se deslocarmos
as ideias de Gramsci dos condicionantes políticos de seu tempo e
espaço, e se resolvemos tomá-las como ferramenta de estudo das
sociedades humanas, vemos que o conjunto funciona melhor como
bandeira de luta e mobilização política que como base hipotética
para a análise social.
Weber afirma que a ação comunal por parte das classes sociais manifesta-se
por uma parcela desta mesma classe que, afetada pela “situação de classe” na
mesma medida em que seus pares não organizados, decide congregar-se em
uma associação para defender seus interesses e condições de sobrevivência.
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Id. ibid, pp. 214-216.
8
20
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
O desafio teórico representado pela teoria das elites, e mais ainda,
as supostas implicações políticas autoritárias a ela atribuída, conduziram Gramsci a uma visão dos intelectuais que não é bem-sucedida
em diversos aspectos, em especial por descuidar de sua peculiaridade como grupo autêntico e de suas características intrínsecas,
bem como por confundi-los com outros grupos sociais a tal ponto
de tornar sua caracterização fluida demais para ser tomada precisamente como instrumento de análise. Fiel ao conceito de classes sociais herdado de Marx – categoria totalizante, senão única, na teoria
da estratificação social marxista –, Gramsci tentava entender quem
eram aqueles que se situavam nos postos-chave da “superestrutura”
da sociedade burguesa, desligados, portanto, do processo produtivo
em si. Deveriam, respeitando a visão de mundo marxista, pertencer
a alguma classe, já que nenhum indivíduo estava livre delas, e sendo
esta – a identidade de classe – o critério fundamental na estratificação social, restava saber a que classes pertenciam os diversos operadores da superestrutura, e que relações estes operadores guardavam
com a classe em si. É aí que surge a ideia do “intelectual orgânico”,
sendo aquele indivíduo que emerge das classes sociais e é comissionado por elas para empreender a coordenação, a organização e o
gerenciamento das tarefas necessárias para a dominação de classe –
estabelecer a “hegemonia”, portanto.
No caso da burguesia, estas tarefas podem ser a organização intelectual da própria produção – através da técnica fordista, da administração de empresas ou da ciência econômica “burguesa” – ou da
dominação política – por intermédio dos partidos e do próprio Estado.
Os intelectuais seriam os comissários da classe dominante para o exercício de sua hegemonia através da a) formação do consenso “espontâneo” das massas em favor da dominação; b) utilização do aparato
de coerção estatal para disciplinar e punir grupos dissidentes. Assim,
o intelectual orgânico é o agente da classe social fora das relações de
produção, mas que age indiretamente – e de modo indispensável –
para o estabelecimento da hegemonia de classe e do funcionamento
das próprias relações de produção em si9.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. 8ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, pp. 4;
10-11.
9
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
21
Gramsci pretendia oferecer resistência ao conceito de “elite” e de
“classe política” esposado por seus compatriotas Mosca e Pareto. Isso
levou o marxista italiano a confundir seus “intelectuais” com variadas
formas de estratificação social empiricamente observáveis e que não
eram manifestações, evidentes à primeira vista, das classes sociais. Por
exemplo, são intelectuais orgânicos os políticos profissionais, os professores, os técnicos de fábrica, os engenheiros, os lentes em economia política, os membros da burocracia, as lideranças sindicais, em
suma, todo aquele que, pertencendo necessariamente a uma classe
social e completamente atrelado aos seus interesses, esteja ligado a
atividades outras que não a produção em si, mas que deveriam, por
definição, estar atuando em prol da hegemonia de sua classe de alguma maneira.
Gramsci preocupa-se em refutar a ideia de Mosca sobre uma “classe política” controladora de todos os assuntos públicos, uma minoria
no poder que decide sobre os destinos de uma maioria, superior
em termos de organização e capacidades intelectuais, e aberta o
suficiente para se renovar incorporando indivíduos de todas as classes sociais, que uma vez na classe política, adquirem seu ethos10.
Pretende também deslegitimar as ideias de Pareto sobre a “elite”,
sendo um grupo de homens que possuem os mais altos índices nas
atividades às quais se dedicam, e que pelo mérito e capacidades pessoais ingressam em uma minoria hermética, que exerce poder sobre
todo o restante da sociedade, igualmente passível de ser formada
por indivíduos de qualquer classe que disponham de capacidades
superiores semelhantes11. Para tal, afirma que tanto a classe política
de Mosca quanto a elite de Pareto representariam nada mais que
os intelectuais orgânicos da burguesia, que, muito longe de serem
compostos por todas as classes, seriam expressão tão somente de
egressos da classe dominante, e ainda, não desfrutariam da independência a eles atribuída, e sim de uma rígida disciplina quanto aos
interesses emanados de sua classe12.
MOSCA, Gaetano. “A classe dirigente”. Trad. Alice Rangel. In: SOUZA,
Amaury de (org). Sociologia política. Rio de Janeiro, Zahar, 1966, pp. 51-70.
11
PARETO, Vilfredo. “As Elites e o uso da força na Sociedade”. Trad. Alice
Rangel. In: SOUZA, Amaury de. Id. ibid, pp. 70-89.
12
GRAMSCI, Antonio. Op. cit., p. 7.
10
22
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
Buscando contrariar a ênfase dada por Mosca e Pareto à capacidade
intelectual superior como fator que permite o ingresso dos indivíduos
nas posições de comando da superestrutura, Gramsci afirma que todos os homens são intelectuais, ou pelo menos intelectuais orgânicos
em potencial, visto que não existiria qualquer atividade humana na
qual a intervenção intelectual estivesse completamente excluída, e,
mesmo fora das relações de produção, todo homem desenvolveria
atividades ligadas ao pensamento. Desta forma, um intelectual orgânico seria aquele que cumpre a função de intelectual (organiza a dominação de classe), e não o chamado “tipo tradicional vulgarizado”, ou
seja, aquele que exerce atividades intelectuais propriamente ditas (o
literato, o artista, o filósofo)13.
Gramsci parece correto ao ressaltar a convergência entre os interesses
de classe social e a ação dos intelectuais, mas falha ao exagerar os vínculos existentes entre ambos (o que torna o intelectual mero instrumento
das classes sociais em busca do poder), além de confundir grupos funcionais diversos. A burocracia, a classe política, os técnicos e intelectuais
propriamente ditos têm perfis, características e funções altamente diversos, e não é razoável admitir que todos se resumam, prioritariamente,
a exercer a hegemonia das classes a que pertencem. Além do mais, ao
definir como intelectuais uma tão ampla gama de atores, a função do
intelectual propriamente dito – que é observável e evidente nas sociedades contemporâneas – torna-se nebulosa, e as funções de outros grupos
tachados de “intelectuais” também fica inidentificável. Gramsci não oferece ferramentas para interpretar a presença de membros provenientes
do “proletariado” em níveis médios da burocracia – ou mesmo em altos
postos, em casos específicos –, e nos quadros de um Estado burguês,
não nos permite explicar por que estes burocratas da “classe proletária”
tomam decisões que contrariariam seus próprios interesses (de classe).
Assumir a existência de um “espírito de corpo” nas instituições, que matizaria a ideologia de classe, viria a eliminar a ideia do intelectual como
agente pela hegemonia. Além disso, também não explica por que membros da classe política provenientes do operariado participam de partidos
nitidamente conservadores, e membros provenientes de extrações burguesas vêm a ingressar em partidos de esquerda.
13
GRAMSCI, Antonio. Id. ibid, pp. 7-8.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
23
De fato, como afirmamos, o grupo dos intelectuais é composto pela
interseção de vários outros níveis, horizontais e verticais, de estratificação social (classes, grupos ocupacionais, mesmo grupos de status,
partidos, etc.) e que cada uma das identidades “paralelas” influencia
o produto do trabalho dos intelectuais. Mas esta influência não pode
ser compreendida como uma completa dominação da identidade de
classe; Gramsci nega, inclusive, a existência de alguma forma de identificação que não seja o critério de classe, privando os intelectuais de
um estatuto de relativa independência, ou de serem passíveis de outras influências que não a de sua origem socioeconômica. A ideia de
que “todo homem é um intelectual” nos parece segura, haja vista que
converge para nossa perspectiva de que os intelectuais são compostos
por todas as classes sociais, e que, apesar das limitações econômicas
que já citamos, a origem de classe não priva um indivíduo do exercício da função. Além disso, o pensamento gramsciano também afirma,
indiretamente, que um dos fatores que une os intelectuais é o exercício de uma função14, que se para Gramsci é garantir a hegemonia da
classe a que pertence, para nós está em sistematizar o conhecimento social em formatos particulares, que será ou não apropriado pelas
classes de acordo com seus interesses. De qualquer forma, a ideia de
“intelectuais orgânicos” nos parece apressada e insuficiente para contemplar teoricamente objeto desta envergadura.
3. o GRUPo FUNCioNAl DoS iNTElECTUAiS
E SUA ESTRATiFiCAÇÃo iNTERNA
O grupo funcional dos intelectuais é dividido em vários estratos,
distribuídos em uma estrutura piramidal de subfunções, cada qual relacionada a um nível de prestígio diferenciado, que se confunde não
raramente com a escala de distinção social e recompensa econômica
ligada ao campo profissional. Em outras palavras, ainda que o grupo
como um todo atue no sentido de executar as funções já explicitadas, funções estas que lhe conferem identidade e unidade, o exercício
da função geral se dá por meio da execução adequada de algumas
Ainda que Gramsci não utilize outros critérios de estratificação senão a
classe social.
14
24
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
subfunções básicas, que na mesma medida que a função geral, conferem coesão e identificam socialmente os integrantes de cada um dos
diferentes estratos.
Compondo o estrato mais geral do grupo funcional, os intelectuais
de base são membros responsáveis por disseminar, de forma muitas
vezes simplificada e direta, conhecimentos e informações organizados
nos estratos superiores. É rara a elaboração de conhecimento novo,
bem como rupturas conceituais, provenientes dos membros do subgrupo básico, ainda que não seja totalmente incomum por parte de
seus integrantes a elaboração de procedimentos inovadores de cunho
didático, pedagógico ou informativo, numa dimensão exclusivamente
prática. Ainda que voltados para a função de divulgar em nível geral o
output elaborado nos estratos superiores, isto não significa dizer que os
intelectuais de base estejam totalmente privados do trabalho criativo.
Na verdade, os integrantes do subgrupo são, via de regra, responsáveis
por viabilizar o sucesso da transmissão de conceitos e valores para um
público amplo, o que requer processos adequados às especificidades
deste público e às condições nas quais a transmissão irá ocorrer. Um
novo material pedagógico, o uso de ferramentas e técnicas informativas, bem como referências gerais apropriadas para uma determinada
plateia, o emprego de linguagem jornalística adequada, bem como
o uso de imagens, conceitos e metáforas que remetam ao universo
mental e à vivência do público-alvo, são instrumentos desenvolvidos
em nível local – e de forma pulverizada – pelos intelectuais de base.
O traço que o identifica, portanto, é a difusão de ideias e valores para
um público não especializado, ou seja, a formação de opinião em seus
níveis mais básicos.
No nível intermediário estão aqueles intelectuais que atuam diretamente na produção de conhecimento novo, em sua maior parte de
cunho empírico ou aplicado. Em linhas gerais, pertencem ao subgrupo
os intelectuais que, se ocupando sistematicamente da pesquisa acadêmica ou da elaboração de comentários e análises pessoais sobre
assuntos variados, contribuam para a expansão do estoque de informações e conhecimento, sem entretanto ter implicações de cunho
paradigmático ou teórico de grandes proporções. Os intelectuais do
subgrupo intermediário, via de regra, desenvolvem, certificam, legitimam ou comprovam formulações teórico-metodológicas elaboradas
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
25
pelo subgrupo superior – a elite. Ocasionalmente avanços teóricos e
metodológicos de grande monta podem surgir do grupo intermediário,
fator este que eventualmente habilita um de seus membros a ocupar
uma posição na elite. Inovações e críticas pontuais a determinadas diretrizes teóricas vindas “do alto” podem surgir no interior do subgrupo
intermediário, mas é raro que elas sejam suficientes para deslegitimar
uma opinião ou programa de pesquisa formulado pela elite. Em suma,
a subfunção é a de, baseados em princípios e opiniões geralmente
de caráter abstrato formulados pela elite, aplicá-las no estudo de situações concretas, na elaboração de pareceres e observações mais
focadas em situações conjunturais, mas que não superam as diretrizes
gerais emanadas da elite.
É comum que intelectuais do subgrupo intermediário tenham iniciado sua inserção no grupo funcional como membros do estrato
básico, ainda que um número variado de exceções possa existir. De
qualquer forma, o intelectual intermediário, para exercer esta função,
deve dispor de reconhecimento suficiente entre seus pares e entre
os intelectuais do subgrupo de base, o que geralmente é obtido por
meio da divulgação do seu output intelectual (pelos canais já citados)
e pela regularidade com que intervém em assuntos e temas que lhe
identificam. Além disto, quanto mais sua atuação for relacionada pelos
demais intelectuais a um determinado assunto ou campo de estudo,
maiores as chances de um indivíduo consolidar sua posição no subgrupo intermediário. Um comentarista político que garante sua presença
em jornais e programas televisivos sempre que um determinado tema
necessita ser comentado (política externa, questões eleitorais, comportamento político) ou um especialista que se torna referência em
dado campo pela sua produção regular e pela exposição diante de
seu subgrupo e demais grupos sociais seriam exemplos pertinentes de
intelectuais intermediários.
O produto da atividade intelectual intermediária não tem como alvo
específico a opinião pública em geral. A subfunção do grupo consiste basicamente em informar opinião especializada, seja de outros
intelectuais intermediários, seja de intelectuais de base, ou mesmo
lideranças e indivíduos influentes dentro de outros grupos funcionais e
ocupacionais. Além disso, um intelectual intermediário dispõe de condições para formar outros intelectuais de mesmo nível bem como um
26
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
número maior de postulantes ao subgrupo básico, o que se expressa,
via de regra, pela atividade de ensino de pós-graduação, ou por outros expedientes extra-acadêmicos que substituam funcionalmente a
Universidade.
O exercício da subfunção intermediária requer também credenciais
específicas, que estão na base do reconhecimento de sua condição
perante o grupo como um todo. No caso dos pesquisadores acadêmicos, ela implica a vinculação institucional a centros com excelência
mínima, bem como diplomas em nível doutoral, e produção pertinente. Há outros casos nos quais a vinculação institucional também
aparece como central – a presença em uma empresa jornalística de
destaque, um contrato com editora de grande expressão, etc., o que
nos leva a crer ser este o “critério credencial” mais importante para
o acesso ao subgrupo (a permanência do indivíduo depende, como
vimos, de outros fatores já citados). Em síntese, uma das principais
funções exercidas pelos intelectuais intermediários é a de perpetuar o
grupo funcional como um todo, na medida em que têm fundamental
participação na formação de novos membros capazes de substituir os
antigos nos dois subgrupos citados, além de abrigar intelectuais que
disputarão o acesso à elite.
Os subgrupos funcionais não são excludentes na mesma medida em
que o são os grupos funcionais, e menos ainda do que são as classes
sociais. É possível que um indivíduo integre dois subgrupos diferentes,
exercendo, em proporções diferenciadas, as subfunções a eles vinculadas. Contudo, esta dupla inserção tende a ocorrer entre estratos
limítrofes, e em maior grau entre o subgrupo básico e o intermediário. Exercendo as subfunções básica e intermediária, um intelectual é
capaz de replicar suas próprias ideias para um público não especializado, ainda que em níveis mais elementares de formação de opinião
busque-se a transmissão de conceitos e valores já consolidados, não
sendo este o campo mais pertinente para a experimentação e introdução de conteúdos inovadores. É incomum, contudo, uma dupla
subfuncionalidade entre estratos não limítrofes (no caso, entre o nível
de base e a elite).
E é justamente este último o subgrupo que ocupa o topo da escala
de estratificação no grupo funcional dos intelectuais. Trata-se de sua
elite, e, em linhas gerais, ela compartilha de muitas semelhanças com
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
27
elites de outros tipos, em especial com a “classe política” de Gaetano
Mosca e a “elite dominante” de Vilfredo Pareto, ainda que algumas
especificidades próprias do grupo funcional dos intelectuais tornem
sua elite particular diante destes exemplos.
A elite intelectual exerce poder sobre todo o grupo funcional, respeitando a concepção de Weber, que o afirma como a capacidade
desfrutada por um homem ou por um grupo de homens, de realizar
a sua vontade na forma de uma ação comunal, a despeito da resistência de outros homens que tomem parte nesta mesma ação15.
Aplicado o princípio aos intelectuais, o poder exercido pela elite
consiste em definir as fronteiras nas quais o exercício funcional do
grupo acontecerá, o que se expressa basicamente pelo oligopólio
que exerce sobre a elaboração teórica e conceitual. Ainda que não
seja a elite capaz de controlar o emprego empírico de suas formulações mais abstratas, o poder se exerce pela determinação da agenda de discussões e pela demarcação dos limites nos quais a mesma
acontecerá, o que é majoritariamente seguido pelos intelectuais do
subgrupo intermediário. Aplicando os princípios de Mosca à elite
intelectual, trata-se ela do “polo dirigente” no interior do grupo, com
quem a maioria desorganizada (e justamente por este fato) estabelece laços mais ou menos intensos de subordinação. Se no campo
das relações políticas e da “classe dirigente” esta subordinação se
revela por meio da submissão à autoridade emanada e às decisões
tomadas pela minoria no poder, no caso dos intelectuais se expressa
pela aceitação, por parte dos escalões inferiores, dos marcos teóricos
e da agenda apresentada pela elite16. “Insubordinações” aos marcos
aceitos como verdade eventualmente ocorrem, e tendem a se tornar
iniciativas isoladas que podem levar o intelectual intermediário ao
ostracismo, comprometendo sua capacidade de exposição, divulgação e formação de novos intelectuais, o que enfraquece seu próprio
exercício funcional (não representando, necessariamente, a perda
de acesso ao grupo ocupacional). Em alguns casos, uma “heresia”
vinda de escalões inferiores – ou seja, uma ruptura conceitual com
padrões estabelecidos via elites – pode, se associada a uma difusão
15
16
28
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 211.
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 51.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
e aceitação de seus princípios por outros intelectuais de nível intermediário, e o reconhecimento por parte de intelectuais de elite (a
despeito da rejeição por outros), elevar o indivíduo ou grupo “herético” ao subgrupo da elite.
Líderes de elite não exercem seu poder sozinhos, mas necessitam
contar com numerosa classe sem a qual não podem ter sucesso no
cumprimento de sua subfunção, ou seja, de fazer com que os marcos
intelectuais nos quais o grupo irá funcionar sejam respeitados. No
caso das elites políticas, Mosca entende ser esta a função de outros
membros da classe dirigente, situados em um ranking inferior ao do
líder (ou líderes)17, mas no caso dos intelectuais, a função de zelar
pela aceitação e uso das categorias formuladas do alto é empreendida de modo coletivo e desorganizado pelos intelectuais intermediários. Na sua tarefa de formar novos intelectuais, de elaborar novos
conhecimentos (com as características já citadas) e de gerenciar os
instrumentos de difusão do output do subgrupo (revistas científicas,
jornais, encontros acadêmicos), concepções não aceitas normalmente como próprias do “universo intelectual” em questão – ou seja,
não esposadas por qualquer intelectual que ocupe uma posição de
elite em um determinado tempo – são descartadas, e os canais para
sua difusão são limitados, exceto em casos particulares que possam
fugir ao habitual.
O trabalho de crítica e deslegitimação das ideias “desviantes” é normalmente empreendido por intelectuais intermediários, em nome da
defesa dos valores e concepções de um ou mais intelectuais da elite.
Isto porque, na medida em que a elite ou alguns de seus membros
concorda em debater ou comentar uma “heresia”, mesmo que com o
intuito de deslegitimá-la, reconhece o “desviante” como interlocutor
apto, conferindo-lhe prestígio e destaque; e ter a condição de interlocutor reconhecida pela elite é, como veremos, um dos requisitos para
o acesso a ela.
Não se pode confundir a deslegitimação de ideias “desviantes”
com o debate entre intelectuais intermediários tendo como base dois
marcos teóricos ou visões de mundo concorrentes, mas aceitas como
“normais” no universo das opções intelectuais, e que estejam ambos
17
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 54.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
29
representados pela produção de membros da elite. Tampouco o fenômeno se confunde com uma disputa entre dois ou mais membros de
elites intelectuais distintas. Uma ideia “herética” deve necessariamente provir dos estratos inferiores (em geral, do subgrupo intermediário),
não encontrar defensores na elite, e desafiar um ou mais pressupostos
estabelecidos pelo alto escalão.
A elite não restringe o seu exercício à elaboração teórica e conceitual. Esta certamente é, em termos quantitativos, uma fração pequena
do seu output geral, ainda que sua importância funcional seja enorme.
Ocorre que mesmo as análises empíricas desenvolvidas por membros
da elite, incluindo aquelas formuladas tendo como objeto questões
conjunturais, acabam funcionando como elemento norteador das reflexões de intelectuais intermediários, o que significa dizer que exercem um forte peso “teorizante” sobre o grupo como um todo. Em
outras palavras, as conclusões tiradas pela elite, sejam teóricas ou aplicadas, funcionam como guia e demarcador de limites, sendo tomadas
pelos estratos inferiores como verdade ou ponto de partida para novas
elaborações. Outro aspecto que demonstra a amplitude e o impacto
do output intelectual da elite provém da tendência a se concentrarem
em temas de alcance nacional ou internacional, escopo de atuação
que foi identificado por Mills como sendo próprio da natureza das elites18. As relações que a elite intelectual reserva com as elites políticas,
bem como seu papel de “conselheiros” de grupos influentes contribui
para este direcionamento.
Já expusemos algumas funções exercidas pela elite intelectual, mas
não todas. Além de ser responsável – desfrutando de legitimidade junto ao grupo para tal – pela demarcação do terreno teórico possível
em que ocorrerão os debates e a construção de visões de mundo e
de sociedade, a elite atua na formação de novos intelectuais de nível
intermediário (mas raramente de nível básico), alguns dos quais serão
preparados para ocuparem posições na elite, garantindo assim a sua
renovação e continuidade.
O output intelectual da elite raramente tem como público-alvo os
intelectuais de nível básico, formuladores de opinião não especializada, ainda que estes possam – e usualmente o façam – recorrer
18
30
MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 28.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
ao produto do trabalho da elite. Geralmente ocorre uma mediação
por parte dos intelectuais intermediários, que através da produção
de obras de divulgação e outros expedientes, estabelecem o vínculo
entre o topo e a base (ou mesmo entre o estrato intermediário e a
base, já que a divulgação científica também difunde o produto do
primeiro). No campo da formação acadêmica, é raro que membros
da elite atuem no treinamento de intelectuais básicos. A elite intelectual também se dedica à formação de opinião dos mais altos
escalões da sociedade, atuando junto à elite política, às elites empresariais e outras minorias que exerçam influência vertical sobre
determinado grupo. Assim sendo, as relações entre a elite intelectual
e outras elites tende a ser intensa; não raras vezes intelectuais de
destaque abandonam temporariamente (ou em caráter definitivo) o
exercício funcional do subgrupo de origem e ingressam na elite política, retornando ou não posteriormente para o grupo dos intelectuais. Este fenômeno também foi identificado por Wright Mills entre
as elites do poder americanas, envolvendo no caso a elite política,
econômica e militar19.
A elite cumpre sua função e seus membros se preservam no subgrupo através de expediente semelhante ao empregado pelo subgrupo intermediário. Utilizam-se amplamente dos canais regulares de difusão
do output intelectual e buscam a regularidade em suas intervenções
públicas, fator este mais importante para o sucesso funcional do que
contribuições apoteóticas, mas efêmeras. Tendem a se utilizar do trabalho de intelectuais intermediários, do próprio trabalho ou mesmo
do esforço de outros membros da elite para organizar a memória de
sua atuação, destacando o processo de “evolução pessoal” perpassando subgrupos inferiores até o acesso à elite, bem como suas principais contribuições intelectuais, de modo a constituírem um legado
identificável para os intelectuais futuros; é próprio de um membro da
elite pretender manter seu “poder” através desta memória, e da manutenção de suas principais ideias em circulação. Por esta e por outras
razões a elite é, em comparação com os demais subgrupos, uma minoria consciente de sua identidade funcional e fortemente organizada. Utiliza-se das instituições às quais se vincula bem como de outras
19
MILLS, C. Wright. Id. ibid, p. 340.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
31
instituições que venham a constituir para manter em pleno funcionamento o exercício de seu poder. Institutos de altos estudos, grupos de
pesquisa selecionados, organizações e fundações, bem como o aparato institucional em torno de publicações periódicas especializadas são
nichos utilizados pela elite para sua organização. Na medida em que,
comparativamente, a elite intelectual revela uma coesão superior à
evidenciada pelos estratos inferiores (o que é absolutamente evidente
em relação ao subgrupo básico), ela se torna uma “minoria organizada” tal como concebido por Mosca; o poder da minoria, exercido
diretamente sobre os demais intelectuais individualmente, torna-se
de difícil resistência20. E quanto maior se torna a “comunidade” de
intelectuais, menor é sua coesão interna, mais pulverizados são seus
membros e menor se torna a elite em proporção ao todo, ampliando
portanto sua capacidade de interferência sem ser contestada.
4. iDEoloGiA, ESColHAS TEóRiCAS E A
FoRMAÇÃo DAS ‘EliTES’ iNTElECTUAiS
Dentro de cada subgrupo funcional são identificáveis várias outras
subdivisões horizontais (que não estabelecem uma escala de hierarquia, portanto), baseadas em posturas ideológicas e teóricas assumidas pelos intelectuais. Nos níveis básico e intermediário, estas
divisões não cumprem papel fundamental no estabelecimento da
coesão e identidade dos subgrupos, que são normalmente mantidas tanto pela identidade ocupacional quanto pela consciência da
própria função exercida. No nível intermediário são identificáveis
formas de associação baseadas em critérios ideológicos ou teóricos
(grupos e associações de estudos, entre outros), mas que, se auxiliam
no cumprimento da subfunção, não são cruciais para a preservação
do indivíduo no respectivo subgrupo. No que diz respeito à elite,
contudo, tratando-se de um estrato muito mais organizado que os
demais, os recortes horizontais de cunho ideológico ou teórico dão
origem a grupos com forte identidade e unidade, que por mais que
não estabeleçam relações de dominação entre si, estão em constante confronto pela expansão de sua influência no interior do grupo
20
32
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 54.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
funcional (especialmente pela atração de mais intelectuais intermediários para a sua “causa”), e no conjunto da sociedade como um
todo. É desta forma que podemos falar não de uma elite, mas de
“elites” intelectuais, cuja identidade e unidade de seus membros
está intimamente ligada a um conjunto de “princípios intelectuais
fundamentais”. A legitimidade desfrutada por estes princípios na sociedade garante a permanência de uma elite intelectual determinada
e assegura-lhe um séquito de intelectuais intermediários dispostos a
levar a “causa” adiante, sem os quais o exercício funcional da elite
torna-se impossível. A legitimidade pode ser reconhecida por dados
grupos sociais não intelectuais e não por outros, mas é indispensável
que seja aceita por algum grupo minimamente influente. Transformações históricas que tornem determinados “princípios fundamentais” indesejáveis ou simplesmente rejeitados por todos os grupos
minimamente influentes são a causa direta do declínio e dissolução
de uma determinada elite.
A existência, portanto, de “elites” intelectuais concorrentes não
permite, todavia, que um de seus membros ignore os “princípios
fundadores” das elites adversárias. Uma das características de intelectuais neste subgrupo está na familiaridade com a produção do
grupo funcional como um todo, o que inclui o output de outras elites, sem rejeições de caráter ideológico ou fundadas em preferências
teóricas. Pertencer à elite significa também funcionar como “guardião” do depositório intelectual de uma dada sociedade. O domínio
de conceitos e conhecimentos alheios aos “princípios fundamentais”
que definem a sua elite conduz muitos destes intelectuais ao ecletismo, o que, dependendo de seu grau de complexidade, pode levar
ou não à criação de uma nova elite, fundada em princípios renovados (e inovadores, na maior parte dos casos). Uma importante estratégia de retórica adotada pelos intelectuais de elite no confronto
com representantes de elites adversárias consiste na utilização de
categorias do discurso do oponente contra ele próprio, o que requer
conhecimento amplo e suficientemente sólido para garantir o sucesso da investida.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
33
4.1 CoNDiÇõES DE ACESSo à EliTE iNTElECTUAl
Quanto às formas de acesso, as elites intelectuais igualmente se
assemelham às demais elites identificáveis nas sociedades ocidentais
do pós-guerra. Constituindo-se em um grupo eminentemente fechado, organizado, com espaços de convivência próprios e relações
com outros grupos sociais de grande poder, as elites intelectuais têm
critérios rígidos de admissão de novos membros. Mosca e, principalmente, Pareto insistiram na ideia de que o acesso à elite dirigente
é exclusivo aos indivíduos detentores de superioridade moral, material e intelectual. Pareto em especial via a elite como um grupo
de homens que possuem os mais altos índices nas atividades que
executam. Ainda que tanto um quanto outro admitissem casos de
indivíduos alçados à elite sem desfrutar dos atributos de superioridade esperados, ambos entendiam que o acesso estava amplamente
condicionado a capacidades pessoais acima da média, e portanto,
ao mérito e à excelência21. Schumpeter, mesmo não estando ligado
diretamente à teoria das elites, mas tendo feito importantes contribuições no campo das relações entre elite e democracia, também
afirmava que o mérito inovador de um indivíduo (e de uma família)
seria o elemento crucial para levá-la ao escalão máximo de uma
“classe” (entendida aí de um modo razoavelmente livre, como camada ou grupo social, funcional ou profissional)22. Não pretendemos desenvolver a crítica às ideias de Mosca e de Pareto quanto às
elites políticas, mas aplicando alguns dos princípios enunciados por
estes pensadores ao estudo das elites intelectuais, vemos que são de
difícil identificação teórica.
O acesso às elites intelectuais não está relacionado necessariamente
com a excelência do output intelectual. Desta forma, uma produção
teórica abundante e inovadora não é uma credencial suficiente, ainda
que possa servir de argumento para calar vozes discordantes em caso
de uma disputa de poder intraelite, tendo como objeto a admissão
de um novo membro. O ingresso em uma elite intelectual depende,
sobretudo, de dois fatores, o primeiro dos quais igualmente percebido
MOSCA, Gaetano. Id. ibid, p. 54; PARETO, Vilfredo. Op. cit., pp. 72-73.
SCHUMPETER, Joseph Alois. Imperialismo e classes sociais. Trad. Waltensir
Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1961, pp. 147; 158; 163.
21
22
34
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
por Mosca e Pareto nas elites políticas, e outro que é exclusivo. Tratase da hereditariedade (em sentido diferente ao originalmente concebido) e do reconhecimento.
Mosca afirma que, não raras as vezes, novos membros da “classe
política” eram herdeiros de membros passados, e, desta forma, se
beneficiavam dos atributos “superiores” transmitidos por mecanismos biológicos. Isto faria com que a elite se tornasse hereditária,
visto que riquezas e valores comportamentais seriam mantidos pelo
direito de propriedade e pela herança genética, portanto, por fatores sociais e naturais conjugados23. Segundo Pareto, tal seria ainda
mais evidente nas elites “profissionais”, nas quais somente o mérito e a excelência garantiriam o ingresso de novos membros, nunca
critérios alheios a estes. Afirmava igualmente que a riqueza herdada habilitava um indivíduo à elite24. Entretanto, ressalvas feitas por
Mosca indicam que tais princípios não se aplicariam à “competência
intelectual”, afirmando que as capacidades mentais são o elemento menos influenciado pela hereditariedade genética, apontando a
frequência de casos em que indivíduos de intelecto sofisticado geravam filhos com potencial sofrível (não entraremos no mérito de se
a hereditariedade genética realmente se aplica a quaisquer campos
da dinâmica social).
Assim, devemos levar em conta as percepções dos fundadores da
teoria das elites, mas temos de qualificá-las segundo nosso objeto. De
fato, a “hereditariedade” consiste em um mecanismo eficaz para o
ingresso nas elites, mas ela está longe de significar uma vinculação genética. Como indicado por Mosca, a classe dirigente impõe seu perfil,
aspirações, comportamento, visões de mundo e estrutura de capitais
(sociais, intelectuais, etc.) como padrão de excelência, requisitos para
qualquer novo aspirante à elite, que devem ser emulados e dominados caso um postulante pretenda ter sucesso em sua escalada social25.
Em todos os círculos da “elite do poder”, segundo Mills, verifica-se
a preocupação em recrutar e treinar sucessores dentro dos valores e
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 62.
PARETO, Vilfredo. Op. cit., p. 74.
25
GRYNSZPAN, Mario. Ciência, política e trajetórias sociais: uma sociologia
histórica da teoria das elites. Rio de Janeiro, FGV, 1999, p. 106.
23
24
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
35
padrões que os tornariam, em tese, indivíduos de “alto gabarito”26.
Assim, vemos que o critério da herança se aplica não em sua acepção
biológica ou econômica, mas fundamentalmente intelectual. Se é verdade que os “descendentes” surgem como membros mais habilitados
para renovar a elite, no caso em questão isto significa que a “paternidade intelectual” tende a ser o vetor mais importante que incide
sobre as chances de acesso de um indivíduo ao nível da elite. Em
outras palavras, é comum que integrantes seniores preparem seus próprios sucessores, garantindo a eles o domínio dos conceitos, padrões
de comportamento público e horizonte ideológico que constituem os
“princípios fundamentais” partilhados pelos membros da elite e que
conferem a ela unidade e identidade.
Além disso, é através destes mesmos membros seniores que os
neófitos ganham acesso privilegiado aos canais de difusão de seu
output e de intervenção em assuntos de sua especialidade. Assim,
a “excepcionalidade do mérito” mais uma vez não constitui condição indispensável para o ingresso na elite; um intelectual de alta
capacidade de produção e inovação não tem sua admissão garantida
se compete com outro de capacidade mediana, mas herdeiro dos
códigos, ideias, visões de mundo e representações próprias daquela
elite específica.
A rigor, os “exames” para ingresso na elite são livres, não sendo
portanto limitados por qualquer barreira jurídica ou política, estando
habilitados membros de todas as classes sociais que se enquadrem
nos requisitos credenciais estabelecidos. Como lembra Schumpeter, o
acesso ao “topo” de uma “classe” depende do grau de sucesso com
que um indivíduo cumpre sua função, já que a aptidão para tal estaria
espalhada por toda a sociedade. Sendo que no caso das elites intelectuais, “cumprir a função” tem como requisito o domínio dos “princípios fundamentais”, além de boa dose de tutela, o que faz com que
nem todos os aptos tenham um background apropriado27.
Além da “herança”, outro importante critério de admissão é o reconhecimento. A aceitação de um determinado intelectual como
membro da elite requer que ele seja tomado como interlocutor por
MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 347.
SCHUMPETER, Joseph A. Op. cit., pp. 184; 187; 192. MOSCA, Op. cit.,
p. 63.
26
27
36
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
um ou mais integrantes da própria elite. Isto é particularmente mais
fácil quando se considera a existência de uma “herança” sólida, e via
de regra os tutores e os que estão a ele imediatamente ligados são
os primeiros a aceitarem a interlocução de seus “pupilos”, um forte
sinal para o restante da elite de que emerge dos rankings inferiores
um novo integrante.
Existem casos nos quais nem a herança exerce influência importante
e nem o reconhecimento vem após fortes embates, o que é o exemplo
das “heresias” que resultam na elevação de um indivíduo ou conjunto
deles à condição de elite. Como vimos, ocasionalmente intelectuais intermediários desafiam aspectos dos “princípios fundamentais” de uma
determinada elite, e pela utilização dos canais de difusão do output
apropriados, bem como por questões de cunho conjuntural que devem ser consideradas, conseguem “atrair a atenção” de determinados
membros de elite a ponto de dar início a um debate que, dependendo
de seus resultados, permite tamanha notoriedade ao “herético” que
habilita sua mobilidade vertical, que será preservada somente se tiver
condições de cumprir as funções de elite (ampla difusão do output,
formação de novos intelectuais intermediários e candidatos à elite,
formação de opinião de alto nível, etc.). Caso contrário, o “herético”
tende a ter passagem efêmera pela elite, desfrutando de um intenso e
rápido prestígio, e um tão veloz declínio no momento seguinte, sendo
conduzido novamente às fileiras do grupo intermediário.
A influência exercida pelas outras identidades de um indivíduo (ocupacional, de classe, etc.) em sua atividade funcional é tão maior quanto mais próximo da base se encontra um intelectual. Entre as elites esta
influência se torna bastante rarefeita. Intelectuais de base e mesmo de
nível intermediário com frequência permitem uma forte interferência
das expectativas que têm como membros de um grupo ocupacional
ou de uma classe social no exercício de suas “funções”, além de serem bastante suscetíveis à influência dos interesses e necessidades de
grupos não intelectuais. A militância partidária, a inserção em organizações da sociedade civil com ethoi específicos e a profissão de princípios religiosos são fatores que influenciam, e, em muitos casos, até
condicionam, o output de intelectuais de base e intermediários, mas
entre a elite a presença destas influências tende a ser reduzida sempre
que entra em choque com os “princípios fundamentais”.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
37
Schumpeter ressaltou que a adesão de um indivíduo em prol dos
interesses de sua “classe” não é automática e nem sempre acontece.
Não seriam raras ainda as situações nas quais um indivíduo renega
a sua própria identidade de classe (aqui entendida em seu sentido
econômico) na medida em que, eventualmente, entra em conflito
com outras identidades, tais como a funcional ou a ocupacional28.
No caso das elites intelectuais, isto é ainda mais evidente, ao passo que a identidade funcional e o respeito aos “princípios fundamentais” são capazes de sufocar em ampla medida outras identidades. Mills não identificou entre as “elites do poder” americanas
uma coincidência entre o que chamou de “origem e carreira social”
e suas diretrizes políticas. Uma vez na elite, homens das “altas camadas” podem surgir como defensores dos interesses imediatos dos
mais pobres, da mesma forma que indivíduos provenientes da classe trabalhadora podem surgir como defensores dos interesses mais
conservadores e hostis à sua classe social. Nem todos aqueles que
representam os interesses ou atuam em prol de uma classe ou grupo
qualquer precisam pertencer a ele29. Em um grupo de elite, os rituais,
critérios de admissão, louvor, honra e promoção, que predominam
e tornam seus membros “semelhantes”, atuam de modo a permitir
que comportamento e expectativas de seus integrantes venham a ser
convergentes, o que levou Mills a observar a manifestação de uma
verdadeira “consciência” de elite30.
4.2 A EliTE iNTElECTUAl CoMo UM GRUPo DE STATUS
A elite intelectual em seu conjunto constitui-se como um grupo
de status, tal como proposto por Weber. Um grupo de status não
se define pela sua posição relativa no mercado nem no processo
produtivo, tampouco por interesses econômicos ou pela posse de
bens e oportunidades de rendimentos, fatores estes que indicariam
uma determinada “situação de classe”. Define-se não como componente da ordem econômica, que delimita a forma pela qual serão distribuídos bens na sociedade, mas como parte importante da
28
29
30
38
SCHUMPETER, Joseph A. Op. cit., p. 135.
MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 331.
MILLS, C. Wright. Id. ibid, pp. 332-334.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
ordem social; em suma, pelo modo através do qual a honra e o
prestígio social são distribuídos. A elite intelectual desfruta de elevada situação de status no conjunto da sociedade, expressa pelo
reconhecimento positivo de sua existência e função pelos grupos
mais influentes, o que confere honra ao indivíduo na proporção em
que maior notoriedade adquire perante os subgrupos intelectuais
inferiores e perante outras elites. A “luta pelo poder” desempenhada pela elite intelectual obedece à distinção feita por Weber acerca
dos interesses específicos de um grupo de status, que antes de buscar exercer sua ação em prol do enriquecimento, o faz tendo como
horizonte a aquisição de mais honra social, expressa pela medida
com que seu poder (imposição de sua opinião a despeito de oposições) é exercido31.
Ao contrário das classes sociais, amplas e normalmente amorfas,
a elite como um grupo de status constitui uma comunidade, característica partilhada com outros grupos de status. Mills também indicou que as elites tendem a se comportar de modo mais comunitário
que as classes o fazem usualmente, tendo em vista o caráter seleto
e reduzido de seus componentes; seus membros geralmente se conhecem, têm vivência social ativa, frequentam os mesmos espaços,
se reconhecem como parte de uma “casta” específica, e tomam suas
decisões levando em conta os demais integrantes da “cúpula”. Formam assim uma entidade social compacta e consciente de si, tendo
um comportamento diferenciado quando relacionado a membros da
elite e da não elite32.
Não sendo a posse um critério definidor da elite intelectual na sua
condição de grupo de status, pessoas com ou sem propriedades podem partilhar dele, dentro dos condicionantes já citados. De certo
modo, a honra de status a que almeja a elite se opõe à mera posse
econômica33. Entretanto, pertencer à elite e desfrutar dos privilégios a
ela referidos requer um determinado “estilo de vida” esperado de seus
membros, que se define por convenções e rituais nem sempre ao alcance econômico de qualquer um “apto” ao exercício funcional34. Tal
31
32
33
34
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 212.
MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 20.
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Op. cit., p. 219.
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Id. ibid, pp. 219-220.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
39
impasse costuma ser resolvido no processo de ascensão à elite em si,
tendo em vista que o status inicial geralmente é seguido de privilégios
materiais e oportunidades profissionais em nichos de alto rendimento,
cujo acesso é em grande parte controlado pela elite intelectual. Ainda
que o interesse econômico com a atividade intelectual seja mais forte
quanto mais próximo da base da pirâmide se encontra o subgrupo, o
que significa dizer que a expectativa de rendimentos pecuniários com
o exercício funcional seja muito intensa entre intelectuais básicos, e
gradualmente substituída pela busca de honra social quanto mais próximo do nível de elite, é indiscutível que as recompensas financeiras
garantidas pelo reconhecimento de um intelectual como membro da
elite costumam ser suficientes para permitir que se integrem aos rituais
e estilo de vida esperado pelos membros da “casta”35.
5. A RECoMPoSiÇÃo DAS EliTES iNTElECTUAiS
O exercício de tão amplo poder e a garantia de tantas vantagens
sociais não vêm sem riscos. Por mais imponente e inabalável que
possam parecer as elites intelectuais, elas são o subgrupo funcional
mais suscetível a instabilidades e mesmo a rupturas. O exercício
funcional de uma elite vive em permanente ameaça tendo em vista
o lugar ocupado por ela na cadeia de geração de conhecimentos
novos, e pelos fatores que definem sua existência. Na medida em
que são as opções teóricas e ideológicas (os “princípios fundamentais”) que determinam a identidade e a unidade de uma elite dada
e a sua função sendo justamente a delimitação dos marcos nos
quais novos conhecimentos serão fundados e novos debates serão
desenvolvidos, uma mudança histórica nas expectativas e perspectivas da sociedade (em especial dos grupos mais influentes), que
tornem dados “princípios fundamentais” indesejáveis ou somente
menos legítimos, é suficiente para desencadear um movimento de
implosão de uma elite intelectual. A desestruturação se inicia pelo
topo e se propaga gradualmente até atingir os níveis básicos da pirâmide. Podemos chamar este processo de recomposição das elites
intelectuais.
35
40
GERTH, Hans e MILLS, C. Wright. Id. ibid, pp. 222-223.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
A recomposição foi prevista pelos teóricos das elites. Mosca afirma que, entre a classe política, quando uma mudança de forças
políticas desencadeia uma necessidade de novas “capacidades” se
formarem na administração do Estado em detrimento de antigas, e
quando as velhas “capacidades” envergadas por uma elite “tradicional” perdem importância, haveria inevitavelmente uma transformação na composição da classe dirigente, com a queda de antigos
líderes e princípios, e a ascensão de novos líderes e ideias36. As
sociedades seriam marcadas por um constante conflito entre a tendência do monopólio político por parte dos elementos dominantes
que transmitem herança e a sublevação de novas forças vindas da
não elite, capazes de deslocar do poder seus ocupantes tradicionais
em determinadas circunstâncias. Para Pareto, as elites perderiam
seu “vigor” com o passar dos anos e seriam com isto ameaçadas
por grupos vindos da base da sociedade e plenos de capacidade
inovativa, que com isso derrubariam os velhos membros da elite e
tomariam seu lugar, em um fenômeno que identificou como “circulação de elites”37.
Algo semelhante e ligeiramente mais complexo ocorre entre as
elites intelectuais em momentos de rupturas históricas que significativamente interfiram na validade de seus “princípios fundamentais”,
que se aproxima mais da proposta de Robert Michels e das considerações de Schumpeter. A recomposição das elites não significa a
substituição excludente de antigos membros por novos, uma renovação completa dos quadros. Quando os “princípios fundamentais”
de uma elite perdem sua força e capacidade de expressar verdade,
há um intenso processo de rearticulação no qual membros buscam
“refúgio” nos princípios de outra elite, passando costumeiramente
a ser reconhecidos por ela como interlocutores “semelhantes” e, a
partir de um output intelectual renovado pelos princípios recémadotados, tornam-se membros reconhecidos. Este é o mecanismo
mais comum, segundo Michels, para a renovação das elites, ou seja,
absorção e assimilação de novos integrantes perpetradas pelos velhos, que podem se expressar pelos instrumentos de tutelagem em36
37
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 66.
PARETO, Vilfredo. Op. cit., pp. 77-78.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
41
preendidos pelos intelectuais seniores sobre jovens aptos ao posto
de elite, ou, da maneira como agora exposta, pela incorporação dos
intelectuais de uma elite em decadência38. A “adaptação” requer
amplo esforço intelectual e exige articulações políticas e sociais.
Nem todos os membros de uma elite serão bem-sucedidos no esforço de migrarem para outras elites e evitarem, portanto, a perda
de sua posição no grupo funcional. É da opinião de Schumpeter a
existência da ligação entre o sucesso dos membros de uma “classe”
(entendida de modo amplo) e a sua adaptabilidade a situações sociais modificadas. Uma excessiva especialização, afirma, pode tornar a adaptação impossível, sendo esta uma das razões pelas quais o
conhecimento amplo de programas de pesquisa, teorias e ideologias
concorrentes identifica um membro da elite, e quanto maior for
este conhecimento, maior a chance de um intelectual permanecer
no nível de elite, mesmo após a elite específica a qual estava vinculado vir a sucumbir39.
Em um momento de recomposição, muitos intelectuais de elite
permanecem fiéis aos “princípios fundadores” da elite em declínio,
e, por razões variadas, escolhem “afundar com o navio”. Incapazes ou resistentes em adotar novos princípios, muitos insistem em
manter seu output intelectual em níveis de produtividade intensos, a
despeito do número de interlocutores e da legitimidade social desfrutada minguarem progressivamente, até estarem restritos a círculos de pouca ou nenhuma influência, o que consolida a perda do
status de elite, com todas as consequências derivadas. Em muitos
casos os membros “decaídos” simplesmente não são mais capazes
de cumprir as tarefas do grupo funcional, e o abandonam. Outros
conseguem adaptação tardia em níveis da pirâmide inferiores e passam a atuar como intelectuais intermediários ou básicos. Alguns ainda conseguem migrar para outras elites (política, econômica, etc.),
dependendo do grau de articulação que mantinham previamente
com estes setores. De qualquer maneira, stricto sensu, permanecer
fiel aos princípios de uma elite em declínio significa o ostracismo
enquanto intelectual.
38
MICHELS, Robert. “A Lei de Ferro da Oligarquia”. Trad. Sérgio Magalhães
Santeiro. In: SOUZA, Amaury de (org). Op. cit., p. 90.
39
SCHUMPETER, Joseph A. Op. cit., p. 195.
42
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
Em exemplos mais bem-sucedidos, os intelectuais de uma elite em
queda são capazes de formular e defender novos princípios a ponto
de criarem uma nova elite dos escombros de uma primeira e consolidar sua posição por meio de ampla difusão de um output intelectual
renovado, atraindo com isto outros pensadores de elite, intermediários
e membros influentes de outros grupos sociais. Elites nascidas desta
forma, assim como aquelas originadas a partir de “heresias” vindas de
escalões inferiores, tendem a desfrutar rapidamente de um prestígio
de “vanguarda” junto à sociedade, porque pelo menos em linhas gerais parecem representar o novo, ainda que a maior parte dos “novos
fundamentos” tenda a se constituir em derivação dos fundamentos
esposados pela elite decaída dos quais provieram os fundadores da
nova elite.
A recomposição das elites intelectuais começa pelo topo, por elas
próprias, portanto, e gera efeitos que se alastram pela pirâmide
gradualmente. Após a adaptação de alguns, da cooptação de outros
por parte das elites preexistentes, ou da criação de novas elites, os
intelectuais intermediários e básicos respondem com lentidão proporcional à proximidade que guardam em relação à base. Ambos
persistem em manter seu output nos marcos da elite dissolvida por
tempo variado. Progressivamente, os membros cooptados ou os
fundadores de uma nova elite iniciam intenso processo de “reconquista” de seus antigos intelectuais intermediários, que vão pouco
a pouco sendo “convertidos” ou aderem aos princípios emanados
de elites alternativas na medida em que seu output, produzido ainda segundo “princípios fundamentais” deslegitimados, começa a
ser criticado por outros intelectuais já adaptados ou pela opinião
pública especializada a qual pretendem informar. Os intelectuais
do subgrupo básico têm uma adaptação ainda mais lenta e problemática, persistindo por longo período na adoção dos “princípios”
de uma elite dissolvida. A adaptação dos estratos básicos tende a
acontecer na medida em que o grupo se renova fisicamente, ou
seja, ao passo que antigos membros se desligam e novos membros
são admitidos, estes últimos já treinados por intelectuais intermediários “reformados”.
A desintegração de uma elite tem sido historicamente acompanhada da ascensão de novas elites, o que significa dizer que a expe-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
43
riência aponta para a persistência da influência organizada de uma
minoria sobre grupos majoritários fragmentados. Em suma, até então, muitas elites intelectuais se dissolveram, mas a elite intelectual
no geral permanece40.
40
44
MOSCA, Gaetano. Op. cit., p. 51.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
REFERÊNCiAS
DAVIS, Kingsley; MOORE, Wilbert E. Alguns princípios de estratificação.
Trad. Luiz Antonio Machado da Silva. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.)
et al. Estrutura de classes e estratificação social. 6. ed. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1976.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico e outros textos.
Trad. José Arthur Giannotti, Miguel Lemos, Margarida Garrido Esteves. São
Paulo: Abril Cultural, 1973.
GERTH, Hans (Org.); MILLS, C. Wright (Org.). Max Weber: ensaios de sociologia. Trad. Waltensir Dutra. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1971.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
GRYNSZPAN, Mario. Ciência, política e trajetórias sociais: uma sociologia
histórica da teoria das elites. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
GURVITCH, Georges. Definição do conceito de classes sociais. Trad. Rosa
Maria Ribeiro da Silva. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) et al. Estrutura
de classes e estratificação social. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1976.
MERTON, Robert. Sociologia: teoria e estrutura. Trad. Miguel Maillet. São
Paulo: Mestre Jou, 1970.
MICHELS, Robert. A lei de ferro da oligarquia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. In: SOUZA, Amaury de (Org.). Sociologia política. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1966.
MOSCA, Gaetano. A classe dirigente. Trad. Alice Rangel. In: SOUZA, Amaury de (Org.). Sociologia política. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1966.
PARETO, Vilfredo. As elites e o uso da força na sociedade. Trad. Alice Rangel. In: SOUZA, Amaury de (Org.). Sociologia política. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1966.
SCHUMPETER, Joseph Alois. Imperialismo e classes sociais. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1961.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 10-45 | JANEiRo > AbRil 2009
45
CUlTURAS URbANAS
E EDUCAÇÃo
ExPERiMENTAÇõES DA CUlTURA NA EDUCAÇÃo
Ecio Salles
46
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
Este artigo visa refletir sobre as possibilidades de a cultura contribuir para a
melhoria da educação, notadamente em escolas que adotaram o horário integral como política pública. Pretende-se demonstrar que, nesse contexto, a
cultura tem-se mostrado uma linguagem importante, capaz de fazer diferença
positiva no processo educativo e influenciar políticas públicas nesse sentido.
Em diversas cidades brasileiras, ações culturais, muitas delas oriundas das periferias, vêm atuando em parceria com escolas modificando-as produtivamente,
potencializando os sujeitos, incidindo sobre a comunidade. Em particular, serão abordadas duas instituições específicas, as quais atuam em parceria com
o Estado, no caso, as prefeituras de suas cidades, e têm alcançado resultados
expressivos ao realizar ações culturais em escolas públicas: o Grãos de Luz e
Griô, em Lençóis, Bahia; e a Escola Livre de Cinema, em Nova Iguaçu, Rio de
Janeiro. Não se trata de “instrumentalizar” a cultura nem de esvaziar o papel
tradicional da Escola, mas de incrementar a aprendizagem dos alunos mediante práticas, técnicas e experiências artísticas que redimensionem seu lugar no
mundo e na vida.
This article aims at to reflect on the possibilities of the culture to contribute for
the improvement of the education, specially in schools that had adopted the
full time as public politics. As long as it goes, Culture has presented itself as an
important language, capable of doing a positive difference in the educational
process and to influence public politics in this direction. Many of cultural activities, most of them coming from the poor areas of the city, have been acting
in partnerships with schools changing them productively, empowering people
and focusing on the community. In particular, two specific institutions will be
analysed, which act in partnership with the public administration, in the case,
the government of its cities, and have reached remarkable results when they
perform cultural actions in public schools: Grãos de Luz e Griô, in Lençóis,
Bahia; and Escola Livre de Cinema, in Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. It doesn´t
mean neither to treat Culture as a “tool” nor empty the traditional role of Education but to increase the learning of the students through artistic practices,
techniques and experiences that resize their places in the world and in life.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
47
1. iNTRoDUÇÃo
A cultura é nossa arma.
Damian Platt e Patrick Neate
De que formas pode a cultura participar do processo de melhoria
da educação no Brasil? Este artigo propõe algumas, entre inúmeras
possíveis, respostas para essa questão. Em diversas localidades no Brasil inteiro, há experiências que estão participando ativamente desse
esforço. Aqui, foram selecionadas duas delas: o projeto Grãos de Luz
e Griô, em Lençóis, na Chapada Diamantina, Bahia; e a Escola Livre
de Cinema, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Esse recorte se deveu ao fato de ambas terem criado soluções criativas e inovadoras, desenvolvido parcerias com escolas públicas das
regiões nas quais estão inseridas e vêm sendo peças-chave no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a educação. Por último,
mas não menos importante, essas instituições têm uma visão de cultura como algo vivo, como processos e estratégias que se desdobram
como ação no cotidiano, conforme se discutirá adiante. Certamente,
a cultura por si não representa a solução definitiva para os grandes
desafios colocados para o país, entre os quais o educacional.
Mesmo assim, as ainda escassas, mas expressivas, práticas culturais
que se desenvolvem no cotidiano de um grande número de escolas
do país, como ações micropolíticas que afetam a vida das pessoas,
podem indicar uma tendência, apontar um caminho entre tantos,
capaz de fortalecer os esforços comuns de formulação de políticas
públicas consequentes na área. Não por acaso, o Ministério da Cultura tem um programa voltado especificamente para esse contexto,
o Ação Escola Viva.
A Ação Escola Viva tem como objetivo integrar os Pontos de Cultura à
escola de modo a colaborar para a construção de um conhecimento
reflexivo e sensível por meio da cultura. Desta forma, o programa estará contribuindo para a expansão do capital social brasileiro – primordial no processo de sustentabilidade do desenvolvimento econômico,
no qual o “saber-fazer” e o “saber-ser” de cada canto do País possa
ser alargado e aprofundado, mantendo-se aberto à chegada de novas
linguagens, gerando capacidades de criação, tolerância, autonomia e
criatividade – imprescindíveis à construção da cidadania. Com esta
48
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
ação poderemos resgatar a interação entre cultura e educação, sem
que haja distinção de valor e de atitude entre emoções, sentimentos,
pensamento e conhecimento, de modo que a cultura seja praticada
como uma forma de inteligibilidade da identidade nacional, da emoção (in http://www.cultura.gov.br/cultura_viva/).
Embora o Grãos de Luz seja um Ponto de Cultura e a Escola Livre de
Cinema não, os dois participam de programas em suas cidades cuja
atuação em parceria com escolas públicas se orientam pelos princípios
descritos anteriormente. No caso da Escola Livre, sua atuação se dá no
âmbito do Programa Bairro-Escola, da Prefeitura de Nova Iguaçu.
O Bairro-Escola é uma reorientação dos processos socioeconômicoculturais da cidade, por meio de políticas públicas intersecretariais que
giram em torno da educação, organizadas em três eixos principais,
a Requalificação Urbana, o Ensino Integral e a Proteção da Vida e
Defesa dos Direitos Humanos, com o objetivo de promover o desenvolvimento da cidade e das práticas da cidadania, através do estímulo
a participação dos diversos setores da sociedade, visando que Nova
Iguaçu se afirme como uma Cidade Educadora. (in http://www.bairroescola.novaiguacu.rj.gov.br).
Com base nessas referências, propõe-se aqui apresentar práticas que
demonstram a viabilidade de ações culturais como potencializadoras
de práticas escolares. Em vez de lamentar os problemas da educação,
essas experiências estão propondo soluções. A partir da leitura do material produzido pelas instituições mencionadas – considerando que o
material produzido e publicado sobre elas é ainda muito reduzido – e
de entrevistas com os fundadores de uma delas, procura-se mostrar
como essas questões estão sendo viabilizadas na prática.
2. EDUCAÇÃo No bRASil
A Educação no Brasil é um problema complexo. Quando o rapper
Mano Brown, do grupo paulistano Racionais MCs, disse em uma entrevista, há alguns anos, que as crianças estavam perdendo tempo na
escola, não emitiu apenas uma opinião polêmica. Talvez de maneira
provocativa, acabou expressando um sentimento nada incomum: o
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
49
de que a escola pública brasileira está em crise, não forma mais ninguém e não mais representaria, especialmente para as classes pobres,
um caminho possível de formação pessoal e mobilidade social.
Até a década de 60, o principal desafio no país era o de garantir a
democratização do acesso de contingentes expressivos da população
– crianças ou adultos – aos bancos escolares. Esse processo até que
foi realizado, mas em prejuízo da qualidade. Uma matéria da revista
Carta Capital enfatiza que o Brasil, “além de alfabetizar menos, [...]
alfabetizou com pior qualidade do que a maioria dos países do mundo. Quanto mais ofereceu educação às massas, mais deteriorou a sua
qualidade” (COSTA, 2003: 28-31).
Eblin Farage, em pesquisa realizada para o Observatório de Favelas –
organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à
produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas
e fenômenos urbanos – defende que a crise por que passa a educação
brasileira hoje se deve à política de ajuste estrutural do Consenso de
Washington, “em cujos preceitos se assentam as privatizações promovidas pelos governos neoliberais” (FARAGE, 2008). Isso teria, informa a
autora, resultado em números alarmantes: “22 milhões de analfabetos
adultos, 15 milhões de analfabetos funcionais, 3 milhões de crianças
de até 14 anos fora da escola”. Segundo Farage:
Os sintomas de um país extremamente desigual – subordinado aos
interesses do capital internacional e voltado para a garantia da acumulação capitalista – se farão sentir de forma devastadora nas escolas dos espaços populares dos grandes centros urbanos. Isto se
explica, principalmente, pelo lugar ocupado por essa população na
racionalidade do capitalismo, ou seja, a de superpopulação relativa
(FARAGE, 2008).
Os últimos anos, entretanto, sinalizam para uma nova situação. O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) disponibiliza dados que apontam certa melhora em alguns aspectos. A Síntese dos
Indicadores Sociais 2008 revela que, no período entre 1997 e 2007,
houve diminuição da taxa de analfabetismo das pessoas com mais de
15 anos (foi de 14,7% para 10%). Verificou-se crescimento do índice
de estudantes cursando o nível médio na idade adequada, entre 15 e
50
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
17 anos, que era de 26,6% e subiu para 44,5%; também se registrou
aumento do número de alunos que completam o curso nos níveis
fundamental, médio e superior; criação de mais escolas de ensino fundamental, médio e superior; e redução na defasagem série/idade no
ensino fundamental. “Em 1997, o percentual de estudantes defasados
era de pouco mais de 43,0%, reduzindo-se em 2002 para 32,3% e
chegando a 25,7%, em 2007.”
Em contrapartida, nesse mesmo período a desigualdade de acesso
de brancos e pretos e pardos ao nível superior aumentou. “Em 1997,
9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos, de 25 anos ou mais
de idade, tinham nível superior completo no país; em 2007, esses
percentuais eram de 13,4% e 4,0%, respectivamente.” E há o problema do analfabetismo funcional. É duvidosa a qualidade do ensino de
leitura – além dos princípios básicos de cálculos matemáticos, acontecimentos históricos, dados geográficos... – oferecido pelas escolas públicas às crianças e adolescentes. Segundo pesquisas recentes, houve
sensível diminuição da taxa de analfabetismo funcional entre pretos
e pardos, mas a desigualdade em favor dos brancos se manteve e o
número total de analfabetos funcionais ainda é muito alto.
Embora entre as crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade, faixa
etária correspondente ao ensino fundamental, o ensino esteja praticamente universalizado (97,6%), os resultados da pesquisa mostram
que este alto índice de freqüência à escola nem sempre se traduz em
qualidade do aprendizado. Entre as 28,3 milhões de crianças de 7 a 14
anos, que pela idade já teriam passado pelo processo de alfabetização,
foram encontradas 2,4 milhões (8,4%) que não sabem ler e escrever.
Isto não significa que estas crianças não estejam na escola: 2,1 milhões
delas, ou seja, 87,2%, das que não sabiam ler e escrever, freqüentavam
estabelecimento de ensino. Deste grupo de 2,1 milhões, 1,2 milhão
vivia no Nordeste do país1.
Por outro lado, episódios frequentes na mídia expõem uma realidade crítica na sala de aula, onde alunos entram armados, fazem ameaTodos os dados foram encontrados no documento Síntese de Indicadores
Sociais – 2008, do IBGE, in http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/
noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1.
1
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
51
ças aos professores e, às vezes, chegam a agredi-los2. Outra questão foi
apontada por Jaílson de Souza e Silva, Coordenador do Observatório
de Favelas da Maré e atualmente Secretário de Educação em Nova
Iguaçu. Em uma palestra para estudantes de Comunicação, Jaílson criticava a situação da educação no país afirmando que, hoje em dia, “as
crianças entram na escola falando e saem mudas” (SILVA, 2008). Conclui-se que é necessário fortalecer os modos de expressão das crianças
e adolescentes nas escolas e criar os meios para isso. Quero sugerir
que a cultura tem uma contribuição decisiva a dar nesse contexto.
Numa crítica ao filme Entre os muros da escola3 em uma revista
britânica, Michael Wood defende que o longa “não foi feito para falar
sobre cultura. O filme foi feito para falar da relação entre professor e
aluno”. Nesse contexto, uma discussão em torno do uso do modo subjuntivo acaba apontando o que, para Wood, é o verdadeiro problema:
a grade curricular, os “parâmetros curriculares” e os conteúdos. Wood
conclui, afinal, que “o professor é escravo do sistema, e os alunos só
veem o exercício de tirania pela tirania”. Considerando o estado de
constante conflito que domina as relações na escola, é difícil não estabelecer analogia com a peça teatral Entre quatro paredes, de Jean-Paul
Sartre, em que aparece a famosa expressão “o inferno são os outros”.
Faz tempo que Paulo Freire apontava a necessidade de uma perspectiva dialógica no que concerne à prática educativa. “Por que não
estabelecer uma ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos?”
(FREIRE, 1996: 30). Embora haja honrosas exceções aqui e ali – que,
Esse problema merece um estudo aprofundado em outro momento. Num
debate de que participei no início de 2008, um jovem interno de uma instituição para infratores contou que ingressou na vida do crime porque, além das
dificuldades de aprendizagem que tinha, certo dia a professora corrigiu uma
indisciplina sua mandando um grupo de alunos maiores da classe lhe darem
uma surra e jogarem-no dentro da lixeira da escola (nenhum nome pode ser
citado aqui em função de acordo realizado com a referida instituição).
3
A narrativa do filme, baseada em livro de François Bégadeau (que atua no
filme, no papel do professor Marin), cobre um ano letivo na vida de alunos
entre 13 e 14 anos de idade em uma escola pública num bairro da periferia
de Paris. O grupo reúne exclusivamente imigrantes; os atores são alunos de
escolas do mesmo bairro, diligentemente preparados pelo diretor do filme,
Laurence Cantet. O título original do filme é Entre les murs.
2
52
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
no entanto, apenas confirmam a regra, tão raras que são –, Freire tem
sido muito citado e homenageado, pouco ouvido realmente.
3. A CUlTURA E oS EFEiToS DE CENTRAliDADE
Entre as exceções mencionadas, há a Escola Estadual Guadalajara,
no bairro Olavo Bilac, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em
que o agenciamento cultural fez a diferença, atraindo a atenção dos
alunos para as aulas e contribuindo na criação de grupos de teatro,
música e grafite. Ou a Escola Presidente Campos Sales, em Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo, que derrubou as paredes da sala de
aula e criou um novo ambiente de disposição das turmas de mesma
série, favorecendo o viés de uma pedagogia radicalmente dialógica.
Esses poucos casos apontam, como sustentava Paulo Freire (1996: 35),
a disponibilidade ao risco e aceitação do novo. O recurso à cultura
como forma de estabelecer o diálogo propõe um pensamento sobre
o outro não como a possibilidade do inferno, tampouco a do paraíso.
Mas como a possibilidade do encontro, com suas múltiplas e (a priori)
indecidíveis potencialidades. O fator decisivo é que, havendo o encontro, há a possibilidade do reconhecimento e o acontecimento da
responsabilidade, da ética, da criticidade, da alegria e da esperança
que Paulo Freire defendia como inerentes à prática educativa.
A cultura é decisiva nesse contexto. Ela ocupa um lugar central na
economia, nas relações sociais e na vida cotidiana. Stuart Hall, por
exemplo, assinala “a enorme expansão de tudo que está associado a
ela, na segunda metade do século XX, e o seu papel constitutivo, hoje,
em todos os aspectos da vida social” (HALL, 1997: mimeo). Embora a
cultura tenha sido sempre importante, nas últimas décadas vem alargando sensivelmente seu raio de atuação, obtendo também o reconhecimento de outros setores a respeito de sua relevância crescente
no contexto contemporâneo.
A expressão “centralidade da cultura” indica aqui a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo
proliferar ambientes secundários, mediando tudo. A cultura está presente nas vozes e imagens incorpóreas que nos interpelam das telas,
nos postos de gasolina. Ela é um elemento-chave no modo como o
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
53
meio ambiente doméstico é atrelado, pelo consumo, às tendências e
modas mundiais (HALL, 1997: mimeo).
Hall põe em questão o lugar da cultura no mundo contemporâneo
e sua ocorrência tanto na sociedade quanto na análise social. Ele organiza seu argumento em torno de duas dimensões das centralidades da
cultura: uma substantiva – o lugar que a cultura ocupa “na estrutura
empírica real e na organização das atividades, instituições, e relações
culturais na sociedade, em qualquer momento histórico particular”;
outra epistemológica: “como a ‘cultura’ é usada para transformar nossa compreensão, explicação e modelos teóricos do mundo” (HALL,
1997: mimeo). Neste artigo, a fim de manter o foco em seus objetivos
principais, será dada prioridade à primeira dimensão.
Desse modo, propõe o autor, haverá um viés dessa revolução cultural que afetará as relações globais, sobretudo devido à intensificação
das trocas culturais mediante as novas tecnologias de informação e
comunicação. Um processo que conduz à compressão espaço-tempo,
reduzindo as distâncias e incrementando as relações entre diferentes
partes do globo, conduzindo ao risco de homogeneização cultural.
Contudo, Hall contrapõe-se a essa linha de pensamento – “as consequências desta revolução cultural global não são nem tão uniformes
nem tão fáceis de ser previstas”. Assim, conclui o autor, é mais provável que esse processo “produza ‘simultaneamente’ novas identificações ‘globais’ e novas identificações locais do que uma cultura global
uniforme e homogênea” (HALL, 1997: mimeo).
A revolução cultural de que fala Stuart Hall, em suas formas substantivas, não se restringe à dinâmica macro das relações globais. Ela também penetra no nível do microcosmo. “A vida cotidiana das pessoas
comuns foi revolucionada”, não de maneira regular ou homogênea,
lembra o autor. Embora o ritmo das mudanças se diferencie em cada
localidade geográfica, “são raros os lugares que estão fora do alcance
destas forças culturais que desorganizam e causam deslocamentos”
(HALL, 1997: mimeo).
Por outro lado, a cultura também se constitui de forma transversal.
Já não é possível ver na cultura apenas a coleção de bens simbólicos,
nem um sinônimo, diria Joel Rufino dos Santos, de saber ou de patrimônio artístico e científico. Tampouco é produtivo encará-la como um
54
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
campo isolado, protegido. Em nossa era imaginal, completa o autor,
“ela pode ser melhor definida como uma substância plástica de que
tudo é feito, os objetos e os interstícios entre os objetos” (SANTOS,
2004: 191).
Ao mesmo tempo em que a cultura ganha relevância como a substância plástica que molda os objetos e as relações, a voz das periferias,
“falando alto em todos os lugares do país”, tem-se apresentado como,
nas palavras de Hermano Vianna, “a novidade mais importante da
cultura brasileira na última década” (VIANNA, 2006). O que configura
uma dinâmica cultural que é especificamente urbana, e enfrenta os
benefícios e os problemas dessa condição.
O campo gravitacional no qual transita a expressão cultura urbana,
conforme a penso aqui, reúne palavras que se atraem mutuamente:
processo, linguagem, subjetividade, experiência. São termos diferentes entre si, mas que deixam – especialmente se pensados em face do
conjunto cultura e educação – perceber um destino compartilhado: a
perspectiva de ampliação ou universalização dos direitos e o aprofundamento democrático.
Estes são pontos definidores das estratégias dos grupos que desenvolvem ações culturais na cidade. Em primeiro lugar, a cultura é entendida como um modo de estar na vida. Nesse contexto, deixa-se de
lado o ponto de vista da cultura como representação e passa-se a entendê-la a partir de suas estratégias e procedimentos, que deslancham
processos continuados de ação criativa com a vida. A cultura pensada
como processo atua no cotidiano das pessoas, modificando-as produtivamente, potencializando os sujeitos das ações, incidindo sobre a comunidade: reforça laços, estimula a conquista de autoestima, produz
pensamento sobre o lugar de cada um na rua, no bairro, na cidade,
no país, no mundo, abrindo-se à possibilidade de transformá-lo, de
democratizá-lo profundamente. Trata-se de investir nos processos micropolíticos, balizados na consideração do desejo e da produção de
subjetividades, capazes de obter efeitos na macropolítica (PELBART,
2007): reinventar a cidade, criar efeitos de centralidade onde seja
considerado periférico e desvalorizado.
Trata-se de estimular o desejo, experimentar todas as linguagens,
compartilhar a emoção, a inteligência, potencializar e empoderar os
sujeitos e os discursos, tomar posse da própria existência. Como per-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
55
cebe Ivana Bentes, “é preciso tomar posse das linguagens e dos meios,
tomar posse das câmeras, pois as questões de pertencimento e autoestima passam pela potência da imagem e da visibilidade” (BENTES,
2007). E também garantir o direito à fruição, ao gozo estético.
Por um lado, a cultura designa a capacidade de determinados grupos em desenvolver o seu trabalho com organicidade e legitimidade
nas comunidades onde se estabeleceram. Nos últimos anos, os movimentos dos jovens – em especial dos jovens negros e pobres – têm
sido responsáveis pela produção de uma nova subjetividade a partir
das periferias do Brasil. Transformaram suas comunidades, a partir de
uma dinâmica que combina comportamentos de resistência com os
das redes sociais de produção, inaugurando espaços de criação e de
“trabalho comum” (NEGRI & COCCO, 2005: 57).
É notável como, no mundo inteiro, o fenômeno da proliferação das
favelas tem se tornado um elemento marcante do crescimento dos
centros urbanos. Segundo relatório do Programa de Assentamentos
Humanos das Nações Unidas – The challenge of the slums [O desafio
das favelas]4 –, os moradores de favela representam 78,2% da população urbana dos países menos desenvolvidos e constituem um terço
da população urbana global. E pelo menos metade dessa população é
composta por jovens com menos de 20 anos de idade (DAVIS, 2006:
198). Sob um determinado ponto de vista, esse fenômeno é preocupante, uma vez que resulta do aumento da desigualdade social, do
desemprego e da miséria, além de favorecer o recrudescimento da
violência urbana.
Por outro lado, também é o locus onde proliferam ações criativas,
capazes de ir além dos discursos de superação da pobreza e produzir
formas de expressão bastante significativas. Os meios de expressão aí
encontrados são os mais diversos, desde o saquinho de pão impresso,
distribuído nas padarias de Vitória pelo Projeto Forninho e funcionando como um jornalzinho regional; os saraus poéticos promovidos pela
Cooperifa nos bares de Capão Redondo, na periferia de São Paulo,
transformando o bar no verdadeiro “espaço público” das favelas; as
intervenções públicas e midiáticas do coletivo Bijari em áreas gentrifi“A primeira auditoria verdadeiramente global acerca da pobreza urbana”
(DAVIS, 2006: 196).
4
56
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
cadas de São Paulo; o T-bone Açougue Cultural e suas atividades em
Brasília (chegou a ter dez mil livros em seu açougue para empréstimo
gratuito à população); o pessoal do Media Sana em Pernambuco, com
sua militância política e estética, juntando vídeo e música; o Enraizados, e suas múltiplas atividades através do hip-hop, falando a partir
de Nova Iguaçu para o Brasil inteiro e alguns países no mundo; a
incrível experiência do Espaço Cubo, em Cuiabá, com a produção de
festivais de rock independentes, produzindo uma economia local tão
consistente que gerou uma moeda própria, o Cubo Card; ou ainda
o trabalho da Fundação Casa Grande, no Ceará, em que as crianças
participantes assumiram a gestão do projeto.
E mais, iniciativas como as do Grupo Cultural AfroReggae, do Observatório de Favelas, da Cia. Étnica de Dança e da Cufa, no Rio; do
Eletrocooperativa e do Bagunçaço, na Bahia; da Casa do Zezinho e a
do Hip-Hop, em São Paulo... Inúmeros outros projetos e experiências
espalhados pelo país têm em comum a conjugação dos aspectos mencionados acima com uma profunda e consistente inserção em seus
territórios de atuação. Nem todos os grupos têm sua origem nos locais
em que atuam (e mesmo essa “origem” não seria por si garantia de
legitimidade). Aqueles que obtiveram os melhores resultados nesse
processo são os que, ao entrarem em contato com o contexto social
no qual investiram, a um só tempo o modificaram e se permitiram
modificar por ele.
Essas iniciativas são, talvez, representativas de uma nova modalidade
de arte. E o artista hoje já não pode deixar-se levar pelo mito romântico do ser solitário, inspirado, acima das coisas do mundo (PELBART,
2007). Ele se torna uma espécie de operário, de produtor ou operador
de ações criativas, sempre inserido na mobilização coletiva, em que
cada ponto da rede é um foco de irradiação cultural. Assim, caem por
terra as noções consolidadas sobre a relação centro/periferia, a dependência em relação às instituições reconhecidas e os clichês sobre
inclusão social, cidadania, precariedade, reivindicação e conflito. Está
em suas mãos a potência de reinventar a subjetividade coletiva, os
meios de produção, de troca e de consumo, a própria mídia.
Nas periferias do Brasil, os casos em que essa forma de articulação
foi determinante para o êxito das iniciativas – especialmente no que
se refere a projetos ligados à educação e à cultura – são numerosos.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
57
Nessas organizações, a música, a dança, o teatro, o circo e a capoeira,
entre outras, são também linguagens que promovem um certo diálogo, aquele capaz de reescrever trajetórias de vida, modificar pessoas
e comunidades, repensar a vida e transformá-la. Como afirma George
Yúdice (2004: 17), em seu estudo sobre o assunto, a cultura hoje “está
sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica”.
Em entrevista à Heloísa Buarque de Holanda, Yúdice explica o conceito: “cultura já não é mais arte. A arte é só a ponta do iceberg da
cultura. A verdadeira cultura é a criatividade humana” (HOLANDA,
2005). Iniciado na década de 90, esse discurso hoje é, segundo o
autor, praticamente hegemônico. A noção da cultura como recurso,
que demanda organização e capacidade de gestão, não significa considerá-la apenas como mercadoria, mas perceber a ambivalência presente nessa percepção, a qual engloba também as questões da inclusão social e da cidadania. A cultura como recurso está presente tanto
na multiplicação de franquias do Museu Guggenheim pelo mundo,
quanto nas atividades socioculturais desenvolvidas pelo Grupo Cultural AfroReggae, que lhes garantem patrocínios não apenas do Estado, mas de empresas e organismos de cooperação internacional, por
exemplo: Ministério da Cultura, Natura e Fundação Ford (cf. www.
afroreggae.org).
A questão é como dinamizar essa criatividade, viabilizar, para ter uma
série de resultados: auto-estima, emprego, fim do racismo. E isso está
muito vinculado ao trabalho das ONGs e à cooperação internacional.
E a cultura é o lugar onde mais se manifesta essa criatividade. Então,
por sua natureza a cultura serve para alavancar a criatividade (HOLANDA, 2005).
Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade de investimento, a partir
do campo cultural, em outra vida possível, afetando e associando-se
ao movimento da vida social, numa recusa decidida de acomodar-se
à ordem dominante. É por isso que, apesar de a forma de organização
pelas ONGs encontrar limites à sua atuação – o risco de cooptação,
devido a sua adesão à grande mídia; o desvio do sentido de suas lutas
ao participar de redes abrangentes, com setores das classes dominan-
58
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
tes etc. –, no fim das contas não cessam de elaborar a cultura popular
como “gestos ritualísticos de produção de subjetividade autônoma por
parte dos pobres”, como define Muniz Sodré (2006: 221). Ou, como
acredita Peter Pál Pelbart, esses grupos vivem
na carne a constatação de que o capital maior é a própria vida, e que
sua potência de expansão e de constituição extrapola o poder do capital e o seqüestro da vitalidade social dali advinda. É uma pequena
revolução biopolítica (PELBART, 2007).
Por outro lado, o processo de articulação não se dá apenas no interior das periferias. Uma vez realizado esse movimento, as próprias
periferias, a partir da ação dos grupos organizados, promovem um
outro nível de articulação, agora com setores externos às comunidades
– agências de fomento, empresas, governo, mídia... –, visando potencializar seus projetos e atividades.
Esses agenciamentos tendem a se complexificar ainda mais no momento em que as desigualdades sociais e a violência urbana passam
a ocupar o centro das preocupações. Nesse momento, algumas organizações, em especial aquelas que se valem da cultura como recurso,
passam a investir fortemente na criação de modos de aproximação
entre os espaços sociais antagonizados por questões sociais, raciais/étnicas ou geográficas.
Por outro lado, uma parte significativa dos grupos atuantes nas periferias, notadamente os que se valem da cultura para desenvolver as
suas ideias, atuam na direção contrária: no questionamento e constante enfrentamento das “fronteiras”. A impressão inicial é a de que
identificaram os fossos que dividem e separam as pessoas – os quais
passam por questões sociais, raciais, econômicas, geográficas, de gênero – e decidiram “construir pontes” sobre esses abismos.
As ações da cultura na Educação partem do entendimento de que
a cultura não é um produto, um ente concreto, tampouco se resume
à lógica dos eventos. Ela é processo, “algo que se esconde dentro e
atrás do produto”, e como tal tem efeitos duradouros no território
onde se desenvolve. “A terminação urus, em culturus, indica processo, ação em realização, e não produto”, lembra Joel Rufino dos
Santos (2004: 187).
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
59
Por outro lado, a cultura é capaz de promover experiências, provocar e explorar percepções e sensações sobre o território, sobre o
mundo e sobre a vida. Nesse contexto, também se deixa de lado o
ponto de vista da cultura como representação e passa-se a entendê-la
a partir de suas estratégias e procedimentos, as quais deslancham possibilidades de ação criativa com a vida. Não se trata de levar cultura
aonde quer que seja, mas de potencializar forças e desejos.
Ladislau Dowbor (2006: mimeo) entende que “a educação não deve
servir apenas como trampolim para uma pessoa escapar da sua região:
deve dar-lhe os conhecimentos necessários para ajudar a transformála”. Igualmente, e talvez ainda mais, a cultura. Para Gilles Deleuze
e Felix Guattari,“ a cidade é o correlato da estrada. Ela só existe em
função de uma circulação e de circuitos; ela é o ponto assinalável
sobre os circuitos que a criam e que ela cria”. É fundamental, portanto, pensar o território para além das “cercas que separam quintais”
(Raul Seixas). Deleuze e Guattari (1997: 122) afirmam ainda que a
cidade “é uma rede, porque ela está fundamentalmente em relação
com outras cidades”. No âmbito de cada cidade, por sua vez, as ações
que juntam cultura e educação serão da ordem do comunitário. Essas
ações serão o correlato da rua, uma vez que ligam os vizinhos entre
si, ligam suas casas às escolas, às igrejas e templos, aos equipamentos
culturais, às quadras esportivas, às praças e aos inumeráveis pontos de
encontro das pessoas, suas histórias e memórias.
Esposito deixa bem claro que a comunidade não é um ente, nem um
sujeito coletivo, mas uma relação, o limiar em que se encontram sujeitos individuais. Sua formulação é preciosa: “A comunidade não é o
entre do ser, mas o ser como entre: não uma relação que modela o ser,
mas o próprio ser como relação” (SODRÉ in PAIVA, 2007: 8).
A formulação de Esposito a respeito da comunidade, lida acima por
Muniz Sodré, ajuda a fazer a conexão que estou tentando aqui entre
cidade e comunidade, porque a teia de relações que está envolvida
aí, conforme a entendo, é potencialmente capaz de agir no sentido do
aprofundamento democrático. Ela convida à participação, ao mesmo
tempo em que a incrementa, na medida em que expõe os participantes à linguagem artístico-cultural, portanto à dimensão do estético,
60
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
do crítico e, eventualmente, do transgressor, sem dogmatismos nem
censuras. Quanto mais pessoas forem envolvidas no processo, forem
engajadas na rede, mais amplos serão seus efeitos: um indivíduo afeta
o outro, juntos afetam a comunidade. A perspectiva é que a rede se
amplie até afetar o conjunto da cidade e, a partir daí, o país, quem
sabe o mundo. A escola, evidentemente, é um ponto decisivo nessa
história. Embora, deve-se reconhecer, não se trata de algo simples,
não problemático.
A relação entre a produção artístico-cultural e a instituição de ensino
(...) é, por princípio conceitual, conflituosa. Se, por um lado, a área
artística tem na transgressão a mola propulsora de sua construção, as
instituições acima citadas pautam-se na normatização. Como, então,
favorecer um espaço de transgressão e criação, de formação de sentidos e significados no interior dessas instituições? (LEITE e OSTETTO,
2004: 11).
No contexto escolar esse entendimento passa por interferir na relação professor-aluno, de modo que este se torne um operador de
estratégias de troca de saberes5, preocupando-se menos com a transmissão vertical dos conteúdos (que não deixam de ser necessários e
importantes) para dar maior atenção às formas capazes de estabelecer
o diálogo-aprendizagem.
4. A CAMiNHADA Do VElHo GRiô
Drão, o amor da gente é como um grão
Gilberto Gil
No Estado da Bahia, Chapada Diamantina, na comunidade conhecida como Lençóis, há um projeto que está fazendo a diferença na
vida das pessoas, nas escolas da região e no território onde ele se desenvolve. A história do Grãos de Luz e Griô foi construída pela história
de vida de muitas pessoas e entidades, seus afetos, saberes, conflitos
Essa definição é inspirada em argumentos de Marcus Vinícius Faustini, cineasta, diretor teatral e atualmente Secretário de Cultura em Nova Iguaçu, na
Baixada Fluminense.
5
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
61
e sonhos de um mundo melhor, segundo Lílian Pacheco (2006: 24),
hoje coordenadora do projeto. Vale a pena traçar, ainda que resumida
e precariamente, a trajetória dessa experiência.
Sua origem remonta a 1993 e está, desde o início, ligada à formação
de uma teia de relações que ultrapassa as fronteiras do lugar. Naquele
ano, um grupo de mulheres, lideranças locais entre as quais Dona Maria
Luíza e mães da comunidade, apoiadas posteriormente por Dona Zélia
Caribé, prepararam uma sopa a fim de distribuí-la às crianças e famílias
do bairro Alto da Estrela, na periferia da cidade. Enquanto isso, seu Manoel Alcântara desenvolvia uma horta comunitária, reunindo crianças e
adolescentes. Faltava juntar as duas iniciativas. Então, entrou em cena
Jane da Silva Pellaux, uma brasileira que vivia na Suíça e visitava Lençóis
regularmente. Ela “propôs a integração destas e outras iniciativas, com o
seu apoio e de amigos da Suíça, para a criação de um projeto de educação para crianças e adolescentes”. Assim, narra Lílian Pacheco:
Nasceu o Grãos de Luz no espaço das madres da Igreja Católica de
Lençóis, unindo as iniciativas anteriores com oficinas de artesanato e
reforço escolar. Mais tarde, a iniciativa foi apoiada pela argentina Jimena Paratcha, ex-moradora de Lençóis que passou a residir na Inglaterra, e Jimmy Page, guitarrista do Led Zepellin. Todas essas lideranças
se vincularam pelo sonho de criar e apoiar projetos de educação e
proteção às crianças e adolescentes do Brasil (PACHECO, 2006: 24).
A cidade de Lençóis está situada na região do Parque Nacional da
Chapada Diamantina, a 410 quilômetros de Salvador, capital baiana.
Sua população gira em torno de dez mil habitantes, a maioria afrodescendentes, dos quais 49,8% vivem abaixo da linha da pobreza (renda
per capita familiar menor que 1/2 salário mínimo, IBGE 2000), em
especial nas comunidades rurais. A extração do diamante já foi a base
da economia local, tendo entrado em crise no início da década de
90, provocando empobrecimento na região. Por outro lado, é “uma
das maiores reservas ambientais do Brasil. Tombada como Patrimônio
Histórico Nacional desde 1974” (PACHECO, 2006: 12).
O nome Grãos de Luz alude, por um lado, aos “mitos de chamamento do diamante dos garimpeiros da região”; por outro, ao imaginário
social em que a criança é associada à semente. “A palavra luz, por
62
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
sua vez, remete à sabedoria”, completa Lílian Pacheco. A partir daí,
desenrolou-se uma longa história – a experiência amadureceu e se expandiu6; novos parceiros chegaram, outros talvez tenham partido. O
fato é que essa experiência concretiza de maneira exemplar, criativa e
inovadora, a ideia de aliar cultura e educação. Nesse ínterim, segundo
dados fornecidos pela instituição, chegou a envolver mil crianças e
adolescentes, fortalecendo a identidade dos participantes e o vínculo
afetivo e cultural entre 11 escolas e comunidades em Lençóis, além de
desenvolver e sistematizar práticas de educação inovadoras.
O projeto se consolidou a ponto de, em 2006, o Ministério da Cultura ter partido de sua forma de atuação para elaborar um projeto de
abrangência bem mais ampla: a Ação Griô Nacional. Trata-se de uma
ação integrada aos Pontos de Cultura e às ações Escola Viva, Cultura
Digital e Projovem Adolescente do Programa Cultura Viva da Secretaria de Programas e Projetos Culturais (SPPC) do Ministério da Cultura.
A inspiração e a concepção para o projeto derivaram da criatividade e
inovação metodológica do Grãos de Luz e Griô. Segundo informa um
folder da Ação, ela é “coordenada por uma gestão compartilhada entre o Grãos de Luz e Griô e a SPPC/MinC”, com o objetivo de “acompanhar, instrumentalizar, capacitar, articular e sistematizar projetos de
educação, cultura e economia comunitária de autoria dos Pontos de
Cultura”. A gestão da ação conta com redes regionais de griôs aprendizes, griôs e mestres de tradição oral que são bolsistas nos Pontos de
Cultura, além de educadores e estudantes de escolas e universidades
públicas do Brasil. Ainda segundo o mesmo folder, o projeto está “revitalizando a rede de transmissão oral de municípios e regiões do Brasil,
construindo uma pedagogia e uma política de forma participativa e
vivencial” em todo o país.
O Secretário de Programas e Projetos Culturais do MinC, Célio Turino, em texto de apresentação ao livro de Lílian Pacheco, destaca a
importância do projeto, uma vez que parte
6
Em 2002, o projeto Grãos de Luz e Griô expandiu a caminhada do Velho
Griô (figura mítica e política que representou e sensibilizou o imaginário social
da comunidade participante, bem como a postura e metodologia dos seus
pesquisadores, educadores e coordenadores) para 15 municípios da Chapada
Diamantina; em 2006 passou a influenciar uma política nacional baseada em
sua metodologia.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
63
de um processo acumulado de construção de um conhecimento; de
envolvimento comunitário na Chapada Diamantina; de discussões sólidas sobre como associar a cultura tradicional com o processo educacional; de valorização da cultura no âmbito local, indo mais além,
abrindo novos horizontes tanto para os mais jovens quanto para os
mais velhos (TURINO in PACHECO, 2006: 14).
Esse movimento de espalhar a ideia do Grãos de Luz e Griô pelo território nacional é importante, uma vez que dá escala a uma experiência
bastante inovadora. Em contrapartida, ele enfrentará os problemas da
escala. Em algumas localidades talvez o projeto não tenha o êxito devido, em outras pode seguir rumos inesperados. Por outro lado, é preciso
salientar que a Ação Griô Nacional não se pretende uma replicação literal do projeto lençoense. Ao contrário, a ideia é que cada unidade nas
diferentes cidades do país desenvolva a proposta segundo suas próprias
concepções e metodologias. Desse modo, o Jongo da Serrinha, na Zona
Norte do Rio de Janeiro, para citar apenas um exemplo, pratica os princípios e ações do projeto Griô a seu modo, adaptando-os a seus métodos e práticas. A expectativa é que a rede política organizada valorize
a identidade coletiva griô, viabilizando a manutenção e a permanência
dessa identidade em contextos diferentes. Evidentemente, na diáspora
das ideias, pode ser que, em algum momento, as múltiplas experiências
em torno da Ação Nacional tenham se distanciado tanto que já não
sejam reconhecíveis como partícipes do mesmo processo. O que não
chegaria a negar a proposição inicial, uma vez que demonstra o acerto
da metodologia inicial e aponta para a abertura a novas possibilidades
de ação, a novas soluções estéticas e metodológicas, eventualmente até
políticas, e a novos devires Griô.
O que está em jogo, no final das contas, é não limitar, como indica Célio Turino, as atividades do Ponto de Cultura7 apenas à sua
comunidade, “mas apresentar soluções e políticas criativas e inovadoras para a rede, para todas as experiências comunitárias que tratam
a cultura de uma forma muito mais ampla”. O que significa também
não circunscrever a compreensão da cultura às artes ou expressões
Em 2005 o MinC reconheceu o Grãos de Luz e Griô como integrante do
programa Cultura Viva, tornando-se, portanto, um Ponto de Cultura.
7
64
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
simbólicas, mas tratá-la também “enquanto identidade, cidadania e
economia” (TURINO in PACHECO, 2006: 14).
Voltando ao ponto de partida, em Lençóis é facilmente perceptível
um elemento que perpassa ativamente as práticas, conceitos e narrativas do projeto: a poesia. A linguagem poética é decisiva na estética
griô. Não se trata apenas de inserir aqui e ali um poema a título de
ilustração das ideias, na verdade as próprias ideias partem de um entendimento poético do mundo. Isso aparece muito nitidamente, por
exemplo, na forma com que Lílian Pacheco descreve as situações ou
conceitos de sua atividade, ou quando propõe, entre as prioridades
do Projeto Griô, não apenas mobilizar e capacitar os educadores e os
alunos, mas “encantá-los”. Para quem não participa desse contexto,
ou já está demasiadamente capturado pela lógica do mercado e do
consumo, talvez não seja tão fácil entender essa linguagem. Contudo,
é ela que inspira a criação de redes autônomas, que contribui para
produzir, retomando palavras de Peter Pál Pelbart, “territórios existenciais alternativos àqueles ofertados ou mediados pelo capital”; que, se
ainda não encontraram, estão resolutamente em busca de respostas
para as questões colocadas pelo filósofo:
De que recursos dispõe uma pessoa ou um coletivo para afirmar um
modo próprio de ocupar o espaço doméstico, de cadenciar o tempo
comunitário, de mobilizar a memória coletiva, de produzir bens e conhecimento e fazê-los circular, de transitar por esferas consideradas
invisíveis, de reinventar a corporeidade, de gerir a vizinhança e a solidariedade, de cuidar da infância ou da velhice, de lidar com o prazer
ou a dor? (PELBART, S/D).
Dessa maneira, os realizadores do projeto podem afirmar que “a
magia do Velho Griô e dos griôs da tradição oral local e seus rituais
de vínculo e aprendizagem encantam os educadores da rede municipal” (PACHECO, 2006: 35. Grifos meus). Magia e encantamento, mas
também memória e vida são palavras-chave para o processo culturalpedagógico, cujo modelo de ação é elaborado por meio de quatro
estratégias integradas. Cada uma delas é direcionada a determinados
setores sociais e idades, facilitando a criação de uma roda. São elas
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
65
a. Oficinas e cooperativas com crianças, adolescentes, jovens e suas famílias; b. Caminhada do Velho Griô, com griôs e grupos culturais nas
escolas e comunidades. c. Integração da tradição oral no currículo de
educação municipal, com educadores municipais e atores de todas as
idades do sistema municipal de ensino. d. A Roda da Vida e das Idades,
com todos os participantes, em diálogo com parceiros dos três setores
sociais, conselhos municipais, estaduais e federais, universidades, projetos, programas e políticas do país e do mundo (PACHECO, 2006).
5. iNClUSÃo SUbJETiVA: A ESColA liVRE DE CiNEMA
A linguagem e a vida são uma coisa só.
Guimarães Rosa
No bairro Miguel Couto, na periferia de Nova Iguaçu, logo que
saímos da rua principal e dobramos à direita na Rua Santos Filho,
estamos em frente ao prédio que abriga a Escola Livre de Cinema.
De pronto, chama atenção a fachada inteiramente vermelha, decorada com 16 rodas de bicicleta ligadas entre si por correntes as quais,
por sua vez, se ligam ao corpo de uma bicicleta fixada na parede,
na base da construção. As crianças que chegam para as oficinas não
resistem a se sentar e pedalar, fazendo com que todas as rodas girem
ao mesmo tempo.
Essa fachada, no contexto do trabalho desenvolvido pela Escola Livre de Cinema, já é o início do processo, ela já demonstra em que
ambiente se ingressará. Realizar oficinas de audiovisual, ensinar o domínio das técnicas, abordar temáticas contemporâneas, estéticas inovadoras, nada disso é suficiente aqui. O próprio local de trabalho, sua
arquitetura, o lado de fora e o lado de dentro – no saguão de entrada,
em vez de bancos ou cadeiras, há dezenas de almofadas coloridas
onde os alunos, seus pais e eventuais visitantes podem sentar e passar
o tempo – têm que estar sintonizados com a estratégia de instigar e
burilar o olhar, a percepção e a sensibilidade dos alunos.
Como que reverberando as considerações de Andreas Huyssen sobre as cidades, que as entendia como signo, embora “agora talvez
num sentido mais pictórico e mais relacionado à imagem do que num
66
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
sentido textual” (HUYSSEN, 2000: 91), mas descartando as contradições que o autor enxerga aí, a Escola cria um espaço onde a memória, as histórias de vida e as especificidades – históricas, urbanísticas
ou mesmo anedóticas – do bairro, antes ignoradas, são transformadas
criativa e produtivamente em filmes.
Anderson Barnabé, um dos coordenadores do projeto, observa que
os alunos das oficinas são “estimulados a todo momento a trazerem a
sua vivência para o processo de aulas, de modo que o seu cotidiano
faça parte da suas experiências fílmicas”8. Ora, a cidade de Nova Iguaçu, regra à qual Miguel Couto não escapa, teve sua história contada
até hoje pelos barões do café, da laranja, senhores de terra e quejandos. A experiência da Escola, portanto, cria a possibilidade de que o
signo da cidade, de que as suas palavras não sejam escritas apenas
pelas elites. Ela abre o espaço para que o povo, os pobres, contem a
sua própria história, segundo o seu ponto de vista.
Criada em 2006, a Escola Livre de Cinema é resultado de uma parceria entre o Reperiferia (ver adiante sobre esse projeto) e a Prefeitura
de Nova Iguaçu, através do programa Bairro-Escola9. “É a primeira
escola de audiovisual na Baixada Fluminense, totalmente gratuita”, segundo depoimento de Anderson Barnabé,
e já atendeu neste período mais de mil alunos, entre crianças, jovens e adultos, com aulas de cinema. Miguel Couto é a periferia do
município, a Escola se instalou aí com o fim de atender às comunidades mais afastadas do centro, por serem as mais pobres e com
pouco acesso à informação e aos processos culturais complexos da
contemporaneidade.
Entrevista dada ao autor em 20 de março de 2009.
O Bairro-Escola é uma reorientação dos processos socioeconômico-culturais da cidade de Nova Iguaçu, por meio de políticas públicas intersecretariais
que giram em torno da educação, organizadas em três eixos principais: a
Requalificação Urbana, o Ensino Integral e a Proteção da Vida e Defesa dos
Direitos Humanos; assim, o Bairro-Escola tem como objetivo promover o desenvolvimento da cidade e das práticas da cidadania, através do estímulo à
participação dos diversos setores da sociedade, visando a que Nova Iguaçu se
afirme como uma Cidade Educadora (in www.novaiguacu.gov.rj.br).
8
9
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
67
O destaque, ainda segundo Barnabé, são as Oficinas de Documentário e Animação, destinadas a alunos do segundo segmento do ensino
fundamental, da rede pública local. “Os alunos têm acesso a todos os
processos necessários para realização de um vídeo, seja ele de documentário ou animação.”
A ideia para a criação da Escola foi do cineasta e diretor teatral
Marcus Vinícius Faustini. Ele já tinha construído uma longa história
de atuação no campo da cultura na cidade do Rio de Janeiro – dirigiu
peças de teatro, como Capitu ou Eles não usam black-tie, e realizou
documentários relevantes, com destaque para Carnaval, bexiga, funk
e sombrinha, sobre as turmas de Clóvis da cidade. Oriundo de Santa
Cruz, onde, com outros cinco companheiros, fundou o Reperiferia,
uma organização cujos objetivos, de maneira sintética, são repensar
a periferia e dar-lhe voz. Conforme lemos em sua página na internet,
trata-se de “estabelecer uma nova dinâmica perceptiva sobre a subjetividade”. Para isso, o projeto pretende desenvolver “uma expressão
estética e econômica da periferia da cidade e um projeto pedagógico
com foco de ação em práticas culturais para a juventude” (www.reperiferia.com.br).
O que envolve também “desestigmatizar as visões superficiais sobre
a periferia, que a colocam apenas como espaço de violência e miséria
social. Esses princípios vão aparecer também, com maior ou menor
ênfase, nas ações desenvolvidas pela Escola Livre de Cinema. Para
Faustini, a questão decisiva para a Escola reside no fato de que ela está
situada em um lugar como Miguel Couto.
Isso coloca esse território como centro. Não seria relevante ela apenas estar localizada ali. Neste sentido podemos dizer que ela existe
para promover experiências audiovisuais com o mundo, a vida e o
território. Todas as ações e metodologias da Escola são pensadas a
partir destes três elementos10.
O eixo principal é a prática de experiências com técnicas cinematográficas em oficinas. A estratégia de combinar as percepções de mundo, vida e território são postas em prática através do uso da câmera,
10
68
Entrevista dada ao autor em março de 2009.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
tendo em mente a necessidade da percepção do outro. Conforme
Anderson Barnabé, a apropriação da linguagem do documentário, o
uso da oralidade diante da câmera “e o fato que ela pode expressar
identidades e subjetividades a partir do olhar sobre o outro e sobre o
seu território é que pautam as ações cotidianas da Escola”.
Talvez por isso, em suas palestras ou nos debates de que participa,
Faustini reitere sempre que a câmera deve ser entendida como um
lápis. Ela “pode ser um instrumento autoral de quem a usa. Os alunos
são incentivados a pensar assim. É um encorajamento estético”.
De posse desse lápis, as crianças e adolescentes participantes do
projeto propuseram a realização de documentários que escapam às
temáticas usuais em projetos que visam “formar para a cidadania”
ou “fortalecer a autoestima”11. Um dos projetos tinha o objetivo de
descobrir o porquê de haver tantas pastelarias de chinês no bairro; o
outro se propôs a filmar a tentativa, frustrada, diga-se de passagem,
das crianças de entrar numa agência bancária da região. Também produziram uma série de animação intitulada Iguaçu e sua turma, que
aborda o universo do personagem criado pelos alunos. Iguaçu é um
menino que mora em Nova Iguaçu e vive aventuras com a ajuda de
uma geladeira mágica.
Pode-se aventar que há poucas semelhanças entre a experiência de
Miguel Couto e a de Lençóis, além de ambas terem logrado transformar suas ações culturais comunitárias em políticas públicas, envolvidas
diretamente com novas tecnologias e práticas de educação. Pode-se
depreender que, enquanto o Grãos de Luz e Griô está decididamente
apegado à tradição e à oralidade, a Escola Livre de Cinema opta pela
tecnologia, pelos modos obstinadamente contemporâneos de atuação
cultural. No entanto, a aposta na vida e na abertura ao novo fazem as
histórias de um e de outro comungarem. Paulo Freire sustentava que:
É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do
novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim
como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva uma validade ou que encarna uma tradição ou marca
uma presença no tempo continua novo (FREIRE, 1996: 35).
11
Sem descartar a importância desses procedimentos, naturalmente.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
69
Na verdade, são instâncias que se completam. Nas andanças do Velho Griô, ele não deixa de perceber e se apropriar das novas tecnologias, que passam a compor seu balaio de histórias e lembranças. Por
sua vez, o descolado jovem Iguaçu (e sua turma) é provocado pelas
junções de saberes populares e acadêmicos, pelas possibilidades de
aliar tecnologia e tradição, de somar a partir daí sua vida, sua compreensão do território e do mundo onde vive. Ambos trazem pistas,
sugestões, talvez muito sutis, mas já visíveis, de possíveis respostas para
outras questões propostas pelo filósofo Peter Pál Pelbart, reiteradas
aqui numa clave diferente:
Mais radicalmente, impõe-se a pergunta: que possibilidades restam de
criar laço, de tecer um território existencial e subjetivo na contramão
da serialização e das reterritorializações propostas a cada minuto pela
economia material e imaterial atual? Como reverter o jogo entre a valorização crescente dos ativos intangíveis tais como inteligência, criatividade, afetividade, e a manipulação crescente e violenta da esfera
subjetiva? Como detectar modos de subjetivação emergentes, focos de
enunciação coletiva, territórios existenciais, inteligências grupais que
escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capital e que não
ganharam ainda suficiente visibilidade no repertório de nossas cidades? (PELBART, S/D).
6. CoNClUiNDo...
Numa das oficinas culturais realizadas por oficineiros culturais do
projeto Bairro-Escola, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, a tarefa era desenhar livremente, inclusive fora das marcações, dos limites,
propostos pela página de exercícios do livro escolar. Todavia, em uma
reunião de avaliação de resultados do processo, uma das professoras
da escola protestou: “A gente levou um tempão pra ensinar à criança
desenhar dentro do círculo, e, agora, com as oficinas, eles aprendem
a desenhar fora!”
Essa história, que poderia dizer dos limites da educação tradicional,
revela exatamente o contrário: o inesgotável poder de renovação e de
criação possível de ser encontrado na escola, desde que se abra ao
novo, ao inesperado, ao não curricular. E, ao mesmo tempo, demonstra
70
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
o papel efetivo que a cultura pode desempenhar no processo, desde
que se determine a entender e colaborar com os princípios da formação escolar, a atuar junto, em vez de contra. Nesse contexto, a cultura
tem se mostrado uma linguagem importante, capaz de fazer diferença
positiva no processo educativo. Não se trata de “instrumentalizar” a cultura nem de esvaziar o papel tradicional da escola, mas de incrementar
a aprendizagem dos alunos mediante práticas, técnicas e experiências
artísticas que redimensionem seu lugar no mundo e na vida.
Essas práticas, técnicas e experiências são hoje uma referência para
a formulação e execução de políticas públicas12. Sabe-se que as cidades brasileiras são territórios marcados por desigualdades sociais profundas. Por isso mesmo, as políticas públicas, após mais de vinte anos
da redemocratização das instituições brasileiras, não podem eximir-se
de criar soluções para a sua superação. Uma das chaves para o êxito
dessa tarefa reside na efetivação de direitos.
O professor Jorge Luiz Barbosa, coordenador do Observatório de
Favelas, comenta que os debates atuais sobre a cidadania na agenda
política ampliaram o tema em três direções principais: “invenção de
novos direitos sociais; o uso do território como prática substancial dos
direitos e a redefinição do espaço público” (BARBOSA, 2008). Essas
dimensões implicam, também, o reconhecimento de novos sujeitos
de direitos, os quais vinham sendo historicamente alijados do processo democrático. Para Barbosa, o reconhecimento desses novos sujeitos
“e a inflexão territorial das políticas de garantia de direitos são dimensões que configuram a nova concretude para a construção de uma
agenda democrática na metrópole” (BARBOSA, 2008).
Na redefinição do espaço público, é preciso rejeitar o entendimento
de que o termo público, quando associado à política, designe estritamente poder estatal. De acordo com Barbosa,
Por exemplo, a Ação Escola Viva do Ministério da Cultura foi diretamente influenciada pelos projetos culturais do Programa Bairro-Escola, de Nova
Iguaçu, do qual a Escola Livre de Cinema faz parte. E o Grãos de Luz e Griô
estimulou a criação de uma ação nacional a partir da pedagogia dessa organização, de modo a “Não limitar as atividades do Ponto de Cultura apenas à sua
comunidade, mas apresentar soluções e políticas criativas e inovadoras para
a rede, para todas as experiências comunitárias que tratam a cultura de uma
forma muito mais ampla.” (TURINO in PACHECO, 2006: 14)
12
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
71
o público não se limita ao Estado. E política só pode ganhar sentido
como afirmação de ações plurais de empoderamento dos cidadãos,
levando em consideração suas diferenças e os seus territórios de existência (BARBOSA, 2008).
Esse é um movimento que, de forma análoga ao que Ladislau Dowbor sustenta para a relação entre educação e desenvolvimento local,
nos tira “da atitude de espectadores críticos de um governo sempre
insuficiente, ou do pessimismo passivo”. Com isso, “devolve ao cidadão a compreensão de que pode tomar o seu destino em suas mãos,
conquanto haja uma dinâmica social local que facilite o processo”
(DOWBOR, 2006: mimeo).
As duas experiências narradas aqui – as quais nem de longe dão
conta da miríade de ações, projetos e iniciativas que trafegam no mesmo sentido – são, a meu ver, demonstrações cabais desta possibilidade: a de influenciar políticas públicas capazes de agir no sentido do
empoderamento dos sujeitos, de produzir novos direitos e de garantir
o conhecimento do território, das práticas cotidianas e das vidas desses sujeitos.
Ressalte-se apenas que, uma vez que estamos no terreno da cultura
e da arte, é importante que as metodologias de ação – o que é muito perceptível no trabalho dos grupos incluídos aqui – não recaiam
na normatização ou no engessamento disciplinar do que se entende
por cidadania. O crítico e professor de cinema francês Alain Bergala
(2008: 26) compreende que “a arte não precisa de explicadores, mas
de experimentadores”. Trata-se de priorizar a lógica da linguagem, em
detrimento da lógica da mensagem. Uma vez que se tome posse da linguagem, a experiência estética se torna uma forma de estar na vida, de
afetá-la e transformá-la, ativamente. Pelo que se viu, pode-se argumentar que essas questões estão presentes tanto em Nova Iguaçu quanto
em Lençóis, mas também se proliferam pelo país, onde quer que os
agenciamentos culturais e as escolas formais, em uníssono, o desejem.
Essas práticas demonstram que, apesar do momento desfavorável no
que tange à educação, é preciso estar aberto a novos possíveis.
Abrir-se ao possível é acolher, tal como acontece quando nos apaixonamos por alguém, a emergência de uma descontinuidade na nossa
72
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
experiência; e construir, a partir da nova sensibilidade que o encontro
com o outro proporciona, uma nova relação, um novo agenciamento
(LAZZARATO, 2006: 18).
Seu desafio é justamente o de criar pontes capazes de abrir as vias
de acesso em direção a um outro mundo possível, para o quê a cultura
e a educação, juntas, podem representar as ferramentas mais apropriadas. Os problemas, entraves, empecilhos, certamente serão muitos. Há dificuldades de ordem econômica e estrutural. Haverá, certamente, resistências de alguns, má vontade de outros. Mesmo assim,
deve-se ir em frente. Edward Said escreveu – referindo-se ao papel
do intelectual e à questão palestina, mas permito-me adaptar suas
palavras aos agentes envolvidos na questão da cultura e da educação
no contexto brasileiro – que o seu lar provisório
é o domínio de uma arte exigente, resistente e intransigente, dentro
da qual não é possível, infelizmente, nem se esconder nem procurar
soluções. Mas é apenas nesse precário mundo solitário que se pode
verdadeiramente compreender a dificuldade daquilo que não pode ser
compreendido e ir em frente e tentar assim mesmo (SAID, 2003: 41).
Afinal, são eles que promovem as articulações – constroem as pontes – que tornarão viáveis as perspectivas de travessia, de contato, de
diálogo. Um diálogo que terá de ser qualificado no percurso, porque,
ao mesmo tempo em que se dialoga, também se medem forças. No final, apesar das contradições, ele traz à luz do dia sinais “de um discurso que é diferente – outras formas de vida, outras tradições de representação” (HALL, 2003: 342); se essa diferença será capaz de mudar
o mundo é difícil dizer, mas, desde já, compõe uma força constituinte
de um novo tempo, cuja marca é a criatividade e a imprevisibilidade.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
73
REFERÊNCiAS
BARBOSA, Jorge Luiz (Coord). Relatório final do projeto Rio Democracia.
2008. Disponível em: <http://www.riodemocracia.org.br/riodemocracia/Site/
noticias/noticia.php?id_content=61>.
BENTES, Ivana; PELBART, Peter Pál. Texto de relatoria para o encontro
Onda Cidadã, Circo Voador, RJ. Rio de Janeiro, 2007. Inédito.
BERGALA, Alain. A hipótese cinema. Rio de Janeiro: Booklink, 2008.
COSTA, Antonio Luiz M. C. Não se ufane tanto. Seu país. Desigualdade. Carta Capital: política, economia e cultura, São Paulo, v. 10, n. 261, out. 2003.
DAVIS, Mike. Planeta favela. Rio de Janeiro: Boitempo, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 5.
DOWBOR, Ladislau. Educação e desenvolvimento local. 2006. Mimeografado.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: as revoluções culturais do nosso tempo. Revista & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.
______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
UFMG; Brasília: UNESCO, 2003.
HOLANDA, Heloísa Buarque de. Entrevista com George Yúdice. Revista Z
Cultural, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, ago./nov. 2007.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,
mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
IBGE. Síntese de indicadores sociais. 2008. Disponível em: <http://www.
ibge.gov.br/ home/presidencia/noticias/noticiavisualiza.php?Id_noticia=
1233&id_pagina=1>.
LEITE, Maria Isabel; OSTETTO, Luciana Esmeralda. Arte, infância e formação de professores: autoria e transgressão. Campinas: Papirus, 2004.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe. Glob(AL): biopoder e lutas em uma
América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.
74
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
PACHECO, Lílian. Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida. 2. ed.
Lençóis, BA: Grãos de Luz e Griô, 2006.
PELBART, Peter Pál. Biopotência e biopolítica no coração do império.
Disponível em: <http://multitudes.samizdat.net/Biopolitica-e-Biopotenciano.html>.
SAID, Edward. Cultura e política. Rio de Janeiro: Boitempo, 2003.
SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais
trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.
SILVA, Jaílson de Souza e. Palestra de abertura. In: CONGRESSO DE ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO, 3., Rio de Janeiro, 2008. Rio de Janeiro,
UERJ, 2008.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis:
Vozes, 2006.
______. Prefácio. In: PAIVA, Raquel (Org.). O retorno da comunidade: os
novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
VIANNA, Hermano. Central da periferia. 2006. Disponível em: <http//
centraldaperiferia.globo.com>.
WOOD, Michael. The class: directed by Laurent Cantet, 2008. London Review of Books, London, v. 31, n. 5, 12 mar. 2009. At The Movies. Disponível
em: < http://www.lrb.co.uk/v31/ n05/wood01_.html>. Acesso em: 12 março
2009.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global.
Belo Horizonte: UFMG, 2004.
SiTES CoNSUlTADoS:
www.afroreggae.org.
www.bairroescola.novaiguacu.rj.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home.
www.cultura.gov.br/cultura_viva/.
www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_
noticia=1233&id_pagina=1.
www.novaiguacu.rj.gov.br/.
www.reperiferia.com.br.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 46-75 | JANEiRo > AbRil 2009
75
RElAÇõES
iNTERNACioNAiS
UMA iNTRoDUÇÃo Ao SEU ESTUDo
Franklin Trein
76
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Na última década, ou talvez já há um pouco mais de tempo, o Brasil, embora
com um significativo atraso em relação a outros países, não só no Hemisfério
Norte, mas mesmo na região sul-americana, deu início à formação acadêmica
de profissionais na área de relações internacionais. Foram abertas dezenas de
cursos de relações internacionais, nos níveis de graduação e pós-graduação em
universidades privadas, principalmente, mas também alguns em universidades
públicas. A falta de tradição e mesmo a ausência de uma legislação mais específica contribuíram para a diversidade de propostas, que infelizmente não
são expressão de riqueza dos cursos, mas muito mais o resultado das dificuldades de entender e de formular um currículo acadêmico para uma área de
conhecimento com a complexidade das relações internacionais. Na intenção
de contribuir com o debate e talvez trazer alguns esclarecimentos que possam
permitir a elaboração de propostas de cursos com maior densidade substantiva, mais coerência de objetivos e mais equilíbrio em suas disciplinas, nos
propomos a apresentar algumas reflexões a seguir, que estarão divididas em
dois momentos: o primeiro, de caráter teórico e, a seguir, em termos gerais,
uma análise provocada pelo que está acontecendo nos cursos acadêmicos de
relações internacionais no Brasil.
Over the last decade, or perhaps a bit farther back yet, Brazil made its debut in
the field of academic education targeted at international relations professionals,
though still lagging far behind other countries in the Northern Hemisphere and
South America alike. Many private universities implemented dozens of international relations graduate and undergraduate degree courses, while some public
institutions were quick to follow suit. The lack of tradition and the absence of
a more specific body of law have largely contributed to such a variety of proposals. These, in turn, have sadly proven to be less a sign of a striking array of
course offerings than the result of some clear difficulty in understanding and
designing an academic curriculum for as complex a field as international relations. In an attempt to join the ongoing debate on this topic and contribute
some clarifications that may assist in drafting course program proposals that
rely on a solid content framework, consistent targets and well-balanced course
subjects, we offer some thoughts here from two different perspectives: one of
a theoretical nature, and the other – from a more general point of view – as
an analysis spurred by the current scenario of international relations academic
courses in Brazil.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
77
1. iNTRoDUÇÃo
Se podemos partir da breve definição de que a ciência política tem
como objeto o poder com relação ao Estado, podemos seguir afirmando que as relações internacionais se dedicam ao estudo das relações
de poder entre os atores internacionais, que são, em primeira ordem
e no que diz respeito ao poder político, os Estados nacionais e as organizações internacionais, e as empresas e corporações internacionais,
no que se refere ao poder econômico.
Uma outra observação pertinente é a de que a ciência política, como
o estudo das relações de poder internas de um país, toma em consideração o fato de que há uma hierarquia de poderes e que todos
estão submetidos a uma lei suprema – a Constituição. Nas relações internacionais não há hierarquia e não há Constituição. As organizações
internacionais – a ONU1, a OMC2 ou a Corte Internacional de Justiça3
– são entidades criadas por consenso, mas sem poder efetivo. Frequentemente são desrespeitadas em seus princípios e em suas decisões. Nas
relações internacionais a última instância não é a lei – o constrangimento jurídico —, mas a força, como força militar, econômica ou política, às
quais os Estados mais fortes costumam recorrer, separadamente ou em
conjunto, para impor sua vontade e seus interesses.
Ao lembrarmo-nos do método de trabalho em relações internacionais deve ser dito que a pesquisa nesta área não tem uma metodologia específica, estabelecida como nas ciências da natureza e mesmo
como em algumas áreas das ciências sociais com tradições mais sedimentadas. Geralmente o exame do objeto é feito através de diferentes
abordagens em que se recorre a aproximações históricas, sociológicas,
econômicas, jurídicas, estatísticas, psicológicas, psicossociais, antropológico-culturais e ainda filosóficas. Assim, a pesquisa em relações
internacionais não deve se limitar somente ao exame sistemático dos
ONU – Organização das Nações Unidas – Organismo internacional, fundado em 24 de outubro de 1945, que congrega atualmente 192 países.
2
OMC – Organização Mundial do Comércio – Organização internacional,
fundada em 1994, conta atualmente com 152 países membros.
3
Corte Internacional de Justiça é o organismo principal de justiça da ONU.
Tem sua sede em Haia, Holanda.
1
78
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
fenômenos identificáveis imediatamente como “externos”. Questões
“internas” são, com frequência, de importância decisiva para o bom
resultado de uma análise de conjuntura internacional.
A seguir examinaremos no plano teórico algumas contribuições ditas clássicas da ciência política, na intenção de delimitar fronteiras do
objeto das relações internacionais.
2. TEoRiAS ClÁSSiCAS
Poderíamos começar uma análise das teorias clássicas das relações
internacionais com Aristóteles, mas isto nos levaria muito longe, uma
vez que os Estados modernos estão bastante distantes do que era uma
cidade-estado na Grécia antiga. Da mesma forma haveria fontes bastante ricas para serem examinadas na Idade Média. Mas, neste caso,
ainda estaríamos longe da atualidade, já que ali iríamos tratar de Estados teológicos. Assim, optamos por examinar inicialmente o pensamento de Thomas Hobbes4 (1588-1679), a primeira das contribuições
importantes para a formação do Estado moderno, como conhecemos
nos dias atuais.
Examinaremos especialmente a obra a que Hobbes deu o título de
Leviatã, ou a matéria, a forma e o poder de um estado eclesiástico e
civil (1651).
A passagem talvez mais conhecida do Leviatã é aquela em que
Hobbes diz: “Homo homini lupus” (homem é o lobo do homem). Em
outras palavras, o autor está se referindo à condição natural, ou ao
que ele também chama de “estado de natureza” do homem. Assim, a
ordem e a harmonia entre os indivíduos é, antes de tudo, uma opção
pela sobrevivência. Admitir que alguém exerça o poder sobre os demais, sem ser contestado na sua força e na sua legitimidade, é o preço
pago pelos homens para evitar a luta de todos contra todos. A ordem
será tão mais estável, diz Hobbes, quanto maior for o poder e a determinação daquele que se encontra no cume da pirâmide política.
Dois séculos antes de Auguste Comte (1798-1857) nós temos em
Hobbes um pensador positivista, preocupado com a cientificidade do
Thomas Hobbes, filósofo, representante do empirismo, foi talvez o mais importante entre os pensadores britânicos do século XVI.
4
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
79
conhecimento e com sua positividade. Era importante para ele que
sua obra tivesse um efeito normativo e pudesse, deste modo, orientar
as relações entre os homens e os Estados.
Para Hobbes as relações entre os Estados não são diferentes daquelas entre os indivíduos, sua característica principal é o estado de
guerra permanente entre uns e outros. Nas relações internacionais
não há uma hierarquia de poder. Ali subsistem condições naturais
ou um estado de natureza. Portanto não é válido falar de uma ordem propriamente dita. Uma consequência importante, neste caso,
é que nas relações entre Estados nada é ilegítimo, injusto e menos
ainda ilegal. No entanto, os Estados, como os únicos detentores de
soberania e de poder de coação na Comunidade Internacional, por
uma questão de sobrevivência ou por ser a solução de menor custo, optam muitas vezes por firmar pactos uns com os outros. Eles
buscam, desta forma, estabelecer alianças que possam reforçar suas
defesas diante de ataques de terceiros, ou que pelo menos possam
garantir que não serão alvo de agressão. Hobbes adverte, contudo,
que os Estados só respeitam a letra e o espírito desses acordos enquanto lhes for conveniente, pois a única coisa que conta é a própria
sobrevivência.
O pensamento hobbesiano influenciou a todos os grandes autores
da ciência política a partir do início do século XVII até os contemporâneos. E, entre os mais destacados do nosso século, deve ser citado
aqui o nome de Raymond Aron5 (1905-1983). A importância de Aron
é devida, por um lado, as suas contribuições à teoria das relações internacionais em si e, por outro, por ser ele um autor contemporâneo
dos mais polêmicos.
Mas recuemos novamente na história para examinarmos outros
pensadores clássicos e podermos ainda destacar, brevemente, aquela que é, ao nosso entender, a contribuição mais fundamental da
teoria hobbesiana no campo das relações internacionais. Quero
referir-me ao chamado “estado de natureza”. Hobbes nos diz: “há
uma condição natural, própria do homem que não é aquela que nós
podemos observar quando os homens vivem em sociedades orgaRaymond Aron, cientista político, sociólogo, foi responsável por uma das
mais importantes contribuições da França ao estudo das relações internacionais no século XX.
5
80
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
nizadas na forma de Estados”. Ou seja, uma sociedade organizada
em um Estado, onde os indivíduos convivem em relações apoiadas
em uma ordem mínima não são formas naturais, espontâneas, por
assim dizer. Pelo contrário, são condições construídas pela vontade
humana, por decisão racional, pela capacidade dos homens de estabelecerem entre si relações diferentes daquelas que a natureza lhes
determinaria.
Kant6 (1724-1804), filósofo alemão do século XVIII, em seu Ensaio
sobre a paz perpétua assume a perspectiva de Hobbes, quando observa, “o estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um
estado de natureza, este é muito mais um estado de guerra, se não
sempre declarada, no entanto sempre uma ameaça”.
Outra observação no mesmo sentido nós podemos encontrar ainda
nos Princípios da filosofia do Direito de Hegel7 (1770-1831), também
um pensador clássico da filosofia alemã. Diz ele: “Como a relação
entre os Estados tem por princípio sua soberania, resulta que ela não
está regida por nenhum poder superior, senão que ela se encontra em
um estado de natureza.”
Na mesma perspectiva de pensamento, entre os autores contemporâneos, um bom exemplo é Georges Burdeau8 (1905-1988). Em seu
extenso Tratado de ciência política, Burdeau argumenta insistentemente contra a ideia de uma sociedade internacional. Segundo ele não
pode haver uma sociedade onde não há uma ideia de direito, onde
não há lei. As relações internacionais não estão regidas por leis. O
que há é um consenso entre as partes. Os termos de um tratado entre
dois Estados são aqueles que eles definirem. Ninguém pode impor
aos Estados contratantes a inclusão ou exclusão de cláusulas e, a rigor,
ninguém pode impor a eles o respeito aos termos do tratado firmado,
Immanuel Kant, filósofo, responsável por uma das mais importantes contribuições para toda a filosofia moderna. Sua obra trata de todos os temas
relevantes para a sociedade e a cultura de sua época.
7
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo, considerado a expressão mais elaborada do chamado Idealismo Alemão, como seu compatriota Kant, tratou de
uma extensa lista de problemas pertinentes à filosofia.
8
Georges Burdeau, francês, professor de Direito Constitucional e Ciência
Política, considerado um dos grandes autores contemporâneos nas suas áreas
de trabalho acadêmico.
6
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
81
sob pena de ferir os próprios princípios que determinariam a não ingerência em assuntos de terceiros Estados e que estabelecem ainda a
observância do respeito à soberania do outro e de não intervenção em
seus assuntos internos.
Esclarecendo as palavras de Burdeau, poderíamos dizer um pouco
mais da posição “jusnaturalista”9 de Hobbes. Ou seja, não havendo
uma autoridade coatora legítima, no plano das relações internacionais, investida dos poderes legais para fazer cumprir a lei – e tal autoridade não existe, pelo fato de que, a rigor, não há uma lei —, não se
poderia falar propriamente de uma sociedade internacional. Esta é a
ideia básica do pensamento hobbesiano.
Isto não significa dizer que, em termos práticos, por conveniência de
todos, ou pelo menos dos mais fortes, não existam regras de convivência na comunidade internacional. Pelo contrário, há regras e muitas. O
que contribui para que a cada dia as relações internacionais se tornem
um jogo ainda mais complexo.
Antes de passar ao exame de uma outra perspectiva de compreensão das relações internacionais, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre a contribuição de um outro autor de grande importância
para o pensamento político moderno que foi Karl von Clausewitz10
(1780-1831). Tratando-se de um destacado militar da Prússia no final
do século XVIII e início do século XIX, certamente não só seu nome,
mas muitas de suas ideias, especialmente no campo militar, já são
bastante conhecidas.
Clausewitz em sua obra Der krieg – A guerra – expressa uma posição muito próxima daquela de Hobbes. Ele observa que a guerra não
pertence ao campo das artes e das ciências, senão que ao da existência social. Para ele a guerra tem por característica ser um conflito de
grandes interesses, regidos pela violência. Somente ela se diferencia
de outros conflitos. Clausewitz entende que seria melhor comparar a
guerra ao comércio, este sim claro conflito de interesses nas relações
O jusnaturalismo é a doutrina jurídica segundo a qual existe um “direito
natural”, ou seja, um sistema de normas diverso do sistema fixado pelo Estado, responsável pelo direito positivo. O jusnaturalismo é assim uma doutrina
oposta ao chamado “positivismo jurídico”.
10
Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz, general e estrategista militar na Prússia,
é considerado um dos grandes mestres da arte da guerra de todos os tempos.
9
82
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
humanas. Todavia, a guerra se parece mais com a política, que por sua
vez, pelo menos em parte, pode ser comparada com uma espécie de
comércio quando praticado em grande escala.
Raymond Aron, em seu livro Pensar a guerra – Clausewitz, comentando esta passagem citada, observa que poderia parecer aos leitores
menos avisados que na concepção do general prussiano as relações internacionais não passariam de mais um capítulo da estratégia – entendida aqui como a arte na condução das ações militares. Aron sublinha
que a conhecida frase de Clausewitz, “a guerra é a continuação da
política por outros meios”, foi interpretada, com frequência, de forma
invertida, ou seja, como se a política fosse a continuação da guerra.
Ora, em conformidade com o jusnaturalismo hobbesiano, a política
é a opção pela não guerra, ela é a suspensão da guerra e mesmo a
superação da guerra pelo entendimento. A política seria o consenso.
Para Aron o que Clausewitz afirma é que quando se rompe o consenso, volta-se à guerra e sempre à guerra. Mas a guerra significa outros
meios, diferentes dos da política. Nas relações internacionais guerra e
política são planos diferentes, não há entre eles uma linha contínua,
que possa ser traçada por uma mesma estratégia.
Servindo também como origem de diferentes concepções das relações internacionais, em uma perspectiva não só divergente, mas oposta ao jusnaturalismo, nós encontramos os representantes do direito
positivo. Eles se constituíram, desde meados do século XVIII, nos principais inspiradores do direito internacional público.
O principal problema para o direito positivo foi, desde o início, o da
construção de um ordenamento jurídico capaz de impor-se a Estados
soberanos. Os primeiros esforços tiveram a intenção de assimilar o Estado a uma pessoa moral, como havia feito o direito natural. A seguir,
no entanto, entendeu-se que a melhor solução estava no contrato.
Assim, o contratualismo11 passou a ser a tendência predominante no
plano teórico do direito positivo.
De fato, era fácil observar que os Estados, com frequência, buscavam regular suas relações com outros Estados pela via dos protocolos,
dos acordos, dos tratados, das convenções. As limitações de poder, de
11
O contratualismo supõe, em primeiro lugar, a igualdade entre as partes
contratantes e a seguir se apoia no princípio de que o contrato é resultado de
interesses comuns ou convergentes.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
83
soberania e de liberdade, nestes casos, são voluntárias e não impostas,
e por isto assimiladas e incorporadas completamente à realidade dos
Estados contratantes.
Divergindo dos jusnaturalistas, o direito positivo entende que as relações internacionais não se pautam pela lei da selva, da luta de todos
contra todos. Ainda que a ordem jurídica que organiza as relações
sociais no interior de um Estado não seja comparável à ordem vigente
na comunidade internacional, já que ali não há nenhuma autoridade
superior, isto não significa, dizem os seus representantes, que os Estados não possam atuar de forma coordenada e subordinada a uma
vontade geral. Em outras palavras, ainda que o ponto de partida possa
ser um estado de natureza, nada impede que os Estados, enquanto sociedade organizada, possam se civilizar e conviver em paz e de modo
cooperativo entre si. Contra a máxima hobbesiana: “Homo homini
lupus”, passou a valer a “pacta sunt servanta”, ou seja, o que foi objeto
do pacto deve ser respeitado.
Como observamos de início, o plano jurídico das relações internacionais é certamente de grande relevância, mas não esgota todas as
suas dimensões. Sendo assim, retomemos o problema a partir de uma
nova perspectiva. Vejamos, ainda que brevemente, qual pode ser a
contribuição da história no exame das relações internacionais.
Antes, porém, cabe aqui a observação de que a história enquanto
ciência, em princípio, pretende ser um discurso neutro, rigoroso. Pelo
menos a história tradicional, que chamamos de historiografia, é assim.
No exame das relações internacionais ela se recusa a pagar tributo a
esta ou àquela visão filosófica ou a uma ou outra perspectiva jurídica.
Este propósito de cientificidade, contudo, não evita as controvérsias,
e mesmo os conflitos entre aqueles que, de um lado, se dedicam à
história diplomática e aqueles que, de outro, defendem uma história
das relações internacionais, numa clara pretensão de poder trabalhar
numa abordagem mais abrangente do problema.
A confusão entre diplomacia, política externa e relações internacionais é antiga e se mantém até o presente. Os especialistas costumam
dizer que a polêmica durou até a I Guerra Mundial, do que discordamos. Deste modo a história diplomática poderia, de fato, dar conta
de temas da política externa e das relações internacionais como se
fossem seus.
84
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
A partir dos anos 30, e mais ainda depois de 1945, a Comunidade
Internacional ganhou um número significativo de novos integrantes
e isto aconteceu de forma muito rápida. Em consequência, as relações internacionais se tornaram mais complexas. Essa complexidade
significou novos problemas para aqueles que insistiram em continuar
a analisá-la somente a partir de uma perspectiva diplomática. Alguns
historiadores, e entre eles principalmente os franceses, como Febvre12
(1978-1956), Bloch13 (1886-1944) e Braudel14 (1902-1985), levantaram a necessidade de a abordagem histórica ganhar mais amplidão.
Assumindo a tendência então em moda, Renouvin15 (1893-1974)
e Duroselle16 (1917-1994) deixaram contribuições expressivas para a
história das relações internacionais, nas quais são examinados aspectos geográficos, demográficos, econômicos, financeiros, ideológicos e
sociais, entre outros.
Com o que foi dito até aqui, podemos concluir que o direito natural, o
direito positivo e a historiografia são para as relações internacionais abordagens convergentes e, em boa medida, complementares, mas mesmo
assim limitadas, não conseguindo produzir análises satisfatórias aos estudos das relações entre os atores da Comunidade Internacional. A partir
desta perspectiva passamos ao exame das teorias ditas não clássicas.
3. TEoRiAS NÃo ClÁSSiCAS
A seguir abordaremos algumas concepções no estudo das relações
internacionais desenvolvidas ao longo do século XX. Vamos examinar,
em primeiro lugar, a posição de alguns teóricos que contribuíram para
o que ficou conhecido como escola sociológica de inspiração anglosaxônica. Ela está formada, principalmente, por representantes norteLucien Febvre, historiador francês, coautor da chamada École des Annales.
Marc Léopold Benjamim Bloch, historiador francês, coautor com Febvre da
École des Annales.
14
Fernand Braudel, historiador francês, parceiro de Febvre e Bloch na École
des Annales.
15
Pierre Renouvin, historiador francês, responsável por uma das mais importantes obras da história das relações internacionais de todos os tempos.
16
Jean-Baptiste Duroselle, historiador francês, escreveu uma extensa obra dedicada, principalmente, à história política contemporânea.
12
13
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
85
americanos, embora façam parte dela autores importantes como Hans
Morgenthau e Henry Kissinger.
Duas características principais marcam esta escola. De um lado faltam
aos seus representantes a unidade e a coerência das perspectivas clássicas.
Com isto coexistem ali conclusões divergentes e contraditórias sobre um
mesmo fenômeno, ainda que examinado mais ou menos segundo uma
mesma ótica e com um mesmo método. A segunda observação é de que
essas teorias ganharam relevância na medida em que os Estados Unidos
foram se projetando como uma potência mundial a partir de 1945.
A teoria de matriz norte-americana das relações internacionais
encontra-se fortemente influenciada pelas correntes cientificistas17,
desenvolvidas na Europa do século XIX, para as quais foram expressivas as contribuições de Saint-Simon18 (1760-1855) e de Auguste
Comte19 (1798-1857). Nela são facilmente identificáveis também
as influências do organicismo20 desenvolvido por Spencer21 (18201903), que por sua vez se subdivide em duas tendências bastante
marcadas, de um lado os behavioristas22, ou comportamentalistas, e
de outro os funcionalistas23.
17
O cientificismo, ou a valorização das verdades resultantes do chamado método científico, teve forte influência da filosofia positivista, que alguns críticos
costumam classificar como “filosofia científica”.
18
Saint-Simon, filósofo francês, economista, um dos fundadores do socialismo utópico.
19
Auguste Comte, filósofo francês, fundador do positivismo, um dos pensadores mais influentes da filosofia moderna.
20
A concepção de organicismo na obra de Spencer é resultado de seus estudos de biologia, que o levaram a conceber a sociedade como um “corpo
social”, cujas relações se dariam na forma própria a um organismo biológico.
21
Herbert Spencer, filósofo inglês, um dos principais representantes do positivismo na língua inglesa.
22
Behaviorismo, do inglês behavior, é o nome dado à escola de psicologia
que toma por objeto o estudo do comportamento.
23
Funcionalismo é a escola de pensamento sociológico geralmente associada
à obra de Émile Durkheim, que se caracteriza por definir seu objeto como o
“fato social”, que tem como base o comportamento de cada indivíduo na sua
funcionalidade. Ainda em outras palavras, o funcionalismo “procura explicar
aspectos da sociedade em termos de funções realizadas por indivíduos ou suas
consequências para ela como um todo.
86
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Os behavioristas, por coerência metodológica, devem partir sempre
dos indivíduos, enquanto tais, para, por meio dos diferentes estágios
de organização e complexidade da sociedade, chegar até os Estados
e deles passar à Comunidade Internacional. Os funcionalistas têm na
ideia de sistema, desenvolvida por Talcott Parsons24 (1902-1979), o
seu conceito-chave. A primeira dificuldade entre os funcionalistas
está, desde logo, na noção do sistema. Duas definições podem ser
adotadas, geralmente não para resolver o problema, mas tão-somente
para situá-lo. A primeira diz, de forma simples, que sistema é uma
“reunião de elementos interdependentes”. Esta mesma acepção é expressa ainda de modo mais elaborado por cientistas políticos funcionalistas no “II Informe do Clube de Roma”. Ali Mesarovic25 (1928-) e
Pestel26 argumentaram que “o enfoque sistêmico consiste em considerar conjuntamente a totalidade dos aspectos de uma situação ao invés
de isolá-la em um só dado ou em uma sequência de dados”.
É importante observarmos que, ao explicitar a ideia de sistema,
aqueles autores acabam por nos revelar que entendem as relações
entre elementos integrantes de um sistema como formas simples de
articulação. Nesta medida empobrecem aquelas relações, se comparadas com outras perspectivas de análise. De qualquer modo os funcionalistas nos dão uma segunda definição de sistema, que está mais
voltada para um sistema social. Neste caso um sistema é um conjunto
de relações entre um determinado número de funções exercidas por
um número igualmente determinado de atores.
Retornamos aos behavioristas para observar como eles procedem
metodicamente. Em primeiro lugar realizam a coleta e a classificação
de dados empíricos referentes ao fenômeno em questão. Depois dão
um tratamento quantitativo àqueles dados, o que é sinônimo de uma
análise estatística. Por fim, constroem modelos que podem ser teóricos
ou empíricos. A teoria dos jogos pode ser considerada uma aplicação
particular do método behaviorista. Da mesma forma o chamado mo24
Talcott Parsons é um dos mais importantes sociólogos da sociologia norteamericana.
25
Mihajlo D. Mesarovic, cientista sérvio, engenheiro, deu expressivas contribuições no campo da matemática aplicada às questões do desenvolvimento
global, especialmente relacionadas às teses do “Clube de Roma”.
26
Eduard Pestel, com Mesarovic, também integrante do “Clube de Roma”.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
87
delo analítico usado pelo conhecido cientista político Karl Deutsch27
(1912-1992) é uma variante de behaviorista.
As divergências entre os behavioristas são significativas e a impossibilidade de conciliação tem permitido aos críticos apontar tanto
a forma arbitrária como costumam ser escolhidos os atores de um
sistema quanto à rigidez metodológica de seus procedimentos analíticos. Em consequência, os behavioristas vêm perdendo espaço para
os funcionalistas quando se trata do debate teórico e da influência
sobre os formuladores de política externa principalmente nos países
de língua inglesa.
Para demonstrar o poder heurístico de sua teoria, os funcionalistas costumam dividir as relações internacionais em sucessivos períodos, ou seja, o que chamam de sistema de equilíbrio, que compreende a época dita clássica das relações internacionais – séculos
XVIII e XIX; depois viria o sistema bipolar flexível, correspondendo
ao período que se inaugura ao fim da II Guerra Mundial e vai até
a década de 80; o sistema bipolar rígido, que diz respeito a momentos determinados dentro do sistema anterior; por fim o sistema
internacional universal, isto é, o último e atual, caracterizado pela
dominação de um único ator internacional sobre os demais. Para
os críticos do funcionalismo a sua grande limitação está no fato
de que ele é mais descritivo do que analítico. Sua vitalidade viria
menos de seus conceitos e mais das inúmeras contribuições que se
complementam, e até se justapõem, quando da abordagem de um
mesmo fenômeno.
Antes de passarmos a nossa pergunta central, se é possível uma teoria
das relações internacionais desde um ponto de vista epistemológico,
queremos completar o exame de algumas das contribuições teóricas
mais relevantes com que se confrontam os analistas contemporâneos,
considerando mais uma delas. Refiro-me à teoria implícita ao pensamento de Karl Marx28 (1818-1883). É necessário dizer que evitamos
falar de marxismo, para não ter que considerar aqui obras como as de
Karl Deutsch, nascido na República Checa, naturalizado norte-americano, foi um dos mais importantes cientistas políticos dos Estados Unidos no
século XX.
28
Karl Marx, filósofo alemão, economista, fundador do socialismo científico,
foi autor de extensa obra crítica do modo de produção capitalista.
27
88
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Lenin29 (1870-1824), Mao Tsé-tung30 (1893-1976) e Trótski31 (18791940), pois, ainda que importantes, nos levariam muito longe neste
breve ensaio.
O exame será conciso e por isto iniciamos observando que a teoria
de Marx se distingue completamente de todas as demais. Ela parte de
fundamentos próprios, que estão construídos na forma de uma filosofia da história de clara inspiração metodológica no pensamento de
Hegel, ainda que com o propósito de ser o avesso do idealismo hegeliano. O ponto de partida de Marx, como é bastante conhecido, são as
relações de produção e mais particularmente as relações de produção
capitalistas. Ele entende que nessas relações se confrontam interesses
antagônicos. De um lado estão os proprietários privados do capital –
o capitalista – e de outro aqueles que detêm a força de trabalho – o
trabalhador. O Estado, suas instituições e suas políticas, ainda na concepção de Marx, são elementos de uma superestrutura de dominação
político-ideológica, que atua na defesa dos interesses do capital.
Deixando de referir aqui outros aspectos importantes do pensamento
marxiano, mas sem desconsiderá-los e passando as suas consequências
no campo das relações internacionais, nos detemos, em primeiro lugar,
no fato de que para Marx o Estado não é mais uma entidade soberana,
regida por valores universais, sejam eles econômicos, sociais, políticos,
ou se se quiser, éticos. Assim, as relações internacionais não se dão
no interesse de Estados, como representantes de toda a Nação, senão
que no interesse da classe de proprietários do capital – o capitalista —,
a burguesia nacional que se apropria do Estado. Os entendimentos,
as alianças, ou as rivalidades, os conflitos nas relações internacionais
não expressam, para Marx, os verdadeiros interesses das sociedades
nacionais como um todo. Isto pelo simples fato de que não existe uma
sociedade nacional no sentido próprio do termo. Qualquer sociedade
Lenin, pensador marxista, revolucionário russo, líder da revolução que levou ao poder em Moscou o partido Comunista em 1917, dando origem à
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
30
Mao Tsé-tung, pensador marxista, revolucionário chinês, líder da revolução
popular que levou ao poder o Partido Comunista chinês em 1949, criando a
República popular da China.
31
Leon Trótski, pensador marxista, revolucionário bolchevique, responsável
pela criação do Exército Vermelho.
29
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
89
nacional, sob o regime capitalista, está dividida entre os interesses antagônicos do capital, de um lado, e do trabalho, de outro.
No Manifesto Comunista, em 1848, e ainda de forma mais elaborada
no artigo sobre a Guerra Civil na França, de 1871, Marx pretende demonstrar que os conflitos internacionais são sempre disputas de poder
com vistas à exploração, à obtenção de vantagens econômicas, mesmo quando suas alegações tenham sido de ordem moral ou religiosa.
Em um artigo escrito para o New York Daily Tribune, em 25 de junho
de 1853, ele examina as relações entre a Inglaterra e a Índia, concluindo que o comportamento de dominação colonialista da burguesia inglesa se expressa concretamente na brutalidade com que ela trata a
sociedade indiana. Mas, diz Marx, nem todos os representantes da
aristocracia da Índia eram vistos como inimigos pelos ingleses. E para
a surpresa dos que se deixam iludir pelas aparências, a recíproca também é verdadeira, nem todos os aristocratas indianos viam os ingleses
como seus inimigos. Alguns, em troca de vantagens pessoais, admitiam
colaborar com os colonizadores e, mais do que isto, se identificavam
com seus atos e passavam a tratar com a mesma agressividade os seus
concidadãos. Com essa observação, Marx pretende chamar a atenção
para uma maior identidade de interesses entre a burguesia inglesa e
representantes da burguesia indiana, do que destes últimos com o que
poderiam ser os interesses gerais da Índia e todo o seu povo.
Para Marx as relações internacionais, enquanto expressão dos interesses das burguesias nacionais, não poderiam deixar de ser palco permanente de conflitos. A lógica da exploração capitalista imporia a necessidade de dominação de uns sobre os outros. A paz jamais seria resultado
de uma vontade sincera ou algo almejado por ter um valor em si mesma.
A paz seria somente o resultado de conveniências entre as partes ou, o
que pode ser pior, uma farsa a encobrir relações de dominação.
A harmonia nas relações internacionais, a paz verdadeira, para Marx
não seria jamais o resultado de tratados firmados entre capitalistas. Somente quando os representantes da força de trabalho se unissem num
pacto internacional é que a paz seria confiável e duradoura. Marx via
nos operários aqueles homens que, não tendo nada a perder, não
estariam movidos pelas mesmas necessidades de exploração do outro
que o capitalista e assim não teriam conflitos de interesse, pelo contrário, eles representariam a vontade coletiva de progresso de toda a
90
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
sociedade em âmbito planetário.
Estas palavras hoje soam abstratas, desconectadas da realidade. Para
alguns críticos são expressão de um ideal, de uma utopia distante,
ou ainda simplesmente expressões poéticas. Outros veem em Marx o
equívoco das teorias ilusórias e das falsas ideias.
Marx, ao mesmo tempo em que, com sua teoria, abre novo campo
de reflexão sobre as relações de subordinação da política externa à
política interna, por outro lado, por ter subestimado tão significativamente as relações políticas privilegiando as econômicas em suas análises, acaba por nos advertir sobre a importância dos fatores políticos
nas relações internacionais.
Marx não chegou a produzir uma avaliação suficiente da tecnologia
como elemento presente nas relações internacionais. Sua teoria tratou
da tecnologia somente na condição subproduto da economia. Assim,
ele não teve como considerar a hipótese de que o desenvolvimento
técnico pudesse dar a uma máquina de guerra autonomia suficiente
para fazer dela um poder em si mesma, com interesses próprios, capaz
de produzir tanto aliança como conflitos, não só no âmbito interno –
como no caso do complexo industrial-militar norte-americano – mas
também externo, no campo das relações internacionais.
Uma última observação para encerrar o exame do pensamento
de Marx. Seus críticos, sejam eles simpáticos às suas teses ou não,
geralmente coincidem em afirmar que sua obra contribuiu significativamente para desfazer a ilusão de que seria possível assumir uma
posição de neutralidade em relações internacionais. Em nenhuma
situação, seja ela real, empírica, ou teórica, abstrata, iremos encontrar valores que nos permitam construir uma verdadeira ética das
relações internacionais.
4. UMA TEoRiA PoSSíVEl
Após estas considerações voltamos à pergunta sobre a possibilidade
de elaboração de uma teoria das relações internacionais propriamente
ditas. Para examinar esta questão vamos buscar apoio em Raymond
Aron, uma vez que ele se propôs o mesmo problema e com isto nos
legou algumas reflexões bastante interessantes.
A resposta de Aron à questão sobre uma teoria das relações inter-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
91
nacionais é de que, se adotarmos como critério de teoria científica
aqueles parâmetros que definem as ciências matematizáveis, ou que
suportam demonstrações teoremáticas, então torna-se impossível falarmos de relações internacionais como ciência. Para sustentar sua tese
ele nos oferece vários argumentos. Examinarei brevemente só aqueles
que entendemos como de maior importância.
Aron observa que em relações internacionais há que se levar em
conta variáveis internas e variáveis externas. Resulta que, na prática, é
impossível, por exemplo, no caso do Estado, definir com rigor o que
é política interna e o que é política externa. Outro argumento é o de
que não há nenhuma possibilidade de serem estabelecidas relações
quantitativas de causa e efeito, em se tratando de fenômenos de relações internacionais. Sua conclusão é de que o principal obstáculo para
a formulação de uma teoria das relações internacionais não decorre
tanto do grau de complexidade do objeto, mas talvez muito mais da
natureza específica das relações em questão. Neste sentido Aron é
acompanhado em seus argumentos por vários autores norte-americanos, os quais chegam à conclusão de que a melhor hipótese seria
propor uma teoria aproximativa. Oran Young32, destacado professor
da Universidade da Califórnia, é um deles. Ele considera possível uma
teoria geral das relações internacionais, mas observa que ela ainda não
existe em sua forma acabada. Assim, não nos restaria outra alternativa
do que se continuar trabalhando na construção de novos questionamentos e novas opções metodológicas, talvez tomando como exemplo a economia e a demografia.
Voltando a Raymond Aron, sua hipótese mais elaborada de uma
teoria das relações internacionais se sintetiza no que ele chama de
abordagem sócio-histórica. A perspectiva histórica não deve ser só
descritiva, adverte Aron, e a sociológica, por sua vez, deve estar aberta
às múltiplas faces do fenômeno em sua dimensão social.
Diante de dificuldades como estas que acabamos de apresentar
para a elaboração de uma teoria das relações internacionais, resta-nos
uma hipótese, no entanto, suficientemente razoável. Ela é acompanhada por muitos teóricos da ciência política, entre eles pelo professor
Oran Young é professor, atualmente, da Bren School of Environmental
Science & Management, na Universidade da Califórnia, Santa Barbara.
32
92
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Young, ao qual já fizemos referência. Trata-se, no caso, da possibilidade de construção de uma teoria a partir da identificação e delimitação
do objeto das relações internacionais.
4.1 o PRoblEMA Do obJETo
A definição do objeto, neste caso, não é só uma questão teórica,
ela é também uma dificuldade prática. A natureza multidisciplinar e
interdisciplinar, de um lado, e a complexidade das relações, de outro,
são, em primeira instância, os obstáculos para a pesquisa e mesmo
para ação mais eficiente no campo das relações internacionais. No
esforço para se estabelecer seu objeto próprio e seu campo de ação
somos tentados a buscar uma separação entre as relações internas e as
relações externas, apoiando-nos, para tanto, na diferença dos atores
presentes em cada caso. Assim, o critério seria: sempre que tivermos
os Estados como agentes, estamos diante de relações internacionais;
as relações internas, por sua vez, estariam marcadas pela presença
de indivíduos ou de sujeitos coletivos não estatais, tais como empresas, sindicatos, partidos, organizações não governamentais e outras.
Ocorre que, juntamente com os Estados também assumem um papel
importante nas relações internacionais organizações tais como a ONU,
a Otan33, a UE34, o Mercosul35, a OMC, o FMI36, a Opep37 etc. Mas
não são somente estas as que têm atuado de forma significativa no
campo internacional, senão que ainda há outras organizações como
as federações internacionais dos sindicatos, dos partidos políticos e as
representativas de profissionais liberais igualmente com forte atuação
na Comunidade Internacional, para lembrar somente algumas.
O fato de que as relações sejam de conteúdo político, econômico,
social, cultural ou qualquer outro, também não serve como elemento de referência para distinguirmos as que são externas das internas.
33
Otan: Organização do Tratado do Atlântico Norte é uma organização internacional de cooperação militar e defesa mútua, criada em 1949 sob a liderança dos Estados Unidos. A Otan tem sua sede em Bruxelas.
34
UE: União Europeia
35
Mercosul: Mercado Comum do Sul
36
FMI: Fundo Monetário Internacional
37
Opep: Organização dos Países Exportadores de Petróleo
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
93
Diante de tal complexidade, parece não restar nenhum outro critério
para definir o objeto teórico e o campo de ação das relações internacionais que o conceito de soberania. E soberania, como sabemos,
refere-se ao poder de mando, à autonomia de fazer a guerra e também de assinar a paz. Em outros termos, será de natureza externa
toda relação que, levando a um impasse, possa significar o abandono
de qualquer ordenamento jurídico, restando como última solução o
recurso à força, isto é, à guerra.
Se o conceito de soberania nos permite dar um passo importante na
determinação do objeto das relações internacionais, mesmo assim estamos ainda muito distantes de uma solução suficiente do problema.
Se as relações internas caracterizam-se por estarem sob permanente
ordenamento jurídico, rompendo com ele somente nos casos extremos, de guerra civil, não podemos pretender que a diferença com as
relações internacionais seja tão só de natureza processual. Há também
uma dimensão de conteúdo a ser levada em conta. Por sua natureza
e por seu horizonte formal, as relações internas se prestam a um grau
de previsibilidade que dificilmente ocorre nas relações internacionais.
Nestas últimas, os princípios jurídicos, políticos, econômicos, morais
e outros encontram-se permanentemente sob a tensão de um ordenamento que pode ser suspenso em nome da soberania nacional ou
de uma “razão de Estado”. Com esta definição de relações internacionais não se está negando a existência de um direito internacional
e menos ainda a vigência de um efeito vinculante para as partes, decorrente dos atos praticados sob sua égide. A história, no entanto, é
testemunha de que, embora declarado válido, os princípios do Direito
Internacional, com frequência, se mostram ineficazes para resolver as
controvérsias resultantes de interesses divergentes entre os atores das
relações internacionais. Os dados históricos ainda são mais significativos ao revelar que a ruptura dos compromissos com a ordem jurídica
internacional é muito mais frequente do lado dos países com maior
desenvolvimento econômico, social e político – em uma palavra os
mais desenvolvidos – do que do lado dos miseráveis. A situação tornase ainda mais grave, em termos de direito, na medida em que aqueles
mesmos países mais desenvolvidos, valendo-se de sua superioridade
militar, não raras vezes recorrem a ameaças para impor aos tribunais
internacionais decisões que lhe sejam favoráveis, ou então para im-
94
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
pedir que determinações ditadas por uma Corte ou por organismos
internacionais, como a ONU, venham a ser cumpridas.
A partir do século XIX, e depois da II Guerra Mundial ainda com
maior intensidade, surgiram, ao lado dos Estados, as grandes empresas
como atores de relações internacionais. A presença das empresas na
Comunidade Internacional significou um elemento altamente complicador, em particular do ponto de vista jurídico, ou seja, do Direito
Internacional.
As empresas, por definição, perseguem interesses particulares e não
coletivos, seus objetivos se reduzem, em última instância, às relações
de ganhos econômicos, ou seja, de lucro. Quando elas vão buscar
seus fins fora de seus países de origem tornam-se, em consequência,
agentes diretos de relações internacionais. Ocorre que os caminhos
que levam mais rapidamente ao lucro nem sempre coincidem com
os princípios do Direito Internacional ou com os interesses dos países
anfitriões dos capitais externos que vão buscar realização em seu território. Diante de conflitos de interesses evidenciam-se dois elementos
importantes: de um lado o fato de que, salvo raras exceções, as empresas não contam com poder militar próprio; por outro, elas detêm
considerável poder econômico, muitas vezes expresso por um patrimônio e/ou balanço anual de valor superior ao PNB do país anfitrião.
Isto se traduz, em última instância, em um poder político enorme e
até mesmo insuportável. O resultado de relações tão assimétricas é o
descaso pelas regras do Direito Internacional. Comportamentos assim
são referendados pela simples omissão do país de origem da empresa
infratora ou então estimulados por ações diplomáticas e mesmo militares, que podem ir muito além da simples intimidação política.
Dito de outra forma, as empresas de porte internacional provocam
muitas vezes um efeito de envolvimento dos Estados que transcendem as relações diplomáticas tradicionais, como relações de Estado
a Estado, que são as relações supostamente no interesse coletivo.
Sempre que isto acontece, não é para ratificar as regras do Direito
Internacional, mas para contorná-las ou então simplesmente para
deixá-las de lado em favor de relações de força que irão beneficiar
os interesses privados.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
95
5. iNTEGRAÇÃo REGioNAl E RElAÇõES iNTERNACioNAiS
Para concluir esta primeira parte deste ensaio de introdução ao tema
das relações internacionais, vamos tratar brevemente da questão da
integração regional na Europa Ocidental. Com isto, pretendemos examinar as relações internacionais no contexto em que Estados nacionais
se associam, criando uma instituição supranacional para a qual transferem parte de sua soberania, não sob coação, mas como consequência
de decisões livres e soberanas, legítimas e legais. Tomar o exemplo da
União Europeia é uma opção ditada pela maturidade da experiência
dos europeus em um projeto de integração regional, que, se não deve
ser tomado da forma acrítica para o caso do Mercosul, nem por isto
deve ser esquecido nos seus acertos e erros.
Não entraremos na discussão dos aspectos jurídicos, presentes nos
instrumentos de direito que sustentam a integração dos países da Europa Ocidental para formar a União Europeia. Eles são demasiados
extensos e complexos para serem examinados neste momento. Apenas para esclarecer as dificuldades a que queremos nos referir, bastaria
lembrar que o “Tratado sobre a União”, assinado em Maastricht em 7
de fevereiro de 1992, não revogou nenhum dos “Tratados” que deram
origem às “Comunidades”, na década de 50, e nem mesmo o ato que
as unificou na forma de “Comunidade Europeia” em 1967.
Continuando com a União Europeia, como exemplo, há aqui dois
aspectos a serem considerados: primeiro o da relação dos países membros da União com terceiros países, e, segundo, o dos países membros
entre si. Na relação com terceiros países o que pode ser observado é
uma relação ambígua, que tende a permanecer assim ainda por muito
tempo, apesar de que o Tratado de Maastricht estabeleça claramente
o propósito de a União vir a exercer uma política de defesa e segurança comuns em nome de todos os Estados membros. Esta decisão está
agora mais explícita e consolidada nos termos do Tratado de Lisboa38.
Isto significa dizer, em outros termos, que uma parte significativa das
relações internacionais será transferida do âmbito das políticas nacionais para a esfera das políticas comunitárias, supranacionais.
38
96
O Tratado de Lisboa foi assinado a 13 de dezembro de 2007.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Assim, deverão conviver duas instâncias de formulação e execução
de política externa nos países da União Europeia: uma interna, nacional, e outra externa, supranacional. A articulação e a harmonia entre
a instância nacional e a supranacional se constituirão em uma prática,
para a qual ainda não há regras escritas, a ser construída como parte
das relações dos países membros entre si. Essa coexistência de políticas será um desafio não só para a União Europeia, senão que exigirá
dos países não membros, que mantêm relações com ela e com seus
países membros, uma nova postura.
No momento, atravessamos um período de conformação dessas relações. Não houve tempo até aqui para que se firmassem doutrinas
políticas, e mesmo jurídicas, sobre esta nova realidade das relações internacionais. Neste sentido elas só contribuem para reforçar a observação inicial a respeito da complexidade desta área. O problema não
está posto só para a investigação científica, senão que também para a
formulação de estratégias e para a implementação de ações concretas.
Concluída esta primeira parte, que acreditamos poder contribuir
para a elaboração de um programa de ensino e pesquisa na área das
relações internacionais, passamos, a seguir, ao exame do problema
referido à realidade dos cursos acadêmicos oferecidos no Brasil. Não
examinaremos nenhum caso em particular, senão que nos moveremos
no nível de considerações que dizem respeito à área no seu todo.
6. AS RElAÇõES iNTERNACioNAiS CoMo DiSCiPliNA ACADÊMiCA
As muitas experiências acadêmicas, em particular aquelas que estão
organizadas com base em uma estrutura departamental, encontram
dificuldades para trabalhar de forma interdisciplinar. O problema, no
nosso entender, é que o objeto das relações internacionais – as relações de poder entre os Estados nacionais – não pode ser apreendido
da melhor forma, se examinado somente por perspectivas separadas,
tais como da história, da economia, da sociedade, da área jurídica
ou outras. Por isto mesmo, o ponto de vista privilegiado de análise
das relações internacionais fica sendo o da política, e assim passamos
a chamar aqui de política o somatório de todas aquelas diferentes
perspectivas mais uma, esta última de caráter filosófico, uma vez que
ela está constituída, em primeira instância, por uma visão de mundo.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
97
Por seu lado, a filosofia política que sustenta toda e qualquer teoria
das relações internacionais é ela própria o resultado de várias disciplinas filosóficas, dentre as quais destacaríamos: a epistemologia,
a antropologia filosófica, a filosofia da história, a ética, para ficar só
com as principais.
Observamos ainda que, ao destacar o ponto de vista da política para
tratar das relações internacionais, não estamos dispensando as análises
feitas pelas outras disciplinas. Pelo contrário, reconhecemos nelas o
seu poder heurístico. Só advertimos que os resultados produzidos por
seus respectivos métodos de investigação devem ser reestruturados
tendo em vista os objetivos de construção de um conhecimento que
diz respeito a um fenômeno complexo, cuja característica principal é
a convergência de uma diversidade de determinações na constituição
das relações de poder, na acepção explicitada no início deste ensaio.
Na concepção acadêmica de um programa de ensino de relações
internacionais, a melhor hipótese, ao nosso entender, é a de que as
disciplinas, complementares da análise política daquelas relações, já
tenham com ponto de partida uma postura de convergência, isto é,
interdisciplinar. Um exemplo para esclarecer melhor o que pretendo
dizer: podemos fazer uma análise do ponto de vista estritamente econômico das relações entre países e ela, sem dúvida, poderá produzir
resultados interessantes, que mereçam e devam ser considerados por
um analista de relações internacionais. No entanto, se aquela análise
das relações econômicas partir de uma outra perspectiva, a da economia política internacional – isto significa se manter aberta às determinações provenientes de outros campos: social, jurídico, cultural
e outros —, ela chegará necessariamente a resultados distintos, que,
no caso, serão muito mais relevantes, porque estarão dando conta da
natureza de seu objeto de forma muito mais ampla e abrangente.
Devemos advertir, no entanto, que esta não é a compreensão de
teoria das relações internacionais encontrada com mais frequência,
até porque a disciplina “relações internacionais” tem uma forte marca
anglo-saxônica, ou para ser mais correto, norte-americana, e a relação
entre a política e a filosofia é, de modo geral e dominante, algo estranho para a cultura dos Estados Unidos. Pragmatismo e funcionalismo,
as filosofias mais difundidas nas sociedades de língua inglesa, trataram
de dar um caráter científico à filosofia, o que acaba por mascarar e
98
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
mesmo por inibir a sua dimensão como visão de mundo, tal como
encontramos na tradição do continente europeu, a qual, neste sentido, remonta ao pensamento clássico grego. Assim, a política na língua
inglesa é sempre uma ciência e não uma filosofia. Ela é geralmente
politics e só raramente policy.
Voltando à pergunta inicial, agora de forma mais explícita: relações
internacionais, multidisciplinar ou interdisciplinar? Respondemos que
só podemos entendê-la como sendo uma tarefa interdisciplinar. Isto
tem sérias implicações. A primeira delas é de como acomodar o ensino e a pesquisa de relações internacionais na estrutura acadêmica de
nossas universidades, que é disciplinar, apoiada em departamentos e
ainda com graves entraves de funcionalidade.
O segundo problema no ensino de relações internacionais, tal como
vem sendo prática em nossas universidades, é de conteúdo, ou seja,
o de como fazer convergir e, por fim, integrar diferentes perspectivas, tradicionalmente estanques, para constituírem abordagens interdisciplinares daquela área. Como superar limites epistemológicos e
metodológicos para podermos trabalhar de forma interdisciplinar. O
exemplo que foi dado, o da economia política internacional, está longe de ser plenamente válido. Há muitas compreensões distintas do
que seja economia política, o que faz com que algumas delas estejam
tão distantes de uma perspectiva interdisciplinar quanto as teorias de
microeconomia. Isto tudo nos leva a uma conclusão que, embora desconfortável, não nos abate: a tarefa da construção da área de relações
internacionais como uma atividade acadêmica é complexa, difícil e
exige uma verdadeira mudança de cultura, por assim dizer, uma vez
que deveremos romper com a visão cartesiana do objeto de investigação para, em seu lugar, construir uma nova percepção.
A pergunta que se impõe imediatamente é: que nova percepção seria
esta? Poderíamos ser tentados a responder que esta nova percepção
seria holística. Porém, se o recurso ao conceito de holismo39 pode nos
facilitar a tarefa da resposta, ele nos traz um ônus. Primeiro porque a
nossa tradição cartesiana, em princípio, rejeita a hipótese de uma teoria
do todo como teoria científica e, segundo, como consequência disto
O holismo tem por princípio que um sistema, seja ele qual for, não esgota
suas propriedades na soma de suas partes.
39
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
99
mesmo, encontramos dificuldades quando pretendemos fundamentar
uma teoria abrangente, de caráter interdisciplinar, do ponto de vista
epistemológico e mesmo metodológico.
A primeira consequência que devemos concluir então é que a tarefa
a que nos propomos, ou seja, a de construir a área de relações internacionais como campo de reflexão interdisciplinar na acepção que
damos a interdisciplinaridade é um fazer pioneiro, o desbravamento
de um território ainda não conquistado. Será esta observação verdadeira para a nossa tradição acadêmica?
Nossa resposta é sim e não. Sim porque, e sobre isto voltaremos a
falar mais adiante, o trabalho acadêmico na área de relações internacionais no Brasil é muito incipiente, se considerarmos a sua importância e necessidade para o nosso desenvolvimento enquanto nação. Devemos acrescentar que, mesmo no que vem sendo feito, são poucos
os exemplos de uma abordagem interdisciplinar. Geralmente o que
encontramos são os resultados da justaposição de disciplinas.
Nossa resposta é não, na medida em que, fora da tradição anglo-saxônica, podemos encontrar elaborações bastante consistentes no sentido do que vimos nos referindo como interdisciplinar. É verdade que
lhes falta uma sistematização como gostaríamos de encontrar. Muitas
contribuições são fragmentadas e aquelas que elaboram teoricamente
não chegam a se constituir numa teoria completa, na dimensão como
nós estamos acostumados a encontrar no campo das teorias disciplinares das ciências humanas.
Alguns exemplos, na intenção de deixar mais claro em que direção
estamos nos movendo, quando fazemos a crítica das teorias das relações internacionais em geral, considerando especialmente as mais
presentes nos nossos meios acadêmicos, e também, em particular, ou
seja, a crítica de nossa produção intelectual na área. Esta distinção é
importante uma vez que a produção da segunda, normalmente, decorre das condições da primeira.
Começando por um autor que acreditamos ser bastante conhecido
dos que trabalham com o ensino e a pesquisa de relações internacionais, lembramos aqui, em especial, a contribuição de Marcel Merle40
Marcel Merle tem uma importante contribuição no campo da sociologia
das relações internacionais.
40
100
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
(1929-), em seu intento de fazer uma abordagem sociológica das relações internacionais. A nosso ver Merle, professor da Universidade
de Paris, é um exemplo interessante de um esforço de construção
do que entendemos ser uma análise interdisciplinar. Por sua importante contribuição, um segundo autor que também pode ser citado
é Giovanni Arrighi41 (1937-). Este, italiano, que já trabalha há algum
tempo nos Estados Unidos como professor na Universidade Estadual
de Nova York, mas que não aderiu à teoria política norte-americana,
tem nos oferecido reflexões no campo da economia política que se
destacam exatamente por sua riqueza e abrangência na abordagem
de seus objetos, sem perder a consistência e o rigor da análise. Outro exemplo é Victor Flores Olea42 (1932-), um dos mais destacados
acadêmicos do México, pesquisador do Centro de Investigaciones
Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Unam. A contribuição de Olea vai um pouco mais longe para os nossos interesses
aqui, uma vez que ele se ocupa de construir, ainda que não de forma exaustiva, os fundamentos teóricos, isto é, onto-epistemológicos,
de seu trabalho interdisciplinar. Arriscaríamos afirmar que a obra de
Olea já nos permite falar de interdisciplinaridade nas relações internacionais com suficiente consistência para sustentarmos um diálogo
de alto nível com a tradição disciplinar das ciências sociais. Como
quarto e último exemplo, queremos citar o nome de Elmar Altvater43
(1938-), professor aposentado de economia política internacional
da Universidade Livre de Berlim. Sua formação básica é a de um
economista político, mas sua obra é muito mais ampla, exatamente
porque ele assume o objeto de suas análises numa perspectiva muito
mais aberta. Altvater também não elabora uma teoria das relações
internacionais de forma sistemática, mas seus textos nos oferecem
suficientes elementos para reconstruirmos suas bases teóricas e podermos identificar os elementos interdisciplinares que constituem as
suas reflexões.
41
Giovanni Arrighi, economista e sociólogo, tem uma importante contribuição para o estudo das relações capitalistas globais.
42
Victor Flores Olea, mexicano, cientista político, ensaísta, diplomata, fotógrafo, autor de relevantes trabalhos para a análise das relações internacionais.
43
Elmar Altvater, cientista político e economista, tem importantes reflexões
sobre as relações internacionais no sistema capitalista.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
101
Em outras palavras, o trabalho de construção da área de relações internacionais como um campo interdisciplinar não está terminado, mas
já tem um bom começo. Integrar-se a ele talvez seja o grande desafio
e é isto mesmo que pode torná-lo mais interessante.
Passando agora a uma nova questão, nossa abordagem continuará
sendo apenas uma aproximação do problema, pois a intenção deste
ensaio é mais de levantar perguntas do que de resolver as muitas dificuldades que observamos na área de relações internacionais, ainda
em formação em nossas universidades.
Por que trabalhar sobre relações internacionais? Vamos nos deter um
pouco nesta pergunta, tendo em consideração o fato concreto de que
nos encontramos no Brasil de hoje, com todas as suas implicações.
Para o exame do que significa fazer análise de relações internacionais
em nosso país no momento atual seria indispensável uma longa análise das condições conjunturais e estruturais em que nos encontramos.
Como isto foge ao escopo deste trabalho, vamos avançar sem a preocupação de qualquer aproximação mais sistemática do problema.
É um fato que dispensa apresentação isto que vem sendo chamado
de globalização. Sobre globalização já se escreveu tanto nos últimos
tempos e já se disse coisas tão díspares, que preferimos nosso entendimento resumir em poucas palavras, direcionando sempre para o que
nos interessa aqui. Globalização é nome da ordem internacional estabelecida após a dissolução da União Soviética, cujos parâmetros básicos foram assentados no famoso consenso de Washington. Ou seja,
globalização significa, fundamentalmente, a hegemonia econômica,
política e militar dos Estados Unidos e o primado dos interesses do
capital nas relações interestatais e intergovernamentais. Desta forma
estamos dizendo que para nós as relações internacionais não se esgotam nas relações interestatais e intergovernamentais.
O Brasil é, por destino histórico, uma das grandes nações do mundo.
Quando falamos de destino, queremos dizer que ser uma grande nação não foi uma escolha. Realizar-se como grande nação ou manter-se
como grande nação, isto sim pode ser uma escolha. Até hoje não nos
parece claro que a sociedade brasileira tenha consciência disto. Pelo
contrário, entendemos que só em alguns momentos de nossa história
e nas palavras de poucos homens públicos e de poucos intelectuais,
não só brasileiros, é que nos aproximamos de uma reflexão sobre este
102
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
tema. Quando se fala sobre o destino do Brasil como país, geralmente
o discurso não passa de uma obra de retórica, ou então cai numa
análise técnica mais próxima de um balancete contábil do que de um
ensaio de economia política.
Se desde sempre a compreensão da realidade de uma nação não
podia prescindir do conhecimento de sua inserção internacional, o século XX em suas últimas décadas fez disto um elemento absolutamente
indispensável. Não raro é possível ouvir a observação de que o Brasil,
por ser um país continental, tem dificuldade de se compreender como
parte de um todo maior, como integrante da comunidade internacional.
Isto até pode ser correto, mas é somente parte da verdade. Certamente
há muitos outros fatores dificultando a formação de uma consciência
de nossa nacionalidade: a herança colonial, privilegiando oligarquias
obtusas, a composição multiétnica da sociedade brasileira, o fato de,
praticamente, não termos conflitos de fronteira e mesmo a nossa formação histórica são elementos indispensáveis a uma análise consistente de
nossa percepção de realidade como nação. Mas estes seriam só alguns
fatores que lembraríamos aqui como relevantes para o exame das causas de nossa falta de consciência, ou se quiser, de nossa falta de identidade nacional, e, consequentemente, da ausência de uma percepção
do Brasil como um ator importante no contexto internacional.
A construção da autoconsciência de uma nação é uma tarefa complexa, de toda a sociedade, a ser realizada dentro de uma perspectiva histórica. Em outros termos, ela exige um grande esforço, uma
disposição coletiva a ser persistida por muito tempo, ou melhor, pelo
tempo todo, pois trata-se da construção de um imaginário-concreto
que nunca se conclui, mas que deve ser iniciado, conscientemente,
em algum momento, sob pena de a nação se perder a si mesma, sem
que jamais tenha estado na posse de seus valores, aqueles que de uma
ou de outra forma sempre existem.
Numa realidade em que impera a ordem econômica capitalista não
há como viver de forma autárquica. As relações com o mundo exterior
são uma condição de sobrevivência. Isto é algo bastante sabido, sobre
o que já não há mais grandes polêmicas. Este fato vale para o Brasil,
tanto mais quanto nós somos, quantitativamente, uma das grandes economias do mundo. Vale ainda porque temos uma grande população e
um grande território; vale porque a sociedade brasileira não é discreta
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
103
perante as demais. Nós temos manifestações culturais e nos esportes
que nos projetam diante dos olhos de outras sociedades nacionais. Nós
temos ainda indicadores sociais de integração étnica, ao lado de inimagináveis desigualdades que não nos permitem passar despercebidos
diante de outros povos. Por fim, sem qualquer pretensão de esgotar o
tema, é verdade também que, embora discreta, vista muitas vezes como
tímida e atuando aquém das expectativas, a diplomacia brasileira nos
projeta permanentemente por seu profissionalismo.
O Brasil, que não se sabe ou que sabe muito pouco de si no sentido
de uma consciência de sua nacionalidade, tem uma presença na comunidade internacional completamente desproporcional a sua capacidade de resposta às demandas que esta mesma presença engendra.
O poder político do Brasil está completamente defasado da expectativa que a comunidade internacional tem com respeito a nossa atuação
nos foros internacionais. Vivemos em uma realidade ambivalente. De
um lado não somos uma nação anônima, somos vistos, lembrados,
respeitados. De outro somos considerados um ator inexpressivo, sem
vontade, sem objetivo, sem poder. Esta tem sido nossa imagem ao
longo de toda a nossa história.
Entendemos que o estudo das relações internacionais se põe na perspectiva de uma dialética da identidade e da diferença. Sabemos que, ao
me posicionar assim, numa perspectiva epistemológica hegeliana, podemos estar provocando fortes reações críticas, comprometendo tudo o
que já disse ou que ainda venha a ser dito. No entanto, não temos como
fugir a isto, uma vez que não encontramos em nenhum outro pensador
um instrumento mais eficiente para abordar este objeto.
É Hegel quem nos ensina, na dialética da consciência, desenvolvida
nas páginas da Fenomenologia do espírito, que o conhecimento de
si passa, necessariamente, pelo conhecimento do outro. Cada um só
descobre a si mesmo como uma identidade do eu consigo mesmo
e como diferença do outro. Isto supõe, porém, o conhecimento do
outro como diferente de si. Traduzindo para o contexto que nos diz
respeito aqui, devemos dizer que o conhecimento que cada um busca de sua identidade nacional passa pelo conhecimento da realidade
internacional – o outro da realidade nacional. Isto pode parecer um
simples jogo de palavras para os não iniciados. No entanto, na verdade, a proposta de Hegel nos remete a uma lógica que é matriz do
104
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
pensamento ocidental, uma vez que a tese de que o conhecimento
só terá consistência se ele for capaz de estabelecer a identidade e a
diferença nós já encontramos, originalmente, em Aristóteles. Definir,
para Aristóteles, significa estabelecer o gênero próximo e a diferença
específica. Definir tem na raiz o conceito de fim, ou seja, de limite, de
fronteira. Definir é estabelecer a fronteira, é dizer o que está dentro e
o que está fora, o que pertence e o que não pertence, o que é e o que
não é. O que Hegel fez é demonstrar que a definição aristotélica é, na
verdade, uma relação dialética, isto é, uma relação em que o que está
dentro e o que está fora só existem porque estão em relação entre si.
Não há um dentro sem algo que esteja fora, ou para o que nos interessa aqui: a realidade nacional é tudo aquilo que não é a realidade
internacional, mas só é uma enquanto não é a outra.
Dito isto, se depreende que entendemos o estudo das relações internacionais como uma tarefa de duplo significado. Por um lado é condição da construção de nossa identidade nacional e por outro é o próprio
conhecimento de nosso entorno internacional, condição indispensável
para a inserção de qualquer indivíduo na comunidade humana.
Pode parecer estranho à primeira vista, mas é esta exatamente a tese
que defendemos: o estudo de relações internacionais contribui para
o conhecimento da realidade brasileira no sentido da construção de
uma identidade nacional. Por sua vez a construção de uma identidade
nacional é condição indispensável, desde um ponto de vista epistemológico, para que o conhecimento da comunidade internacional entre
nós brasileiros possa adquirir rigor e densidade.
Poderia abrir um parêntese aqui para discutirmos uma questão que
está na ordem do dia de nossas relações internacionais e que tem, sabidamente, fortes e diretas consequências em nossa realidade interna.
Referimo-nos neste momento ao ingresso do Brasil no corpo permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas44. Isto nos permitiria utilizar todo o aparato conceitual que está explícito ou embutido
no que acabamos de apresentar como resposta à pergunta inicial de
por que construir um conhecimento sobre relações internacionais?
44
Conselho de Segurança das Nações Unidas é um órgão da ONU encarregado de examinar e tomar decisões sobre questões que envolvam a paz e a
segurança de países membros, em decorrência de problemas internos ou de
conflitos com outros países.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
105
Propomos agora uma terceira e última questão no âmbito deste ensaio: o que deve se entender por estudo de relações internacionais?
Um aviso aos ortodoxos, aos bem-comportados da teoria: mais uma
vez fugiremos às regras estritas. Com esta observação queremos dizer que sabemos não pertencer a nenhuma escola de pensamento
na área das relações internacionais. Isto nem sempre é bom, pois em
teoria, muitas vezes é melhor andar mal acompanhado do que sozinho. Acontece que nunca conseguimos nos sentir bem sob a proteção
de um “ismo”, principalmente de um “ismo” de modismo. Por outro
lado nunca nos sentimos suficientemente seguros para declarar-nos filhado a uma determinada escola. Sempre tem nos faltado mais algum
conhecimento que nunca chega a ser conquistado completamente.
Em síntese, para sermos claros e honestos, nos sentimos incapazes de
pertencer a uma escola. Assim, não nos resta outra alternativa do que
sair juntando os cacos das teorias que encontramos ao longo da longa
caminhada que nos conduziu até este ponto da vida acadêmica. A
única coisa que reivindicamos é o direito de reconhecer nossos erros,
por esforço próprio ou apontado por nossos críticos, e poder mudar
de instrumental teórico sem ficar em débito com ninguém.
Relações internacionais, para o nosso consumo intelectual, significam imediatamente tudo o que diz respeito à interação entre dois ou
mais atores da comunidade internacional; e como atores da comunidade internacional, por excelência, entendemos os Estados nacionais,
em seguida os governos, que via de regra se sobrepõem aos Estados,
usurpando da legalidade e da legitimidade de que estão investidos.
Mas há ainda muitos outros atores das relações internacionais, tais
como as organizações internacionais, sejam elas interestatais ou supraestatais, ou ainda intergovernamentais. Exemplificando, para deixar mais claro, as primeiras são representadas pelas Nações Unidas e
todas as suas agências. Para as segundas, um bom exemplo pode ser
a União Europeia. Para as terceiras, entendemos que o exemplo mais
próximo de nós é, sem dúvida, o Mercosul. Está claro que se examinarmos do ponto de vista estritamente jurídico, considerando a letra
dos tratados que deram origem às instituições citadas, provavelmente
não teremos opiniões unânimes e nossa classificação poderá ser criticada. Por isto fazemos a ressalva de que estamos considerando muito
mais uma situação de fato do que de direito.
106
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
Os atores internacionais, no entanto, há muito deixaram de estar só
na esfera do Estado. A sociedade civil, para falar com uma terminologia
tipicamente hegeliana, vem se tornando, de forma crescente, um campo fértil de atores de relações internacionais. Estes são conhecidos, de
maneira geral, pela sigla ONG, ou seja, organização não governamental.
As ONGs, por sua vez, se subdividem em dois grandes grupos, se não
considerarmos uma larga zona cinzenta entre seus dois extremos. De
um lado temos as corporações internacionais, as grandes empresas, presentes em um grande número de países através de suas filiais ou de seus
representantes indiretos. Sua marca são os seus negócios visando lucros
econômicos e/ou financeiros. No outro extremo nós encontramos as
organizações de interesse privado, frequentemente reivindicando reconhecimento de seus ideais e de suas ações como de interesse público,
que atuam basicamente como grupos de opinião. Entre elas, como dissemos, há uma enorme quantidade de instituições que vão desde as
mais ingênuas e inofensivas até as grandes lavanderias de dinheiro da
corrupção e do tráfico de influência, armas e drogas.
O estudo de relações internacionais, no nosso entender, não se esgota na análise dos fenômenos que envolvem dois ou mais atores ou
instituições que congregam diferentes atores da comunidade internacional, como os citados. Tais estudos supõem ou então se complementam através da análise de países, de regiões ou ainda de problemas
do sistema internacional, ou, para ficar com uma terminologia que
usamos de início, problemas da ordem internacional.
Mais uma vez damos exemplos para nos fazer entender melhor. Se
queremos estudar as relações internacionais do Brasil com a Alemanha é
imprescindível que se conheça, e muito bem, aquele país. Para isto devemos concentrar grandes esforços e tempo suficiente para examinar profundamente a realidade alemã, tanto na sua dimensão interna como suas
relações internacionais com terceiros países, ou seja, sua política exterior.
A Alemanha serve ainda para o nosso segundo exemplo. Ela faz parte
da União Europeia. A União Europeia é um fato determinante da realidade da Europa Ocidental neste momento e desde o início dos anos
1950, quando a Europa começou um processo de integração regional
entre os Estados nacionais. Assim, a União Europeia é não só um fato
histórico no contexto da comunidade internacional, como é ainda uma
realidade iniludível para o conhecimento consistente da Alemanha.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
107
Avançamos com mais um ponto para completar esta série de exemplos, antes de voltar à consideração das implicações do estudo dos
dois casos anteriores. Quando nos referimos a problemas do sistema
internacional temos em mente o caso, por exemplo, da preservação
ambiental, ou da preservação e utilização da água potável em âmbito
mundial. Estes são dois problemas de grande complexidade técnica e
política, de grande interesse para toda a comunidade internacional,
cujo equacionamento não pode se fazer esperar. Tratá-los, no entanto,
exige não só elevados conhecimentos técnico-científicos como uma
inestimável competência política, esta talvez mais complexa e difícil
de ser adquirida do que aqueles, uma vez que para ela não costuma
existir manuais e menos ainda regras fixas.
Voltemos ao caso de estudo de organizações internacionais. O exame deste tipo de ator das relações internacionais oferece dificuldades
bem específicas, que podem exigir muito trabalho, mas nada de insuperável. Uma organização internacional tem sempre um estatuto jurídico bem definido, no qual encontramos suas atribuições e regras de
funcionamento. A rigor a análise acaba se concentrando, geralmente,
em boa medida, na reconstrução de sua história. Como as principais
organizações internacionais têm suas atividades muito bem documentadas, poderia se pensar que seria suficiente consultar a literatura disponível a respeito da mesma. O resultado, como podemos constatar,
é que a maior parte das análises sobre as organizações internacionais
não passam de resenhas, dificilmente de boa qualidade, sobre o que
já se publicou a respeito do mesmo assunto. Não há como fazer um
bom trabalho sem um contato direto, sem se vivenciar a realidade da
instituição que se quer estudar. O conhecimento consistente sobre
uma organização supõe a capacidade de desenvolver a análise de fontes primárias, de ir buscar as informações diretamente em seus arquivos, de observar o exercício de suas funções no seu cotidiano.
Está claro que estamos nos referindo a análises que sejam verdadeiramente úteis para a tomada de decisões em relações internacionais.
Portanto não interessam os trabalhos que ficam no simples exercício
de descrever a organização, ainda que procurando ser exaustivo, mas
sem a capacidade de analisar as dimensões políticas de sua atuação. E
quando falamos de dimensões políticas estamos nos referindo simplesmente a “para que ela serve, para quem ela serve e como ela serve”.
108
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
O que vamos observar, a seguir, para o estudo de um país, vale na
mesma medida para o estudo de uma região. Em outras palavras e retomando o exemplo da Alemanha e da União Europeia, os procedimentos
metodológicos são os mesmos, ainda que, no caso da União Europeia,
por sua complexidade, uma análise que pretenda ter efetiva consistência exija muito mais trabalho do que o caso de um único país.
Antes de avançar com nossas observações, devemos fazer mais um
esclarecimento: não desconsideramos, de forma alguma, os estudos
que se ocupam de aspectos bem determinados da realidade de um
país. Assim, a análise econômica ou mesmo só do mercado externo de
um país, se conduzida com rigor, será sempre uma fonte importante de
consulta e de indicações para a condução de um trabalho mais abrangente, isto é, para aquele que tem o propósito de se tornar um especialista na perspectiva que interessa à análise de relações internacionais.
Primeira observação: o esforço necessário à formação de um especialista sobre um país ou uma região é tão grande que se torna
muito raro encontrarmos todos os conhecimentos em uma só pessoa.
Geralmente é tarefa para uma equipe. Isto não quer dizer que não
possam existir algumas pessoas que, dotadas de extraordinária capacidade intelectual, sabem tudo ou quase tudo sobre o seu objeto de
interesse. Como o mais provável é que nos deparemos com grupos de
trabalho, não muito numerosos, mas altamente concentrados em suas
atividades, é certo que todos eles conhecerão muito de muito e cada
um muito mais ainda de um determinado aspecto da realidade do
país ou região a que se dedicam coletivamente. As melhores análises
que temos encontrado são, sem dúvida, aquelas conduzidas numa
perspectiva interdisciplinar. A dedicação de cada um a questões específicas supõe, antes de mais nada, uma base de conhecimentos comuns, que começa com os elementos jurídico-políticos que definem
a estrutura do Estado, e segue com a forma do governo e as relações
econômicas, sociais, políticas e jurídicas na esfera da Sociedade Civil,
tal como aqueles elementos estão definidos formalmente. A formação histórica do país também faz parte do acervo comum a todos. A
mesma coisa vale para o campo da cultura, em que conhecimentos
produzidos pela antropologia social e ciências afins, e pela psicologia
social se complementam com conteúdos das manifestações artísticas,
nas suas formas clássicas, populares e de vanguarda.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
109
Não só um domínio da língua, mas ainda a vivência da realidade
cotidiana do país é condição indispensável para o conhecimento do
especialista. Em outras palavras, ninguém poderá ter conhecimentos
sobre um país ou região se não tiver uma grande intimidade com sua
realidade. Isto só é possível se cumpridas duas condições básicas: primeiro um estudo sistemático sobre sua realidade e, segundo, uma proximidade com seu cotidiano, suficiente para lhe permitir o acesso a
elementos imponderáveis de sua conformação nas suas estruturas mais
fundamentais, ou seja, econômica, política, social, jurídica, cultural.
Em outras palavras, ninguém conhece um país ou região sem ter
vivido lá. O contato direto, continuado, é tão indispensável quanto o
estudo sistemático e permanente das melhores fontes a seu respeito.
Tudo isto, no entanto, ainda não será suficiente se não soubermos por
que e para que nos especializamos em nossos conhecimentos.
Para concluir, gostaríamos de observar que, pela experiência que
pudemos recolher ao longo de já agora quase quatro décadas de trabalho na área de relações internacionais, a formação de um analista
é um longo processo, que nunca se esgota. Pelo contrário, um bom
analista de relações internacionais pode perder rapidamente sua competência, conquistada após demorados anos de trabalho. Basta para
isto que ele se distancie teórica e praticamente de seu objeto.
Hoje o Brasil pode contar com muito poucos internacionalistas, embora eles tenham uma extraordinária e inadiável contribuição a dar
para o desenvolvimento econômico, político e social da sociedade
brasileira. A falta de competência no campo das relações internacionais entre nós é só mais uma das nossas muitas carências históricas,
mais um dos obstáculos, no nosso entender, à superação de nosso subdesenvolvimento crônico. Por isto vemos como tarefa inadiável contribuir para que a geração de novas vocações possa se dedicar em tempo
integral ao estudo de relações internacionais para que assim, dentro
de alguns anos, venhamos a contar com uma massa crítica de internacionalistas à altura das necessidades e dos interesses brasileiros.
110
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
REFERÊNCiAS
ALTVATER, Elmar et al. A crise dos paradigmas em ciências sociais e os
desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto: CORECON, 1999.
ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Tradução Aníbal Fernandes. Brasília, DF: UnB, 1986.
ARRIGHI, Giovanni. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto: UFRJ, 2001.
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologie pour l’histoire ou métier
d’historien. Paris: Librairie A. Colin, 1952.
BURDEAU, Georges. L’État. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
CLAUSEWITZ, Carl von. Vom Kriege. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1972.
COMTE, Auguste. Système de politique positive. Paris: Éditions Larousse,
1851. 4v.
DEUTSCH, Karl Wolfgang. Curso de introdução às relações internacionais. Brasília, DF: UnB, 1983.
______. Política e governo. Brasília, DF: UnB, 1983.
DUROSELLE, Jean Baptiste. L’Europe, de 1815 a nos jours: vie politique et
relations internationales. Paris: PUF, 2002.
FEBVRE, Lucien Paul Victor. Combats pour l’histoire. Paris: Librairie A. Colin, 1992.
FLORES OLEA, Victor Manuel; MARIÑA FLORES, Abelardo. Crítica de la
globalidad: dominación y liberación en nuestro tiempo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1999.
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976.
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da
Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
KANT, Immanuel. Zum ewigen Frieden. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1976.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
111
LENIN, Wladimir Il’ich. Der Imperialismus als höchstes Stadium des
Kapitalismus. Berlin: D. Verlag, 1973.
______. Die sozialistische Revolution und des Selbstbestimmungsrecht
der Nationen (Thesen). Berlin: D. Verlag, 1973.
______. Über die Losung der Vereinigten Staaten von Europa. Berlin: D.
Verlag, 1972.
MAO, Zedong. Oeuvres choisies de Mao Tse-Toung. Pékin: Éditions du
Peuple, 1966.
MARX, K. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. Berlin: D. Verlag, 1973.
______. Der Bürgerkrieg in Frankreich: adresse des Generalrats der Internationalen Arbeiterassoziation. Berlin: D. Verlag, 1973.
______. Die Klassenkämpfe in Frankreich, 1848-1850. Berlin: D.
Verlag, 1973.
______. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: D. Verlag, 1973.
______. Manifest der Kommunistischen Partei. Berlin: D. Verlag, 1973.
MERLE, Marcel. Les acteurs dans les relations internationales. Paris: Economica, 1986.
______. Forces et enjeux dans les relations internationales. Paris: Economica, 1981.
MESAROVIC, Mihajlo D.; PESTEL, Eduard. Stratégie pour demain: deuxième rapport au Club de Rome (1974). Traduit Mireille Davidovici et Isabelle
Vermesse. París: Éditions du Seuil, 1975.
PARSONS, Talcott. Politics and social structure. New York: Collier-Macmillan, 1969.
RENOUVIN, Pierre. Historia de las relaciones internacionales: siglo XIX y
XX. Traducción Justo Fernández Buján et al. Madrid: Ediciones Akal, 1990.
RENOUVIN, Pierre; DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introducción a la historia
de las relaciones internacionales. Traducción Abdieu Macías Arvizu. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
SAINT-SIMON, Henry, comte de.; THIERRY, A. De la reorganisation de
la societé européene ou de la nécessité et les moyens. Madrid: Ed. Cátedra, 1985.
112
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
SPENCER, Herbert. First principles. London: Williams & Norgate, 1900. (A
system of synthetic philosophy, v. 1).
TRÓTSKY, Léon. Questions de politiques étrangères (1907-1925). Paris:
F. Maspero, 1971.
YOUNG, Oran R. (Ed.). The effectiveness of international environmental
regimes: causal connections and behavioral mechanisms (Global Environmental Accord: strategies for sustainability and institutional innovation). Cambridge, Mass.: MIT Press, 1999.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 76-113 | JANEiRo > AbRil 2009
113
A EVolUÇÃo FAz
SENTiDo. iNClUSiVE NA
ATiViDADE FíSiCA?
Hugo Rodolfo Lovisolo
114
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
Procurarei neste ensaio justificar razoavelmente um conjunto de tarefas, que implicam
assumir pontos de vista diferentes dos que estamos habituados a colocar em prática
quando falamos das relações entre atividade física e saúde, atividade física e autonomia. As tarefas que proponho são: primeiro, apresentar a possibilidade de uma explicação fisiológica para o paradoxo da rejeição ou falta de adesão daquilo que, segundo
a própria fisiologia, faria bem: a atividade física. Construir, então, uma fisiologia do
“não”, da recusa ou abandono, a partir de possíveis razões fisiológicas, esquecendo o
“refúgio” das justificativas psicológicas ou sociais. Não creio que a tarefa seja possível
se não levarmos a sério a escuta clínica dos que reclamam da atividade física. Em
segundo lugar, integrar no mesmo marco de entendimento tanto a hiperatividade
quanto a hipoatividade, pensando suas limitações e efeitos diferenciados a partir dos
aportes de uma fisiologia do “não”. Em terceiro lugar, pensar os dados contraditórios
da atividade física tendo em vista o problema da dor e seus significados. Em quarto
lugar, retomar como marco a teoria da evolução para entendermos do que estamos
falando no campo normativo da fisiologia da atividade física. Em quinto lugar, pensar
os efeitos positivos e negativos (fisiológicos, psicológicos e sociais) da estilização e da
estetização. Por último, abandonar a simplicidade da afirmação de que viver mais
tempo é viver melhor e, ainda, de que a autonomia dos idosos é um valor em si mesmo. Lembrando que parece que nos dedicamos a dar respostas que fazem declinar a
solidariedade, a reciprocidade, o apego, o respeito entre os diferentes, enfim, aquelas
coisas que faziam do homem um animal social para Aristóteles.
In this essay, I try to reasonably justify a set of tasks which imply assuming viewpoints
that are different than the ones that we are commonly used to bring up (or to put
in practice) when discussing about the relationships between physical activity and
health. The task proposed here are: first, to present the possibility of a physiologic
explanation for the paradoxes of rejection or lack of adhesion to those actions that
accordingly to physiology itself would be wealthy or do good: physical activity. Therefore, the construction of physiology of “not”, of declining or abandoning, starting
from possible physiological reasons and forgetting the “refugee” of psicological or
social justification. I do not believe that this enterprise is possible if not seriously
considering listening to the clinical data on complains on physical activity. Following, one must put on the same understanding frame both hyperactivity and hypoactivity, thinking about their different limitations and effects from the inputs of a
physiology of “not”. In third place, one must reflect about the contradictory data
arising form physical activity, considering the significance of the problem of pain
and its meanings. Fourth, to reconsider as a framework the theory of evolution so
that one can understand of what is being said in the normative field of physiology
of physical activity. Fifth, one must think about the positive and negative effects
(physiological,psicological and social) of stylizing and estethicizing. At last, one must
abandon the simplistic assertion that living long is living better and, also, that the
autonomy of the eldest is a value itself. It must be remembered that it seems that
we are dedicated to provide answers that make declining solidarity, reprocity, affection, the respect among diverse people, that is, those things that made man/woman
a social animal for Aristoteles.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
115
1. CoNSENSo E obSESSÃo
Sabemos que a pesquisa nem sempre apresenta novas ideias ou
combinações originais de ideias conhecidas, como Pascal sustentava
ser a finalidade da atividade do pensar. No campo da pesquisa, a mera
ausência de refutação de alguma hipótese no experimento aumenta
nossa confiança nos conhecimentos já gerados. O aumento da confiança é um efeito importante do artigo ou do relatório de pesquisa. O
artigo pode ser redundante ou confirmatório de resultados já obtidos.
A replicação da pesquisa é um modo válido de produzir confiança e
redundância, enfim, de contribuir para gerar uma comunidade que
partilha uma matriz disciplinar. Contudo, aumento da confiança não
implica a produção de conhecimentos opostos ao paradigma ou matriz disciplinar dominante (KUHN, 1989).
Devemos reconhecer, no entanto, que os resultados discordantes
dos aceitos levam frequentemente à não publicação, quer por autocensura, quer por censura externa (BECKER, 1993). O novo deve
apresentar-se com força repetitiva para deslocar a repetição do velho
ou com o dramatismo suficiente, por exemplo, na autoinoculação de
uma bactéria para demonstrar que as ulcerações não resultam do estresse e que, portanto, podem ser tratadas com antibióticos. Ou na realização de uma cirurgia placebo da mamária cujos efeitos temporais
benéficos, durante aproximadamente três meses, são semelhantes aos
da cirurgia real (HORGAN, 2002). Talvez, daqui a um tempo se descobrirá que a angioplastia tem efeitos que não diferem significativamente da “angioplastia placebo”, difícil de realizar por motivos éticos.
Contudo, poderia se fazer um cateterismo e informar aos pacientes
do grupo de controle que os extensores foram colocados nos lugares
certos. Por certo, não seria ético. Assim, a ética protege a angioplastia
do teste empírico. Simular uma angioplastia é possível, simular a atividade física é quase impossível. Como não temos placebo da atividade
física não conhecemos seus possíveis efeitos. Os sedentários, portanto,
estão excluídos do benefício do placebo da atividade física.
Replicar pesquisas, se possível com aperfeiçoamentos metodológicos e instrumentais, é uma atividade forte no campo das ciências que
operam na dita área da saúde. Entretanto, a partir de limites não muito
claros, devemos passar a nos interrogar sobre o que não explicamos
116
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
e não apenas sobre o já explicado. Os limites não muito claros têm
como indicador a insatisfação com o fazer e dão lugar à argumentação
dialética, no sentido proposto por Aristóteles e renovados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005).
O que denominamos “ensaio” deve argumentar para surpreender,
deve propor dizer alguma coisa diferente como, por exemplo, suspeitar das premissas com as quais operamos. O ensaio, por pertencer ao
campo da argumentação, deve partir de um lugar comum ou aceito pelos leitores e levá-los para algum lugar não esperado, talvez um
novo possível. É o que me proponho no presente trabalho. Creio que
o ensaio permite tal licença, pois, uma de suas principais funções é
arejar e refinar as perguntas que nos fazemos e não, apenas, criticar a
tradição ou as ideias dominantes.
No campo da fisiologia do esforço, das ciências dos esportes e da
atividade corporal, domina a ideia de que a atividade física praticada
de forma regular tem efeitos positivos sobre a saúde da população.
A última fórmula recomenda a prática de 30 minutos diários, divididos em blocos de 10 ou 15 minutos. Declaro, para eliminar malentendidos, que o fato de eu concordar ou não com esta opinião,
de estar ou não convencido, é irrelevante para minha argumentação
e que também não estou seguro sobre o caráter de “último” da fórmula. Contudo, a baixa intensidade recomendada, que horroriza a
muitos profissionais da educação física, não poderia funcionar como
um placebo?
O ponto de maior consenso é que a atividade física protege ou diminui em longo prazo os efeitos negativos da entropia da idade e que
melhora o idoso em termos musculares, respiratórios e de composição
corporal (MATSUDO, et alii, 2000). Ou seja, seus principais efeitos de
saúde se realizam no longo prazo a partir da atividade sistemática no
presente. A mídia se dedica obsessivamente a promover a relação positiva entre atividade física e saúde e se refere aos resultados positivos
das pesquisas. Todavia, se o leitor consultar o Google poderá observar
que existem mais de 670.000 referências positivas para a relação entre
atividade física e saúde. Já o Google Acadêmico menciona mais de
16.400 artigos. Assim, parece que sobra informação.
Parto, então, de uma observação banal: apesar do consenso forte
parece existir certa obsessão em realizar pesquisas que demonstrem os
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
117
efeitos positivos da atividade física, ou seja, produzir relatórios e artigos redundantes. Qual então o sentido da pesquisa redundante? Será
o de apenas manter um campo em aberto, um campo de trabalho ou
apenas funciona como elementos de propaganda a partir do valor da
pesquisa científica?
No esporte competitivo, o atleta treina com objetivos de curto prazo
e o treinamento regula-se por objetivos mais ou menos imediatos a
serem alcançados em provas e competições. A tentação de levar o desempenho ao limite (desafio) e a própria repetição (estimulação) podem, como já é reconhecido, gerar lesões e até doenças. A prática da
atividade física com objetivos estéticos, por sua vez, deve demonstrar
seus efeitos benéficos no curto ou médio prazo, aproximando crescentemente o corpo da ou do praticante dos padrões desejados na
modificação das formas vistas no espelho, nas medidas da avaliação
funcional e nas roupas ou no comentário dos outros. Assim, passam a
serem altamente valorizados os quilos ou centímetros perdidos, poder
usar uma calça comprada tempos atrás, a imagem no espelho e os
comentários favoráveis das pessoas (LOVISOLO, 1997 e LOVISOLO,
2006). Ao contrário, os efeitos benéficos, protetores, antientrópicos,
da atividade física para recuperação, conservação e melhoria da saúde
se situam no longo prazo e não são detectados imediatamente, sobretudo se realizada sob orientação dos programas de atividades ditos
moderados. Os benéficos são silenciosos e não se acumulam, deixam
de agir quando a prática se suspende. Em contrapartida, há consenso
sobre a perda dos supostos efeitos benéficos quando a atividade cessa
(MIRA, 2000). Assim, a atividade física não parece constituir um capital que se acumula sob o ponto de vista da saúde. Mira, além de destacar a não acumulação do capital atividade física, realizou de forma
fundamentada um pergunta central: estamos saudáveis por fazermos
atividade física ou fazemos atividade física por estarmos saudáveis? De
fato, há dúvidas sérias sobre a direção da causalidade e, mais ainda,
quando os resultados são produtos de pesquisas epidemiológicas, em
que a variável temporal, anterioridade de uma variável sobre outra,
não é controlada.
Tentarei insinuar neste ensaio que a obsessão por provar os benefícios e por desenvolver protocolos que maximizem os efeitos e gerem
adesão contribui para que pensemos o fenômeno da “não adesão” de
118
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
forma pouco criativa e, sobretudo, que essa obsessão cria obstáculos
epistemológicos para o entendimento da atividade física pela própria
fisiologia. Sugerirei que retomemos a biologia da fisiologia e que a
reintegremos de forma explícita na teoria da evolução. Argumentarei
a partir do que considero consensual, isto é, dos acordos partilhados
no campo das relações entre atividade física e saúde.
Observo que a própria linguagem usada, “adesão” e “não adesão”,
pareceria implicar o campo da consciência (cuja base é a tradição
religiosa e política) e, portanto, privilegiar a catequese, a educação, a
informação ou a propaganda. Vários autores já descreveram a pastoral
da saúde, da higiene, da atividade física e da terceira idade. Estaríamos diante de um sujeito fisiologicamente inativo e deslocando o
campo da fisiologia quando usamos essas expressões que pertencem
a outras tradições? Ao invés, se usarmos o termo “resistência”, um termo muito mais próximo da física e da fisiologia, estaremos indicando
duas coisas: por um lado, a possibilidade de intervenção de algum
mecanismo fisiológico (resistência à insulina, resistência ao esforço,
como exemplos) e, por outro, a atividade fisiológica do sujeito em
contraposição à não incidência fisiológica que transmite a categoria de
“não adesão”. O deslocamento massivo para a “não adesão” propõe
que seja lido (a) como ausência da reflexão da fisiologia e (b) como
eliminação de um sintoma clínico. O deslocamento estaria ocultando
problemas para a teoria canônica das benesses do exercício físico? Ou
será que a resistência tem um papel funcional, como alguma doença
protege de outras, geralmente menos tratáveis, como demonstrou de
forma clássica Canguilhem (2000)?
Devo esclarecer, para não ser mal-entendido, que me situo no campo oposto daqueles que desejam banir os esportes seja qual for sua
natureza, competitiva ou de lazer, ou que apostam em algum deles
denegrindo o outro. Mais ainda, valorizo a disciplina e o esforço de superação do atleta, mesmo à custa das dores e de suas mazelas, e o trabalho de orientação dos técnicos e treinadores competentes. Admiro a
beleza do gesto esportivo que resulta, habitualmente, da combinação
do talento com a disciplina. Creio que resultados de excelência no
campo das ciências e das artes também demandam tipos semelhantes
de combinação e, quase sempre, uma dedicação esforçada e uma
vontade poderosa. Admiro também as pessoas que, com disciplina e
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
119
esforço, fazem algum tipo de atividade física para manter a saúde e
mesmo para aprimorar a proporcionalidade das formas (LOVISOLO,
1995, 1997 e 2000). Entretanto, não pretendo fazer de minhas admirações ou gostos uma imposição, uma norma, e me preocupa encontrar razões substantivas para entender a conduta prática que rejeita
ou recusa a atividade física. Tentarei que o leitor me acompanhe na
procura de razões substantivas, biológicas e fisiológicas, para o “não”,
para a recusa. Não estou totalmente satisfeito com a fisiologia do “sim”
e creio que devemos alongar o campo de inquirição e reflexão para
uma fisiologia do “não”. Em outras palavras, focar os obstáculos fisiológicos para a prática da atividade física.
As bases epidemiológicas da relação positiva são altamente conhecidas e duas delas se destacam. Por um lado, as relações entre atividade física, classificada por algum critério de intensidade, e a esperança
de vida e o controle de doenças, especialmente as degenerativas.
Por outro, as relações entre o Índice de Massa Corporal (IMC), de
Quetelet, e as mesmas variáveis dependentes. Dois tipos de efeitos
salutares são habitualmente destacados: o de prevenir doenças, especialmente cardiovasculares, e o de conservar funções como força,
resistência e elasticidade, que diminuiriam significativamente com a
velhice. O efeito conservador é situado habitualmente no contexto
mais geral da autonomia do idoso, pois a conservação das funções reduziria a dependência do idoso. Sedentarismo e obesidade, embora
sejam coisas diferentes, aparecem como faces da mesma moeda em
termos de resposta, pois a atividade física combateria ambos os males
(embora existam vozes que duvidam da eficácia isolada do exercício
e lhe outorgam um peso muito menor no controle da obesidade do
que à dieta, às cirurgias ou recomendam a combinação no estilo de
vida saudável).
A tarefa central do interventor ou educador físico, portanto, é a
de desenvolver o hábito da atividade física sistemática, ainda que
moderada, na população, embora uma parcela dos promotores, paradoxalmente, possa ser qualificada como sedentária. A fórmula da
“vida ativa” agrega os objetivos de organismos nacionais e internacionais de saúde e propõe criar adesão à atividade física sistemática
que, defendem alguns, deveria também ser objetivo para a atividade
física escolar.
120
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
O que seria consenso torna-se então uma espécie de obsessão.
Para um antropólogo marciano, diante de tanto consenso, surgiria a
questão: para que tanto esforço em provar os benefícios, amplamente
aceitos, da atividade física? Do que a obsessão seria sinal, o que indicaria ou ocultaria?
Eu tenho observado, enquanto antropólogo não totalmente marciano, que a obsessão é provocada, sobretudo, pela insatisfação em face
dos baixos percentuais de praticantes sistemáticos, aliada ao crescimento da proporção de obesos na população. Os indicadores de adesão são considerados baixos para o conjunto da população, embora
os mesmos sejam diferenciados quando se consideram as distribuições
por gênero, idade, etnia e segmento social, além das diferenças de desenvolvimento entre nações e regiões. O aumento da obesidade é lido
como queda na atividade corporal na vida cotidiana que se agregaria
ao aumento da disponibilidade alimentar e a composições inadequadas. Assim, a pastoral da atividade física pesquisa e reitera argumentos
e propõe novos protocolos para convencer a população a assumir a
prática sistemática. Ao mesmo tempo, essa pastoral demanda mais e
melhor promoção da atividade física, e se desdobra em múltiplas pastorais: escolar, alimentar, da velhice (DRUMMOND, 2004) e estética,
entre outras, sendo a última justificada pela fórmula: “vício motivacional, porém virtude dos efeitos” (LOVISOLO, 2006).
As propostas dessas pastorais encaminharam-se na direção de promover a associação da atividade física com dimensões e efeitos de
prazer, com o intuito de atrair ou fidelizar os praticantes. Note-se
que a recomendação de atividade com prazer reconhece que não
há prazer intrínseco nem geral. A postulação do prazer é mais um
sinal da desconformidade com os indicadores da prática, além de ser
pelo menos paradoxal, pois muitos “prazeres” são qualificados como
vícios negativos para a saúde, como álcool, cigarro, drogas, televisão,
inatividade e comidas e, alguns deles, no passado, foram vistos como
pecados. Podemos até decidir não termos filhos para evitar o abandono de vários prazeres da vida que seus cuidados demandam. Dizem
que Epicuro recomendava isso, sorte que seus pais não aderiram a sua
recomendação! Assim, nem todo prazer é fisiologicamente funcional
para a saúde ou moral sob o ponto de vista social. Temos de reconhecer que se está recomendando um “vício bom”, para provocar a ade-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
121
são e isto é, pelo menos, paradoxal. No campo da ideologia da “vida
ativa” o prazer pareceria um dever ser até do trabalho. Assim, temos
de lavar a louça com prazer. Creio que por baixo do pano transcorre a
ideia de que a saúde está associada ao prazer que seria proporcionado
pelos “vícios bons”. As dores, os sofrimentos, o desprazer seriam, logicamente, contrários à saúde e, talvez, à vida. Observo que na música
e na literatura popular, cigarro e álcool foram associados ao prazer e,
ainda, existem exemplos de associação da droga com o prazer. Se isso
for possível, enfatizar o prazer pode ser uma faca de dois gumes.
Estamos perante o “hedonismo dos praticantes”. Supõe-se que a
variação da atividade, a inclusão do lúdico e da sociabilidade, o relacionamento afetivo harmonioso entre instrutores e praticantes, entre
outros fatores, colaboram para a adesão e a manutenção da prática.
Os gerentes de academias vivem procurando as variações das atividades e dos equipamentos como formas de atrair e reter sua clientela.
Pareceria que seus clientes perdem o prazer na monotonia e, então,
mudar sempre é a palavra de ordem. Surpreender com a novidade
para derrotar a resistência crescente que parece afiliada com a monotonia. Mais ainda, muitos novos equipamentos são apresentados
como redutores do esforço ou maximizadores dos efeitos da prática. A
publicidade dos aparelhos promete a redução do peso e das medidas
e, por vezes, apresenta corpos belos e poderosos obtidos com esforço
reduzido. Assim, temos vários indicadores que dizem: se queremos
adesão temos de reduzir o esforço; se queremos adesão temos de
fazer prazeroso o esforço da atividade física, se pretendermos adesão
teremos de seduzir os praticantes.
Estamos, portanto, distantes das propostas originais de Cooper para
desenvolver a aptidão física baseada na disciplina e no esforço (LOVISOLO, 2000). Além disso, seus rígidos indicadores de avaliação foram em grande parte esquecidos no campo da atividade física para a
saúde, quer sob o nome de “atividade moderada” ou de “vida ativa”.
O discurso sobre os benefícios reconhece em suas propostas, mais
implícitas do que explícitas, que para uma grande parcela da população manter a prática é difícil, pois se torna cansativa, entediante,
rotineira. Assim, a prática deve incluir a dimensão do prazer ou do
antitédio. Em outros termos, além de fazer atividade física, as pessoas
devem se divertir, como supomos que ocorre com os amadores na
122
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
prática dos esportes, por exemplo, nas peladas dos fins de semana,
para ficar “aderidos” ou habituados. A diversão ou o prazer pode ser
lido também como uma forma de redução da disciplina, do esforço e
da vontade necessária. Observe-se que o discurso que afirma o prazer
e o que afirma a vontade podem conviver, embora sejam contraditórios, pois, para o senso comum, quando há prazer não é necessária
a vontade e, sem prazer, haja vontade. Este jogo linguístico faz lembrar a formulação bem-humorada de Marx Twain: trabalho é quando
fazemos alguma coisa por obrigação, lazer é quando fazemos o que
desejamos.
Entre os praticantes sistemáticos e intensivos, sobretudo entre os que
seguem de alguma forma o modelo “cooperiano”, e que constituem
a parcela menor da população, não raro encontram-se declarações
que associam a corrida a um “vício”, a uma “cachaça”, na linguagem popular brasileira. Reconhecem, por exemplo, a dependência
em relação à corrida diária e declaram que sem ela se sentem mal.
No contexto do protocolo de Cooper, o vício foi visto e cantado como
positivo. Hoje surgem dúvidas sobre os benefícios de uma prática que
parece se tornar compulsiva, pari passu com o reconhecimento dos
efeitos não salutares do treinamento no esporte competitivo (LOVISOLO, 2000).
Destaquemos, no entanto, que os praticantes que se estimulam com
a corrida, por exemplo, não parecem reconhecer a necessidade do
esforço, da disciplina ou da vontade. Pareceria que para eles é fácil
correr doze quilômetros por dia. Da mesma forma que parece ser fácil
para alguns dominar a leitura, enquanto outros sofrem para adquirir
um domínio, por vezes, até precário. Se a mente é como um canivete
suíço, a qualidade diferencial de seus instrumentos pode incidir nas
habilidades e competências mentais dos indivíduos (MITHEN, 1998:
cap. 6). São conhecidas as diferenças entre crianças do mesmo contexto social para adquirirem habilidades e competências básicas ou
mínimas no campo da leitura, da escrita e do cálculo. Comentários
equivalentes poderiam ser feitos em relação às matemáticas ou para
as formas argumentativas e lógicas do pensar ou para as habilidades
no domínio da bola, entre tantas outras. Assim, parece que mesmo no
campo da atividade física acreditar na igualdade da “tábula rasa”, mesmo que pensada como desempenhos físicos mínimos ou básicos, não
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
123
nos levará à tão sonhada adesão. Vejam-se os comentários de Pinker
(2004) sobre os problemas e obstáculos que se derivam do a priori
da tábula rasa. No campo da seleção e formação de atletas a tábula
rasa não existe e os indivíduos são altamente diferenciados em termos
de morfologia, fisiologia, neurofisiologia, psicologia e, até, formas de
sociabilidade. Estamos no mundo das diferenças tanto para selecionar
quanto para orientar os protocolos de treinamento (no mundo da diferencia que faz a diferencia, por menor que ela seja). Portanto, a intervenção, de saúde e desempenho, embora suponha a mesma base teórica, implica pressupostos antagônicos (tábula rasa versus tábula não
rasa, igualdade versus diferenças nas caracterizações dos indivíduos e
nos protocolos).
Proponho partir de um princípio básico: para muitos a atividade
física significa montantes de esforços que não estão dispostos a realizar. A fisiologia do esforço deveria nos proporcionar explicações em
termos biológicos para a recusa, a rejeição ou as tentativas que levam
ao abandono, portanto, deveriam ser explicitados os mecanismos específicos ainda que condicionados geneticamente.
Na tentativa de explicação do efeito de adicção procurou-se vincular a atividade, em altos níveis de intensidade, com a geração de
substâncias estimuladoras do sistema nervoso que provocariam bemestar. Assim, a primeira indicação é que a atividade física funciona
como geradora de “drogas” além de certa intensidade de sua prática.
Duas observações merecem ser feitas. A primeira, os praticantes que
não alcançam a intensidade necessária para a geração das substâncias
estimuladoras apenas teriam castigo, nunca acederiam aos prêmios
proporcionados pelas drogas autogeradas. Quais sob o ponto de vista
fisiológico seriam os limiares de intensidade a partir do qual as substâncias recompensadoras são produzidas? Em segundo lugar, o fato
de as substâncias serem geradas pelo organismo não significa que tal
geração seja em si positiva, dado que há disfuncionalidades do excesso (hiper) e da escassez (hipo). O organismo gera a anormalidade
fisiológica ou a doença que nem sempre resulta do acidente ou da
interiorização de agressores externos. Assim, afirmar que a produção
das substâncias é um processo natural do organismo nada diz sobre
suas virtudes, como alguns parecem pensar. Contudo, se aceita que
estaríamos diante do “vício bom”, em contraposição aos vícios ali-
124
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
mentares ruins como drogas, cigarro, álcool e o “vício da inatividade”
ou “sedentarismo”. Existiriam vícios bons ou formas boas de dependência? Dom Quixote não ficou doido pelo vício bom da leitura? E,
antes dele, Santo Agostinho pensava que a dedicação intensiva a uma
paixão, hoje diríamos a um vício, era nociva e devia ser compensada,
contrapesada, por outras paixões. O próprio Cooper afirmou nos seus
últimos trabalhos que os que correm mais de vinte e quatro quilômetros por semana o fazem por razões outras do que a saúde. Assim,
creio que nos deveríamos perguntar se a “hiperatividade” física não
seria o lado oposto do sedentarismo, da “hipoatividade”. O que indica ou oculta a hiperatividade? Ambas as condutas se desviariam do
normal ou do equilíbrio? Somente o moderado seria bom, mesmo
quando entendido como medíocre?
Há um par de dados brutos e conflitantes que não vejo como seriam
integrados com franqueza, e com confiança, pela fisiologia. O primeiro é que alcançar o condicionamento supõe um caminho doloroso,
suado, esforçado e sua perda é fácil, rápida, sem esforço. O segundo
é que, de forma dominante, engordar é fácil e emagrecer muito difícil
em contextos de abundância.
Podemos afirmar que a genética nos conformou tendencialmente
para engordar, para acumular energias em contextos caracterizados
pela afluência alimentar cíclica. E talvez, como Harris (1984) apontou,
a predisposição para considerar como comida a “gordura” é universal.
Observo que as crenças dos primitivos parecem ecoar nas propostas
do aumento da ingestão de gorduras e proteínas para, por exemplo,
aumentar os níveis de testosterona, no caso dos homens.
Aqui a biologia se torna um poderoso instrumento de integração
narrativa. Entretanto, o que a biologia nos estaria dizendo quando se
faz tão penoso alcançar o condicionamento? Estaria afirmando que geneticamente o esforço não vale a pena? O custo não deveria também
ser integrado na narrativa fisiológica? Teríamos genes que, ao contrário
do caso da obesidade, resistiriam ao condicionamento e sinalizariam
a resistência no esforço, nas dores do treino? A base do sedentarismo,
da recusa à atividade, estaria geneticamente codificada? Teríamos de
modificar geneticamente o sedentário e o obeso?
Os promotores da atividade física raramente enfrentam perguntas
desse teor. Mais frequentemente, acusam a sociedade industrial de,
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
125
com seus engenhos poupadores de esforços, na esfera do trabalho
e da vida cotidiana, multiplicar os efeitos negativos da falta de atividade física. Alimentação abundante, composição inadequada e falta
de atividade gerariam a obesidade. O rolo compressor para que as
pessoas pratiquem atividade física possui argumentos poderosos, convincentes. Contudo, a maioria resiste! Talvez por não termos respostas
convincentes para as perguntas que fazemos a partir de observações
banais da experiência pessoal?
2. oMiTiNDo E ESQUECENDo
A obsessão por provar os benefícios da relação entre a atividade física e a saúde, e a compulsão por divulgá-la, faz esquecer o cenário no
qual se dá a insatisfação com a prática. Vejamos alguns dos elementos
desse cenário.
Em primeiro lugar, a obsessão leva a esquecer que a relação positiva entre atividade física e saúde, especialmente a moderada, já fora
formulada pelos gregos e repetida ao longo dos últimos 2.500 anos,
como apontei em outros trabalhos (LOVISOLO, 2000). Estamos, portanto, diante de uma tradição de conhecimento que as pesquisas apenas reforçam e especificam, mas pouco acrescentam ao consenso de
que o corpo se beneficia da atividade física. Atribui-se a Aristóteles a
distinção entre o caráter negativo do treinamento do atleta e o positivo da atividade moderada, especialmente a caminhada, para a saúde
(LOVISOLO, 2000). Contam os biógrafos, com toda naturalidade, que
o mestre Comênio, doente, iniciou uma longa caminhada para recuperar sua saúde, o que se deu no século XVII.
Em segundo lugar, que, nas últimas décadas, a recomendação da
atividade física para a saúde tornou-se matéria corriqueira, e até cansativa, dos diferentes meios de comunicação. Assim, seria difícil afirmarmos que a recusa da prática se baseia em falta de informação,
promoção, propaganda, conscientização, “inculcação” ou como se
queira denominar. Nada indica, no entanto, que maior publicidade
mudará os dados da prática, embora o coro dos contentes insista até o
cansaço na necessidade da informação.
Observo que ainda domina a crença popular, ou afirmação rotineira,
no poder dos meios de comunicação para modelar tanto nossas cren-
126
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
ças quanto nossas condutas. Os defensores da “mais informação” ou
“mais propaganda” pareceriam estar imbuídos dessa crença popular,
embora poucos comunicólogos hoje confiem no poder dos meios de
comunicação de entrar sob nossa pele como uma “agulha hipodérmica”. Tal crença, entretanto, funciona como obstáculo epistemológico:
não permite reconhecer que há informação e promoção mediática
até em demasia da atividade física, embora a sucessão de campanhas
e de mensagens pareça fracassar. Os índices de praticantes não são
satisfatórios para os promotores, embora de praxe sejam eles os que
os elaboram. A confiança no poder da mídia, aliada da obsessão, leva
a demandar mais e mais “inculcação” pela crença na população, ao
invés de se elaborarem perguntas de pesquisa que permitam entender
a resistência à prática: a recusa, o “não”.
Em terceiro lugar, que a fórmula ideológica dominante de felicidade
é juventude, beleza e saúde (Jubesa) e que a atividade física aparece
altamente recomendada, quase obrigatória, para a obtenção desses
valores (LOVISOLO, 2006). Assim, além da saúde, valores tão significativos como juventude e beleza reforçam o esquema ideológico da
adesão, embora gerando não poucas contradições em termos de avaliação moral das intenções ou motivações para a atividade física.
Estamos, portanto, diante de um “fato” histórico e socialmente construído, que pouco se questiona: a atividade física é boa! Da mesma forma que não se questiona a necessidade de reduzir o consumo
de gorduras na alimentação, de comer verduras e frutas frescas e de
beber líquido em quantidades elevadas. Estamos diante de lugarescomuns, apresentados como fatos comuns. Entre esses fatos, está a
crença no poder quase absoluto da mídia. Fora tão forte o seu poder,
todos deveríamos dedicar-nos à prática, pelo menos moderada, da atividade física, para atingirmos as metas de juventude, beleza e saúde. A
insatisfação dos profissionais da atividade física com o grau de adesão
e sua obsessão em inculcá-la indicam que, para as expectativas da categoria profissional, a grande maioria da população não está fazendo
aquilo que é um fato diuturnamente afirmado e divulgado pelos meios
de comunicação. Por outro lado, a obsessão com a pesquisa, tanto
em termos de atividade física como de dietas, está gerando resultados
difíceis de serem assimilados e compatibilizados. Com efeito, assistese à proliferação de matérias contraditórias, sistematicamente reali-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
127
zadas pela mídia, sobre a atividade física e as dietas. Recentemente,
uma revista semanal teve como capa a denúncia sobre o que chama a
“Diferença das dietas”. A revista relata como as certezas se tornaram
dúvidas e o que seria benéfico perdeu esse caráter. O significativo é
que salienta o deslocamento dos fundamentos tradicionais e universais da dieta para a diferenciação entre homens e mulheres baseada,
além da clássica morfologia, na necessidade de geração de dopamina
e serotonina. Assim, os estudos neurofisiológicos aparecem com novas
referências para a dietética. A natureza é reintroduzida como base nas
diferenças entre homens e mulheres, embora isto possa desagradar aos
defensores das diferenças como meros produtos históricos ou construções culturais. A tábula rasa começa a rachar em várias direções.
Diante desses fatos (talvez meros factóides), deveríamos reconhecer
que nossa crença sobre a força inculcadora dos meios de comunicação merece ser revista criticamente. Os teóricos da comunicação há
várias décadas criticam tal crença salientando, sobretudo, a diversidade das formas de recepção. Contudo, eles tiveram menor êxito em
desmontar a velha teoria da “agulha hipodérmica” do que tiveram em
criar sua aceitação popular, e estão em débito com o esclarecimento.
A crença no poder da mídia é dominante na própria educação física,
como podemos comprovar cotidianamente na sala de aula da graduação e da pós-graduação.
A obsessão e a ansiedade com que se buscam evidências para a dobradinha atividade/saúde são provocadas pela sensação de fracasso. A
obsessão leva ao esquecimento da longa tradição de promoção da atividade física, da também longa crença no poder dos meios de comunicação e do valor e difusão da fórmula Jubesa. O esquecimento faz
recomendar mais daquilo que já foi distribuído no tempo e no espaço.
A sensação de fracasso se traduz em impotência ou atividade frenética
para acumular evidências a favor da prática, para exigir condições de
infraestrutura para as práticas e maior divulgação de seus benefícios.
Ou seja, insiste-se em bater nas mesmas teclas, ao invés de se parar e
perguntar: quais são as razões fisiológicas para que a maioria das pessoas não faça uma atividade que considera tão benéfica? Como uma
parcela significativa de ex-atletas se torna sedentária?
Podemos estar presenciando um caso típico de motivações em
competição? As pessoas convivem, por um lado, com a representa-
128
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
ção social relativamente consolidada, no plano discursivo, de relações
positivas entre atividade física e saúde, e, por outro, constatam praticamente a demora na chegada dos efeitos prometidos, a efemeridade dos mesmos e a presença da dor, do tédio, do cansaço, enfim,
de todos os percalços e preços do envolvimento com as proposições
inculcadas por outros? E, então, o que a fisiologia que fundamenta a
relação positiva tem a dizer?
3. ExPliCANDo ‘AD HoC’ A FAlTA DE ADESÃo
Ao invés de se fazerem perguntas radicais, direcionadas para a raiz
do problema, listam-se fatores ad hoc para explicar a insatisfação com
os percentuais de praticantes. Falta de consciência ou educação, falta
de condições, falta de tempo, falta de prazer nas atividades física, falta
de adequação das propostas e de seus protocolos às necessidades das
pessoas, entre outros, são os mais mencionados e contemplados na
elaboração de novas formas de intervenção. As propostas formuladas
nas últimas duas décadas lidam com um ou mais dos fatores mencionados. E deslancham-se campanhas privadas e públicas, destinadas a
motivar a população para a prática da atividade física. Os resultados,
entretanto, são pouco animadores. Por que será que a prédica, antiga
e massiva, dos benefícios da atividade física sistemática é pouco eficiente na criação da adesão a sua prática? Será que sempre as propostas e a publicidade estão erradas?
Creio que quando a educação física pesquisa os fatores ad hoc ou
entende a rejeição como multifatorial está errando o alvo do entendimento. Tenho sugerido que as pessoas enunciam respostas precodificadas, “fatores”, para lidar com a “culpa” de não estarem seguindo a
norma de proteger sua saúde mediante a atividade física. Assim, dizer
que as pessoas não têm tempo ou condições tem pouco valor, pois é
situar-se no círculo das explicações ad hoc que aparecem nos meios de
comunicação (LOVISOLO, 2002). Em outros termos, recebemos das
pessoas, enquanto respostas, as informações que divulgamos. Ficamos
fechados diante de respostas que poderiam fazer pensar de modo um
pouco diferente, especialmente aquelas que implicam lógicas diferentes das dos promotores da atividade física. Eu perguntaria: temos feito
pesquisas para compreender os sentidos e emoções, por exemplo, da
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
129
família de obesos e sedentários? É possível escolher os prazeres da gastronomia em detrimento dos do movimento corporal ou do sexo? Ou
os prazeres do presente ao invés da segurança no futuro? Se os arautos
do futuro incerto nos bombardeiam com seus negros prognósticos, para
que apostar no futuro? Um corpo arredondado não poderia ser sedutor
e erótico, se o ser é esférico como já foi pensado? Fazer atividade física
com objetivo de saúde é como poupar para o futuro, para a velhice.
Será que provoca muito mais bem-estar a conversa com os amigos regada a cerveja e linguiça frita que transpirar na esteira? Os historiadores
podem listar um antigo e numeroso conjunto de afirmação sobre o
prazer de conversar, de jogar conversa fora. Com a cerveja, nossa vontade de conversar é ainda melhor. Será que a maioria prefere gastar no
presente, enfim, procrastinar? Sabemos pouco sobre essas coisas, porém, temos de reconhecer que estamos trabalhando com significados
sociais e que os estamos pesquisando de forma talvez grosseira. Temos
de enfatizar e refinar o entendimento do “não” ao invés de reiterar pesquisas sobre a positividade, sobre o “sim” da atividade física e o não da
obesidade. Vários filósofos e ensaístas nos últimos anos têm se detido
sobre o gordo, sobre gula e até sobre o ventre dos filósofos e dimensões que merecem resgate foram focadas; nem sempre a obesidade foi
um destino maldito para as pessoas (COUPRY, 1990; ONFRAY, 1999a
e ONFRAY 1999b). Precisamos do entendimento, mais fisiológico do
que cultural do “não”, para fundamentar as recomendações para a
saúde a partir do entendimento de suas recusas.
4. ARGUMENTANDo PARA ESCoVAR oS DENTES
E PARA FAzER ATiViDADE FíSiCA
No campo da saúde vigem algumas tradições de “inculcação” bemfeita. A propaganda para escovarmos os dentes, por exemplo, que
é muito mais recente do que a da atividade física, e com menores
investimentos, teve enorme êxito. Os produtores de creme dental publicitaram o sorriso maravilhoso, da mesma forma que os produtores
de aparelhos de ginástica publicitam ventres fantásticos, bíceps estonteantes, seios e coxas com as quais podemos sonhar. Escovar os dentes
deixou de ser publicitado e passamos a nos concentrar nos modos de
escovar os dentes, na limpeza interdental, na qualidade diferencial
130
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
de um creme dental sobre outro (o creme Total tornou-se moda!).
Poderíamos, heuristicamente, fazer-nos a mesma questão em relação
à vacinação: passamos da revolta, historiada por Murilo de Carvalho,
em Os bestializados, para a procura. A televisão nos mostra as famílias
de canoa nos cantos do Brasil levando suas crianças para serem vacinadas. Como a campanha deu certo no caso de escovar os dentes e da
vacina e não deu certo no caso da atividade física sistemática? Creio
que este deveria ser o tipo de questão comparativa se pretendermos
entender a baixa adesão, e para isto não se pode abandonar o plano
da experiência dos sujeitos e suas avaliações com essas atividades.
A campanha para escovar os dentes teve grande êxito em termos
comparativos, tanto quanto o enriquecimento da água com flúor. De
fato, saibamos ou não, cuidamos de nossos dentes quando levamos
água à boca, embora não façamos isso para cuidar dos dentes! Não há
nada semelhante no campo das atividades corporais. Vejamos algumas
explicações para imensa adesão ao hábito. Em princípio, e seguindo
o modo de pensar dos economistas, importa salientar que o custo de
escovar os dentes é relativamente baixo e grande são seus benefícios
que se manifestam em termos de bem-estar. Necessitamos de água,
escova, creme, fio dental e poucos minutos ao dia tentando seguir as
prescrições dos especialistas. Sob o ponto de vista existencial, a experiência da dor de dentes e o medo que nos provoca estão bastante
generalizados. Assim, com pouco esforço tentamos nos livrar de experiência tão desagradável ao mesmo tempo que fazemos mais branco
nosso sorriso. Como não lembrar Tom Hanks tentando arrancar um
dente na ilha solitária! Portanto, escovar os dentes responde à fórmula
de: pouco esforço, grandes benefícios!
A relação custo versus benefício merece ser avaliada com circunstância. Veja-se o caso da adesão às campanhas de vacinação. Sabemos
que no início houve recusa à vacinação por várias razões: baixa eficiência, dores e febre, entre outros males. Passei pelas dores da vacina
na minha infância, depois pela vacina quase sem efeitos observáveis
pelo próprio receptor. Diante da melhora das vacinas, a adesão cresceu rapidamente. Ou seja, a melhora provocou uma tremenda queda
nos custos subjetivos, acelerando a adesão.
Podemos então pensar que o custo de escovar os dentes e da vacinação preventiva é relativamente baixo quando comparado ao custo
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
131
de realizar atividade física, tanto sob o ponto de vista do tempo “gasto”
quanto sob o dos investimentos em equipamento e/ou academias. Um
economista reducionista afirmaria que as equações de custo/benefício
explicariam o investimento na atividade de proteção dental, massiva,
versus o baixo investimento da população como um todo na atividade
física sistemática. Mais ainda, temos geralmente uma sensação de prazer ou gosto quando escovamos os dentes, favorecida pela possibilidade de encontrarmos no mercado a escova e o creme dental de nossa
preferência. O hábito se reforça a si mesmo. Escovas e cremes dentais
ocupam lugar de destaque nos supermercados e farmácias. É tudo tão
fácil que, mesmo que sejamos céticos em relação aos efeitos benéficos
da prática de escovar os dentes, a prudência nos leva a fazê-lo, sobretudo sendo tão fácil, implicando esforços tão pequenos! A prudência
parece contar com menos força diante de uma maravilhosa torta de
chocolate, comemos a torta e nos prometemos fazer dieta amanhã, ou
diante da perspectiva de realizar atividade física, não a fazemos e nos
prometemos começar na próxima segunda.
Assim, a questão parece que se inverte: deveríamos tentar explicar
a conduta dos compulsivos pela atividade física. Como alguém chega
a ser viciado no esforço de correr mais de três vezes por semana?
Como alguém chega a ser viciado em transpirar na academia todos os
dias, durante horas? A inversão da questão me parece uma forma de
superar o obstáculo epistemológico. Temos que deixar de pensar que
o normal e bom é aquilo que se define como funcional sob o ponto
de vista fisiológico de prolongar a vida ou manter a autonomia. Estes
valores têm muito mais cara de cultura do que de biologia, muito mais
presença do desejo de durabilidade do que de conceitos fisiológicos.
Por que seria fisiológica ou biologicamente normal viver mais, adoecer menos na velhice e manter a autonomia? A mudança nas “receitas” para atingirmos esses valores ou objetivos sociais indicaria que
a fisiologia, e a medicina, estão, nas suas pesquisas, profundamente
influenciadas pelos valores que dão origem às receitas, apesar de se
considerarem “científicas”, no sentido de livres de valores sociais? Os
valores em pauta não fazem sentido para a teoria da evolução e se
afirma que nada faz sentido em biologia sem ela.
A expressão “para ganhar dois anos de vida com a atividade física é
necessário perder muito mais tempo realizando-a” expressa o ponto
132
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
de vista de uma economia de migalhas. Mais ainda quando as pesquisas indicam que o efeito de proteção desaparece rapidamente quando
cessa a atividade física; a prática, portanto, não se torna tesouro nem
capital (MIRA, 2000). E nem vacina!
Eu tenho sugerido a hipótese de que as recomendações das práticas
ditas moderadas, um conjunto amplo e inconsistente de atividades
corporais, resultaram muito mais da recusa das populações à prática
sistemática ou intensiva, do que das considerações fisiológicas (teóricas) ou epidemiológicas (empíricas) sobre seus benefícios. Entretanto,
parte considerável dos profissionais da área da educação física, que
acreditam nos efeitos benéficos da atividade sistemática e intensa,
olha com suspeitas para as práticas ditas moderadas, desconfia de sua
eficiência para gerar os efeitos protetores que se lhe atribuem. Eles
compartilham uma longa experiência psicológica que afirma: sem esforço não existe resultado! No caso da atividade física, a dor sempre
foi um indicador do esforço de alongar, de estimular o músculo, de
aumentar a resistência. Se a procura da dor é um destempero da existência, a orientação pela ausência de qualquer dor é uma redução da
mesma. Parece que o equilíbrio entre dor e não dor deveria orientarnos. Diria que uma boa parcela dos médicos clínicos comunga do ideal do moderado, sobretudo, da caminhada realizada em nível baixo
ou moderado de exigência. Creio que a crença resulta muito mais da
tradição do que da observância das correlações na clínica e, talvez, do
mero raciocínio de que caminhar não faz mal a ninguém e o paciente
sente que está fazendo alguma coisa. É possível que a recomendação
da caminhada e sua realização conformem um placebo. Os placebos
são importantes, não os eliminaria. Seria o placebo a forma dominante
da bruxaria científica? Não sei. O que podemos afirmar é que, ainda
no caso dos placebos, os modernos procuram demonstrar que são
resultados de pesquisa científica. Será que o ato de mostrar dados de
pesquisa favoráveis à atividade física poderia ser similar ao punhado
de penas com sangue que o bruxo cospe para demonstrar que tirou
o mal do corpo? Estaríamos diante da eficácia simbólica do placebo
da atividade física e pela qual seria suficiente a consciência de sua
importância para existirem efeitos práticos? Creio que a obra de Fraga
(2006) gera elementos que fundamentariam uma resposta positiva.
Precisamos, no entanto, dar conta da evidente contradição entre as
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
133
crenças nos benefícios protetores da prática e a baixa adesão à mesma.
Como deixamos de fazer aquilo que é bom para o corpo? Habitualmente entendemos que os quadros patológicos significam um percentual pequeno de portadores no total da população – a anorexia, por
exemplo, quando vista como abstinência alimentar. No caso da falta
da atividade física, da abstinência de esforço, a ideia de patologia não
faria sentido, dado que a maioria teria esse sintoma. Considerar seus
portadores como patológicos significaria entrar no mundo fantástico
de O Alienista, de Machado de Assis, onde todos são internados. A
diferença é que o médico machadiano, num átimo de lucidez, flagrou
o equívoco do tratamento, mandou soltar a todos e foi internar-se na
Casa Verde.
O abstinente do esforço pode ser considerado patológico? Economizar, num sentido muito básico, significa poupar esforços. Poupar o
esforço físico é patológico ou apenas economia fisiológica? Se partirmos da fisiologia, temos que reconhecer que o esforço se vincula aos
mecanismos básicos de ataque ou fuga, de raiva ou medo, de uma alta
explosão emocional que tudo invade e que se faz dona de nosso corpo e mente permitindo a realização de esforços que não faríamos sem
ela. A excitação nos domina. Quando afirmamos que faltou raça aos
atletas, não estamos dizendo que a emoção, que possibilita o esforço,
esteve ausente? Ou que estavam apáticos, pouco excitados pelo objetivo de ganhar? Então, qual o significado fisiológico de realizar esforços
sem o correlato emocional ou sem excitação? Temos relações sexuais
quando não estamos excitados ou emocionados? Será que o corpo fisiológico recusa o esforço sem emoção ou excitação? A emoção pode
tanto ser resultado de estímulos externos quanto internos. Podemos
fugir muito tempo do urso, porém, também podemos correr muito
tempo na esteira porque nossa mulher nos abandonou ou para que
não nos abandone? Fugir da solidão pode ser muito mais necessário na
cidade do que fugir do urso.
No campo da fisiologia, a contradição desdobra-se sob o ponto de
vista das explicações: os benefícios se explicam fisiologicamente, enquanto a recusa ou a abstinência se justifica mediante variáveis psicológicas ou sociológicas. Tentemos ser unitários, superar a dualidade
das explicações. Em outros termos, estas duas observações não conseguem ser conjugadas na mesma teoria. Enquanto os benefícios resul-
134
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
tam da aplicação dos conhecimentos da fisiologia e da epidemiologia,
a recusa da prática pretende ser explicada com variáveis da consciência, psicológicas ou sociais, ou por condições favoráveis ou não à
sua efetivação (tempo, equipamentos, etc.). Não conheço tentativas
de explicar a recusa ou o fugir da atividade física a partir de variáveis
fisiológicas em contextos de representações que lhe atribuem efeitos
benéficos de saúde. Insisto, não temos uma fisiologia do não! Eu não
conheço nenhuma teoria fisiológica que saliente, por exemplo, que as
pessoas com baixo VO2 rejeitem a prática aeróbia por terem altos custos, dores excessivas ou porque o cérebro lhes manda parar, pois fica
com pouco alimento, isto é, por razões fisiológicas, embora tal tipo de
rejeição pareça sensata para ser testada. Não conheço nenhum trabalho que apresente as relações entre a capacidade de hipertrofiar fibras
musculares e a conduta na atividade física. Digamos que pratico e não
hipertrofio o músculo na medida desejada ou o faço muito lentamente; se comparado a outros praticantes, para que continuar praticando?
Diferenças de respostas fisiológicas entre os atletas, diante do mesmo
programa de treinamento, parece ser uma boa razão para o uso do
doping que as compense. Não castigamos o uso dos óculos que corrige uma deficiência, entretanto castigamos o uso de drogas que tem o
mesmo sentido, por entendermos que sua função principal não é a de
compensar, mas ao contrário, ganhar uma vantagem adicional.
De fato, sob o ponto de vista fisiológico pressupõe-se que todos podem e devem fazer atividade física sistemática, mesmo quando há indicações de que as pessoas podem escolher, intuitivamente, tipos de
trabalho em função do menor ou maior esforço despendido para sua
realização, como na famosa pesquisa entre cobradores e motoristas
de ônibus em Londres. Lembremos que os primeiros apresentavam
melhores indicadores que os segundos e as primeiras interpretações
atribuíam os mesmos à maior atividade física dos cobradores. Os cobradores escolhiam o trabalho de maior esforço por disporem, com
anterioridade, de condições favoráveis ao mesmo. Então, existiria uma
escolha do trabalho em função do menor custo ou esforço fisiológico!
O forte e resistente podia no passado escolher o trabalho de estivador,
enquanto o fraco e pouco resistente procurava o emprego leve. Assim,
sob o ponto de vista fisiológico, dizemos que a atividade física é necessária para o funcionamento saudável do corpo e, sob o ponto de vista
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
135
social, temos interiorizado seu valor positivo no campo das representações. Entretanto, domina um percentual baixo de praticantes. Como
tal contradição ocorre? Será que a fisiologia foi invadida pela ideia da
igualdade democrática ou tábula rasa? Se assim for, não se teria abandonado o marco de sentido da teoria da evolução que afirma (não há
dois indivíduos iguais na mesma espécie) e valoriza as diferenças entre
os indivíduos de uma espécie (isto é bom para a espécie)? Assim, todos
podem e deveriam fazer atividade física, como todos podem e devem
votar! E, pior ainda, todos terão ótimos benefícios fazendo atividade
física! Sabemos que as relações elaboradas para a população não vigoram para cada indivíduo! Mas parece que fazemos de conta de que
vigoram! Creio que ainda não sabemos por não tentarmos outras perguntas que nos levem a outras estratégias de pesquisa.
A explicação da recusa é fraca por duas razões principais:
a) A publicidade conseguiu que as pessoas internalizem a positividade da relação entre prática e saúde, a tal ponto de se sentirem
culpáveis quando não realizam atividade física; são, portanto, conscientes e favoráveis à mesma.
b) É raro encontrar condições que realmente impeçam sujeitos saudáveis e livres de correr ou caminhar realizando o esforço que os
técnicos da prática estabelecem para cada condição individual (idade, gênero e condição física). Paremos, então, de listar fatores de
pouco peso para tentarmos explicar, no mesmo movimento, tanto a
não prática quanto seu vício. Da mesma forma que a imunidade e o
contágio devem ser explicados pela mesma teoria.
5. bUSCANDo A boA TEoRiA
A boa teoria integra dados empíricos de uma área de reflexão e
pesquisa. A teoria está viva quando novas relações entre conceitos
ou variáveis podem ser incorporadas aos seus mecanismos explicativos, na medida, então, que supera a existência de explicações ad
hoc de relações empíricas – que por vezes são as únicas que dominam uma área de conhecimento – ou de “hipóteses” que carecem de
qualquer possibilidade de produção de evidências. A teoria é melhor
ainda quando nos permite operar o mesmo conjunto sistemático de
explicações para dados aparentemente divergentes ou contraditórios,
136
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
aumentando a consistência das crenças científicas. Pelas razões anteriores, Gould (1999) escolhe a teoria de Alvarez, do desastre, para
explicar a desaparição dos dinossauros, pois há evidência de desastres
provocados por meteoros na presença do irídio, metal raro na Terra,
e, ao mesmo tempo, a teoria dá conta de outras desaparições que
ocorreram.
O problema teórico que se coloca é: qual abordagem permitiria
explicar simultaneamente os benefícios da prática da atividade física
e sua recusa, quando levamos em consideração a crença positiva nos
mesmos, e o vício da atividade? Qual teoria poderia integrar essas
observações, aparentemente contraditórias ou divergentes? Em minha
opinião, enquanto a fisiologia se recuse a fornecer uma resposta biológica para a recusa, refugiando-se em justificações internas (psicológicas) ou externas (condições), formuladas pelos próprios não praticantes (a partir de um círculo vicioso de interação com especialistas e
mídia), estará tentando ocultar o sol com uma peneira e negando-se
a um melhor entendimento do problema. Em outros termos, recusa assumir o problema e o coloca fora! Quando fazemos exercício
físico estamos sendo fisiologicamente adequados, quando resistimos
estamos fora do campo da fisiologia, seremos tratados pelos psicólogos ou pelas políticas públicas. O corpo é sábio quando faz exercício,
torna-se burro quando economiza esforço! Estamos num mundo de
explicações dualistas!
Ao invés de investir em explicações unitárias, investe-se em gerar
protocolos de atividades cada vez mais reduzidos, de menor esforço,
até que as pessoas digam: “Poxa vida! Eu não sabia que fazia atividade
física!” Creio que as importantes contribuições do Celafics estão nos
levando para esse porto (FRAGA, 2006). Mais ainda, a redução do
tempo recomendado pode levar à situação do burguês de Molière que
descobre que falava em prosa ou a afirmar que sedentário é apenas
quem não sabe que faz atividade física, embora a faça.
Permitam que seja insistente: dar uma resposta biológica implica fazer significativas as observações sobre a recusa em termos biológicos,
abandonando a facilidade de formulações ad hoc em termos psicológicos ou sociológicos, que os fisiologistas fariam melhor em deixar
nas mãos de seus colegas das ciências humanas e sociais. Negar-se
a explicar a recusa, em termos biológicos, implicaria desconfiar da
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
137
relação positiva entre atividade física e proteção, no sentido anteriormente indicado? Explicar implicaria ter de abandonar a tábula rasa, a
suposição da igualdade da reação de todos ao exercício?
Dito de forma asseverativa: o deslocamento para os fatores psicossociais significa tanto (a) um abandono da teoria biológica quanto (b)
uma desatenção a possíveis variáveis intervenientes que modificariam
as relações canonicamente supostas entre treinamento físico e capacidade de esforço, treinamento físico e sentimento de bem-estar.
Vejamos um exemplo do efeito da desatenção às variáveis intervenientes. A distribuição de leite em pó, promovida com as melhores intenções pela Nestlé na América Latina e motivada pelos
seus supostos efeitos benéficos em termos alimentares, encontrou
resistências ao consumo por parte de pessoas que declaravam que
não lhes fazia ou caía bem. Os pesquisadores descobriram que um
percentual relativamente alto de pessoas adultas (alguns falam de
40%) não tinha em funcionamento o mecanismo bioquímico responsável pelo processamento da lactose. Se tivessem continuado a
insistir no diagnóstico da diarréia do leite em pó como produto de
motivos psicológicos ou culturais não teria sido descoberto o mecanismo causador. Se tivéssemos continuado a insistir no efeito do estresse nos transtornos do aparelho digestivos não se teria descoberto
o papel das bactérias. Creio que não há pesquisa suficiente sobre os
mecanismos fisiológicos das pessoas que declaram que a atividade
física não lhes faz bem, deixa-os mais cansados ou doloridos. O fácil
deslocamento para a consciência ou para a vontade passa a funcionar como obstáculo epistemológico secundário para pesquisar, sob
o ponto de vista fisiológico, as interações de variáveis intervenientes
que poderiam provocar esses efeitos não canônicos. Digo secundário, pois considero que o principal obstáculo é o abandono da teoria
evolucionista sem a qual nada, segundo declaram os biólogos, faz
sentido na vida.
6. REToMANDo A TEoRiA
Fui convencido pelos biólogos de que nada faz sentido sem a teoria
da evolução. Assim, por exemplo, posso pensar que a tendência a
consumir e acumular gorduras no corpo é uma característica evolutiva
138
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
funcional para um mundo em que períodos de abundância alimentar,
sobretudo provenientes da pesca e caça, se alternavam com períodos
de fome ou de subalimentação. Este efeito “urso”, geneticamente codificado, traria um impulso positivo e funcional de ingestão além do
gasto em contextos onde os supermercados e o excesso de produtos
alimentares são inexistentes e que, portanto, obrigam a estabelecer
a reserva no próprio corpo. De fato, regulamos a alimentação dos
animais domésticos e o veterinário receita a qualidade e a quantidade de alimentação de nosso cachorro, enquanto o cachorro da rua
come tudo o que puder. Mais ainda, esses contextos naturais cíclicos
de praxe se caracterizariam pelo considerável esforço para a obtenção
alimentar (andar ou correr, remar, fazer atividades manuais, etc.). Os
nativos da Amazônia mudam de acampamento quando o custo do
deslocamento (esforço) para obterem caça supera seus benefícios. O
contexto de insegurança alimentar é medido em milênios, enquanto
o contexto de segurança alimentar tem menos de um século e vigora
apenas para uma parcela reduzida da população mundial que conta
com renda suficiente. Se concordarmos com essas hipóteses, resulta
fácil entender que populações que viveram em contextos de escassez e de trabalho duro, quando cresce a oferta alimentar e diminui o
esforço do trabalho, tendem rapidamente a tornar-se obesas. É nesse tipo de contexto em que a atividade física apareceu como receita
privilegiada e massiva, enquanto aumento da capacidade de realizar
esforços, manutenção da força, resistência e elasticidade dos corpos
diante da entropia, fator de prevenção e de combate à obesidade e
doenças, entre outras formas de expressão. É por essas razões que
os Estados Unidos comandam o processo de pesquisa e intervenção
(LOVISOLO, 1995).
Mudadas as condições de oferta alimentar, o comando genético
que acumula reservas no corpo poderia se tornar inadequado ou
disfuncional, sob o ponto de vista da codificação médica da saúde,
levando a mecanismos variados de intervenção para o controle das
relações desproporcionadas entre ingestão e gasto que resultam em
acúmulo de reservas. Neste contexto explicativo, e ainda quando
não existam fundamentos, isto é, relação consensual entre argumentos e evidências, parece aceitável a hipótese de que a codificação
genética provoque a vontade da ingestão que geraria ansiedade, en-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
139
tre outros sintomas, quando não satisfeita. O obeso poderia gritar,
em função dos argumentos: modifiquem-me geneticamente! Observo que o acúmulo de gorduras no organismo apenas aparece com
seus efeitos negativos, segundo as pesquisas médicas, além da idade
da etapa reprodutiva. A obesidade faz sentido funcional sob o ponto
de vista da teoria da evolução; o princípio básico da teoria evolucionista, a necessidade de reprodução genética, não estaria sendo
afetado. A natureza estaria pouco preocupada pelo entupimento das
nossas artérias e a morte por acidentes circulatórios além do tempo
de reprodução. Mais ainda, morrer seria um benefício sob o ponto
de vista da reprodução da população, pois eliminaria concorrentes
não reprodutivos dos reprodutivos em relação aos alimentos escassos
fornecidos pelo meio. Assim, a obesidade faria sentido porque não
teria efeitos negativos para reprodução da população nem do gene
egoísta para as condições de vida de quase 50.000 anos. Sob o ponto de vista cínico, também faria sentido, seria um bem para os custos
das aposentadorias.
Sob o ponto de vista evolutivo, uma população com muitos velhos,
que consomem e não se reproduzem, seria negativa para a dinâmica
populacional. Apenas funcionaria quando a produtividade de produção das condições de vida fosse altíssima – pois bem, esse é o nosso
mundo! Os que criticam o capitalismo porque gera sedentarismo deveriam também criticá-lo por gerar um percentual crescente de população velha em função do desenvolvimento econômico, da produtividade e da substituição do esforço humano pelo trabalho dos motores
que, aliados com as políticas públicas de saúde e com os avanços
terapêuticos, fez que a esperança de vida dos países desenvolvidos
dobrasse ao longo do século XX! Talvez devessem criticá-lo porque
os aposentados saudáveis e os velhos sarados continuam trabalhando
e há muitos jovens desocupados! O crescimento da população velha
não faz sentido sob o ponto de vista da teoria da evolução, ao contrário dos obesos que, parece, faziam sentido.
A obesidade, no entanto, deixaria de fazer sentido na cultura
medicalizada e estetizada. A cultura medicalizada se preocupa por
aumentar a esperança de vida além do tempo de reprodução e criação da prole e, então, situa a obesidade como risco para a vida e a
perda das funções de força, elasticidade e resistência como perda
140
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
da autonomia. A atividade física torna-se fator destacado na prevenção do risco. Há, no entanto, outro valor cultural talvez mais
importante que a diminuição dos riscos. A estetização dos corpos,
que é uma estilização, coloca o obeso fora das relações sociais que
exigem padrões corporais bem diferentes dos que desenvolve a
partir da pulsão genética para a acumulação de gorduras. Sob o
ponto de vista da evolução, os que têm um código genético propenso a transformar (de forma econômica) alimentos em gorduras,
acabariam, diante da seleção estética, diminuindo a reprodução de
seus genes egoístas, a não ser que se escolham entre si, reduzindo,
igualmente, sua distribuição na população. Em outras palavras, a
campanha contra a obesidade pode ser pensada pelo lado de seu
efeito eugênico: pela promoção da reprodução dominantemente
entre os não obesos. Estamos diante de uma nova eugenia que não
se reconhece enquanto tal?
Isto nos leva a um paradoxo: fisiologistas, médicos, esteticistas e
promotores da atividade física estariam no mesmo barco da estetização como estilização dos corpos (LOVISOLO, 1995). Médicos e fisiologistas funcionalizariam a estilização como saúde, isto é, como norma vital. Os esteticistas apenas estilizam, colocando o obeso como
grotesco. Parece que todos eles estão muito mais do lado da cultura,
da civilização como estilização, que do lado da fisiologia ou da natureza, que pouco se importa, a não ser funcionalmente em relação
à reprodução, com características secundárias de atração social e
sexual. Mais ainda, em contexto de carência alimentar o obeso pode
ser visto como aquele que possui meios alimentares, portanto, objeto desejável para a reprodução. Talvez disso decorra a confusão que
dizemos que os antigos faziam entre saúde e obesidade. Talvez eles
não confundissem, apenas entendessem que o gordo era desejável
porque conseguia alimentos, já que era capaz de fazer seu próprio
estoque de energia sob a forma de gordura que, também, poderia
ser funcional para resistir às doenças. Sob o ponto de vista da funcionalidade da evolução, a funcionalidade dos corpos estilizados e
duráveis seria um contrassenso, a não ser que estejamos expressando
com a estilização uma nova relação funcional ou de adequação com
o meio. A cultura estética estaria expressando uma nova necessidade
funcional?
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
141
7. MoSTRANDo SENTiDo NA TEoRiA EVolUCioNiSTA
Se partirmos da imagem de que estamos movidos geneticamente
para a sobrevivência reprodutiva, a atividade física – para proteger
da morte e da dependência a que levaria a velhice, mediada pela
situação de serem os velhos concorrentes alimentares não reprodutivos dos reprodutivos, que teriam interesse em seu desaparecimento
e substituição por novos – não faria sentido. Muito menos sentido
faria no caso das mulheres que, em média, deixam de ser reprodutivas antes dos homens e morrem, em média, mais tarde. Uma natureza consequente, segundo o paradigma evolucionista, faria com que
deixássemos de nos preocupar biologicamente com a morte além de
nossa capacidade ou limite reprodutivo. Creio que a dimensão biológica faz sentido nas narrativas culturais que colocam a morte como
doadora de sentido para a vida. Elas dizem: como valorizar e realizar
as escolhas do presente sem o futuro da morte? Lucrécio construiu o
paradoxo de que a vontade de prolongar a vida equivale a pretender
ter nascido antes. Hoje podemos dizer que seu paradoxo é inconsistente, porém poderia fazer sentido para outras condições.
Consequente com ela mesma, a natureza faria que investíssemos
nossos esforços na reprodução. Podemos pensar, portanto, que temos invertido os “determinantes naturais” e posto no seu lugar valores sociais: vivermos muito, além da etapa reprodutiva, e chegarmos
a velhos ativos, autônomos. Eis aí o grande paradoxo: pretende-se
elaborar argumentos biológicos ou fisiológicos para valores culturais,
centrados no prolongar a vida ativa usando, entre outros recursos, a
atividade física sistemática. Seria isto mero cientificismo?
Contudo, há um ponto no contexto da teoria da evolução, em
que a atividade física sistemática pareceria fazer sentido. Há uma
concentração da prática da atividade física, quando observada nas
academias, entre os jovens, sobretudo entre as fêmeas. Poderíamos
sugerir, seguindo o gene egoísta, que elas e eles, porém, sobretudo
elas, estão desenvolvendo características favoráveis para a seleção
sexual dos parceiros. Estão realizando esforços para modelar o corpo de forma a aumentar suas probabilidades de reprodução genética. Mediante a atividade física elas maximizariam as probabilidades
142
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
de conquistar parceiros, enfim, de serem cantadas e encantadas.
A biologia, entretanto, pode sofrer deslocamentos pela cultura e,
assim, a admiração de homens e mulheres, e, sobretudo das últimas ou de si mesmas no espelho, poderia substituir os parceiros
reprodutivos que implicam a maioria das culturas que conhecemos
o grupo social de pertencimento, de apego, de ajuda mútua e tantas
outras ações sem as quais não poderíamos existir. Hoje, a beleza,
mesmo que suada e sofrida, poderia ser vista como um “atrator”
social substitutivo do grupo de parentesco, de sociabilidade, de proteção, de circulação, de mobilidade social e até de êxito profissional
em variadas ocupações?
Já na etapa reprodutiva, quando as obrigações com essa prole fraca
e dependente que a natureza nos deu ganham importância crescente, a saída da atividade física sistemática tornar-se-ia dominante.
As taxas de praticantes despencariam a partir desse momento, que
poderíamos estimar por volta dos 30 e poucos anos. A tarefa a partir
dessa idade é outra. Contudo, a atividade física cresce entre as mulheres que já passaram à etapa reprodutiva e os cuidados da prole,
tenham ou não tido filhos. Trata-se agora de manter o corpo firme,
rígido e sem gorduras. Trata-se de remodelar suas partes no esforço
da atividade física. Os discursos confirmam isso, quando atribuem
à atividade física a manutenção de juventude e até afirmam que os
velhos podem ser jovens. O velho jovem é uma metáfora, portanto, um deslocamento. Faz acreditar no impossível: um velho ativo
e autônomo é isso: um velho ativo e autônomo, jamais um jovem.
Da mesma forma que um jovem doente é apenas isso: um jovem
doente, sob o ponto de vista fisiológico, ainda quando lhe digam que
parece um velho. A diferença está clara na brincadeira de Dennett
(1997): o velho aceitaria colocar seu cérebro em um corpo jovem,
este não aceitaria que seu cérebro fosse a parar em um corpo velho!
Entrementes, o velho “sarado” pode transmitir a imagem de que possui recursos para permanecer como tal e, então, ser atraente para as
mulheres jovens. Seria como o obeso de antigamente ou o caçador
eficiente? Em tudo isto, quem parece perder mais é a velha “sarada”,
pois ainda não existem indícios fortes de que sejam atraentes para
os machos jovens, embora aqui e acolá apareçam casais de homens
jovens e mulheres “maduras” e os informes sobre seus recursos se
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
143
multiplicam. Poderá chegar a ser culturalmente atraente em proporções significativas tal tipo de relação? É possível, mais ainda quando
a tradução para a cultura dos impulsos do gene egoísta – aumentar
sua presença no mundo mediante a reprodução na valorização da
família e dos filhos – pareceria ter perdido força.
A “crise da família” talvez seja mais ideológica que real, ou seja,
falamos dela porque constatamos que já não tem a importância que
supomos tinha para os nossos avós. Falamos da “crise da família”
de modo semelhante ao que fazemos com a “crise da autoridade”.
Há os que festejam ambas as crises pelas suas possibilidades; há os
que lamentam a perda da família e da autoridade, ambas, de fato,
estreitamente vinculadas nas visões construídas sobre o passado. Entretanto, inventamos outras “importâncias” como, por exemplo, a da
felicidade sexual, a da vida natural e a da vida ativa. No seio dessas
invenções, a atividade física, a manutenção das formas e funções,
tem papel de destaque. Assim, se aquele “tesouro” de família e autoridade ficou sem lugar, tentamos criar outros. Então, se já não valorizamos o investimento no corpo dos outros, da prole, restaria apenas
investir no próprio? Neste sentido trabalha quem faz de seu corpo
um tesouro que deve ser cuidado, moldado, mantido, aumentado
em termos de atração e, até, posto como lugar da morada de Deus?
Quais as relações desses novos tesouros com a biologia e a teoria da
evolução? Podemos fazer desta conduta uma norma? E que tipo de
sociedade poderia ser construído a partir dela?
Creio que tracei as linhas de um conjunto de tarefas. Primeiro, dar
uma explicação fisiológica para o paradoxo da rejeição daquilo que,
segundo a própria fisiologia, faria bem: a atividade física. Construir,
então, uma fisiologia do não, da recusa ou abandono a partir de razões fisiológicas, esquecendo as justificativas psicológicas ou sociais.
Não creio que a tarefa seja possível se não levarmos a sério a escuta clínica dos que reclamam da atividade física. Em segundo lugar,
integrar no mesmo corpo explicativo tanto a hiperatividade quanto
a hipoatividade, pensando suas limitações e efeitos diferenciados a
partir dos aportes de uma fisiologia do não. Em terceiro lugar, pensar
os dados contraditórios da atividade física tendo em vista o problema
da dor e seus significados. Em quarto lugar, retomar como marco a
teoria da evolução para entendermos do que estamos falando no
144
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
campo da fisiologia da atividade física. Em quinto lugar, pensar os
efeitos positivos e negativos (fisiológicos, psicológicos e sociais) da
estilização e da estetização. Por último, abandonar a simplicidade da
afirmação de que viver mais tempo é viver melhor e, ainda, de que
a autonomia dos idosos é um valor em si mesmo. Lembrando, por
último, que parece que nos dedicamos a dar respostas que fazem
declinar a solidariedade, a reciprocidade, o apego, o respeito entre
os diferentes, enfim, aquelas coisas que faziam do homem um animal social para Aristóteles.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
145
REFERÊNCiAS
ALVES JUNIOR, Edmundo de Drummond. A pastoral do envelhecimento
ativo. 2004. 621 p. Tese (Doutorado em Educação Física) – Programa de Pósgraduação em Educação Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2004.
AZEVEDO, F. Da educação física. São Paulo: Melhoramentos, [19--?]. v. 1.
BAGRICHEVSKY et al (Org.). A saúde em debate na educação física. Blumenau: Nova Letra, 2006. v. 2.
BECKER, H. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1993.
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. Tradução Carlos Felipe Moises, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 360 p.
BETTI, M. Por uma teoria da prática. Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3,
n. 2, p. 73-127, dez. 1996.
BLOOM, Harold. The American religion: the emergence of the post-Christian nation. New York: Simon &Schuster, c1992.
BRICEÑO-LEÓN, R. A cultura da enfermidade como fator de proteção e
de risco. In: VERAS, Renato Peixoto et al (Org.). Epidemiologia, contextos e
pluralidade. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998. p.121-131.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1995.
COUBERTIN, P. de. Essais de psychologie sportive. Paris: Librairie Payot,
1913.
COUPRY, F. O elogio do gordo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
DAWKINS, R. A escalada do monte improvável. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
______. O gene egoísta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979.
DENNET, D. C. Tipos de mente rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DUMAZEDIER, J. A revolução cultural do tempo livre. São Paulo: SESC:
Nobel, 1994.
ELIAS, N. A condição humana. Lisboa: Difel, 1991.
146
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
ELIAS, N.; DUNNING, E. Deporte y ocio en el proceso de civilización.
México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
FRAGA, A. Exercício da informação. Campinas: Autores Associados,
2006.
GADAMER, H. El estado oculto de la salud. Barcelona: Gedisa, 1996.
GOULD, S. Bully for brontosauros. New York: W.W. Norton & Company,
1991.
______. O sorriso do flamingo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
HACKING, I. La domesticación del azar. Barcelona: Gedisa, 1995.
HARRIS, M. Bueno para comer. Madrid: Alianza, 1989.
HAYFLICK, L. Como e por que envelhecemos. Rio de Janeiro: Campus,
1996.
HIRSCHMAN, A. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
HOBSBAWM, E.; RANGEL, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997.
HORGAN, J. A mente desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
KUHN, T. A tensão essencial. Lisboa: Ed. 70, 1989.
LOVISOLO, Hugo. Atividade física e saúde: uma agenda sociológica de pesquisa. In: MOREIRA, Wagner Wey; SIMÕES, Regina (Org.). Esporte como fator de qualidade de vida. Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba,
2002. p. 277-296.
______. Atividade física, educação e saúde. Rio de Janeiro: Sprint, 2000. 112 p.
______. Educação física: a arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.
______. Em defesa do modelo JUBESA (juventude, beleza e saúde). In:
BRAGRUCHEVSKY, Marcos et al (Org.). A saúde em debate na educação
física. Blumenau: Nova Letra, 2006. v. 2.
______. Estética, esporte e educação física. Rio de Janeiro: Sprint, 1997.
______. Hegemonia e legitimidade nas ciências dos esportes. Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 51-72, dez. 1996.
MANDELL, Richard D. Sport, a cultural history. New York: Columbia University Press, 1984. 340 p.
MATSUDO, S. M..; MATSUDO, V. K. R.; BARROS NETO, T. L. Efeitos bené-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
147
ficos da atividade física na aptidäo física e saúde mental durante o processo
de envelhecimento. Revista Brasileira de Atividade Física, Londrina, v. 5, n.
2, p. 60-76, abr.-jun. 2000.
MIRA, Carlos Alberto Magallanes. O declínio de um paradigma: ensaio crítico sobre a relação de causalidade entre exercício físico e saúde. 2000. Tese
(Doutorado em Educação Física) – Programa de Pós-graduação em Educação
Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2000.
MITHEN, S. A pré-história da mente. São Paulo: Universidade do Estado
de São Paulo, 1998.
MOREIRA, V.; SIMÕES, R. (Org.). Esporte como fator de qualidade de
vida. Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba, 2002.
NISBET, R. A. História da idéia de progresso. Brasília, DF: Universidade
de Brasília, 1985.
OLIVEIRA, R. Habermas, Rawls & nós: os desafios da ética médica ao sul
do Equador. Universidade e Sociedade, Brasília, DF, v. 8, n. 17, p. 105-116,
nov. 1998.
ONFRAY, M. A razão gulosa: filosofia do gosto. São Paulo: Rocco, 1999.
______. O ventre dos filósofos, crítica da razão dietética. São Paulo:
Rocco, 1990.
PERELMAN, C. H. ; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a
nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PINKER, S. Tabula rasa: a negação contemporânea da natureza humana.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
POLIAKOFF, Michael. Combat sports in the ancient world: competition,
violence, and culture. New Haven: Yale University Press, c1987. 202 p.
RABINBACH, A. The human motor. Los Angeles: University California
Press, 1992.
ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo: Universidade do
Estado de São Paulo, 1994.
SHARPELES, R.W. Stoics, epicureans and skeptics. Londres: Routledge, 1996.
SOARES, C. Educação física no Brasil. São Paulo: Autores Associados, 1994.
SPENCER, Herbert. Da educação moral, intellectual e physica. Lisboa:
Nova Livraria Internacional, 1887. 251 p.
148
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
______. On social evolution. Textos selecionados e editados por J. D. Y.
Peel. Chicago: University of Chicago Press, [1972]. 270 p.
TANI, G. Cinesiologia, educação física, esporte: ordem emanante do caos
na estrutura acadêmica. Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 9-49,
dez. 1996.
TURNER, B. S. El cuerpo y la sociedad: exploraciones en teoría social.
México: Fondo de Cultura Económica, 1989.
VERAS, Renato Peixoto et al (Org.). Epidemiologia, contextos e pluralidade. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1998. 166 p.
VIGARELLO, O. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média.
Lisboa: Fragmentos, 1985.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 114-149 | JANEiRo > AbRil 2009
149
‘DESiGNERS’, SUJEiToS
PRoJETiVoS oU
PRoGRAMADoS?
Marco Antonio Esquef Maciel
150
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
O texto busca refletir sobre os conflitos e desafios postos para o profissional
formado em desenho industrial (designer) na atualidade. Considera-se, nesse
sentido, a padronização estética pós-moderna mediante o extraordinário processo de utilização de softwares como um dos fatores centrais dos conflitos
existentes, e, ao mesmo tempo, elemento desafiador na formação e atuação
do designer. O ensaio fundamenta a sua análise no pensamento históricodialético, através do qual percorre o itinerário das passagens da modernidade
para a pós-modernidade, explorando tanto as questões relacionadas com a
macroestrutura produtiva da sociedade como as questões relacionadas com as
ideologias estéticas em disputa.
The text aims at reflecting on the conflicts and challenges posed to the industrial
designer of the present. Accordingly, it is taken into consideration the standard
post-modern aesthetics through the extraordinary process of using software as a
central factor of conflicts, and at the same time challenging element in the formation and actions of the designer. The test bases its analysis on the historical
and dialectical thought, which travels the route of passage from modernity to
post-modernity, exploring both the issues related to productive macrostructure
of society as the issues related to aesthetic ideologies in dispute.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
151
iNTRoDUÇÃo
O presente ensaio busca refletir sobre os conflitos e desafios postos
para o profissional formado em desenho industrial (designer) na atualidade. Considera-se, nesse sentido, a padronização estética pós-moderna mediante o extraordinário processo de utilização de softwares
como um dos fatores centrais dos conflitos existentes, e, ao mesmo
tempo, elemento desafiador na formação e atuação do designer. O
ensaio fundamenta a sua análise no pensamento histórico-dialético,
através do qual percorre o itinerário das passagens da modernidade
para a pós-modernidade, explorando tanto as questões relacionadas
com a macroestrutura produtiva da sociedade como as questões relacionadas com as ideologias estéticas em disputa.
Entende-se aqui o Design como um ramo da atividade humana
cujas características multidisciplinares apresentam-se imbricadas na
esfera artístico-cultural e na científico-tecnológica em geral, nos aspectos semiológicos relacionados com diversas formas de linguagem
(visual, auditiva etc.), nos aspectos psicológicos com ramificações na
sociologia, na antropometria, na ergonomia, na antropologia e na
filosofia. Portanto, por força do seu ofício o profissional do Design
lida cotidianamente com um universo de questões que vão da arte
à técnica, da ciência à política. Dessa proximidade, ele apreende e
extrai os elementos necessários para o exercício renovado das suas
tarefas cotidianas, como parte do esforço para superar a alienação
a que está submetido no processo do trabalho. Nessa perspectiva,
compreendemos que a consciência de tal esforço é parte integrante
daquilo que Marx denomina como percepção sensível. Com efeito,
para ele a história é, na verdade, o resultado do esforço do corpo
humano, através de suas extensões que chamamos de sociedade e
tecnologia, em luta pelo autocontrole dos seus poderes. Aponta-se,
ainda, que o mundo construído se apresenta, desde as formações
sociais primitivas às mais complexas, como uma “metáfora materializada do corpo”, no qual o sistema de produção econômica representa o elemento que rege o processo de descorporificação e
espiritualização de homens e mulheres. O pensador considera como
natureza sensível o próprio elemento do pensamento, a linguagem.
Em decorrência, aponta que se deve pensar a reflexão teórica como
152
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
prática material (apud Eagleton, 1993, p. 147). Para tanto, nos seus
Manuscritos econômicos e filosóficos (MEF), depreende-se que a percepção sensível
[...] deve ser a base de toda ciência. Só quando a ciência na sua forma dupla da consciência sensível e da necessidade dos sentidos – i.e.
só quando a ciência começa pela natureza – ela é verdadeiramente
ciência. Toda a história é uma preparação, um desenvolvimento, para
que o homem se torne o objeto da consciência sensível e para que as
necessidades do “homem enquanto homem” tornem-se necessidades
(sensíveis) (Marx, apud Eagleton, 1993, p.147).
Ainda nessa perspectiva, pode-se apontar, segundo Mészáros
(1981, p. 83), que na filosofia marxiana o trabalho, em sua “forma
sensível”, assume sua significação universal, tornando-se não somente a “chave” para a compreensão das determinações que são inerentes a todas as formas de alienação, como também é o “centro de referência da estratégia prática que visa à superação real da alienação
capitalista”. Não obstante as considerações de Marx indicarem cientificamente a importância do conhecimento estético na formação
humana, o modo de produção capitalista, particularmente o presidido na atual lógica pós-moderna, tem sido pródigo em nos oferecer
exemplos paradoxais de uma situação aparentemente descontrolada. Dessa forma, conforme observado nos últimos cinquenta anos, o
extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, sobretudo no
campo tecnológico, estendeu para além das paredes das fábricas e
dos centros de pesquisa o uso cotidiano de máquinas cada vez mais
sofisticadas. Da mesma maneira, a expansão da indústria cultural
e a intensificação do comércio de moda, de beleza e de produtos
afins levaram o mundo a uma estetização da vida social mediante
a banalização da linguagem artística moderna, outrora por muitos
considerada “canônica”. Portanto, essas ideias levam a crer que a
banalização das máquinas e a estetização da vida social provocaram
o que Fredric Jameson denominou de “alívio pós-moderno”. Perante
as limitações e os rigores modernos, paradoxalmente, esses mesmos
aspectos induziram a um novo processo de reificação do homem, do
trabalho, da vida social. Levaram, em suma, a um ajuste ao padrão
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
153
de acumulação flexível em busca de maior eficiência produtiva, sendo que, sob essa ótica, as intensas tecnologização e estetização da
vida social não representaram ganho algum.
Isso posto, considera-se que a origem do Design enquanto atividade profissional é essencialmente moderna, confundindo-se com
a própria gênese da Revolução Industrial. Não é por outro motivo
que Souza dirá que o Design assim como a moderna consciência
social e a cultura da técnica são “fortemente influenciados pelo
modo de produção capitalista e industrial” (2000, p. 20). Em nosso
país, aponta-se que as atividades profissionais relacionadas com o
desenho de produtos e a programação visual se encontravam em
plena atividade desde o início dos anos 1950. A esse propósito, o
governo do então presidente da república, Juscelino Kubistchek,
fincado sob uma bandeira nacional/desenvolvimentista que o norteava, se prestou para que se firmassem as primeiras tentativas institucionais de formação do profissional de Design no Brasil. Assim,
numa perspectiva de modernização, a necessidade de qualificação
e formação de pessoal especializado ajustava-se às propostas de
melhorar, ao mesmo tempo, o aparato tecnológico da indústria brasileira, aperfeiçoando tanto o sistema educacional como os centros
de pesquisa. Dessa maneira, o governo propunha à indústria buscar
a qualificação de seus quadros a fim de atender às novas demandas
do mercado que certamente surgiriam.
Em tempo, é pertinente apontar segundo o pensamento dialético de
Karel Kosik, para quem a compreensão de um fenômeno exige que
se chegue até a essência: “sem o fenômeno, sem a sua manifestação
e revelação, a essência seria inatingível” (2002, p. 16). Ao adotá-lo
como uma das nossas referências de estudo, tivemos a oportunidade
de verificar que em todas as atividades humanas se encontram três
formas de carga de trabalho inerentes às tarefas relacionadas com os
trabalhadores: a física, a cognitiva e a psíquica. Verificamos, ainda,
que ao se inter-relacionarem, cada uma dessas formas pode determinar uma sobrecarga ou um sofrimento na realização de tarefas. Tal
demanda se impôs mais fortemente à medida que, empiricamente,
crescia em nós a sensação de uniformização dos padrões estéticos,
caracterizando aquilo que Jameson (1990) denomina subordinadamente de “morte do sujeito” e “pastiche”. Nesse sentido, o estudo
154
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
de Kosik despertou a nossa atenção para a relação entre a exigência
do ajuste produtivo no exercício das tarefas e o abandono da criatividade no pós-modernismo, considerando as atuais possibilidades do
profissional como confiscar, citar, retirar, acumular e repetir imagens
já existentes (CRIMP apud HARVEY, 2002, p. 58). Dessa forma, a necessidade de avaliarmos, dentre outros fatores, a dimensão do papel
prescritivo na forma de trabalhar do designer gráfico, exercida pelos
algoritmos predeterminados e em ordem de execução, e a existência
de um enorme banco de imagens e de tipos de fontes (alfabetos) tipográficas fizeram-se presentes.
Dentre os aspectos centrais que historicamente têm contribuído
para uma visão hipostasiada da realidade, certamente se encontra
a divisão social do trabalho. A progressiva substituição do trabalho
artesanal, do fator de autoconhecimento e conhecimento global da
tarefa, da liberdade de criação por parte do trabalhador, pela especialização presente no trabalho socialmente dividido resultou na
perda da autoestima e do reconhecimento do trabalho realizado,
fazendo com que os profissionais se tornassem meramente repetidores de tarefas já programadas num modo de produção regido pela
“máquina”.
Marx há muito já ressaltava a sensação do perigo de que a grande
indústria reduzisse a capacidade de trabalho humano a um mero
complemento das máquinas (apud SANTONI RUGIU, 1998, p. 17).
Nessa perspectiva de análise, parece-nos correto ressaltar que, no
modo de produção capitalista, os trabalhadores têm os seus processos de trabalho subordinados de forma mais intensa aos meios de
produção. Ao estudar a problemática da reificação, o próprio Marx
já havia chamado a atenção para o trabalho morto, cuja realidade
identificamos no trabalho contido nos computadores e nos programas eletrônicos desses computadores. Diante disso, é imperativo que
nos perguntemos sobre a perda de mestria por parte do trabalhador,
e em que medida isso importa para a sua transformação em escravo
do próprio trabalho. Da mesma forma, para Kosik, o indivíduo já há
algum tempo perdeu a consciência de que este mundo é criação do
homem (2002, p. 74). Por outro lado, ele ressalta que essa realidade
aparente pode ser mudada e transformada de modo revolucionário,
efetivamente, na medida em que reconhecermos que a realidade é
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
155
produzida por nós, no sentido de que somos nós mesmos os que a
produzem (idem).
A força dessas reflexões nos leva a crer que, por conseguinte, a
concorrência no processo de trabalho do designer faz com que esse
profissional busque maior agilidade e velocidade na produção de
seus produtos, o que, na nossa hipótese, o remete, sob essa imposição, a buscar por novos métodos de produzir (muitas das vezes, sem
nenhum projeto) de forma mais simplificada, menos “trabalhosa”
– aqui inserimos este termo de modo a enfatizar que o profissional
busca simplificar em demasia a sua criação –, não observando que
isso pode acarretar uma perda da qualidade de seu trabalho. Em
contrapartida, cabe ressaltar que esses profissionais devem transcorrer a busca para, como executores, serem seus próprios criadores,
donos de seus próprios meios de expressão, não se limitando a fazer
recortes, meras alterações em produtos já prontos, ou ainda, realizar “decalques”. Conforme analisa Lukács (1978, p. 5-6), o homem,
num processo de desenvolvimento de suas próprias capacidades
com vistas a alcançar níveis mais altos (aperfeiçoamento) na sua
relação com o seu ser e a natureza, o faz através do trabalho. E é,
ontologicamente, por meio deste que se possibilita esse “desenvolvimento superior”, o “desenvolvimento dos homens que trabalham,
alterando a adaptação passiva, meramente reativa, do processo de
reprodução ao mundo circundante”, haja vista que na relação com
esse mundo circundante, o transforma de maneira consciente e ativa. Portanto, o trabalho, na esfera ontológica, “converte-se no modelo da nova forma do ser em seu conjunto” (idem). Por outro lado,
a atividade produtiva é
atividade alienada quando se afasta de sua função adequada de mediar humanamente as relações sujeito-objeto, entre homem e natureza, e tende, em lugar disso, a levar o indivíduo isolado e reificado a ser
absorvido pela “natureza” (MÉSZAROS, 2006, p. 77).
Considerando esses conflitos, seria possível afirmar que com o
grande incremento da tecnologia também no campo da arte e, de
forma específica, no campo profissional dos designers, constata-se
que esses profissionais se veem diante de uma nova perspectiva: a
156
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
utilização indiscriminada de softwares gráficos por indivíduos que
não estão absolutamente qualificados para exercer tal profissão, os
quais são chamados, pelos próprios designers, de “micreiros”1. Contudo, o que é mais grave, segundo a nossa ótica, ao serem inseridos nessa relação de “batalha” comercial, permitem-se abandonar
gradativamente aquilo que lhes é mais importante: a criação e a
imaginação humanas, utilizando-se de um ideário de abandono ao
método projetual, de crescimento por etapas, inserindo-se na filosofia do acaso, que os remete à ideologia de que a “tecnologia pode
fazer” o seu trabalho. Na nossa percepção, essa é uma situação emblemática vivida por inúmeros profissionais desse setor: deixarem-se
imergir gradativamente num processo no qual poderá perder seu
poder de gerir a criação e, além disso, perceber que o seu trabalho
vivo está cada vez mais sendo subordinado a um trabalho morto. E
ainda nesse aspecto, sob a ótica de Jameson (1994, p. 10), ver que o
fruto de seu trabalho − a sua “arte” − passa a ser apenas uma parte
a mais da produção de mercadorias, em que o profissional perde o
seu status social e identidade, defrontando-se com as opções de se
tornar um reprodutor técnico da arte, inserindo-se em um sistema
de “criação” padronizado. Observa-se também que há uma certa
taylorização nesse campo. Pode-se ressaltar uma estética repetitiva,
que volatiliza o objeto original – a obra de arte, o trabalho gráfico, o
objeto projetado, o que Jameson (idem) denomina como “a noção
de repetição”, também presente em Jean Baudrillard (1994)2.
Não se quer – é bom que se ressalte – banir a tecnologia do mundo
No entanto, parece-nos correto refletir que não está nos “micreiros” o problema, mas no novo modus operandi (posto pela reestruturação produtiva
dos anos 1990), materializado por um pujante e fetichizado incremento de
tecnologias computacionais.
2
Para Jameson (1994, p. 9), a estrutura repetitiva daquilo que Baudrillard
denomina o “simulacro (isto é, a reprodução de ‘cópias’ que não têm original) caracteriza a produção mercantil do capitalismo de consumo e marca
nosso mundo de objetos com irrealidade e ausência, que hoje flutua livre do
‘referente’ (por exemplo, o lugar antes ocupado pela natureza, pelas matériasprimas e pela produção primária, ou pelos ‘originais’ da produção artesanal
ou da artesania), completamente diverso de todo o experimentado em qualquer formação social anterior”.
1
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
157
da arte e da cultura, em absoluto, a mesma deve servir a quem a criou,
atendendo às suas necessidades e anseios, funcionando com um ingrediente e “extensão de seu corpo”. Não se objetiva apontar aqui
que o profissional de Design deva abster-se do uso das “qualidades”
estéticas obtidas pelo uso da “ferramenta tecnológica” na reprodução
das apresentações finais de seus produtos gráficos (os trabalhos impressos; “a exposição”), mas, questionar o processo de elaboração e
construção de suas “ideias”, e aí está inserido o processo educacional
e formador desse profissional. Ou seja, o seu processo de investigação
e apreensão das mesmas. Até que ponto o uso indiscriminado dessa
tecnologia está alienando e dominando o ato criativo e imaginativo
do homem, imerso num mundo pós-moderno − o seu saber-fazer?
Busca-se compreender nesse desenho de mundo subsumido “uma
nova fase do capitalismo, marcado pelo efêmero e o descartável, pela
sedução da imagem e paroxismo da velocidade, pelo consumismo,
pela indústria cultural, financeira, de serviços e de informação [...]”
(FRANCO, 2001, p. 312). Dessa maneira, de acordo com as reflexões
de Debord, vivemos numa sociedade saturada de signos e imagens: “a
onipresença e a onipotência da imagem no capitalismo de consumo”
(DEBORD, apud JAMESON, 1994, p. 14). Logo, as reais prioridades
ficam no mínimo invertidas, no campo em que tudo é mediado pelo
domínio da cultura.
HÁ QUE SE PRoDUziR, MAS SEM PERDER A iMAGiNAÇÃo JAMAiS
Procurando contrapor essa égide projetual, faz-se necessário que
se confira relevo por uma intermediação do autor em sua plenitude,
em busca daquilo que lhe é mais caro: a imaginação e a criação
humanas. Para tanto, nas reflexões do teatrólogo Augusto Boal estão
sedimentados argumentos que nos direcionam a depreender que
“somos todos produtores culturais. Cultura é o fazer, o como fazer, o
para quê e para quem se faz”. Nesse campo, parece legível apontar
que o designer, também produtor de cultura, deva ser regido por
essa diretriz. A arte está ligada à cultura. “A cultura é o ser humano, é
o que há de humano no ser, é aquilo que o distingue dos outros animais.” Portanto, nós não devemos perder nossa condição humana
criadora e, além disso, temos de assumi-la. Conforme ele explica, se
158
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
sabemos que para cobrir a mesa é necessária uma toalha, sabemos
também que qualquer costureira é capaz de cortar um pano: eis a
toalha. A diferença entre esse simples produzir e ir mais além é o
que caracteriza o sujeito criador e define o produto artístico. Para o
sujeito criador não basta cobrir a mesa, é preciso responder às suas
necessidades estéticas, agradar também aos sentidos. Nesse caso, o
valor do artefato é maior, “tão grande que pode ser impossível usála como toalha que protege a mesa: é necessário proteger a toalha”
(BOAL, in: Caros Amigos, janeiro, 2001).
De certo modo, pode-se apontar que não somos como os animais
irracionais que, através de seus instintos, constroem do mesmo jeito
os seus ninhos, casulos, nem somos como os pássaros que cantam
as mesmas canções para se acasalar na busca por sua competição
biológica. Não existe um fator genético padrão que predetermine o
que deve ser feito. O trabalho para nós possui uma essência que nos
permite ir além dessa predeterminação biológica. Assim, pelo “papel
da consciência”, que, segundo Lukács (1978, p. 45), deixa de ser um
simples “epifenômeno da reprodução biológica” e que, portanto,
ontologicamente, através do trabalho, os homens se desenvolvem,
produzem a si mesmos e a natureza. Nessa ótica, Marx aponta o
produto como um resultado, que desde o começo do processo já havia sido concebido na “representação do trabalho” (apud LUKÁCS,
1978, p. 4). Também ressalta que o animal constrói segundo o padrão e a necessidade de sua espécie, ao passo que o “homem sabe
como produzir de acordo com o padrão de cada espécie e sabe
como aplicar o padrão apropriado ao objeto; deste modo, o homem
constrói também em conformidade com as leis da beleza” (MARX,
1964, p. 165).
Com efeito, desde os primeiros indícios da humanidade, fomos
capazes de inventar, reinventar, e diante de um novo fato-problema,
encontrar soluções criativas para ir além do necessário imediato.
Salienta-se que essa é uma das características de maior notoriedade
no homem, no sentido de que reage de maneira diversificada e criativa em alguma situação enfrentada. Nesse contexto, com base nas
reflexões feitas por Lukács (1978, p. 5), é justo “designar o homem
que trabalha, ou seja, o homem tornado homem através do trabalho,
como um ser que dá respostas”, tendo em vista que o homem “ge-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
159
neraliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e
suas possibilidades de satisfazê-los”, e acrescenta ainda que, quando
em “sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece
a própria atividade com tais mediações, frequentemente bastante
articuladas” (idem).
Em torno dessas considerações, mediante os aportes da Ergonomia,
podemos inferir que existirá conflito nas relações de trabalho desses
profissionais de Design, ao levarmos em consideração que não nos
sentimos em estado de bem-estar, sempre que nos encontramos diante de situações repetitivas, mecânicas e uniformes (monótonas). Seria
possível considerar que nos atores dessa nova imposição, nesse modus operandi tecnologizado, há uma incorporação do saber-fazer da
criação, gerando uma nova relação de poder imposta pela introdução
dessa tecnologia (aqui vista, principalmente, através dos insumos da
computação gráfica) e, por conseguinte, o abandono gradativo das
competências e habilidades inerentes desses profissionais – os designers. Daí vem a privação, de forma parcimoniosa, da imaginação e da
criação, e, o mais grave, a perda do domínio próprio de seu método
de trabalho, de seus aprendizados e treinamentos. Desse modo, o homem se insere num sistema de “coisas” já previamente prontas, e, em
decorrência, é nesse locus que ele próprio se aliena e se transforma
em um objeto de manipulação. Parece correto afirmar que é o que
podemos chamar de desqualificação do processo de criação humana,
que origina uma subordinação cada vez mais forte do trabalho produzido pelos designers gráficos, à estética dos produtos com resultados
pictóricos intrinsecamente associados à lógica capitalista de reprodução pós-moderna. Por outro lado, é forçoso notar que “a obra não é
apenas manual: também a imaginação é uma técnica, é geradora de
imagens que povoam o espaço da mente antes do espaço do mundo”
(Argan, 2000, p. 18). Esse aspecto também está presente em Baudelaire (1993, p. 87), que afirma que quanto mais possuirmos imaginação,
mais obteremos resultados menos fastidiosos, desgastantes e custosos
em nosso ofício, ou seja, mais aptos estaremos para nos aventurarmos
e enfrentarmos as dificuldades impostas.
Do mesmo modo, Argan (2005, p. 266) afirma que a imaginação
é uma “faculdade que nos permite pensar em nós mesmos de forma
diferente do que somos [...]. A imaginação ética e politicamente inten-
160
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
cionada é a ideologia, e não pode haver projeto sem ideologia”. Ademais, imaginar e criar é fazer arte, e tem representado, desde a préhistória, uma atividade fundamental nos seres humanos (BOSI, 1999,
p. 8). Em toda a sua história, o homem sonhou, comunicou e representou, da maneira mais criativa, a realidade em que existia como
ser no mundo. Com efeito, desde os primeiros atos de qualificação e
reinvenção de sua existência, o homem interferiu como um “mágico”,
como, por exemplo, na “simples” tarefa de beber água. Ou seja, em
sua empiria, ele observou e analisou que, ao quebrar uma fruta, cuja
casca traria mais facilidade e conforto para tomar água, qualificou sua
existência. Assim, o homem, na sua necessidade ontológica de sobrevivência, de desenvolvimento, e de representação e interação com as
coisas da natureza, criou e concebeu objetos e imagens.
Acrescente-se ao conjunto dessas ideias que o homem, como existência própria no mundo, precisou estar bem na sua relação com a natureza.
Pareyson ressalta que em todas as atividades e maneiras operativas do homem, está sempre presente um lado inventivo, inovador e criador, como
condição primeira de toda a realização humana. Ainda destaca-se que
este pensador considera três momentos da estética no processo artístico:
o fazer, o conhecer e o exprimir (apud BOSI, 2000, p. 8). Se tomarmos
o designer como um artista, ele possui totais condições para realizar um
fazer criativo e imaginativo. Ao colocarmos a arte como um somatório de
atividades pelas quais se transforma e se reestrutura a natureza, nos parece legítimo afirmar que essa relação processual pode e deve ser considerada como uma relação de trabalho. Como descreve Marx, “trabalho é
em primeiro lugar um processo que se passa entre o homem e a natureza
[...]. É uma atividade intencional que tem por fim a produção de valores
de uso, a apropriação de elementos naturais”. E ele acrescenta ainda que
o “trabalho é um movimento que culmina num produto” (MARX, 1994,
p. 202). Essas citações visam corroborar uma visão da arte como atividade
que também constrói produtos e que tem valor próprio, agregado e importante para os profissionais deste estudo. Em nossa forma de observar,
ela está intimamente ligada à sua relação de trabalho. Ainda aos olhos de
Marx, o desenvolvimento do modo de produção capitalista permitiu ao
homem a descoberta de que ele tem não apenas a capacidade de modificar a natureza pelo seu trabalho, mas, também, a de operar sobre a sua
própria natureza, desenvolvendo-a.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
161
Fazendo eco a esse pensamento, Fischer considera a arte como
“substituto da vida”, como mediadora do equilíbrio entre o homem e
o meio que o circunda. O homem deseja absorvê-lo e integrá-lo a si
próprio. Sente que deve ser trazido para si aquilo que a humanidade,
como um todo, foi capaz de produzir. Ele vê a arte como um meio
indispensável para a conjunção do homem com o todo. Ela “reflete a
infinita capacidade humana para associação, para a circulação de experiências e ideias” (1981, p. 11). O autor vê o trabalho para um “artista” inserido num processo de consciência e racionalidade, ao fim do
qual resulta a “obra de arte como realidade dominada”. Assim sendo,
para alcançar o seu objetivo, torna-se necessário “dominar, controlar
e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a
matéria em forma”. Na arte, coexistem a tensão e a contradição dialética, e a mesma deriva de um longo e intenso processo de experiência
da realidade, como também necessita ela mesma ser construída e se
configurar mediante a objetividade (FISCHER, 1981, p. 11).
Considerando o designer como um profissional estreitamente afinado com esse jogo do ato da criação, deve-se levar em conta suas
características intrínsecas quanto aos treinamentos, conhecimentos,
aprendizados e aventuras pelo mundo da cultura e da estética. Não
obstante, a busca cada vez mais imposta pelas relações socioeconômicas em sua vida profissional, faz com que ele se articule e se arrisque
por novos caminhos e pelas vias tecnológicas de expressão artística.
Conhecendo os novos meios de se exprimir e posicionar dentro de
seu contexto social, mercadológico e em seu processo de concorrência, ele apreende ideologias, modismos, teorias e conceitos de forma
tal que possa impensadamente ou não ceder aos apelos e “sugestões”
dessa nova imposição formal tecnologizada. Assim, ao posicionarmos
o Design imerso numa mercantilização da vida posta pelo capitalismo
tardio, auxiliado por uma intensa informatização dos vários segmentos de nossa sociedade, trazendo, por conseguinte, uma padronização
para grande parte desses setores, como necessidade da própria crise
de realização e de reprodução do capital, deve-se atentar e refletir
para o problema da estandardização para a massa, com uma finalidade unilateral, a mercantilização dos produtos. Quanto mais se estandardiza, mais se padroniza, mais advém a possibilidade de multiplicação, e, com isso, diminuindo custos e aumentando o consumo.
162
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
Nesse contexto, a atividade do Design está submetida à mesma situação de qualquer outra categoria profissional que produz bens de uso
social, por isso é imperioso que não se prescinda de questionamentos
para qual público e com qual finalidade social ela se destina. Fazendo
um pequeno paralelo com esse contexto, remeteremo-nos às reflexões de Paula Astiz3, nas quais afirma que para ser designer hoje não
pode se resumir somente ao exercício de uma atividade técnica, não
se restringindo a possuir competência em uma predeterminada e já
aceita linguagem visual, e sim, “sobretudo”, ter a capacidade do uso
da imaginação para aí, sim, criar soluções de “forma lógica e criativa”,
que são motivadas por critérios específicos do projeto e não por modismos. Além disso, um designer não se permite ser passivo ao criar soluções para os problemas, deve fazê-lo imbuído de questionamentos
do status quo vigente. E, como ela, acreditamos também num Design
gráfico contestador, “formador de opinião, com um discurso ativo na
produção de novas formas de conhecimento e contribuições significativas à nossa sociedade” (ASTIZ, 2003, p. 22).
PRoFUNDAS MUDANÇAS à ViSTA
Postas as considerações, achamos pertinente tecermos um pano de
fundo sobre as transformações sofridas por nossa sociedade, capitaneadas por um novo padrão de acumulação. Nesse sentido, Harvey
(2002, p. 135-138), refletindo sob os sérios problemas enfrentados
pelo “regime de acumulação”4 fordista, já em meados dos anos 1960,
ocasião em que se completara a recuperação da Europa Ocidental e
do Japão, e, de modo geral, no período compreendido entre 19651973, demonstra que se tornou mais evidenciada a incapacidade do
Arquiteta pela FAU-USP, Mestra em Design Gráfico em 1997, no Royal College of Arts, de Londres. No seu artigo intitulado: Um design gráfico formador
de conceitos e opiniões. Para ver mais: O valor do design: guia ADG Brasil de
prática profissional do designer gráfico. – São Paulo, SENAC São Paulo; ADG
Brasil Associação dos Designers Gráficos, 2003, p. 22-24.
4
“Um regime de acumulação descreve a estabilização, por um longo período,
da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de produção
como das condições de reprodução de assalariados” (HARVEY, 2002, p. 117).
3
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
163
fordismo e do keynesianismo em manter contidas as contradições
(inerentes) do capitalismo. Ademais, o autor salienta que a rigidez de
“investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo” para
os sistemas produtivos em massa dificultava uma maior flexibilidade
no planejamento e que também “presumiam crescimento estável em
mercados de consumo invariantes”. Nesse contexto, também existiam
conflitos de rigidez nos “mercados, na alocação e nos contratos de
trabalho”. Tais problemas somados, e por trás dessa rigidez, desencadearam uma onda inflacionária que iria culminar num cerceamento
da expansão do pós-guerra no mundo capitalista5.
Nos anos de 1973-1975, com uma forte deflação posta, demonstrou-se a não equidade entre as finanças do Estado, ou seja, os recursos do Estado estavam muito aquém das demandas que o mesmo
poderia financiar. Sob esse cenário, deflagrou-se uma “profunda crise
fiscal e de legitimação”. Concomitantemente, “as corporações viramse com muita capacidade excedente inutilizável (principalmente fábricas e equipamentos ociosos)” sob uma configuração de intensificação
da competição.
Dessa forma, obrigou-as a uma nova conformação, adentrando a um
período de “racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho” (HARVEY, 2002, p. 137). No mundo da produção,
foram adotadas estratégias corporativas de sobrevivência nessa configuração de deflação, a saber: “mudança tecnológica, a automação, a
busca de novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão
geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e
medidas para acelerar o tempo de giro do capital” (HARVEY, 2002,
p. 137-140). Sob uma profunda recessão capitalista trazida pela instabilidade econômica que teve início em 1973, que, segundo Harvey,
“exacerbada pelo choque do petróleo”, retira o mundo capitalista do
“O ímpeto da expansão de pós-guerra se manteve no período 1969-1973
por uma política monetária extraordinariamente frouxa por parte dos Estados
Unidos e da Inglaterra. O mundo capitalista estava afogado pelo excesso de
fundos; e, com as poucas áreas produtivas reduzidas para investimento, esse
excesso significaria uma forte inflação. A tentativa de frear a inflação ascendente em 1973 expôs muita capacidade excedente nas economias ocidentais,
disparando antes de tudo uma crise mundial nos mercados imobiliários e severas dificuldades nas instituições financeiras.” (HARVEY, 2002, p. 136)
5
164
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
“sufocante torpor da estagflação” e desencadeia um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista de outrora. Com base
nas reflexões do autor, pode-se afirmar que nas décadas de 1970 e
1980 – um período de reestruturação da economia e também um reajustamento nas esferas social e política – começou a se conformar, em
meio a tantas oscilações e incertezas, uma série de experiências novas
nos domínios da organização industrial e da vida social. Registra-se
que essas “novas” experiências representam os “primeiros ímpetos da
passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinto”
denominado “acumulação flexível” (HARVEY, 2002, p. 140-141). Esse
“novo” regime se opôs frontalmente com a rigidez fordista. Apoiava-se
sob um pilar: a flexibilidade. Assim, processos de trabalho, mercados
de trabalho, produtos e padrões de consumo deverão ser regidos sob
esse padrão de acumulação. A título de melhor ilustração, o autor
caracteriza esse regime pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças
dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre os setores como
entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento
no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos
industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas. [...] Ela também envolve um novo movimento que chamarei de
“compressão do espaço-tempo no mundo capitalista – os horizontes
temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram,
enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitou cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num
espaço cada vez mais amplo e variegado (HARVEY, 2002, p. 140).
Esse cenário está posto no palco da grande maioria dos setores de
nossa sociedade, uma ideologia de produção flexível. No entanto, parece que, nessa égide, o sentido de ser “flexível” não se deteve ao seu
real significado de origem. Nesse sentido, bem teorizado por Richard
Sennet, aplica-se a expressão “capitalismo flexível”, reportando-se a
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
165
um sistema que vai de encontro à rigidez burocrática e aos modelos de uma rotina produtiva cega. Em decorrência, “pede-se” à classe
trabalhadora uma maior agilidade na produção, maior abertura para
mudanças a um breve prazo e que esteja continuamente aberta a assumir riscos, perdendo, dentre outras, a dependência às leis e aos
procedimentos formais (SENNET, 2000, p. 9). Ora, segundo o autor,
nota-se uma digressão também para o significado de “carreira profissional” que, aplicado ao sentido do trabalho, significa dizer que é
“um canal para as atividades econômicas de alguém durante a vida
inteira”. Nessa ordem, há por parte desse “capitalismo flexível” um
bloqueio nesse canal – “uma estrada reta da carreira” –, possibilitando
um desvio abrupto para os trabalhadores de um tipo de trabalho para
outro. Assim, sob a paleta desse desenho produtivo, as pessoas fazem
somente “fragmentos” de trabalho ao longo de suas vidas, vindo a
desconhecer o todo, havendo uma alienação de seu trabalho e do
resultado deste (idem).
Ainda nessa mesma linha de pensamento, Sennet (1999, p. 51)
salienta para a perda do sentido original da palavra “flexibilidade”,
oriundo de uma simples observação de árvores se curvando sob as
forças do vento, no entanto – é aqui o ponto central da reflexão –, os
seus ramos sempre retornam à posição de outrora. Ou seja, o termo
deveria se referir à capacidade do comportamento humano de ser
tênsil; adaptar-se às conjunturas variáveis, se “dobrando” a elas sem,
no entanto, se deixar “alquebrar” pelas mesmas. Metamorfoseandose e forjando-se no mesmo cadinho de um novo sistema produtivo e
constitutivo de sociedade – o regime de “acumulação flexível” (termos cunhados por David Harvey). Ocorrido durante as décadas de
1970-80, num espaço em que se viu embrenhado de oscilações e
conturbações, levando o capital a se reestruturar produtivamente,
tanto do ponto de vista econômico, quanto do social e do político,
plasmando uma nova forma de acumulação, associada a um também distinto sistema de regulamentação sociopolítico. Esse regime
é assentado sob pilares que vão de encontro à rigidez do regime de
acumulação fordista. Tem como diretrizes centrais a flexibilização
dos processos de trabalho, conjuntamente dos mercados de trabalho, dos produtos oriundos da produção e dos padrões de consumo.
Configurou-se pelo aparecimento de novos setores de produção, no-
166
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
vas formas de fornecimento para os serviços financeiros, novos mercados, intensificação de taxas na inovação comercial, tecnológica e
organizacional (HARVEY, 2002, p. 140). Esse autor ainda aponta que
a acumulação flexível foi acompanhada na
ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de
necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética
relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o
fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e
a mercadificação de formas culturais (HARVEY, 2002, p. 148).
Santos (2006, p. 188), nessa perspectiva de análise, ao enfocar o
Brasil, aponta que a falência do “milagre brasileiro” mediada por essas
instabilidades econômico-sociais do início dos anos 1970, e, de forma
mais efetiva, durante a década de 1980, “associada à recessão econômica e à abertura dos mercados” – que ganhou concretude no início
dos anos 1990 no governo do então presidente Fernando Collor –,
“constituem um conjunto de fatores combinados que determinou a
crise do capitalismo brasileiro ao final do século XX”. Segundo o autor,
essa crise impactou de forma contundente a acumulação de capital,
na medida da “quase total impossibilidade das empresas instaladas no
território nacional de participarem da competição no mercado internacional”. Haja vista, como já exposto anteriormente, que uma das
principais causas desse problema estava posta pelo “esgotamento” do
padrão de acumulação taylorista-fordista. É pertinente salientar que
no caso brasileiro a reestruturação produtiva não eliminou o “velho”
paradigma produtivo por completo, ou seja, ainda há empresas que,
embora já tenham introduzido o “novo” padrão flexível, caracterizado
pela adoção de novas tecnologias, articuladas com as também novas
formas de organização e de gestão produtivas, baseadas fundamentalmente no modelo japonês chamado “toyotismo”, ainda permanecem utilizando o “velho” modelo taylorista-fordista. Nesse sentido, de
acordo com Leite,
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
167
Novas e velhas práticas produtivas coexistem, tanto no plano técnicooperacional, como na gestão do trabalho e de qualificação e que mesmo no âmbito das empresas mais inovadoras, a estratégia é gradual e
sincronizada voltada à superação progressiva de gargalos não implicando reviravolta total da organização (apud SANTOS, 2006, p. 189).
Com base nessas reflexões, pode-se apontar que, de acordo com
Harvey (2002, p. 141), o regime de acumulação flexível “parece implicar níveis relativamente altos de desemprego ‘estrutural’ [...], rápida
destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando
há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista”. Nessa perspectiva, segundo Santos,
dois impactos sobre o conjunto dos trabalhadores merecem relevo,
a saber: a) de “natureza social”, que se materializa sob a forma do
desemprego; b) em consonância com o item anterior, se efetiva na
exigência de um novo perfil por parte dos trabalhadores, imposto pela
introdução das inovações tecnológicas. Traduz-se esse “novo perfil”
pelas novas demandas de qualificação, e, em decorrência, pelo aumento da escolaridade do trabalhador (2006, p. 191). Não obstante,
ainda de acordo com o autor, baseada na tese de Leite (1995), “é difícil culpar apenas a modernização das empresas” pelos altos índices de
desemprego no Brasil. Para elas, outros fatores, além do desemprego,
devem ser considerados personagens coadjuvantes na formação do
desemprego, tais como a forte recessão e a queda do investimento (no
início dos anos 1980), aliado “à falta de mecanismos que possibilitem
a efetiva proteção dos trabalhadores” (idem).
A força dessas ideias nos aponta que muitas mudanças foram acarretadas, principalmente nos processos de produção, trazidas no bojo
da reestruturação produtiva da economia e associadas a um intenso
processo de informatização de nossa sociedade. Contudo, seria possível afirmar que tais transformações se efetivaram atendendo a interesses de pequenos grupos, ditos privilegiados, alijando e alienando
uma boa parte da população trabalhadora. Em tempo, não ignorando outros aspectos, achamos relevante trazer, sob um recorte pedagógico a título de uma melhor ilustração e compreensão, as reflexões
de Richard Sennet demonstradas através de uma pesquisa empírica
168
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
feita por ele numa padaria americana, de como o processo de fabricação de pães se transformou. Como ele mesmo diz: “[...] fiquei
espantado ao ver como mudou” (2000, p. 76-80). A que mudanças
tão profundas ele se refere? Sob sua análise, atentemos para alguns
destaques, nesta breve descrição do problema. Os trabalhadores
eram imigrantes, italianos e gregos, predominantemente. O processo de fabricação exigia anos de treinamento; na padaria havia muito
barulho; exalava-se um cheiro de fermento que se misturava ao do
suor humano, nos quentes aposentos; as mãos dos padeiros estavam
constantemente mergulhadas em farinha e água; os trabalhadores
usavam tanto o nariz quanto os olhos para julgar o momento em que
o pão estava pronto. “Era forte o orgulho da profissão”, embora os
trabalhadores não gostassem de seu trabalho. Muitas vezes eles se
queimavam nos fornos. Havia a exigência de “músculos humanos”
devido à tecnologia primitiva dos rolos de massa. Predominava o trabalho noturno. Havia uma cooperação íntima entre os trabalhadores
na coordenação das tarefas diárias (SENNET, 2000, p. 76-88).
A “nova” padaria se apresenta configurada dessa maneira: é controlada por um gigantesco conglomerado de alimentos; sua produção é administrada nos moldes da organização flexível; são utilizadas
máquinas sofisticadas, reconfiguráveis, produzindo vários tipos e formatos de pães, a fim de atender às demandas do mercado; o cheiro
de suor de outrora não está mais presente; ela é fria, nela reina um
“estranho silêncio”. Não é mais um estabelecimento só de homens
trabalhando; o turno da noite foi substituído por um horário mais flexível. Sennet (2000) chama a atenção para o “local de trabalho hightech”, flexível, onde tudo é fácil de usar; por outro lado, cumpre notar
que os empregados se sentem pessoalmente degradados pela maneira
como trabalham. Os “padeiros” não mantêm mais contato físico com
os insumos ou os produtos, todo o processo é monitorado nas telas
dos computadores, através de ícones “amigos” que correspondem,
entre outras, às “imagens da cor do pão, extraídas de dados sobre a
temperatura e tempo de crescimento dos fornos”. São poucos os “padeiros” que veem de fato os produtos que fazem. Todo o seu modo de
produção está configurado nas telas dos microcomputadores, ou seja,
“o pão tornou-se uma representação na tela” (SENNET, 2000). Dessa
forma, os padeiros, ao trabalharem nesse desenho produtivo, “não
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
169
sabem de fato como fazer pão”. Adiciona-se a isto uma outra característica relevante, no sentido de que eles não têm mais como avaliar
com a “precisão” intuitiva, empírica de antes, como, por exemplo, a
verdadeira cor da bisnaga. Tudo leva a crer, segundo o autor, que o
“trabalho não é mais legível para eles, no sentido de entender o que
estão fazendo”. Ele aponta que o processo tecnológico da padaria é
um importante fator para essa “fraca identidade com o trabalho”. As
máquinas não são mais hostis, todas se apresentam como muito fáceis
de usar – como não poderia deixar de ser num regime de produção
flexível (SENNET, 2000, p. 80-88).
Por outro lado, o autor constatou que não só nesse tipo, mas em
todas as formas de trabalho, como por exemplo, desde “esculpir, a
servir refeições”, os indivíduos se identificam com as tarefas desafiadoras, não com as que são monótonas, repetitivas. A maquinaria, nesse
exemplo, é “o único padrão de ordem, e por isso tem de ser fácil para
qualquer um, não importa quem, operar”. Para um regime de produção em que impera a flexibilidade, a dificuldade nas operações se
torna “contraprodutiva”. No entanto, paradoxalmente, quando esta,
juntamente com a resistência, é diminuída, criam-se condições para
“a atividade acrítica e indiferente por parte dos usuários” (SENNET,
2000, p. 84). Ao fazermos uma analogia e nos remetermos para o contexto do Design Gráfico, que tem hoje também como ferramental de
produção o microcomputador e, com ele, todo o seu aparato tecnológico, poderemos associá-lo aos conflitos postos e com as mudanças
ocorridas nesse exemplo concreto.
O autor também indica que em níveis superiores de trabalho técnico, o ingrediente da computação enriqueceu o conteúdo dos serviços. Este lado “positivo” é demonstrado num estudo que Stanley
Aronowitz e William DiFazio (apud SENNET) fizeram sobre o impacto
da utilização da ferramenta AutoCAD (um programa de computador
que “auxilia” desenhos e projetos), para um grupo de engenheiros
civis e arquitetos, em Nova York. Primeiramente, constatou-se que
aquelas pessoas que já dominavam habilidades manualísticas, isto é, já
estavam acostumadas a representar graficamente objetos à mão livre,
sentiram-se “excitadas com a possibilidade de manipular imagens de
uma forma flexível na tela”. Não obstante, a utilização desse “novo”
ferramental high-tech trouxe para os seus “usuários de alto nível” re-
170
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
flexões a respeito. Pela própria imersão nesse modo de fazer, manipulando facilmente e de inúmeras maneiras os desenhos, esses usuários
percebem que o que anteriormente lhes era fácil, isto é, a visualização
da totalidade do que se projetava, agora apresenta-se com um grau
elevado de dificuldade. Ademais, essa “nova” máquina-ferramenta é
muito mais “inteligente” que os antigos aparelhos mecânicos. Há a
possibilidade de “substituir a inteligência dos usuários pela sua própria”. Nesse sentido, existe a incorporação dos conhecimentos obtidos
pela humanidade, ao longo de seu desenvolvimento, para “dentro”
dessa “nova” imposição produtiva.
De todo modo, retornando à temática dos desafios enfrentados pelo
designer, de acordo com Denis (2000, p. 214), do mesmo modo que a
possibilidade de se popularizar as tecnologias digitais, deu-se uma injeção, sem sombra de dúvida, de “uma grande dose de liberdade” no
exercício da prática efetiva do Design. No entanto, da mesma forma
que ele, é pertinente argumentar também que, junto com esse fato,
estão também presentes em seu “bojo novos limites para a imaginação
humana”. Ou seja, por mais opções que disponha um programa de
computação gráfica, ele é operado a partir de um cardápio de comandos preestabelecidos, significando dizer que há uma tendência, cada
vez mais difícil, de se imaginar possibilidades de execução e resolução
de demandas do campo profissional que não constam desse “cardápio” ofertado. Cabe notar que, sob esse cenário, há uma tendência a
uma pasteurização visual e estética, que nos parece ser um dos grandes equívocos atualmente observados no exercício da profissão Design. Ainda recorrendo ao autor, é pertinente considerar que
a possibilidade de prever o novo não pode existir em uma sequência
programada; portanto, o risco de bitolar a excentricidade criativa é
constante em qualquer sistema operacional que retira o controle instrumental do usuário, mesmo que seja para potencializar de forma
exponencial a eficiência da execução (DENIS, 2000, p.214).
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
171
Ainda nessa mesma ordem de pensamento, segundo Gilberto
Strunck6,“antes da informatização se banalizar, era necessário um
mínimo de talento/adestramento para representar com desenhos e
formas, novas ideias”. Contudo, atualmente com tantos softwares e
periféricos para os microcomputadores, como scanners, impressoras,
uma enorme quantidade de cliparts e imagens disponíveis em “bancos” existentes nos programas, bastam “alguns cliques” para se apresentarem projetos com excelentes qualidades gráficas. Por sua vez,
trouxe grandes transformações no ciclo produtivo do Design gráfico.
Necessariamente, torna-se premente uma conceituação mais apurada
e integrada para as soluções propostas. Os serviços outrora executados por terceiros passam a ser feitos pelos próprios designers, contribuindo para um acúmulo e aumento de tarefas. Por conseguinte, isso
acarretou uma necessidade de buscar uma atualização e de dominar
plenamente esse ferramental técnico e uma redução nos prazos para
a execução técnica dos trabalhos. Sob esse novo desenho produtivo
os softwares gráficos “simulam” como ficará o produto acabado. No
entanto, com as várias facilidades trazidas pelos mesmos, também vieram alguns percalços para os designers. Entre eles, situa-se a “nova”
percepção por parte dos clientes, no sentido de que é muito fácil criar;
por conseguinte, nesse esquema, eles se apresentam como um “simulacro de direção de arte; na gostosa tarefa de clicar, mexer e alterar
elementos visuais nas telas dos micros”. Strunck finaliza esse tema,
e assim como ele, afirmamos que “os verdadeiros diferenciais são a
imaginação, a criatividade, a habilidade e o talento para se comunicar
visualmente [...]” (2000, p. 20-22).
Gilberto Luiz Teixeira Leite Strunck. Renomado designer, formado pela
ESDI, M.Sc. Possui inúmeros trabalhos publicados em livros e revistas especializadas no Brasil, Suíça, Japão, Polônia, Inglaterra e EUA. Professor de Design
da Escola de Belas-Artes da UFRJ, e diretor de criação da Dia Design, no Rio
de Janeiro.
6
172
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
Tais ideias estão também sedimentadas em Alexandre Wollner7
(2003), que corrobora essas afirmações quando afirma que nos “últimos vinte anos, o desenvolvimento da informática mudou a possibilidade de ferramental para a expressão artística”. Ainda segundo ele,
o computador é uma poderosa ferramenta, muito útil, entretanto
ela depende de quem opera, da sua criatividade8. Muitos podem
usá-lo, mas devemos tomar o cuidado para não nos rendermos ao
“básico já pronto”.
Nessa perspectiva, convivendo num ambiente tenso, regido pela velocidade da informação, da rapidez de respostas e soluções, de um
mundo altamente competitivo, complexo, e por que não, caótico;
adicionado a uma também rápida evolução da informática, observase que as mudanças passaram para um outro plano – o plano virtual –,
“desmaterializado”, dificultando ainda mais a possibilidade de se percebê-las. Nesse sentido, de acordo com Garay (2002), esse novo “desenho” configura insegurança, e de certa maneira, “ameaça e desestaRenomado e importante designer. Aceito em 1950 em um curso de Desenho Industrial do Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São
Paulo. Algum tempo depois, ingressou para estudar na Escola de Ulm, na Alemanha. Retornou ao Brasil em 1958, onde abriu em sociedade com Geraldo
de Barros o primeiro escritório de design no país, o Form Inform. Com Niomar
Sodré, diretora do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre outros
nomes, fundou a Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI, pioneira do
ensino de Design no Brasil.
8
Sobre esse tema, nos parece legítimo trazê-lo, sob a análise de Ostrower,
afirmando que: “Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial uma de suas necessidades. [...] Criar é,
basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que
seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas coerências que se
estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo
e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. [...] Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado
de um dom singular: mais do que ‘homo faber’, ser fazedor, o homem é um
ser formador. Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos
eventos que ocorrem ao redor e dentro deles. Relacionando os eventos, ele os
configura em sua experiência do viver e lhes dá um significado. Nas perguntas
que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma” (OSTROWER, 1987, p. 5-9).
7
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
173
biliza a rigidez ordenada do mundo positivista que foi predominante
no modernismo”. Dessa forma, é percebido, de forma indiscriminada
em práticas de concepção de produtos oriundos do campo do Design
Gráfico, o uso de imagens desfocadas, mal-acabadas, riscadas, descoloridas, poluídas, recortadas, incompletas, redesenhadas em programas de tratamento de imagens, e sobrepostas no exercício profissional
de Design Gráfico.
Por outro lado, não caindo também num outro determinismo tecnológico, não seria justo atribuir culpabilidade pela falta de criatividade
somente à ferramenta computacional. Parafraseando Denis (2000, p.
215), devemos nos ater a todo cuidado para que possamos evitar,
diante da quase universalização de programas gráficos, sítios da internet e bancos de imagens, um “novo dogmatismo nas formas de
proceder”. Ou seja, o “velho senso de mistério e de magia diante de
uma folha em branco, experiência fundadora nos relatos de tantos
mestres do passado, definitivamente não parece se traduzir com a
mesma intensidade para o espaço da tela apinhada de ícones e barras
de ferramentas”. Ele ainda ressalta que a “própria metáfora de ‘navegar’, na rede (em inglês, emprega-se o verbo ‘surfar’) remete a uma
noção de deslizar pela superfície sem nunca se aprofundar, o que trai
a horizontalidade que tende a caracterizar a experiência internáutica”,
e que talvez o maior desafio do designer envolvido com a rede seja de
encontrar soluções que resistam, devido à sua qualidade e densidade,
a essa proliferação de informações parciais (idem).
Portanto, em meio à fragmentação característica e, de certa forma,
enriquecedora da experiência pós-moderna, é necessário que se confira relevo e que não percamos o foco em buscar narrativas e linguagens mais amplas e unificadas (DENIS, 2000, p. 215). No entanto,
cumpre relevar, não deixando de levar em consideração o entorno
socioeconômico e político, não se prescindindo de para quem e para
que se projetam produtos do campo do Desenho Industrial, ou seja, é
imperioso ressaltar que não percamos de vista a totalidade e a efetiva e
real ação social daquilo que é oriundo desses projetos. Nessa perspectiva, sob as observações de Bueno (2003, p. 40), “os sentidos humanos
são históricos, formados ao longo da história”, assim, os mesmos têm a
possibilidade de serem educados de forma a contribuir para que haja
uma maior percepção e compreensão, indo muito mais além do que
174
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
“apenas sombras e fantasmas projetados nas paredes de uma caverna”. Ele adiciona que ainda há a possibilidade de uma educação para
“algo muito mais sutil e elaborado do que os choques, os excessos
de luz, de sinais, de estímulos e de velocidade, a própria cegueira da
sociedade do espetáculo” (idem). Isso posto, nos compele reputar que
se devam promover ações que conduzam a um pensar sobre o mundo
de forma a possibilitar um maior enfrentamento e aproximação com
os seus reais problemas e sua essência – essência nos mesmos termos
que Karel Kosik invoca em suas reflexões. Ademais, é preciso que
o pensamento crítico considere o mundo visível, das aparências, os
próprios simulacros da sociedade do espetáculo. Mas não para neles
se deter, aceitando sua lógica de produção e reprodução, como algo
inevitável ou pior, criador de liberdade. Uma vez mais, é preciso criticar a passagem, de todo idealista, que transforma a necessidade em
virtude, as carências e restrições em mundo plural e aberto. Mas é
para trabalhar uma elaboração de outro tipo, uma imaginação crítica e
construtiva, capaz de relacionar esse mundo dos simulacros de massa,
da própria sociedade do espetáculo, e os níveis mais elaborados de
percepção e conhecimento de nossa época. Um outro tipo de imaginação pode mesmo ser que aponte para alguma coisa diferente do
que existe e se vai reproduzindo. Não como imagens que matam a
própria imaginação, à custa de uma exaustiva e monótona repetição,
para lembrar aqui Gaston Bachelard (BUENO, 2003, p. 36).
PARA CoNClUiR bUSCANDo RESPoSTAS PARA A PERGUNTA iNiCiAl
Precisamos [...] de designers criativos, construtivos e visão
independente, que não sejam nem ‘lacaios do sistema
capitalista’, [...] nem ‘geninhos tecnológicos’, mas antes
profissionais capazes de desempenhar o seu trabalho com
conhecimento, inovação, sensibilidade e consciência.
Nigel Witheley (1998)
Como já posto anteriormente, tais considerações levaram a impactar, substancialmente, a área do Design. Inserido como sujeito nessa
lógica produtiva e cultural, desdobrada da reestruturação produtiva da
economia, em conjunto com o ideário da pós-modernidade, o indivíduo sobrevive num mundo de pujante ordem de informações, que se
constitui em visões fragmentadas e fragmentos de visões (cuja totalida-
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
175
de somente é recomposta na mente de cada um, e sempre de forma
passageira) do efêmero, do acaso, da superficialidade. O que nos leva
a crer que afeta, sobremaneira, o campo de formação do Design.
Dessas contradições, sob uma visão macro, pode-se pensar que há
uma crise no Design? Giulio Carlo Argan aponta que sim. Para ele, tal
aspecto manifesta-se no product design e a ideia da gute form, “como
uma divergência crescente entre programação e projeto”. Nesse sentido, a programação é vista como “preordenação calculada e quase mecânica”, com tendência não mais a preceder o projeto, mas substituí-lo
como busca de “soluções dialéticas para as contradições que se vão determinando sucessivamente na sociedade”. Assim, como ele, defendese e compreende-se que “projeto ainda é um processo integrado numa
concepção do desenvolvimento da sociedade como devir histórico”.
Isso posto, em contrapartida, de acordo com Argan, “programação é
a superação da história enquanto princípio da existência social”. Colocada nesses termos, ela subtrai dos indivíduos “toda escolha e decisão,
conferindo-as ao poder”. Ele também afirma que toda cultura ocidental, com um eixo norteador estruturalmente dualista, é “a distinção e,
ao mesmo tempo, o paralelismo, o equilíbrio simétrico entre objeto e
sujeito”. Dito de um outro modo: não se pode pensar o objeto em separado do sujeito. O sujeito se torna sujeito “porque coloca a realidade
como outra e distinta de si; o objeto é objeto apenas porque é assumido
e pensado pelo sujeito”. Dessa forma, o autor nos conduz a conformar
como objeto a realidade ou um fragmento dessa realidade, se partirmos
como princípio de que ela adquire a “singularidade do sujeito”, na medida em que é pensada por um sujeito. Da mesma maneira, entende-se
o homem como sujeito porque compreende e faz sua a realidade ou
um seu fragmento (ARGAN, 2005, p. 251-252).
De acordo com o autor, pode-se afirmar que o Design tem um papel
de atuar como “processo da existência finalística não apenas da sociedade, mas de toda a realidade”. É ele que promove uma “coisa ao
grau de objeto” e coloca o objeto como um ser “perfectível, ou seja,
participante do finalismo da existência humana”. Portanto, infere-se,
segundo o autor, que a crise é uma crise global. Para ele o mundo
moderno possui uma tendência de não mais ser um mundo de “objetos e sujeitos, de coisas pensadas e pessoas pensantes. O mundo
de amanhã poderia não ser mais um mundo de projetistas, mas um
176
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
mundo de programados”. Assim, o pensamento ocidental, estruturalmente objetivador, objetifica as coisas, as pessoas, a realidade inteira
(ARGAN, 2005, p. 252). Para ele, a crise do objeto reside na crise do
produto. Sob que bases conceituais? Houve duas premissas quando
se tentou passar o produto de interesse individual para o produto de
interesse coletivo:
1) o valor de qualquer produto da técnica resulta da quantificação
mais ou menos ampla da qualidade do unicum-arte assumido como
modelo; 2) identificando a qualidade ao valor estético, as técnicas da
arte e do artesanato têm a finalidade de produzir valor estético, ou
seja, ligar uma experiência estética, ainda que em grau diverso, a todas
as coisas de que nos servimos na vida (ARGAN, 2005, p. 254).
Ainda, nessa ordem, o industrialismo sob uma ideologia-utopia original bauhausiana poderia ter transformado a “velha sociedade vertical,
classista, hierárquica”, numa outra diametralmente oposta: “horizontal, sem classes, funcional” (ARGAN, 2005, p. 254). Depreende-se, a
partir das reflexões do autor, que essa perspectiva reformista estava
ancorada basilarmente na busca “mais orgânica de transformação da
sociedade através da uniformização de sua cultura material, realizada
no outro pós-guerra”. Assim, as ideias que presidiram a filosofia pedagógica bauhausiana de Walter Gropius tinha um objetivo de não
apenas ser um local de estudantes de metodologias projetuais, mas
como proposta de um modelo de uma “sociedade-escola”, isto é, uma
sociedade que se constrói, projetando seu próprio ambiente e sua
reforma, e ainda, de criar objetos cujo valor não dependesse mais da
matéria, e sim da forma, e – importa ressaltar – que fossem utilizáveis também por classes economicamente não privilegiadas (ARGAN,
2005, p. 244). Na sua ideologia, um objeto como um número de
série, logo, sob um viés quantitativo; no entanto, em sua essência,
com um valor de qualidade do projeto-modelo de que era a repetição. Assim, melhor dizendo, pedagogicamente, mediada pelo uso
dos objetos em seu cotidiano, a sociedade aprenderia que “cada ato
moralmente válido é um projeto”, isto é, “um passo em direção à realização da ideologia em cuja perspectiva fora concebido” (ARGAN,
2005, p. 244).
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
177
Na Alemanha do segundo pós-guerra, procurou-se dar vida a essa
filosofia original, de se reestruturar uma Segunda Bauhaus: a Hochschule für Gestaltung – ou, como é mais conhecida, a Escola de Ulm.
No entanto, não houve êxito nessa tentativa. Argan demonstra que o
seu insucesso, em parte, deveu-se pela relutância da grande indústria
em posicionar seu telos produtivo com finalidades sociais. Ao deixar
de lado essa filosofia, se lançou na busca desenfreada do lucro imediato. Também se atribui ao fato de ter sido proposta uma padronização
exacerbada ao objeto, num momento em que para o contexto geral
da cultura, o conceito de objeto (e, simetricamente, de sujeito) já não
mais se cabia propor. E ele faz uma crítica mais veemente a esse fato
quando afirma que: “[...] a gute Form se deixa cooptar facilmente: o
‘estilo Braun’ não é mais que apropriação indevida do método de Ulm
por parte do neocapitalismo alemão” (ARGAN, 1981, p. 9).
A força dessas ideias nos leva a crer que, ao analisarmos a cadeia produtiva dos produtos, no caso de ocorrer uma mudança numa série de
produtos, pode-se depreender que seu processo é determinado pelo
“desgaste do produto”, que, por conseguinte, se processa por motivos
objetivos ou subjetivos. Quando se obtém resultados de pesquisas feitas no âmbito dos projetistas e se constata que há uma necessidade de
adequação de um produto que ou uma mudança seja feita por uma
melhor correspondência à sua finalidade, seu espectro de aplicação é
mais vasto, e, nessa ótica, se processa uma obsolescência objetiva. Se,
no entanto, ao invés disso, o desgaste é “programado” sob fins psicológicos nos usuários, como incentivo ao descarte – e aí entra todo o
aparato do marketing e da publicidade – configura-se nesse modus um
“consumo desproporcionado à necessidade”, se processando o que
se denomina “obsolescência artificial”. Isto é, um produto já, desde
a sua fase projetual, sairia configurado com um tempo de vida curtíssimo, ou seja, a data de sua “morte” já anunciada previamente. Aí
entram as grandes transformações formais (aparência), os modismos,
os simulacros, o marketing, para criar necessidades, anseios e “novos”
desejos por parte dos consumidores, em adquirir os “novos produtos”.
É, nesse sentido, nessa desproporção, que se apresenta a “espiral sem
fim do consumismo”, salienta Giulio Carlo Argan (2005, p. 261-262).
Em vista disso, mudando-se periodicamente a aparência de uma mercadoria, reduzia-se o tempo de permanência dessa mesma na esfera
178
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
do consumo. Esta é uma técnica conhecida como “inovação estética”.
Está, sobretudo, na subordinação dos valores ligados às marcas – Wolfgang Haug (1997) chama de “vitória da mercadoria monopolista” –,
pois uma determinada marca tende a implantar um monopólio próprio
para a sua mercadoria. Haug (1997, p. 55) sinaliza para a convivência da inovação estética por parte dos consumidores, como um fim
inevitável, embora sendo fascinante. Há um deslocamento das mercadorias de sua manifestação como por si mesmas, para a esfera dos
“objetos sensível-supra-sensíveis”, ressalta o autor. É notada, portanto,
uma substituição das gerações de mercadorias diferenciadas esteticamente, como uma estação à outra. Nessa arena, os designers se veem
diante de uma tarefa (imposta!?) de, ao projetar uma nova “imagem”
para determinado produto, estabelecer, dessa forma, uma nova moda,
uma “nova necessidade”. Ademais, Haug indica ainda que, segundo “o
impulso deles, a inovação estética é essencialmente caducidade estética; o novo como tal não lhes interessa” (1997, p. 54-55). Portanto, é
pertinente considerar que nessa relação se faz presente, muito intimamente, o Design de produtos, contribuindo para a materialização desse
fenômeno mercadológico. Assim, percebe-se que o Design, enquanto
arte e técnica, encontra-se constantemente balizado de um lado por
uma preocupação estética; de outro, determinado por uma ética.
Nessa ordem de pensamento, Maldonado (1981, p.14) afirma que
se deve admitir que o Desenho Industrial não é uma atividade autônoma, ainda que se possa pensar que suas “opções projetuais possam
parecer livres – e às vezes até são –, sempre se trata de opções no contexto de prioridades estabelecidas de uma maneira bastante rígida”.
Ou seja, infere-se que a regulação dos projetos de Desenho Industrial
é presidida por esse sistema de prioridades. Sob essa configuração
orgânica, não nos causa estranheza o fato de que, na fase de conformação dos objetos, sua “fisionomia” apresente mudanças substanciais
quando a sociedade decide privilegiar determinados fatores em lugar de outros. Por exemplo, fatores relacionados às questões técnicoeconômicas ou técnico-produtivas em detrimento aos funcionais; ou
os fatores simbólicos indo de encontro aos “técnico-construtivos ou
técnico-distributivos” (idem).
Fazendo eco a essas reflexões, Argan (2005, p. 262) caracteriza
como Styling o processo deformado e vicioso do projeto que objetiva
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
179
projetar com fins de se obter o máximo de consumo – lucro máximo –, exagerando as características mais “apetitosas, ou comestíveis”
de um produto. Nessa linha, se há uma provocação intencionada de
impulsos, e se não se obtém uma resposta imediata nos produtos, o
consumismo gera um “sentimento contínuo, patológico, frustrante de
insatisfação”. Depreende-se desse contexto que, ao invés de termos
uma sociedade de consumo como uma sociedade de bem-estar, o
que vemos, na realidade, é uma “sociedade irremediavelmente infeliz”. Em tempo, parece-me importante trazer um pensamento de
Argan que reitera essa reflexão:
Tudo leva a crer que serão justamente esses produtos efêmeros, leves, coloridos, fáceis de manusear, fáceis de trocar, que constituirão
a mutável e vivíssima morfologia do ambiente, e teremos como uma
nova natureza fabricada pelo homem e sobreposta à primeira. Resta,
enfim, o grande problema dos verdadeiros circuitos de informação e
comunicação: a televisão, o rádio, o cinema, o teatro, a imprensa, o
esporte. O novo design não deveria por certo consistir em impor a
essas atividades, que utilizam amplamente os meios de comunicação
visual, uma certa dignidade formal – ao design de objetos deve suceder, portanto, o design das imagens. A indústria põe em circulação
uma enorme massa de imagens. Se pensarmos que, em substância,
reduziu os objetos às suas imagens, podemos até dizer que produz e
introduz no mercado apenas imagens (ARGAN, 2005, p. 265 – itálicos
no original).
Dessa maneira, estando a nossa sociedade exposta a um bombardeio de imagens, principalmente nas cidades, consequentemente,
é promovida a paralisação da imaginação: “faculdade produtora de
imagens” (Argan). O autor enfatiza que essa carência de emissão de
imagens tem, por conseguinte, uma “aceitação passiva das imagens
que formam o ambiente efêmero, mas real, da existência”. Significa
dizer que há uma “falta de reação ativa, de interesse, de participação”. Argan afirma que não é outra coisa senão o que se denomina
de alienação. E é pertinente adicionar, segundo suas reflexões, que a
“alienação, a falta de integração ao ambiente, a paralisação da imaginação são a origem da patologia urbana, da violência, do vandalismo,
180
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
das drogas, da neurose coletiva”. Portanto, faz-se necessário envidar
esforços objetivando conseguir que a “informação e a comunicação
de massa não sejam em mão única e, acima de tudo, não impeçam
a comunicação dos indivíduos entre si e com o ambiente” (ARGAN,
2005, p. 265). Dessa forma, põe-se a imaginação nesse patamar pedagógico de construção do indivíduo como sujeito em si e para si, pois
ela é a “faculdade que nos permite pensar em nós mesmos de forma
diferente do que somos e, portanto, propor uma finalidade além da situação presente”. Ele salienta que “sem imaginação pode haver cálculo, mas não projeto”; deve-se utilizar uma metodologia de concepção
não mais somente como uma “predisposição dos meios operacionais
para pôr em prática os progressos imaginados”, e sim uma imaginação
ética e politicamente intencionada, preocupada com as reais necessidades dos indivíduos. Em tempo, parece importante ressaltar e trazer
à tona que o Design tradicional, criado pela Bauhaus no primeiro pósguerra, estava estreitamente ligado à pesquisa dos artistas do construtivismo, isto é, tinha em vista “tornar melhor, mais racional, mais
eficiente, mais agradável, o ambiente da vida cotidiana”. No entanto,
ocupava-se, porém, ainda e apenas, do objeto, “sem considerar que
o problema do objeto implica o do sujeito e vice-versa” (ARGAN, p.
265-266).
Assim, uma questão se impõe: parafraseando Argan, que instrumental poderia se prestar para um corpus que parece ser o único programa
do Design? De acordo com o autor, um só, no entanto, sob outros
níveis e com ramificações diversas: a escola, embora a considerando
ainda como um aparelho de classe que tem por finalidade manter a
hierarquia das classes. Suas reflexões nos apontam que, ao concebermos um desenho de sociedade configurado como uma “sociedade
de massa”, nos resta, enquanto uma “dilatação quantitativa da cultura
de classe, evitar que às estruturas dos sistemas de informação e de
comunicação corresponda uma mudança qualitativa ou substancial da
estrutura da cultura – eis, o que parece um dos absurdos mais grosseiros e perigosos do mundo de hoje” (ARGAN, 2005, p. 267). É forçoso notar, conforme analisa Frigotto (apud FONSECA, 2006, p. 211),
que a escola enquanto instância que permite explorar as contradições
que estão postas na sociedade, “é ou pode ser um instrumento para
mediar a negação dessas relações sociais de produção, constituindo,
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
181
também um instrumento eficaz na formulação das condições concretas que visam superar as relações sociais determinantes entre capital e
trabalho, trabalho manual e trabalho intelectual, mundo do trabalho
e mundo da escola”.
Com base nas ideias expostas, cabe ressaltar a inserção de metodologias projetuais e conhecimentos que municiem alunos (futuros
designers), imersos nesse mundo da superfície, do espetáculo e da
efemeridade, de maneira que possam melhor compreender criticamente a real relevância social contida em seus projetos, seja de produtos do uso cotidiano ou de peças gráficas. Da mesma forma que
Argan (2000, p. 121), confere-se relevo ao “projeto” como um método que compreende em si mesmo, no seu “traçado”, a “consciência
de todas as técnicas inerentes à sua realização”, e que deve estar em
correspondência com as demandas práticas no tocante a que, a quem
e para que deve servir, não somente a exigência de um só sujeito
ou grupo social. Fazer com que a Educação atue como mediação de
uma nova produção humana (práxis) não imediatamente práxis, mas
mediatamente práxis, se identificando com ela e, ao mesmo tempo,
negando-a (contradição) levando a uma nova práxis, eis aí uma importante missão a cumprir.
É importante também ressaltar que esses futuros profissionais de Design tenham um compromisso social de plasmarem ações e soluções
que desenvolvam contribuições significativas com o desenvolvimento
de nossa sociedade. Assim, em sua formação educacional e em atividades de sua inserção profissional, não devam ter uma diretriz única
que promova, com tanta pujança, uma lógica projetual de visão unilateral, voltada somente para o mercado. Enfatizando-se tal aspecto,
Bueno (2003, p. 36) sinaliza que é necessário “trabalhar uma elaboração de outro tipo, uma imaginação crítica e construtiva, capaz de relacionar esse mundo dos simulacros de massa, da própria sociedade do
espetáculo, e os níveis mais elaborados de percepção e conhecimento
de nossa época”. Assim, deve-se buscar plasmar um corpus global,
não pulverizado, não alienante e compromissado cultural e politicamente, não se prescindindo de questionamentos perante o público e
a finalidade social de seu trabalho.
182
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
REFERÊNCiAS
ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000.
BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Petrópolis: Vozes, 1993.
BOAL, Augusto. Fala-se em cultura: o que é? Caros Amigos, São
Paulo, 2001.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1999.
BUENO, André. A educação pela imagem & outras miragens. Trabalho,
Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2003.
CARLSEN, Jon Bang. Um rosto na multidão. Folha de S. Paulo, São Paulo,
29 mar. 1998. Caderno Mais!
CAUDURO, Flávio Vinícius. Design gráfico & pós-modernidade. Revista da
FAMECOS, Porto Alegre, n. 13, dez. 2000.
______. O imaginário tipográfico pós-moderno. Disponível em: <http://
wawrwt.iar.unicamp.br/GTcompos2002/cauduro.html>. Acesso em: 01
ago. 2005.
DENIS, Rafael Cardoso. Uma introdução à história do design. São Paulo:
E. Blücher, 2000.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.
FONSECA, Laura Souza. Reestruturação produtiva, reforma do estado e
formação profissional no início dos anos 1990. In: FRIGOTTO, Gaudêncio;
FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta (Org.). A formação do cidadão produtivo: a cultura de mercado no ensino médio técnico. Brasília, DF: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.
FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta. O conhecimento histórico e o problema teórico-metodológico das mediações. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta (Org.). Teoria e educação no labirinto do capital. Petrópolis: Vozes, 2001.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1981.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
183
GARAY, Boris. Design gráfico e espírito jazzístico: reflexões sobre inovação
constante. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM DESIGN,
2., 2003, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPED, 2003.
GROPIUS, Walter. Bauhaus: nova arquitetura. São Paulo: Perspectiva,
1997.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2002.
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Ed.
UNESP, 1997.
JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e a sociedade de consumo. In: KAPLAN, E. Ann (Org.). O mal estar do pós-modernismo. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1990.
______. Reificação e utopia na cultura de massa. Crítica Marxista, São Paulo, n. 1, 1994. Disponível em: <http//www.unicamp.com.br/cemarx/criticamarxista>.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
LUKÀCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do
homem. São Paulo: Ciências Humanas, 1978. (Col. Temas, 4).
MALDONADO, Tomás. El diseño industrial reconsiderado: definición,
história, bibliografia. Barcelona: G. Gili, 1981.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civ.
Brasileira, 1980.
______.______. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
______. Capítulo inédito d’O Capital: resultados do processo de produção
imediato. Porto: Publicações Escorpião, 1975.
______. Para uma crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
______. O trabalho alienado. In: ______. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Ed. 70, 1964.
MELO, Chico Homem de. Os desafios do designer. São Paulo: Rosari,
2003.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo,
2006.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.
184
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Petrópolis: Vozes,
1993.
REIS, Ronaldo Rosas. Educação e estética: ensaios críticos sobre arte e formação humana no pós-modernismo. São Paulo: Cortez, 2005.
______. Trabalho e conhecimento estético. Trabalho, Educação e Saúde,
Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, 2004.
SANTONI RUGIU, Antônio. Nostalgia do mestre artesão. Campinas: Autores Associados, 1988.
SANTOS, Jailson dos. Início dos anos 1990: reestruturação produtiva, reforma do estado e do sistema educacional. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta (Org.). A formação do cidadão produtivo: a
cultura de mercado no ensino médio técnico. Brasília, DF: Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.
SENNET, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2000.
STRUNCK, Gilberto. Viver de design. Rio de Janeiro: 2AB, 2000.
O VALOR do design: guia ADG Brasil de prática profissional do designer
gráfico. São Paulo: SENAC São Paulo: ADG do Brasil, 2003.
WITHELEY, Nigel. O designer valorizado. Arcos: design, cultura material e
visualidade, Rio de Janeiro, v. 1, 1998.
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 150-185 | JANEiRo > AbRil 2009
185
NÚMERoS ANTERioRES
EDiÇÃo 4
CoTAS NAS UNiVERSiDADES bRASilEiRAS - A contribuição
das teorias de justiça distributiva ao debate
Fábio D. Waltenberg
UMA RElEiTURA PREliMiNAR SobRE A RElAÇÃo ENTRE
DEMoCRACiA, ESFERA PÚbliCA E DESiGUAlDADE NA
SEGUNDA METADE Do SÉCUlo xx NA AMÉRiCA lATiNA
Érica Pereira Amorim
DESENVolViMENTo loCAl E RESPoNSAbiliDADE SoCiAl As ações de responsabilidade social como um instrumento
de interlocução entre as empresas e a sociedade
leonardo Marco Muls
Ana Paula Fleury de Macedo Soares
FiloSoFiA E DANÇA CoNTEMPoRâNEA - Do
movimento ilusório ao movimento total
Maria Cristina Franco Ferraz
o PolíTiCo CoNTRA A PolíTiCA - Uma agenda
de pesquisa em forma de manifesto
Thamy Pogrebinschi
EDiÇÃo 5
A iNSUPoRTÁVEl lEVEzA Do CAPiTAl - Excertos a partir de baudrillard
André Queiroz
MUDANÇAS SoCiETÁRiAS E CRiSE Do EMPREGo - Mistificações,
limites e possibilidades da formação profissional
Gaudêncio Frigotto
CoNFUSõES EM ToRNo DA NoÇÃo DE PÚbliCo - o caso da
educação superior (provida por quem, para quem?)
Ricardo Paes de barros, Mirela de Carvalho,
Samuel Franco, Rosane Mendonça e
Paulo Tafner
ENTRE A ESPERANÇA E A REAliDADE SobRE A ARTE E o SEU ENSiNo
Ronaldo Rosas Reis
SobRE o RElATiViSMo ESTÉTiCo PóS-MoDERNo
E SEU iMPACTo ExTRA-ESTÉTiCo
Walzi C. S. da Silva
EDiÇÃo 6
o PRoGRAMA bolSA FAMíliA E AS CoNDiCioNAliDADES DE SAÚDE
EM NíVEl MUNiCiPAl – Um programa populista ou estrutural?
Juliana Estrella
leandro Molhano Ribeiro
HUMoR NA liTERATURA bRASilEiRA - No início do século xx
leandro Konder
A CiDADE-obRA oU ‘oS olHoS DA CiDADE SÃo DElES’
luizan Pinheiro
PobREzA E SAÚDE iNFANTil - Uma análise a
partir dos dados da PoF e da Pnad
Maurício Reis
Anna Crespo
A SoCiEDADE iNDUSTRiAl E SUAS VUlNERAbiliDADES
Sergio Elias Couri
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
187
EDiÇÃo 7
CUiDADoS DE loNGA DURAÇÃo PARA A PoPUlAÇÃo iDoSA
- Família ou instituição de longa permanência?
Ana Amélia Camarano
FAToRES QUE iNFlUENCiAM o AMbiENTE DA ASSiSTÊNCiA à
SAÚDE No bRASil - Modelo atual e novas perspectivas
Flávia Poppe
SiMUlACRo, SHoPPiNG CENTER E EDUCAÇÃo SUPERioR
José Rodrigues
PolíTiCAS PASSiVAS DE EMPREGo - Características,
despesas, focalização e impacto sobre a pobreza
luís Henrique Paiva
PREViDÊNCiA No bRASil - Debates e desafios
Paulo Tafner
EDiÇÃo 8
FAToRES QUE iNFlUENCiAM o AMbiENTE DA ASSiSTÊNCiA à
SAÚDE No bRASil – Modelo atual e novas perspectivas
Flávia Poppe
AÇÃo AFiRMATiVA: PolíTiCA PÚbliCA E oPiNiÃo
João Feres Júnior
A ARQUiTETURA NA ‘ESTÉTiCA’ DE lUKÁCS
Juarez Duayer
PREViDÊNCiA CoMPlEMENTAR PARA o SERViÇo PÚbliCo No bRASil
Marcelo Abi-Ramia Caetano
TRANSFERÊNCiAS DE RENDA FoCAlizADAS NoS
PobRES - o bPC versus o bolsa Família
Sonia Rocha
188
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
Obtenção de exemplares:
Assessoria de Divulgação e Promoção
Departamento Nacional do SESC
[email protected]
Tel.: (21) 21365149
Fax: (21) 21365470
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.3 nº9 | p. 1-190 | JANEiRo > AbRil 2009
189
190
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.3 nº9 | p. 1-190 | janeiro > abril 2009
Esta revista foi editada nas fontes Zapf Humanist 601 BT, em corpo 10/9/8,5, e ITC Officina Sans,
2,
em corpo 26/16/9/8, e impressa em papel off-set 90g/m na Gráfica Duoprint.
ISSN 1809-9815
ano 3 | janeiro > abril | 2009
09
SESC | Serviço Social do Comércio
INTELECTUAIS E ESTRUTURA SOCIAL: UMA
PROPOSTA TEÓRICA
SESC | Serviço Social do Comércio
Daniel de Pinho Barreiros
CULTURAS URBANAS E EDUCAÇÃO
EXPERIMENTAÇÕES DA CULTURA NA EDUCAÇÃO
Ecio Salles
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
UMA INTRODUÇÃO AO SEU ESTUDO
771809 981005
9
ISSN 1809-9815
www.sesc.com.br
ano 3 | janeiro > abril | 2009
01
Franklin Trein
A EVOLUÇÃO FAZ SENTIDO. INCLUSIVE NA
ATIVIDADE FÍSICA?
Hugo Rodolfo Lovisolo
‘DESIGNERS’, SUJEITOS PROJETIVOS OU
PROGRAMADOS?
Marco Antonio Esquef Maciel
09
Download

Revista Sinais Sociais N9 pdf