Do dom da vida Joëlle Ghazarian Escola Superior de Educação de Portalegre Mesa Redonda Escola Superior de Educação de Portalegre pág 126 A assinalar os vinte anos da ESEP, impôs-se uma lição de júbilo, a da Doutora Isabel Vila Maior, saudando um já longo caminho e abrindo-se para um horizonte renovado: aquele que da eterna busca de enriquecimento científico e pessoal prossegue na estimulante partilha do saber e da confiança. E que melhor saudação do que a de alguém tão desprendida como eu? O ano lectivo de 2004-2005, o dos vinte anos de existência da ESEP, foi marcado por um leque de lições, em particular a de Isabel Vila Maior com vista à sua nomeação como professora coordenadora da área científica de Língua e Literatura Portuguesa e suas Didácticas. Esse encontro ocorreu em 25 de Novembro de 2004, dia da festa do IPP. A escolha temática da prelecção, decorrente do papel das ESE na consolidação e desenvolvimento da área de literatura infanto-juvenil e da tese de doutoramento de Isabel Vila Maior1 sobre a literatura juvenil portuguesa contemporânea, incidiu sobre a análise literária e pedagógica de uma obra «estratégica» para crianças, a das histórias de Agustina Bessa-Luís, em particular Dentes de Rato e Vento, Areia e Amoras Bravas. O objectivo consistiu em apreender a imbricação existente entre escrita autobiográfica e romance de formação, o que desde logo suscita um questionamento: a escrita autobiográfica, ao transformar a vida real numa vida reconstruída, significará que o autor textual constrói a sua identidade entre a realidade e o imaginário? A lição de Isabel Vila Maior pôs em relevo, nas histórias infantis de Agustina – autora segundo a qual «ninguém escreve para as crianças» “, a ambiguidade da escrita infanto--juvenil, bem como a ambiguidade da personagem auto-biográfica. Nesta escritora, que pertence por direito próprio à literatura portuguesa canónica, a recusa complexa e fértil da sua própria tentativa de escrever para crianças revela a que ponto a literatura infantil não é menor, e muito menos inócua, quer perante a literatura com maiúscula, quer perante a identidade. A personagem que entre o real e o imaginário edifica a sua identidade é simultaneamente um autor textual e uma criança que cresce. Quero com isto dizer que o crescer e a literatura têm a ver com os dados estéticos primordiais, que se situam entre lição de arte e lição de vida. Neste contexto, o ponto culminante é o ensinamento que de tais coisas decorre: a fé vital e pedagógica, dando uma dupla vida a Isabel Vila Maior, enriquece com a literatura e o ensino a sua trama de vivências, alimenta o seu saber pela construção do real. Na sua lição magistral, adequada à situação, Isabel Vila Maior deixou perpassar a sua qualidade interactiva através do tom e do gesto, captada como estava (e como nós estávamos) pela sugestiva pertinência do tema, ainda que – como no fim dirá «uma prova mexa sempre por dentro». Todo o pensamento criativo vem do uso eficaz da imaginação, e a imaginação criativa é sempre concretizadora; o nó desta lição encontra-se justamente no elo enigmático do fluxo da imaginação que a memória alimenta e que a escrita realiza. A este propósito, convém referir o acaso, a respeito do qual disse Isabel Vila Maior que ele lhe trouxe coisas que soube apanhar. Entre o homem de ciência que faz descobertas por acaso e o poeta (Herberto Helder) para quem «o acaso só existe para Dezembro de 2005 aprender aprender Dezembro de 2005 Opinião Eduardo Fonseca, professor coordenador da ESE de Leiria. Foi manifesto, no seio do júri, o interesse de todos, bem como a sua satisfação, sendo de realçar as amplas intervenções da fecunda ensaísta Maria Lúcia Lepecki. Curiosamente, entre esta e Isabel Vila Maior parece haver o positivo e o negativo duma película fotográfica: a vitalidade de Isabel é generosa, embora discreta, a de Maria Lúcia é manifestamente calorosa, parecendo ser a revelação das sóbrias características de Isabel: tratando-a por tu e por você, corporalmente falante, fazendo primeiro de aluna (como dirá), ouvindo, tomando notas, e depois desempenhando sem ritual o seu papel de professora e membro do júri, dirigindo-se à candidata com um «minha querida», dizendo sentir «prazer, honra e alegria» diante dela. Estamos aqui ainda, por acaso, nas escadas em caracol, e se é verdade que o texto está no texto, a mulher está na mulher e a vida está na vida – não é menos verdade, como acentuou Maria Lúcia Lepecki, que «a memória da história é a história do amor, porque não há memória sem amor, e a leitura é um enquadramento afectivo». Enquanto ali aguardávamos, junto à porta do Salão Nobre, o ambiente revelou-se excelente. Chegou depois a resposta desejada, com ela as congratulações do júri ante a lição por todos escutada, e a seguir, num movimento de alegria, todos espontaneamente rodeámos a laureada, comovida e luminosa. E ainda prosseguindo o conto para crianças, desses que nos fazem realmente sonhar, vi então os meus colegas, dos mais «graduados» aos mais masculinos, rejuvenescer por instantes, descuidados, sem orgulho, libertos de convenções. E foi muito agradável. Por «tudo isso» redigi esta nota; porque da arte em si não é útil falar. Parafraseando Sophia de Mello Breyner, o artista cria obra de arte, mas aquele que liga a arte e a sua própria vida, dando a ambas coerência comum, cria a arte total. Escola Superior de Educação de Portalegre os que estão fora de mais», deveremos assim entender que a percepção do acaso exige de nós abertura de espírito, curiosidade, empenhamento, atenção, alguma audácia e humildade. Tudo qualidades muito associadas ao uso eficaz da imaginação. Esta conjunção (imaginação, memória e escrita) é aliás o mágico destino da memória do presente que a literatura infanto-juvenil representa. Além disso, penso que é esta memória do presente, aprendida pela fidelidade e atravessada pela imaginação, que cria o elo entre instrução e ensino, como no glorioso passado da profissão docente. Para trabalhar sobre os escritos autobiográficos de Agustina destinados a crianças, Isabel Vila Maior teve de abordar a vida da autora, diligência a que procedeu com discrição, por separar a arte da vida. Mas o que nessa diligência descobriu veio corroborar a sua lição; com efeito, se aproximarmos a vida e a arte (em vez de as separarmos), enxergamos aquilo que o real faculta ao imaginário na construção da identidade. Ao deduzir que para Agustina «escrever é um dom de Deus», Isabel parece elipticamente sustentar que viver é um outro dom: um dom da vida. Logo no início da sua carreira docente, ainda muito jovem professora, Isabel Vila Maior começou por dar aulas a adultos bastante mais velhos do que ela. Essa enriquecedora experiência, fonte de memória e de ideias, marcou-a pela fértil reciprocidade das trocas humanas. Estimulada por esses seus primeiros anos de ensino, nunca depois deixou de partilhar o seu saber e de fazer amar a literatura, bem como as suas consequências, a jovens estudantes2 – que por seu turno levarão as crianças a amar a arte literária, munindo-as com armas não ofensivas que as hão-de ajudar a assumir e construir as suas identidades. No interior duma escada em caracol desenrola-se o fio da vida que nenhuma Parca poderá cortar, porque a morte não se pode contar. Foi então que interveio o júri, presidido pelo Prof. Dr. Mário Ceia. Compunham-no Maria Lúcia Lepecki, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Armindo Mesquita, professor associado da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Maria da Natividade Pires, professora coordenadora da ESE de Castelo Branco; e Joëlle Ghazarian Notas 1 Obtido em França, em Junho de 2003, na Universidade de Rennes-2 (Haute-Bretagne): Représentation et stratégies narratives dans la littérature de jeunesse au Portugal – De la dictature à la démocratie. 2 Alguns já me têm falado disso. pág 127