PINGUNUSI Allisson Vasconselos Oliveira* Marina Diniz Mosqueira* Renato Diniz Silveira** INTRODUÇÃO Nos serviços públicos de saúde mental, é comum entre os profissionais alguns questionamentos sobre a urgência. Afinal, o que é a urgência? Responde-se, através de pressupostos lacanianos, que a urgência é o impossível de suportar. Mas para quem é impossível de suportar? Para essa pergunta, duas respostas são possíveis: pode ser impossível de suportar tanto para o sujeito quanto para o corpo social. Nesse segmento, um dilema se instaura em um serviço público: afinal, a quem atender, o sujeito ou o corpo social, tendo em vista que as demandas são distintas? Então, na tentativa de melhor explanar a questão da urgência, neste trabalho buscaremos apresentar um caso clínico onde a urgência do sujeito e a urgência do corpo social são colocadas em cheque. Pretendemos demonstrar as diferenças entre as duas demandas a partir de um estudo de caso que segue as premissas de Viganò (1999), nas quais o sujeito da ação é sempre colocado em evidência, afinal, é ele o verdadeiro operador. Não obstante essas proposições, trabalharemos também com o sigilo das informações, utilizando no estudo nomes fictícios para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos. O PARADIGMA DE PEDRO O presente trabalho é fruto de uma experiência em serviço de saúde mental da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Evidenciaremos nele uma mudança de papeis: o louco, de objeto da medicina, torna-se sujeito em seu tratamento. Pedro, como denominaremos o paciente, chegou ao serviço de saúde mental acompanhado de sua família, dos vizinhos, da polícia e dos pastores da igreja que sua mãe frequentava. Pedro estava amarrado por um lençol e gritava, ameaçando bater e matar todos que o prendiam. Vale ressaltar que a mãe chegou ao serviço falando que Pedro havia quebrado tudo da casa e por isso precisava de remédio, embora o paciente insistisse em afirmar que não precisava de atendimento. Logo ao ser atendido no consultório, o psiquiatra percebeu que Pedro olhava para suas mãos amarradas. Diante disso o médico o desamarrou. Instantaneamente, Pedro quebrou uma cadeira do consultório e, em seguida, os enfermeiros entraram. Em sugestão de um deles, o atendimento psiquiátrico era convidado à ação: injeção de haldol com fenergan. Mas Pedro deu outro rumo ao atendimento: “Eu não vou tomar sossega leão!”, disse ele. Junto do profissional, Pedro dirige-se à sala de atividades. Chegando lá, com cartolina e pincel atômico na mão, o psiquiatra possibilita a Pedro grafar no papel o que deseja. Ele, então, desenha círculos durante uma hora. Logo em seguida, adormece. Ao acordar, fala ao profissional das vozes que estão sempre exigindo, mandando, “tirando a vida”. Conta-lhe que as vozes o mandam desenhar, cobrir tudo com caneta, completar a folha: “Quando acaba o papel, desenho nas paredes, com pedra de barro. Minha mãe não quer deixar. Ela não sabe.”, pontuou. * ** Discentes da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil Docente da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Um dia, enquanto Pedro desenhava bolas nas cartolinas, o psiquiatra chegou e lhe perguntou de que se tratavam. Pedro respondeu que eram “pingunusi”. Uma nova indagação se fazia necessária: “O que são „pingunusi‟?”. A resposta de Pedro fora clara: cada bola era uma significação, uma solução para cada problema da humanidade. Na primeira cartolina, Pedro desenhava pequenas bolas, as quais se dispunham à revelia no papel. Era possível ao psiquiatra de Pedro inferir que assim ele via a humanidade: caótica, em completa desordem, como as bolas grafadas no papel. Na segunda cartolina, as bolas passavam a se amontoar, embora a organização ainda fosse um tanto sutil e, por isso, quase imperceptível. Na terceira cartolina, as bolas se agrupavam nos quatro cantos do papel. Essa forma peculiar de organização possibilitava ao psiquiatra deduzir que Pedro, finalmente, estava se estabilizando da crise. Na última cartolina, as várias bolas deixavam de existir, dando lugar a quatro bolas maiores, que, dispostas nos quatro cantos do papel, traziam consigo uma letra cada: F, V, P e I. Tais letras representavam as quatro instâncias insuportáveis para Pedro, justamente aquelas que o tinham acompanhado até o serviço de saúde mental: a família, os vizinhos, a polícia e os pastores da igreja da mãe. Durante nove meses, Pedro vai ao serviço e ao se estabilizar o profissional diminuiu a medicação que havia sido acertada para o paciente de início. COLOCANDO OS “PINGUNUSI” A psiquiatria evidencia a chamada medicalização do social em sua história. Trata-se de um processo normativo pelo qual o sofrimento é tamponado pela utilização de alguma substância psicoativa, levando aquele que sofre a um estado de bem-estar artificial (ALVES et al., 2009). Como vimos, a família de Pedro requer para seu estado patológico um tratamento psiquiátrico medicamentoso e normatizante, que o leve a um estado “normal”. A urgência – o impossível de suportar, aquilo que urge – se apresenta nessa situação muito mais na figura do corpo social, que se situa próximo ao sujeito, do que na figura do próprio sujeito. Além disso, Pedro não se sentia incomodado com o seu estado, o que pode ser comprovado por sua fala, de que estava quieto e foram mexer com ele. Nosologicamente, Pedro é um esquizofrênico paranoide, o que significa que, apesar de sua crível retração diante do corpo social, ele ainda tenta produzir um laço social, mesmo que frágil, “paranoizando”, delirando e realizando construtos sobre aquilo com o que tenta estabelecer um vínculo. A família, assim como os vizinhos, a polícia e os pastores da igreja, quando intrusivos, surgem para ele como o Outro sem lei e sem regra, que quer a todo custo prejudicá-lo e tê-lo como objeto de gozo. Ao dar voz ao sujeito para que ele mesmo possa deliberar sobre seu tratamento, o profissional se desloca da posição de Outro e possibilita um contrato mais pacífico e menos invasivo. Isso se torna evidente quando o psiquiatra permite a Pedro decidir sobre tomar ou não o “sossega leão” que lhe fora conferido – o medicamento que o impediria, literalmente, de urgir ou rugir. O acolhimento da resposta sobre o que eram “pingunusi”, mesmo que delirante, faz com que o psiquiatra se desloque de lugar de suposto saber, transpondo o paciente a este, afinal é ele que realmente sabe. O profissional perguntou a Pedro sobre os “pingunusi” durante os nove meses de sua estadia no serviço. Porém, ele disse não entender a constância da pergunta, afinal, para ele, o psiquiatra já sabia. Em Pedro a suposição de saber é substituída pela certeza psicótica, fruto do aprisionamento do paciente nas garras do Outro, que lhe toma enquanto objeto e dele goza. Aqui, então, é possível delimitar a urgência, pelo menos neste caso: Pedro veio ao tratamento, porque as significações caíam por cima dele, como uma estante lotada de livros em tombo infinito. É possível conferir a essa ocorrência psicótica o que se chama inconsciente a céu aberto. Na psicose, a castração jamais se remata, ou seja, o Nome-do-Pai é foracluído. Diante disso, significante e significado permanecem “colados” e o inconsciente permanece sem barra. No caso de Pedro, cartolina pode virar um delicado roteiro para organizar o grande prejuízo do desmoronamento das estantes de significações: desenha-se uma de cada vez. A partir do que Lacan nos traz sobre bengalas imaginárias, é possível deduzir que os círculos desenhados por Pedro sejam uma forma delas se manifestarem nesse paciente, afinal os “pingunusi” representar uma maneira de manter ativa a relação entre o sujeito e seu par imaginário, no caso, a humanidade. Antes da crise, o psicótico pode ser comparado a um banquinho de três pernas, cujo quarto pé, aquele que lhe daria sustento, inexiste. Para conseguir manter-se erguido, esse banquinho se serviria, então, de um suporte frágil. Esse suporte seria para o psicótico as referidas bengalas imaginárias, as quais o sustentam ante a beira do buraco, enfim, ante o gozo do Outro (QUINET, 2003). Aqueles “pingunusi”, tão peculiares e enigmáticos, se mostram justamente como construtos delirantes que impedem o gozo do Outro sobre Pedro, o júbilo sobre seu inconsciente, a céu aberto, característico de sua estrutura clínica. Essa alegoria, como já demonstrado, poderia ser tratada inclusive como bengala imaginária – aquele suporte alternativo ao quarto pé, grácil, que sustenta o psicótico ante o abismo que é o surto. CONSIDERAÇÕES FINAIS “O sujeito é antes falado do que fala”, já dizia Lacan (1998). Em uma urgência, isso não se faz diferente. Temos, por um lado, o sujeito que urge por um tratamento digno, incomodando o corpo social, que, por outro lado, urge para calar o urgido do sujeito. Enquanto a psiquiatria virá atender a urgência do corpo social, medicando o sujeito, calando o seu urgido, calando o seu urgido, a psicanálise, ao contrário, buscará no urgido alguma pista sobre o sujeito; pista esta que pode estabelecer novas diretrizes para o caso sem a necessidade de calar o sujeito. No caso de Pedro, as pistas se fizeram evidentes a partir de sua escuta por um profissional atento não só às demandas do meio, mas às demandas subjetivas. Ao dar voz ao sujeito, pode-se escutá-lo em sua loucura e, exercendo o secretariado do alienado, encontrou-se uma solução melhor em meio aos impasses da urgência. Eis os “pingunusi”, uma solução que pode ser transitória, mas representa uma construção do sujeito, para além de recursos medicamentosos. REFERÊNCIAS ALVES, Carlos Frederico de Oliveira et al. Uma breve história da Reforma Psiquiátrica. Neurobiologia, Recife, v. 72, n. 1, janeiro – março de 2009, p. 85 – 96. LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. QUINET, Antônio. Psicose: uma estrutura clínica. In: Teoria e Clínica da Psicose. 2ª ed. São Paulo: Forense Universitária, 2003. VIGANÒ, Carlo. A construção do caso clínico em saúde mental. Curinga, Belo Horizonte, n. 13, setembro de 1999, p. 39 – 48.