1 Memórias de um ser especial Autor: Cesar Tiburcio - Cotia Quando era criança, sempre quando acordava, a primeira coisa que fazia era tentar ver o que tinha do outro lado da janela de meu quarto, pois escutava um barulho esquisito vindo do lado de fora; era estridente e aguçava ainda mais minha curiosidade, mas não conseguia ver, pois era muito pequeno e não alcançava a janela. Tentei algumas vezes empurrar a cama para perto da janela mas, desisti quando percebi que todos os móveis do quarto estavam pregados no chão; fui compreender depois que era para minha própria segurança. Diversas vezes tentei explicar para minha querida mamãe que eu queria simplesmente olhar pela janela. Sabia que existia algo diferente do outro lado, mas ela não entendia o que eu queria dizer, pois, quando tentava falar, o som saía incompreensível de minha boca. O tempo foi passando e entendi que o meu corpo mudava; compreendi que eu iria ficar maior e comecei a esperar ansioso para ficar mais alto e poder ver o que tinha do outro lado da janela. Mas um dia, quando acordei, percebi uma agitação na casa. Abri a porta do quarto, que curiosamente naquele dia estava destravada, olhei para o corredor e percebi que os móveis não estavam mais lá e naquela tarde chuvosa, mamãe me colocou no banco de trás do carro e pediu para acenar para o prédio; constatei depois que não voltaríamos mais lá e meu sonho de ver o que tinha do outro lado da janela se desmoronou. Na nova casa deparei-me com uma grande diferença: meu novo quarto era bem menor que o anterior. Continuei esperando ansioso meu crescimento, o suficiente para alcançar a nova janela que não fazia o som estranho e curioso. Depois de um tempo, num certo dia ao acordar, tentei com muito esforço alcançar a base da janela; então tive a primeira decepção em minha vida, quando, ao tentar ver com meus olhos esperançosos de explorador de mistérios, me deparei com um enorme muro branco, sendo a única coisa que se podia ver pela janela. O tempo foi passando e com ele minha idade foi avançando. Tive muitas descobertas em minha vida; lembro-me que numa ocasião engraçada, quando um dia, numa manhã de calor fui lavar o rosto, hábito que sempre fazia, olhei para o espelho e percebi que meu rosto estava diferente. Aproximei-me e verifiquei, com mais cuidado, que meu rosto estava com pequenos pêlos aparecendo; corri assustado até mamãe, que me tranqüilizou dizendo que eu estava me tornando um homem, achei engraçado e curioso, pois os homens que conhecia usavam roupas diferentes das minhas e não usavam fraudas, como eu. Quando meus pais me levavam para passear era um alívio, pois via coisas novas e diferentes, mamãe achava que eu não entendia nada, mas dos meus quinze aos vinte e cinco anos foram os anos que mais aprendi as coisas “estranhas” do mundo. Lembro-me quando apresentaram-me uma máquina engraçada como sendo um “amigo”. Era uma maquina esquisita que quando se apertava um botão num objeto que parecia um rato engraçado, apareciam coisas estranhas numa pequena televisão que ficava na frente. Descobri depois de algum tempo que se tratava de um computador e que estava relacionado com alguém que vi na televisão que diziam ser o homem que mais tinha dinheiro no mundo. Não compreendi muito bem na ocasião, pois não entendia o que era o dinheiro; só fui descobrir quando completei vinte e seis anos de idade. 2 Mas eu não esquecia a janela do meu quarto de criança e todas as vezes que eu pedia para retornar à antiga casa para tentar descobrir o que era aquele misterioso som, mamãe achava que estava pedindo outra coisa e falava: - Calma filhinho. Calma que mamãe trás um brinquedinho para você. Mamãe não entendia que, quando eu mexia com meus braços e movia meu corpo para frente e para trás, era para ela me entender melhor. Achava que eu estava tendo algum tipo de ataque, mas na verdade era de alegria por tê-la como mãe, pois sentia todo carinho que tinha por mim, mesmo não me entendendo. Ela achava que o mais importante era eu ter muitos brinquedos, sendo que era uma cena meio engraçada, pois alguns eram tão complicados que não imaginava como funcionavam, mesmo eu já tendo vinte e nove anos de idade. Finalmente, quando completei meus trinta e três anos, consegui apagar e cortar meu bolo de aniversário sozinho, graças a muito treinamento e médicos que ficavam diversas horas comigo. Até que um dia consegui comunicar-me com mamãe, que entendeu o que eu queria, que era ver a janela do antigo apartamento. Lembro-me que saímos bem cedo naquela manhã fria em viagem até à cidade onde morávamos anteriormente. Chegando lá fiquei olhando para ela, que explicava para o dono do apartamento que éramos antigos moradores e que eu tinha problemas e queria apenas ver a janela; não entendi muito bem o que mamãe quis dizer com “problema”, só sei que depois que ela falou isto o homem sorriu para mim e convidou-me a entrar, colocando a mão em meu ombro. Meu coração batia acelerado, minhas lembranças eram revividas conforme entrava pelos cômodos do apartamento. Então, finalmente naquela manhã de domingo, aproximei-me, depois de anos, da janela de meu quarto de criança e pude concretizar meu mais íntimo sonho. Mas ao olhar pela janela minha desilusão foi enorme, não podia acreditar que passei toda minha vida para descobrir que o que tinha do outro lado da janela eram apenas alguns prédios e ao fundo, o oceano. Desolado e aborrecido fechei a janela e virei para ir embora, quando o “milagre” aconteceu: comecei a escutar aquele fino e intrigante assobio que me encantou noites outrora; então com lágrimas que contornavam meu rosto e se perdiam em minha barba, descobri que o misterioso som que escutava quando criança, era apenas o vento que vinha do mar e quando batia nas frestas da janela, produzia os assobios que me encantam e deslumbram até hoje. Hoje concluo que para alguém especial como eu, as coisas mais simples para uns podem ser as mais sublimes e misteriosas de toda uma vida.