Solyane Silveira Lima, UFS Geane Corrêa dos Santos, UFS MEMÓRIA DA ESCOLA: INVESTIGANDO AS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM “HISTÓRIA DA MINHA INFÂNCIA” DE GILBERTO AMADO. Resumo: Diferentes práticas de formação e de estrutura escolar nas últimas décadas do século XIX estão presentes na narrativa de Gilberto Amado. Esse trabalho tem a pretensão de investigar e refletir sobre essas práticas com o objetivo de elucidar a memória escolar. Ancoradas nos pressupostos teóricos da Nova História Cultural, que possibilitou a utilização de novas fontes na pesquisa histórica, buscaremos fazer uma leitura da obra autobiográfica desse intelectual sergipano. Palavras-chave: História da Educação, Leitura, Escola, Memória, Literatura. Introdução Nas últimas décadas do século XX notamos algumas mudanças nos estudos de caráter histórico. Mudanças estas influenciadas pelo discurso da Nova História Cultural, que possibilitou a utilização de novas fontes na pesquisa histórica. Essa tendência historiográfica propõe uma forma inovadora de interrogar a realidade. Lançando mão de novos princípios de inteligibilidade, salientando as lutas de representações, objetivando a ordenação da estrutura social. ... a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “serpercebido” constitutivo de sua identidade. (CHARTIER, 2002, p. 23) Ela tem sua origem associada à Escola dos Annales, que surge em 1929 com Marc Bloc e Lucien Febvre, como um movimento que se contrapunha ao paradigma da historiografia tradicional. Esse movimento foi dividido em três fases, na inicial, de 1929 a 1945, “Caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos”. (BURKE, 1989, p. 12) e seus interesses de estudo se voltavam para a construção de uma história social e econômica se opondo a tradição historiográfica que se centrava nos feitos dos “heróis”. A segunda geração, a partir de 1940, foi denominada pela presença de Fernand Braudel e caracterizou-se por ser uma produção historiográfica demográfica. É a fase que “mais se aproxima verdadeiramente de uma escola, com conceitos diferentes e novos métodos”. (BURKE, 1989, p. 12). No final da década de 60 inicia-se a terceira geração do movimento, que é marcada pelo crescente interesse dos historiadores por temas pertencentes ao domínio da cultura. Se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera muito das especificidades anteriores. Era uma “escola” unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos e seus críticos domésticos que perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e a História dos Eventos.(BURKE, 1989, p. 13). Foi a partir dessa nova perspectiva trazida pela História Cultural para o campo da pesquisa histórica que se compreendeu que não há história sem fontes e que qualquer fonte é válida no estudo histórico. Dentre elas podemos citar a Literatura, memória, biografias, iconográficas, documentos, dentre outras. Nesse trabalho utilizaremos principalmente a Literatura, mas também a memória e a biografia para tentarmos elucidar algumas práticas de formação e de estrutura escolar no final do século XIX que estão presentes no livro de Gilberto Amado. Por Literatura entendemos que é uma “... categoria que, a partir do século XVIII, rotula um tipo especial de leitura e de escrita, que é simultaneamente, matériaprima e produto de práticas textuais muito determinadas” (LAJOLO e ZILBERMAN, 1998, p. 308) e é uma importante fonte para o historiador, pois lhe permite enxergar traços e pistas que outras fontes talvez não lhe daria. A Memória é sem dúvida a matéria-prima da história. Os seus objetos de estudo seriam vestígios do passado, as lembranças e experiências. “A memória é sempre uma interpretação influenciada pela experiência do presente. Todo o trabalho do historiados é uma representação do passado. Mas, é além disso, uma seleção do que é considerado importante. A memória constrói, reconstrói, reelabora e resignifica o passado”. (FERRO, 2000, p. 22) Já a Biografia, assume diferentes formas e segundo Burke, “Pode ser um meio de entender a mentalidade de um grupo”. Podendo ser praticada por diversas razões. Partindo do que foi dito, passaremos a leitura de História da Minha Infância, com o objetivo de elucidar vestígios da memória escolar na ultima década do Oitocentos. Investigando Práticas Educativas em História da Minha Infância Lançado em 1954, o livro escrito por Gilberto Amado1 retrata suas memórias de menino sergipano que viveu nas vilas de Estância e Itaporanga na última década do século XIX. Retoma as lembranças de criança, através do relato das brincadeiras infantis, as peripécias de adolescente, descrevendo os seus estudos em Itaporanga e a vida de estudante de Farmácia em Salvador. Nesse trabalho daremos enfoque as memórias que se remetem aos seus estudos na cidade sergipana por se tratar do espaço temporal que delimitamos e utilizaremos esta obra tanto como fonte quanto como objeto. No século XIX a prática de educação que ocorria no Brasil entre as famílias mais abastadas era a educação doméstica. Uma prática utilizada pelos membros da elite econômica para educar seus filhos que se caracterizava como aquela que ocorria na casa dos aprendizes e que era ministrada por um mestre contratado pela família para prover não só a instrução, mas também a educação moral. Os agentes dessa educação eram chamados de mestres, professores particulares ou preceptores. Que na maioria das vezes utilizavam o método individual2, por ser o mais adequado à educação doméstica. Essa educação ministrada no Brasil Oitocentista valorizava os atributos intelectuais para os meninos e os manuais para as meninas, além da diferença no tempo de duração para a instrução de ambos. Aos meninos era ensinado o Latim, o 1 Gilberto de Lima Azevedo Souza Amado de Faria nasceu em Estância (SE) em 1887 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1969. Eleito em 3 de outubro de 1963 para a cadeira nº 26 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Ribeiro Couto, foi recebido em 29 de agosto de 1964, por Alceu Amoroso Lima. Era o primeiro dos 14 filhos do casal Melchisedech Amado e Ana Amado. Fez os estudos primários em Itaporanga, também no interior de Sergipe. Depois estudou farmácia na Bahia e diplomou-se pela Faculdade de Direito de Recife, da qual se tornou, ainda muito moço, catedrático de Direito Penal. Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, iniciando-se no jornalismo. Sua atividade política começou em 1915, quando elegeu-se pela primeira vez deputado federal por Sergipe, permaneceu na Câmara dos Deputados até 1917. Novamente eleito deputado federal em 1921, foi reeleito em 1924, cumprindo mandato até o final de 1926. Ainda em 1927 elegeu-se senador, sempre por seu estado natal. Sua carreira política terminou com a Revolução de 1930. Serviu como embaixador no Chile, Finlândia, Itália e Suíça. A partir de 1948 foi membro, e muitas vezes presidente, da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU). Publicou um grande número de obras, entre memórias, romances, crônicas, estudos filosóficos e político-sociológicos. 2 Nesse método cada aluno era atendido individualmente pelo professor tanto no que se refere aos conhecimentos ensinados, a observação de seus progressos e as “tomadas” de lição. Grego, a Retórica, a História, a Geografia, Astronomia, Aritmética, Álgebra, Trigonometria, Lógica, Física e Metafísica, além de instruções das obrigações de cidadão e cristão. Uma educação voltada para o desenvolvimento de uma postura viril, garantindo-lhes o desenvolvimento pleno da capacidade intelectual e visando a sua entrada em instituições reconhecidas na época para concluírem a sua formação. As meninas ensinavam a ler, escrever, fiar, coser, bordar e tocar piano. ... a educação das meninas, padecia de ambigüidade, pois ao mesmo tempo em que as circunscrevia no universo doméstico, incentivando-lhes a maternidade e estabelecendo o lar como seu domínio, as habilitava para a vida mundana, favorecendo-lhes elementos para brilhar em sociedade. (MAUAD, 2000, p. 155). Na obra de Gilberto Amado podemos identificar a presença de algumas dessas formas de educação, quando o autor narra a despedida da sua ama. A mocinha pronunciava-me o nome...chegaram de dentro, suspenderam-me para dar adeus à moça que se afastava... A moça voltava-se para a casa, para mim, dava adeus enxugando o rosto com o lenço... levaram-me para dentro. Ao me porem no chão de repente dei um grito e corri para a porta. Não vi mais a mocinha. Larguei a choramingar, exclamando: Quero Donana! (AMADO, 1999, p. 16). A educação doméstica voltada para as elites no século XIX era reconhecida como a modalidade mais adequada de ensino dos meninos e meninas até uma certa idade. Porém essas práticas eram acessíveis a poucas pessoas e seus métodos, procedimentos e conteúdos estavam descentralizados. Com a influência das idéias européias os dirigentes do país priorizaram a centralização e decisões educacionais, interferindo nas práticas educativas que existiam, indo de encontro ao modelo de educação existente e aos interesses da elite dominante, que “julgavam essas medidas como uma afronta intervencionista ao poder que até então era exclusivamente da Casa: decidir, contratar, fiscalizar e deliberar sobre a educação de seus filhos” (VASCONCELOS, 2005, p. 195), inaugurando o processo de resistência que vai perdurar ao longo do Oitocentos. Lentamente, as elites percebem que podem se associar ao Estado e dividir com ele as atribuições educativas. Apoiando-o, colabora para que a escola estatal se firme e se amplie, transferindo a educação de seus filhos na Casa pela da escola. Anunciando o século XX como cenário no qual a escola foi hegemônica. Nesse contexto é que encontramos as escolas de primeiras letras, que funcionavam geralmente na própria residência do mestre e em condições precárias, nas quais o professor nomeado pelo Estado ou particularmente oferecia instrução às crianças. Em Sergipe não poderia ser diferente, principalmente se tratando de cidades do interior. Na sala atijolada, três bancos encostados às paredes. Bancos altos. Os meninos, em sua maioria, ficavam com as pernas no ar. Depois da minha entrada, puseram mais dois bancos. Na parede do fundo, encostava-se Dona Olímpia, Sá Limpa para toda Itaporanga. (1999, p. 57). A sala da escola abria para a rua por uma porta sobre dois batentes que davam logo para a lama. (1999, p. 58). Era um trabalho quando se ia lá fora para não enlamear os pés nos excrementos que, em todas as modalidades e formas que pode assumir, da pirâmide da saúde perfeita até o lagamar da opilação, da desenteria e da ameba, por ali se misturavam. (1999, p. 63). Nesse tipo de instituição encontrava-se freqüentemente o uso de castigos, inclusive corporais, por parte dos professores. Gilberto Amado não deixou de registrar isso em suas memórias: ... seis bolos estalavam. Oito, nove, dez. às vezes o moleque “soltava-se”, o liquido escorria-lhe pelas pernas, mas cadê chorar?!... Depois das palmatoadas, João Alfredo ia para o banco, pegava a tabuada, juntava-se a cantinela: “Quatro veis cinco, vinte; quatro veis seis, vinte e quatro...” Tremialhe a voz mas os olhos fuzilavam triunfo. (1999, p. 59). Sá Limpa não discutia a denúncia, impunha o castigo. Este consistia, quase sempre, numa tira de papel amarrada na cabeça, como uma coroa, com a palavra Desrespeito, em bastardinho. Alguns meninos se revoltavam, não ofereciam a cabeça para a medida da fita de papel cujos extremos Sá Limpa juntava com goma. Em conseqüência, levavam meia dúzia de bolos.(1999, p. 61). Existia também em Itaporanga a professora Maria Cândida, esta funcionária pública, enquanto que Sá Limpa era professora particular. Nesse momento o autor faz questão de salientar a diferença entre o ensino público e privado. Maria Cândida, solteira, magra, sempre de enxaqueca com rubores súbitos, vivia a passar a mão pela cabeça dolorida... solteirona frágil, moça velha de peito murcho nas desesperanças do celibato. Maria Cândida, professora pública, não era ilustrada como Sá Limpa, professora particular. Sá Limpa “puxava” pelos meninos... Mas se não era ilustrada como Sá Limpa, Maria Cândida organizava mês de Maria como ninguém. (1999, p. 75). Num outro capítulo encontramos a descrição de sua experiência no colégio interno na capital do estado, o Colégio Oliveira, que segundo o autor, era o único do Estado. Colégio interno em Aracaju, Colégio Oliveira, único aliás do Estado, tinha de internato, no sentido normal do termo, apenas o nome. Era uma casa chata de muitas janelas, junto do quartel, numa esquina no fim da rua da Frente, no caminho da Fundição. (1999, p. 162). Quando entrei, o colégio estava cheio; quartos atulhados de camas juntas. Os meninos corriam por cima delas sem ter que pular no tijolo... Oliveira ensinava Português, Francês, Geografia, Aritmética e Latim. Latim ninguém estudava, nem livros havia. Eu tomava lições particulares com Alfredo Montes, de Inglês, e com Teixeira de Faria, de Matemáticas. (1999, p. 163). Deixando o internato, permaneceu um ano sem estudar, voltando depois desse tempo para fazer os exames preparatórios no Ateneu, nos quais foi aprovado. Ao final desse capítulo o autor faz uma análise sobre as escolas no Brasil em seu tempo, chegando a seguinte conclusão: ... escola no Brasil era, no meu tempo arremedo de ensino, a luz da técnica didática. Professores capazes, poucos; a maioria nomeada por política, para emprego no orçamento, não para exercício efetivo do cargo. Em Sergipe criou-se uma cadeira de Grego. Para ela nomearam um farmacêutico de poucas letras mesmo em português... Por que escolheram grego?! Podiam ter criado mais uma cadeira de química, química analítica, industrial, qualquer coisa assim que quadrasse ao menos aparentemente com as habilitações do nomeado. Tal era o descaso por coisas de ensino, e o fim exclusivo dar emprego só pelo emprego, que ninguém censurou, criticou, julgou mal nem o governo, nem o beneficiário. (1999, p. 172). Gilberto Amado se despede da infância narrando sua experiência na Faculdade de Farmácia da Bahia. Na qual via a possibilidade de estudar e de um caminho aberto para seus passos. Apesar da pouca idade (14 anos) foi conhecer a vida de estudante, morando em república. Lá fui... viver vida de estudante, morar em república, conhecer a boêmia e o desadoro daquela existência.(1999, p. 178). No curso de dois anos de permanência em Salvador sofri em várias repúblicas por ser pequeno, irritadiço de ânimo e tão menor de idade. Encontrei, porem, bons companheiros. (1999, p. 179). Os dois anos de Bahia foram marcos na minha formação, pelo hábito que durante eles adquiri de estudo regular de matéria definida, de procurar saber de fato e não só para exame. Serviram-me também de encorajamento e de exercício de paciência para coabitar com temperamentos diversos e submeter-me às imposições da convivência com indivíduos indiferentes ou hostis. (1999, p. 185). Das páginas de História de Minha Infância emanam a ternura, a poesia, o sentimento humano e as lições de vida que encantaram várias gerações de leitores. A história singular do menino nordestino que tudo superou e se tornou um cidadão do mundo através do trabalho e do estudo se tornou um marco de nossas letras. Considerações Finais O que gostaríamos de ressaltar com a leitura e análise dessa obra é que notamos algumas práticas educativas que eram recorrentes à época no contexto brasileiro do final do século XIX e início do XX, refletidas numa cidade do interior nordestino, deixando claro a possibilidade da literatura e das memórias biográficas serem utilizadas como fonte para se refletir acerca da memória escolar. Segundo Gilberto Amado, a “Literatura é mais do que vida, porque é vida aumentada no coração do artista”(1999, p. 198). Assim sendo chegamos à conclusão de que o uso desta se torna uma importante ferramenta na construção da pesquisa histórica. Referências Bibliográficas AMADO, Gilberto. História da minha infância. São Cristóvão, SE: Editora UFS; Fundação Ouviêdo Teixeira, 1999. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da Unesp, 1997. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. FERRO, Maria Amparo Borges. Literatura escolar e História da Educação: cotidiano, ideário e práticas pedagógicas. São Paulo: Faculdade de educação da Universidade de são Paulo, 2000. (Tese de Doutorado) LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1998. MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 137176. VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e os seus mestres: a Educação no Brasil de Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005