Carta a uma Estrela sobre os desenhos da Francisca Há uns dias fui ver os desenhos da Francisca, de quem já te falei algumas vezes... Os primeiros que me mostrou foram uns desenhos a carvão, negros, sujos, que cobrem de fuligem, como após um grande incêndio, as paredes brancas do seu atelier. Contou-me que dizem que são "pesados" e "duros". Sim, dizem, percebe-se porquê, mas eu não digo... Para mim são leves e luminosos e não são sequer negros, são cor verde esmeralda. Verde esmeralda como o fundo do mar, verde esmeralda como as florestas primárias onde as santas cabeludas se escondem para chorar, verde esmeralda como o amor liquido que escorre, escorre escorre, no coração do mundo... São luminosos e leves como aqueles que se atrevem a penetrar as suas terras interiores vermelhas e virgens, e a mergulhar nas suas águas mais profundas e turvas. Luminosos e leves porque destes casamentos com a sombra e o lodo, nascem céus cada vez mais azuis e rios e mares cada vez mais turquesas. Os pássaros e os peixes agradecem... E as coroas que lá entrevi, escavadas no carvão do fundo do mar e das florestas, são daquelas que não pesam na cabeça. São coroas que brilham com uma luz que não queima nem ofusca mas que aquece e alumia. Cinza que devém frescura, Fuligem que devém céu, Sujidade que devém realeza. Depois no chão mostrou-me uma outra serie de desenhos um pouco menos sujos, um pouco menos negros, mais ainda assim cobertos de dedadas e outros seres vivos. Vi neles ruínas e tripas, dois dos meus assuntos predilectos, como sabes... Ruínas e tripas douradas, apesar das aparências, douradas e puras anunciando o Segundo Sol que nasce depois da fria passagem da escura noite da alma, Luna... São douradas, quentinhas, transparentes e boas como tudo e todos que não têm nada a esconder e muito menos vergonha de serem o que são, e sobretudo, de serem o que devêm. Só ao ter a coragem de deixar ruir as torres interiores que protegem e muralham o coração e o corpo, tijolo após tijolo, se consegue olhar para as ruínas deste mundo sem medo. Escavar para iluminar, mergulhar para voar, desmoronar para erguer.... Devir verde-vida, devir azul-infinito, devir ouro-amor, haverá coisa mais leve e luminosa neste mundo? A tua sempre Berta