OS CARTÕES BANCÁRIOS EM PORTUGAL
NOS ÚLTIMOS 20 ANOS
Excertos de uma entrevista do Engº Sebastião de Lancastre, então Director-Geral da Unicre, à
'Revista Unibanco' (Março e Junho de 1994)
- A história da Unicre é uma história com 20 anos, e cujo início quase coincide com o
arranque do dinheiro de plástico em Portugal. Hoje, verificando a dimensão e a
importância que este meio de pagamento veio a alcançar, gostaríamos de saber se as
pessoas que, como o Engº Sebastião de Lancastre, estiveram ligadas a este processo
desde o início, tinham já nessa altura a percepção do que os cartões bancários de
pagamento haveriam de representar no futuro.
- Para responder a essa pergunta, terei de fazer referência àqueles que foram efectivamente os
responsáveis pelo arranque dos cartões bancários no nosso país, e com quem eu viria a
colaborar numa fase sequente. Essas pessoas foram o Dr. Trigo de Negreiros, do Banco
Português do Atlântico, e o Dr. Carlos Ribeiro Ferreira, do Banco Totta & Açores, os quais
participaram em 1969 numa reunião em Roma destinada a sensibilizar os quadros da banca
europeia para a provável expansão dos cartões de crédito e, sobretudo, para que não se
incorresse na Europa nos mesmos erros que haviam sido cometidos nos Estados Unidos neste
domínio.
- No seu entender, deverão ser essas duas pessoas os verdadeiros pioneiros da ideia dos
cartões bancários em Portugal?
- Penso que é de toda a justiça incluir nesse número duas outras pessoas que, embora não
tendo participado na reunião em Roma, aderiram também desde a primeira hora a este
produto, novo para a banca portuguesa. Refiro-me ao Dr. José Roquette, do Banco Espírito
Santo, e ao Engº Francisco de Lacerda, do Banco Borges & Irmão. E, para provar que todos
eles realizaram de imediato que os cartões iriam ter uma enorme importância nas décadas
seguintes, dou o exemplo do que se passou com o Banco Borges & Irmão, que não hesitou em
se desligar de um acordo que tinha com a American Express (na altura, praticamente o único
cartão que já possuía prestígio mundial) a fim de se integrar no projecto comum de um cartão
de crédito envolvendo os outros três bancos já referidos, mais o Banco Nacional Ultramarino
e o Banco Fonsecas & Burnay.
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- Numa entrevista concedida há alguns meses à Revista Unibanco Gold, o Sr. João
Ribeiro
da
Fonseca
atribuía
também
um
papel pioneiro
ao
Sr.
António
Champalimaud...
- ... E não duvido, porque as grandes ideias inovadoras têm quase sempre mais do que uma
paternidade. Aliás, o Sr. António Champalimaud foi sempre uma pessoa de grande visão e
talvez por isso intuiu desde logo a grandeza que este novo meio de pagamento viria a atingir,
quando assistiu ao seu lançamento na América. Note-se, aliás, que o seu banco, o Pinto &
Sotto Mayor, esteve inicialmente associado ao projecto dos outros seis bancos, mas afastou-se
depois a fim de criar uma operação própria de cartões de crédito, ligada ao Bank of America e
chamada Bankamericard, que é por assim dizer a antecessora da VISA.
- Operação à qual os restantes bancos não aderiram nessa fase...
- Não aderiram porque o BankAmericard apenas aceitava licenciar uma instituição financeira
em cada país. Ora, o projecto dos restantes bancos foi sempre o de, através da Unicre, criarem
um cartão comum para uso internacional, e daí que tenham optado por aderir à Interbank Card
Association, que também detinha uma operação de âmbito mundial (a MasterCharge) e não
limitava a adesão a uma só instituição por país.
- Havia alguma razão particular para esses seis bancos estarem determinados a só pôr
de pé uma operação que reunisse várias entidades?
- A razão é muito simples: por um lado, a reduzida dimensão do mercado português; por
outro, a preocupação em não multiplicar o crédito concedido a cada pessoa através de vários
cartões.
- E qual a explicação para que, depois do arranque do cartão Sottomayor, tivessem
decorrido mais de três anos até ao aparecimento do primeiro cartão da Unicre?
- A explicação é que o Banco de Portugal, do qual se esperava uma autorização de três
semanas, levou afinal três anos para o fazer. Aliás, foram anos bem aproveitados na Unicre,
que pôde preparar cuidadosamente a sua equipa e, com cerca de 22 colaboradores em Abril de
1974, estava de há muito pronta a arrancar a qualquer momento.
- Ainda se encontra na Unicre o primeiro empregado admitido?
- O primeiro empregado admitido fui eu, e ainda hoje penso que é uma excelente forma de
iniciar a constituição de uma empresa. Começa-se pelo Director-Geral, e depois é ele que se
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encarrega de formar a equipa com quem vai trabalhar. Entrei através de um anúncio de jornal
em que se pedia um director-geral para funções de administrador delegado de um importante
grupo financeiro. Seguiu-se um processo de selecção que envolveu mais de 100 candidatos, e
findo o qual se pode dizer que se deu o arranque da Unicre, com vista à emissão do cartão
Unibanco.
- Como é que se foi formando a organização que possibilitaria a circulação dos cartões
de crédito? A montagem da rede de estabelecimentos antecedeu a criação de uma
carteira de clientes, ou as duas operações ocorreram simultaneamente?
- Quando foi finalmente formalizada a escritura de constituição da Unicre, a 17 de Abril de
1974, dispúnhamos já de uma rede de perto de 3.000 comerciantes aderentes e, bem assim, de
uma listagem com um razoável número de pessoas a quem propor o cartão Unibanco,
seleccionadas entre a clientela dos seis bancos accionistas.
- Encontraram dificuldades na adesão tanto de utilizadores como de comerciantes?
- Quanto aos comerciantes, digamos que a adesão não foi difícil, pois muitos deles já
trabalhavam com o cartão Sottomayor e percebiam facilmente o interesse do negócio. No que
se refere aos utilizadores, terei de dizer que a adesão foi... entusiástica!
- A Unicre contou inicialmente com a assessoria de alguma organização internacional,
ou teve de constituir-se fundamentalmente com as capacidades dos seus quadros?
- Desde o início que contámos com o apoio de uma empresa francesa na selecção dos
programas informáticos para o processamento da operação: o Institut d'Études et de
Recherches Financières, que possuía um bom conhecimento das operações americanas. A
nossa operação foi, aliás, um pouco decalcada da do National Bank of Louisiana, pois a sua
dimensão era muito semelhante à que esperávamos vir a alcançar em Portugal (com um
horizonte da ordem dos 100.000 cartões). Tivemos também contactos com a Interbank Card
Association, que detinha o exclusivo da marca MasterCharge, comprada a quatro bancos
americanos, e cuja imagem (dois círculos, vermelho e ocre) era muito forte e teve uma rápida
difusão mundial. E ainda com a Joint Credit Card Company, que emitia no Reino Unido o
cartão Access, integrado como o nosso na MasterCharge.
- Qual foi o dia "D" da operação? E como correram as coisas?
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- Se não estou em erro, começámos em Junho de 1974, ainda só com aceitação de cartões
estrangeiros. Foi um dia emocionante, em que registámos 18 transacções, mas esse número
subiu muito depressa. Assim que emitimos os primeiros mil cartões para utilizadores
nacionais, passámos logo para o nível das 400 transacções diárias. Actualmente, quando
registamos mais de uma transacção por segundo, estes números não podem deixar de nos
fazer sorrir...
- Em 1975 dá-se uma verdadeira revolução no sistema bancário português. De alguma
forma isso afectou a Unicre?
- De facto, com as nacionalizações do 11 de Março o nosso projecto sofreu um grande abalo e
um grande retrocesso. Foi proibida a utilização do cartão no estrangeiro e, por via disso,
tivemos de mudar da imagem MasterCharge para um grafismo exclusivamente interno com
base nas cores verde e vermelha. Posteriormente, o Secretário de Estado do Tesouro decidiu
criar um grupo de trabalho encarregado de reexaminar toda a problemática dos cartões de
crédito em Portugal. Em resultado desse estudo, foi admitida a continuidade do cartão
Sottomayor, já com a imagem VISA, e da Unicre em ligação à MasterCard, mas podendo
aceitar na sua rede todos os restantes cartões internacionais (Diners, American Express, Carte
Blanche, DKV). Um bom exemplo da desorientação que se viveu nesses anos está no facto de
só em Julho de 1979 ter sido publicada legislação a regulamentar o novo status quo,
mantendo-se em vigor a operação Sottomayor no âmbito do Banco Pinto & Sotto Mayor e a
operação Unibanco, a que tinham entretanto aderido os bancos Crédito Predial Português,
Caixa Geral de Depósitos e União de Bancos Portugueses, elevando para nove o número de
accionistas da Unicre.
- No seu entender, foi vantajosa, para a consolidação do projecto de implantação do
dinheiro de plástico em Portugal, a concentração de quase todos os bancos num único
projecto, ou tudo teria sido mais fácil num cenário de mercado aberto e concorrencial?
- Como costumava dizer um dos nossos fundadores, a Unicre teve desde o início uma vocação
integradora. E isso nada tem a ver com a prevalência, em Portugal, de um modelo económico
centralizador e não concorrencial, até porque lhe é cronologicamente anterior. Não
esqueçamos que a Unicre nasceu desde o primeiro minuto como um projecto comum. E,
quanto à justeza dessa opção, eu tenho tido já a oportunidade de dizer noutras ocasiões que o
sucesso dos meios de pagamento via cartão de plástico em Portugal, ao ponto de estarmos há
vários anos perfeitamente a par dos países mais avançados deste campo, se deve
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fundamentalmente ao facto de se terem tomado entre nós as decisões certas nos momentos
certos. Isso é válido tanto para a decisão de criar a Unicre em 1971 como iniciativa conjunta
de seis grandes bancos, por mérito, coragem e visão dos quadros superiores bancários a que
me referi atrás, como também para a decisão da criação da SIBS em 1981. Neste último caso,
é justo que cite aqueles a quem se deve a sabedoria de avançar para uma empresa integrando
os vários bancos: Dr. Rui Vilar, Dr. Almerindo Marques, Dr. Palmeiro Ribeiro e Dr. Ribeiro
Moreira.
- Voltando ao historial do Cartão Unibanco, pode explicar-nos como se dá a ligação da
Unicre à marca VISA, depois de ter nascido integrada na MasterCard e seus
antecessores?
- Ao ser interdita a utilização de cartões nacionais no estrangeiro, perdemos o direito a usar a
marca MasterCard, pois esta organização não contemplava a figura do cartão de âmbito local.
Nessa altura já a VISA não punha impedimentos ao licenciamento de mais de uma operação
em cada país e, simultaneamente, admitia a existência de cartões com a sua marca mas que
tivessem uma validade puramente nacional. Nestas circunstâncias, era evidente o interesse em
fazer aderir o cartão Unibanco à VISA. Isso permitiu-nos também que, ao ser retomada a
possibilidade de os portugueses usarem os seus cartões no estrangeiro, em 1982 para as
empresas e em 1986 para os particulares, estivéssemos aptos a pôr imediatamente em prática
essa medida.
- Entretanto, novos bancos aderiram à Unicre...
- Sim, foram-se dando, sucessivamente, novas adesões, de tal forma que, em 1988, quando foi
decretada a liberalização da emissão de cartões de crédito, tínhamos já 18 bancos como
accionistas. Inclusive, a partir de 1984 havia cessado a operação do cartão Sottomayor e o
próprio Banco Pinto & Sotto Mayor se integrou na Unicre.
(...)
- Quanto à gestão da rede de estabelecimentos onde são aceites os cartões de crédito,
conquanto seja uma actividade também liberalizada por lei, os bancos têm continuado a
optar por confiar esse serviço à Unicre, não é verdade?
- Eu creio que essa confiança que todos os bancos têm depositado em nós, e que muito nos
lisonjeia, poderá ser atribuída à escassa dimensão do mercado português, e que tornaria
desaconselhável o desmembramento da nossa rede comercial, pelos mais diversos motivos.
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Mas quero crer que ela se deve também, passe a imodéstia, à qualidade do serviço que a
Unicre, com a sua experiência de duas décadas, está em condições de proporcionar e à
reiterada imparcialidade da organização face a todos os bancos. Repito: pela nossa parte,
honra-nos muito ter a confiança de todos os bancos, e penso que, quando uma coisa corre
bem, manda a sabedoria que se mantenha como está. Em todo o caso, o futuro da Unicre será
sempre, em qualquer momento, aquilo que os seus accionistas considerarem como melhor
para si.
- Essa mensagem aplica-se igualmente ao cartão Unibanco?
- Hoje, o cidadão português tem à sua disposição um grande número de cartões, todos
permitindo a função de pagamento mas, para além disso, com importantes diferenças no
funcionamento e na gama de serviços e benefícios que proporcionam. Quer isso dizer que
qualquer pessoa minimamente informada só terá um cartão se entender que ele
verdadeiramente lhe interessa. Muitas dessas pessoas têm também o cartão do seu banco,
daquele com o qual trabalham mais estreitamente, mas reconhecem-se no Unibanco, na forma
como sempre foram por nós atendidas e na especificidade dos nossos produtos. E todos os
dias registamos adesões de novos utilizadores. Isso significa que o cartão Unibanco está bem
vivo, que tem um lugar muito seu no panorama dos cartões e na preferência do público. Será
caso para invocar aquele aforismo relacionado com o vinho do Porto: o cartão Unibanco está
cada vez melhor, com a idade e a experiência!
(...)
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