Dalila Cabrita Mateus Álvaro Mateus NACIONALISTAS DE MOÇAMBIQUE TÍTULO Nacionalistas de Moçambique AUTORES Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus © 2010, Dalila Cabrita Mateus, Álvaro Mateus e Texto Editores REVISÃO Eda Lyra CAPA © Ideias com Peso Desenho do pintor Malangatana Valente Ngwenya, concebido para a capa deste livro. PAGINAÇÃO Júlio Matias ISBN 9789724743493 Reservados todos os direitos. TEXTO EDITORES, LDA. Uma Editora do Grupo Leya R. Cidade de Córdova, n.º 2 2610-138 Alfragide – Portugal www.textoeditores.com www.leya.com «[…] Escrevo… Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado e revoltas, dores e humilhações, tatuando de negro o virgem papel branco. E Paulo, que não conheço mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças, algodoais, e meu inesquecível companheiro branco, e Zé – meu irmão – e Saúl, e tu, Amigo de doce olhar azul, pegando na minha mão e me obrigando a escrever com o fel que me vem da revolta. Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, enquanto escrevo, noite adiante, com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio - let my people go oh let my people go! E enquanto me vierem de Harlem vozes de lamentação e meus vultos familiares me visitarem em longas noites de insónia, não poderei deixar-me embalar pela música fútil das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, com Robeson e Marian gritando comigo: Let my people go. OH DEIXA PASSAR O MEU POVO! Noémia de Sousa ÍNDICE NOTAS DE APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 NOÉMIA, a voz fraterna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . BUCUANE, o herói fundador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . RANGEL, o fotógrafo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . BALAMANJA, o estrangeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . M’BOA, o preso político . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MALANGATANA, o pintor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MULENZA, o combatente assassinado . . . . . . . . . . . . . . . . . . NOGAR, o poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MANGANHELA, o religioso mártir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . MABOTE, o chefe guerrilheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 31 45 55 67 75 85 93 101 107 SIGLAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 FONTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arquivos da PIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arquivos dos SCCIM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arquivo da PVDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arquivo de Marcelo Caetano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 129 130 130 130 130 131 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Jornais, revistas e publicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 133 134 NOTAS DE APRESENTAÇÃO Nacionalistas de Moçambique aborda a vida política de dez pessoas, na sua maioria já falecidas. Uma mulher e nove homens. Uns desconhecidos ou quase desconhecidos. Outros conhecidos na sua vida literária ou artística, mas menos conhecidos como nacionalistas. E ainda outros, a justificar que se volte a sublinhar o seu contributo para a luta de libertação nacional. Não tivemos o propósito de elaborar biografias minuciosas, até porque para tal nos faltavam os meios. Pretendemos sim retratar a face política nacionalista destas pessoas, cujas vidas ilustram a penosa marcha do povo moçambicano para a libertação nacional e, conquistada a independência, a sua afirmação nacional, africana e internacional. Na segunda metade dos anos 40 e princípio dos anos 50 do século passado, alguns moçambicanos integram organizações políticas de carácter unitário ou partidário, onde desenvolvem actividades sobretudo de carácter panfletário. Estas organizações ainda eram inspiradas por democratas portugueses, não raro comunistas. Além da participação em acções clandestinas, alguns nacionalistas denunciam a opressão colonial ou esboçam o seu projecto libertador através da poesia, do desenho ou da pintura, mesmo da fotografia. Nesta altura, certos poetas orientavam-se pelo destino do negro norte-americano, cujos combates e realizações influen ciaram decisivamente o processo de descolonização da intelectualidade africana. A afirmação do orgulho de ser negro inclui a referência a nomes da música popular norte-americana, das letras, do atletismo e até do boxe. Os africanos sentem alegria por ser ouvidos através do trompete de um músico famoso ou por comungarem dos êxitos alcançados nos estádios pelos atletas norte-americanos. Já no final dos anos 50 e princípio dos anos 60, influenciados pelo exemplo dos países em que trabalham, moçambicanos emigrados vão criar partidos nacionalistas. E por pressão dos dirigentes dos países que os acolhem, esses partidos acabam, em regra, por se unir em organizações de tipo frentista, mais aptas a captar apoios internacionais. 11 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE A luta armada inicia-se em meados dos anos 60. De início com umas escassas dezenas de guerrilheiros, acaba por mobilizar milhares de homens e por se estender a diversas regiões do país, alcançando assinaláveis êxitos e utilizando métodos de guerra próprios das forças convencionais, prenúncio de uma vitória próxima. Na acção clandestina ou na luta de guerrilhas, desde início que os nacionalistas moçambicanos estão sujeitos a uma brutal repressão. Pagaram com a prisão, com bárbaras torturas e não raro com a morte o sonho de conquistar a liberdade. Estes apontamentos biográficos mostram a que extremos pode chegar a brutalidade policial, como o comprova o assassínio aqui documentado de um chefe guerrilheiro. Os nacionalistas moçambicanos obtiveram êxitos assinaláveis na luta armada de libertação nacional. Mas, alcançada a independência, tinham de governar um país moderno, num mundo moderno. E acumularam erros de gestão. A guerra civil, a agressão de vizinhos poderosos e as dificuldades económicas e políticas foram sérios obstáculos para a marcha do povo moçambicano. Hoje, 45 anos decorridos sobre o início da luta armada, conquistada a independência e ultrapassada a guerra civil assim como outros obstáculos ao desenvolvimento, o povo moçambicano vive em paz, consolida a democracia e afirma a sua identidade na arena internacional. Uma boa altura para recordar a vida de dez nacionalistas, que deixaram a sua marca na história de Moçambique, lutando para que o seu povo pudesse viver em paz, com liberdade e prosperidade. 25 de Setembro de 2009 Os autores 12 NOÉMIA, A VOZ FRATERNA Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu a 20 de Setembro de 1926, na Catembe, mesmo em frente a Lourenço Marques, na outra margem do Incomati. Era filha de António Paulo Abranches da Gama e Sousa e de Clara Brüheim Abranches de Sousa. […] Quando eu nasci… – Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me) e o sol brilhava sobre o mar. E no meio desta calma fui lançada ao mundo, já com meu estigma. E chorei e gritei – nem sei porquê. Ah, pela vida fora minhas lágrimas secaram ao lume da revolta1. Conclui o 4.o ano comercial na Escola Técnica Sá da Bandeira. E emprega-se na firma Gulamhussen & Companhia, Lda., em Lourenço Marques. «Falava, escrevia e lia correctamente o francês e o inglês e falava o ronga.» E no plano cultural, «apreciava o melhor da arte europeia do cinema, admirava Júlio Pomar e estava actualizada quanto aos modernos poetas, contistas e romancistas»2. 1 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, p. 213. 2 Pires Laranjeira, A Negritude Africana de Língua Portuguesa, p. 112. 13 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE Noémia de Sousa, fotografia do passaporte, in IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2). Em busca de um modo de ser moçambicana, Noémia invoca o mundo peculiar da sua infância distante: Meus companheiros de pescarias por debaixo da ponte, com anzol de alfinete e linha de guita, meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças, companheiros nas brincadeiras e correrias pelos matos e praias da Catembe, unidos todos na maravilhosa descoberta dum ninho de tutas3, na construção duma armadilha com nembo4, na caça aos gala-galas5 e beija flores, nas perseguições aos xitambelas6 sob um sol quente de Verão… - Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada, solta e feliz: meninos negros e mulatos, brancos e indianos, filhos da mainata7, do padeiro do negro do bote, do carpinteiro, vindos da miséria do Guachene8 3 Aves. Seiva usada como cola para apanhar pássaros. 5 Réptil de cor verde-azulada. 6 Insecto colorido que ao bater as asas produz um som característico. 7 Empregada doméstica que lavava e passava a ferro. 8 Localidade da área da Catembe. 4 14 N OÉMIA , A VOZ FRATERNA ou das casas de madeira dos pescadores. Meninos mimados do posto, meninos frescalhotes dos guarda-fiscais da Esquadrilha - irmanados todos na aventura sempre nova dos assaltos aos cajueiros das machambas9, no segredo das maçalas10 mais doces, companheiros na inquieta sensação de mistério da «Ilha dos navios perdidos». Os seus companheiros de brincadeira ensinam-lhe o valor da fraternidade e levam-na a acreditar numa «nova infância raiando para todos»: Meus companheiros me são seguros guias na minha rota através da vida Eles me provaram que «fraternidade» não é mera palavra bonita escrita a negro no dicionário da estante: ensinaram-me que «fraternidade» é um sentimento belo e possível, mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante são tão diferentes. Por isso eu CREIO que um dia o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico. Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul e os pescadores voltarão cantando, navegando sobre a tarde ténue. E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias em noites de tambor e batuque deixará para sempre de me inquietar. Um dia, o sol inundará a vida. E será como que uma nova infância raiando para todos…11 9 Campo lavrado. Maçala ou massala, fruto comestível. 11 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 214-215. 10 15 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE Noémia de Sousa é a cantora dos esquecidos, a voz fraterna que dá voz aos párias de África. Irmão negro de voz quente e olhar magoado diz-me: Que séculos de escravidão geraram tua voz dolente? Quem pôs o mistério e a dor em cada palavra tua? E a humilde resignação na tua triste canção? E o poço de melancolia No fundo do teu olhar? Alimentando-se das suas raízes africanas, é «África da cabeça aos pés»: Se me quiseres conhecer, estuda com olhos bem de ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde de mãos inspiradas talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte. Ah, essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida, boca rasgada em feridas de angústia, mãos enormes espalmadas, erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis pelos chicotes da escravatura… Torturada e magnífica, altiva e mística, África da cabeça aos pés - ah, essa sou eu! […] 12. 12 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 217-218. 16 N OÉMIA , A VOZ FRATERNA Filha de mãe negra, Noémia transfere essa maternidade para a África como um todo: […] Ó África, minha mãe-terra, ao menos tu não abandones minha irmã heróica, perpetua-a no monumento glorioso dos teus braços13! Se as suas raízes são africanas, as suas razões de ser são sobretudo moçambicanas. E identifica-se com as mulheres do seu país, falando das suas dores e sofrimentos: Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines14, vimos do outro lado da cidade com nossos olhos espantados, nossas almas trancadas, nossos corpos submissos e escancarados. […] Agora, vida, só queremos que nos dês esperança para aguardar o dia luminoso que se avizinha quando mãos molhadas de ternura vierem erguer nossos corpos doridos submersos no pântano, quando nossas cabeças se puderem levantar novamente com dignidade e formos novamente mulheres15. Noémia de Sousa, tal como outros intelectuais africanos do seu tempo, orienta-se pelo destino do negro norte-americano, cujos combates e realizações influenciavam decisivamente o processo de descolonização da intelectualidade africana16. Natural é, pois, a referência à música de Paul Robeson e Marian Anderson neste 13 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 219-220. 14 Munhuana e Xipamanine eram bairros negros de Lourenço Marques, actual Maputo. 15 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 90-92. 16 Fernando J. B. Martinho, «O Negro Americano e a América na Poesia de Agostinho Neto», in África, Literatura-Arte e Cultura, n.º 7, p. 164. 17 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE apelo à revolta e à libertação, com que a poetisa se insere na marcha geral do seu povo. […] Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado e revoltas, dores, humilhações, tatuando de negro o virgem papel branco. E Paulo, que não conheço mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças17, algodoais, e meu inesquecível companheiro branco, e Zé – meu irmão – e Saúl, e tu, Amigo de olhar doce azul, pegando na minha mão e me obrigando a escrever com o fel que me vem da revolta. Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, enquanto escrevo, noite adiante, com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio - Let my people go/ oh let my people go! E enquanto me vierem de Harlem vozes de lamentação e meus vultos familiares me visitarem em longas noites de insónia, não poderei deixar-me embalar pela música fútil das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, com Robeson e Marian gritando comigo: Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO18! Mas a poetisa não se fica pela denúncia e pelo protesto anticolonial. É uma activa participante na luta. 17 Trabalhador migrante nas minas do Rand (África do Sul). AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 221-222. 18 18 N OÉMIA , A VOZ FRATERNA Já em 1949, quando Eduardo Mondlane, estudante na Universidade de Witwatersrand, é expulso da África do Sul pelo regime do apartheid, Noémia de Sousa denuncia o facto nas páginas do jornal Brado Africano. Neste jornal, «José Craveirinha, Noémia de Sousa e Rui Nogar mantiveram aberta a única janela que ao Brado Africano restava, a da poesia. E foi assim, porque os papéis estão impressos e têm datas, que o tão polemizado e, por vezes, tão politizado começo da literatura moçambicana ocorreu e tão bons frutos deu…»19. Noémia de Sousa colabora, também, no jornal Itinerário, «publicação mensal de letras, artes, ciência e cultura», cujo primeiro número foi publicado em 1941 e o último em Outubro de 1955. De resto, o jornal congregou toda uma geração de poetas de Moçambique: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Nogar, Marcelino dos Santos («Kalungano»), Orlando Mendes e Rui Knopfli, entre outros20. Dos seus «colaboradores internos» referimos os nomes de João Mendes, Henrique Beirão, Sofia Pomba Guerra, Rui Guerra (o conhecido cineasta), Afonso Ribeiro, os Sobral de Campos (pai e filho) e Cassiano Caldas. E dos colaboradores externos destacamos Alexandre Cabral, Alves Redol, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Ramos da Costa, Rui Grácio, Seabra Dinis e Mário Soares. As simpatias políticas do jornal são óbvias. Não por acaso assinala, na primeira página, o falecimento de Soeiro Pereira Gomes, afirmando que «os homens perderam um companheiro, um amigo de todos os homens, pronto para todos ao sacrifícios»21. Soei ro Pereira Gomes era, como se sabe, membro do Comité Central do Partido Comunista Português. Nesse mesmo ano, Noémia de Sousa é presa pela Polícia Internacional. Era acusada de pertencer ao Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique, agrupamento político de que faziam parte João Mendes, Ricardo Rangel e José Craveirinha22. 19 Ilídio Rocha, A Imprensa em Moçambique (1854-1975), Livros do Brasil, Lisboa, 2000, p. 166. 20 Ilídio Rocha, idem, pp. 166 e 315. 21 Itinerário, n.o 96, Dezembro de 1949. 22 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia Abranches de Sousa, fls. 18-19. 19 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE O Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique aparece referido num relatório de António Fernandes Roquete23, inspector da PVDE24 que, na sequência do assassinato do médico comunista Ferreira Soares25, fora destacado para Moçambique com a missão de organizar uma polícia de fronteira, que ficaria conhecida como Polícia Internacional. Neste relatório, Roquete fala dos «panfletos 23 António Fernandes Roquete nasceu em 1906. Famoso futebolista do Casa Pia Atlético Clube, no período de 1926 a 1933, integrou por 16 vezes a selecção nacional. Era um homem bastante alto, considerado um sex symbol pela imprensa da época. Antes de ingressar na PVDE como agente, teria sido informador daquela polícia, tendo estado implicado na prisão de Cândido de Oliveira, que seria enviado para o Tarrafal (mestre Cândido fora futebolista do Sport Lisboa e Benfica e do Casa Pia, de que foi fundador; foi, também, seleccionador nacional e, ainda, director dos jornais A Bola e Gazeta Desportiva). Levado a julgamento pelo assassínio do médico comunista Ferreira Soares, Roquete foi absolvido, pois os juízes consideraram que agira em «legítima defesa». Mesmo assim, os responsáveis do regime acham por bem fazê-lo «emigrar» para Moçambique, onde vai organizar a Polícia Internacional. Transita mais tarde para a PIDE, assinalando-se o facto de, em 1958, por altura das eleições para a Presidência da República, ter sido sovado por apoiantes do general Humberto Delgado. 24 Assinalado na Ordem de Serviço NP-B2 da PVDE, n.º 135 de 15.05.1939, existente no IAN/TT. 25 Armando de Sousa e Silva, Vítimas de Salazar: Carlos Ferreira Soares, Anatomia de um Crime, pp. 131, 147 e 148. 20 N OÉMIA , A VOZ FRATERNA políticos de ataque ao governo da Nação», da «existência de actividades, também clandestinas, dum organismo pró-comunista denominado “Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique”, por intermédio de cujos filiados se promove a distribuição directa de panfletos, que igualmente são expedidos pelo correio para os principais centros populacionais da colónia». O Momento seria organizado de «maneira a que os filiados só conheçam os elementos dos respectivos grupos, constituídos por três ou quatro membros». O relatório conclui que, «entre a mocidade moçambicana (europeus, mistos e pretos) se estão a espalhar as sementes perigosas de ideias políticas dissolventes, de ódio e desrespeito pelo governo central e suas instituições», assim como de «indiferença e alheamento propositados por tudo o que se passa na Mãe Pátria»26. O Movimento desenvolve intensa actividade, com reuniões e distribuição de propaganda. A polícia assinala várias reuniões, uma delas com três dezenas de jovens, dos 18 aos 27 anos, no gabinete do dr. Henrique Beirão, no «prédio Pott», sito na Avenida Aguiar27. E refere uma circular da Comissão Executiva do Movimento em que, depois de aludir à «onda de indignação» causada pela prisão de jovens democratas e destacados dirigentes do Movimento de Unidade Democrática, se afirma que «os partidários do Estado Novo e a polícia se enganaram», pois «os jovens democratas não renegaram nem renegarão as suas ideias democráticas, o seu amor à cultura livre, a sua dedicação à juventude»28. Noémia de Sousa teria sido recrutada para o Movimento por Ricardo Rangel, que a apresentou a João Mendes29. E teria como tarefa a impressão de panfletos de propaganda política30, panfletos estes que «apareciam constantemente espalhados» pela cidade31. 26 27 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 91. IAN/TT, Arquivos da PIDE, 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 88. 28 IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, fls. 43-44. IAN/TT, Arquivos da PIDE, 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, fls. 124-125. 30 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia Abranches de Sousa, f. 43. 31 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia Abranches de Sousa, f. 19. 29 21 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE Além disso, Noémia de Sousa é acusada pela polícia de ter ligações ao PCP através do ferroviário Cassiano Caldas32, facto que este último confirmaria, assinalando que Noémia estivera presa numa altura em que fora detido e que engolira um bilhete que lhe mandara33. A polícia desencadeia uma acção repressiva contra o Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique. São presos: Henrique Beirão, de 27 anos, advogado; João Mendes, de 23 anos, funcionário; Carlos Pais, de 21 anos, enfermeiro; Norberto Sobral de Campos, de 35 anos, engenheiro; e Maria Sofia Pomba Guerra, de 43 anos, farmacêutica. Eram acusados de dirigir o Movimento, actuando sob orientação da Organização Comunista de Moçambique (que seria uma ramificação do PCP), de aliciarem novos membros sem distinção de cor, raça ou nacionalidade, de cobrarem quotas e angariarem fundos através de subscrições, rifas e sorteios, de elaborarem e distribuírem panfletos clandestinos de doutrinação política, de constituírem núcleos artísticos e associações recreativas, desportivas e culturais e de se infiltrarem nos órgãos dirigentes ou representativos de sociedades e empresas legalmente constituídas34. Assim, na madrugada de 17 de Outubro de 1949, sem aviso prévio (com excepção de Sofia Pomba Guerra, a quem foi perguntado a quem queria que entregassem as filhas menores à sua guarda e encargo), os presos são levados, num cortejo de seis veículos motorizados e por ruas fortemente patrulhadas, para o cargueiro Sofala, em que viajam até Lisboa35. Abner Sansão Mutemba36, testemunha presencial, declara ser perfeitamente audível uma voz feminina que gritava: 32 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2756 CI(2), Carolina Noémia Abranches de Sousa, f. 43. 33 Entrevista de Cassiano Caldas, in Dalila Cabrita Mateus, Memórias do Colonialismo e da Guerra, ASA, Lisboa, 2006, pp. 231e ss. 34 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 99. 35 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 93. 36 Abner Sansão Mutemba, cuja família teve papel destacado na luta de libertação nacional, seria na altura militante comunista, segundo refere João Madeira em «O PCP e a Questão Colonial», publicado na revista Estudos do século XX – Colonialismo, Anticolonialismo e Identidades Nacionais, n.º 3, 2003, p. 221. Este autor cita como fonte uma «Biografia de Abner Sansão Mutemba», 1985, p. 14, que consta do Espólio de Mário Pinto de Andrade existente da Fundação Mário Soares, Pt. 4329.002. 22 N OÉMIA , A VOZ FRATERNA «Chamo-me Sofia Pomba Guerra e vou ser deportada. Viva Moçambique.»37 Noémia dedicará um poema a João Mendes, «companheiro branco, / desterrado no bojo negro dum navio / a caminho de portos desconhecidos e hostis», ao «companheiro branco, / de sorriso de abraço, / de olhos claros de esperança […] Aquele que nós amávamos, / aquele irmão branco, / que afinal não era branco nem negro, / porque era simplesmente irmão!». E manifesta o desejo de que regresse para «espevitar com tua dura palavra de lutador / o lume da fogueira que acendeste naquela noite fria, / quando nos estendeste tua mão aberta de jovem/ e nos trouxeste a luminosa certeza da nossa redenção»38. Mas como poderiam os presos ser julgados em Lisboa, se, afinal, tinham desenvolvido as «actividades subversivas» de que eram acusados em Lourenço Marques? A própria PIDE fica desorientada. Ao fim de dois meses, o governo resolve o problema publicando um decreto-lei que permite à Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, sob proposta do Procurador-Geral da República, mandar avocar o julgamento ao Tribunal Criminal39. O Supremo lá acabou por avocar o processo, realizando-se o julgamento em Lisboa. A justificação seria a ligação ao Partido Comunista Português e ao MUD Juvenil. No entanto, a própria PIDE confessava que, «não obstante as diligências efectuadas e as buscas feitas nos arquivos desta polícia, nada de positivo foi possível apurar para a descoberta de possíveis ligações com as organizações ilegais existentes na Metrópole, nomeadamente com o chamado Partido Comunista Português e, ainda, com a organização denominada MUD Juvenil»40. Em Lourenço Marques tinham testemunhado em favor dos presos 23 pessoas, entre as quais Noémia de Sousa, Ricardo Rangel 37 Segundo depoimento de Malangatana Valente Ngwenya, que o ouviu a Abner Sansão Mutemba. 38 AAVV, Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, ed. ACEI, s/l, 1994, pp. 216-217. 39 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 94. 40 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 95 e Processo 1116/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 194. 23 N ACIONALISTAS DE M OÇAMBIQUE e José Craveirinha41. E em Lisboa, 44 testemunhas prontificaram-se a abonar em favor dos réus, designadamente os professores Mário de Azevedo Gomes, Teixeira Ribeiro, Ferrer Correia e Maria Isabel Aboim Inglês, os escritores Maria Lamas, Manuel Mendes e João de Barros, os advogados Gustavo Soromenho, Mayer Garção e Magalhães Godinho, os engenheiros Tito de Morais e Ferreira Mendes, o desportista Mário Wilson e os estudantes Mário Soares e Marcelino dos Santos (que viria a ser vice-presidente da FRELIMO)42. O Ministério Público acabou por retirar a acusação de «actividades subversivas», afirmando não ter conseguido fazer prova. E quanto à acusação de terem subscrito folhetos susceptíveis de causar alarme público, a ter existido, levaria os presos a incorrerem num máximo de seis meses de prisão, tempo já ultrapassado. O jornal O Século noticiou o termo do julgamento no Tribunal Plenário. E assinala que os réus «eram acusados de actos políticos contra a actual situação e de terem entrado para a associação, que sabiam ilícita e subversiva, de carácter político, Jovens Democratas de Moçambique, identificada com o Partido Comunista Português. Recomeçados os trabalhos, foram inquiridas testemunhas de defesa, em número elevado, e dispensados diversos. Seguiram-se os debates e tomaram parte neles o dr. Arlindo Martins, ajudante do procurador-geral da República, e os patronos dos incriminados, senhores doutores Jaime Azancot, Santos Ferro, Adão e Silva, Cruz Ferreira e Adriano Moreira [o futuro ministro do Ultramar]. Ao fim da tarde foi proferida a sentença. Os réus foram absolvidos da parte subversiva e foi-lhes aplicada a amnistia na parte referente à conspiração contra a actual forma de governo. Saíram em liberdade»43. Foram absolvidos. Mas tinham passado 10 meses na prisão, em Lourenço Marques, nos calabouços comuns, e na então Metrópole, nas prisões do Aljube e de Caxias 44. E foram proibidos 41 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 102. 42 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 106. 43 O Século, 05.07.1950. 44 IAN/TT, Arquivos da PIDE, Processo 2156/49 SR, Maria Sofia Pomba Guerra, f. 84. 24