O financiamento das empresas portuguesas
1. Um dos efeitos colaterais da crise financeira ainda em curso foi o
aumento da relevância do financiamento das empresas pelo
mercado em detrimento do crédito bancário que, por razões
conhecidas, foi objecto de alguma contenção. A expansão de
formas alternativas de financiamento trouxe de novo para a
discussão nos fora de regulação internacionais o tema do
impropriamente chamado “shadow banking”, para alguns
designando todas as entidades financeiras que não são bancos.
Acontece que muitas dessas entidades são pelo menos tão
transparentes como os bancos e são estritamente reguladas (como
é o caso dos fundos de investimento). Por isso, a verdadeira
dicotomia é entre financiamento bancário e financiamento de
mercado. O que não significa que não subsista ainda a questão da
existência de actividades não reguladas ou insuficientemente
reguladas, algumas das quais desenvolvidas pelos próprios bancos.
Esses “gaps” regulatórios têm, obviamente de ser colmatados. E o
financiamento de mercado precisa de ser desenvolvido,
particularmente nas jurisdições – como a maioria das da Europa
continental - onde tem tido um papel mais subalterno face ao
financiamento bancário.
No entanto, o financiamento no mercado não deve ser sinónimo
de tomada excessiva de riscos, fenómeno que efectivamente se tem
verificado nos anos mais recentes, fruto da enorme criação de
liquidez induzida pelas políticas monetárias adoptadas. A busca de
rendimentos mais elevados, num contexto de muito baixas taxas de
juro, tem levado muitos investidores a aplicações em títulos de
dívida de risco e prazos elevados, numa combinação de riscos de
crédito e taxas de juro que poderão conduzir a perdas muito
expressivas quando o actual pendor da política monetária mudar,
como inevitavelmente acontecerá, só não sendo possível antecipar
o momento. Esta tomada excessiva de riscos tem ido de par – como
também já ocorreu no período anterior ao desencadear da actual
crise financeira – com uma não adequada discriminação do preço
em função do risco, levando a que devedores de risco elevado se
financiem a preços próximos dos devedores de melhor risco. E que
os preços das obrigações (sejam de empresas sejam de dívida
pública) tenham conhecido uma subida forte e generalizada,
configurando aquilo que dificilmente poderá deixar de se
considerar como uma verdadeira “bolha”.
E tudo isto surge num contexto em que – ao contrário das
recomendações dos primeiros tempos da crise – a alavancagem das
economias não tem cessado de aumentar, quer no sector público
quer no sector privado. Entre 2007 e 2013, a soma da dívida pública
e da dívida privada em % do PIB nas chamadas economias
desenvolvidas terá aumentado cerca de 50 pontos percentuais,
situando-se em média em valores próximos dos 300% do PIB.
Também o rácio de alavancagem dos Hedge Funds aumentou de
1.9 em 2008 para 2.6 em 2013. Assistimos ainda a uma
alavancagem crescente das empresas não financeiras,
acompanhada em algumas economias (sobretudo as europeias mais
débeis) por rácios crescentes de créditos em incumprimento. Este
fenómeno não se tem verificado todavia nos mercados
obrigacionistas – apesar das políticas de assumpção de riscos atrás
referidas – o que encontra explicação em boa medida no facto de
os reembolsos terem sido sistematicamente diferidos para anos
vindouros.
Apesar do ganho de preponderância do financiamento de mercado
um pouco por todo o mundo, a situação em Portugal é, desse ponto
de vista, decepcionante. A dimensão do mercado de capitais tem
vindo a reduzir-se acentuadamente, não dando sinais de reversão
desta tendência. O quadro seguinte mostra a dimensão do mercado
acionista comparada com outras economias no final de 2013. Com
os desenvolvimentos observados em 2014, a situação actual só
poderá ser pior.
País
Capitalização bolsista
em %PIB (31-12-2013)
Portugal
35%
Espanha
79%
França
82%
Alemanha
51%
Reino Unido
176%
Japão
93%
Austrália
88%
EUA
143%
Brasil
21%
China
34%
As razões que conduziram a esta situação são de vária ordem. Para
além das mais tradicionais, relacionadas com a cultura empresarial
e do sistema financeiro e a própria estrutura deste último, bem
como os desincentivos de natureza fiscal, várias situações do
passado recente agravaram a situação. Desde logo, os “casos” com
algumas das maiores capitalizações do nosso pequeno mercado
muito contribuíram para abalar a confiança e o interesse dos
investidores. Depois, as fortes perdas accionistas fruto de
valorizações demasiado ambiciosas nas ofertas iniciais de algumas
empresas criaram um cepticismo e uma resistência crescentes à
introdução de novas empresas em bolsa. Outro factor foi, em meu
entender, a dificuldade de concretizar operações de mercado, como
foram os casos das OPA que não chegaram ao mercado por força
das restrições estatutárias e/ou da acção dos accionistas de
controlo, incluindo o Estado. As falhas no governo societário e o
menor respeito pelos direitos dos accionistas minoritários fora
igualmente factores que minaram a credibilidade do mercado.
Credibilidade e confiança que sofreram o efeito devastador do caso
BES/PT. Finalmente, alguma irracionalidade e volatilidade
inexplicada dos preços não terão igualmente ajudado ao interesse e
à estabilidade do investimento no mercado português.
E, no entanto, Portugal tem um mercado moderno; regulação
desenvolvida no quadro europeu; regras de “corporate governance”
avançadas; e uma reforma regulatória profunda nos últimos 10
anos.
E, no entanto, Portugal necessita criticamente de um mercado mais
desenvolvido, com empresas carentes de recapitalização um
programa de privatizações ainda em curso e um sistema bancário
com dificuldades de resposta às necessidades globais das empresas.
2. A questão essencial para as empresas portuguesas é que já registam
níveis de endividamento bancário excessivos e precisam antes de fontes
alternativas de financiamento, especialmente de capital.
Essa é também uma condição crucial para que possam encetar um novo
período de investimento que lhes permita crescer, modernizar-se e, assim,
concorrer com as congéneres estrangeiras que com elas disputam quer o
mercado interno quer os mercados externos. Note-se que, embora a
exportação seja apontada como o caminho do crescimento, o volume de
negócios relacionado com a exportação representa apenas cerca de 22%
do total. O que não difere significativamente da própria dimensão do sector
de bens transacionáveis em termos de contributo para o valor
acrescentado nacional e mostra espaço de crescimento deste sector numa
pequena economia aberta como a portuguesa.
Alguns indicadores selecionados reflectem bem as actuais condições de
crédito das empresas portuguesas:
 Em 2012 a taxa média de um empréstimo em Portugal andaria
acima dos 6%, em Espanha à volta de 5% e na Alemanha em
cerca de 3.5% (e que estas diferenças têm vindo a alargar-se);
 Mas também é verdade que a taxa de crédito em incumprimento
das empresas não financeiras era cerca de 11% em Portugal, 7%
em Espanha e 3.5% na Alemanha;
 Em meados de 2014, o rácio de crédito vencido para as
empresas não financeiras, situava-se já na ordem dos 15%, vido
de 4% em 2009;
 Além disso, os níveis de autonomia financeira das PME
portuguesas são baixos (em média cerca de 30% em 2014 de
acordo com dados da Central de Balanços do Banco de Portugal;
segundo dados do IAPMEI relativos a 2012, no quartil inferior
seria cerca de 5%);
 Além disso, a % de empresas com EBITDA negativo era 36% em
2013;
 A rentabilidade dos capitais próprios das PME era negativa em
2012 e apenas de 3% em 2013.
Destes indicadores parece legítimo inferir que a penalização principal das
PME em Portugal decorre do seu maior risco revelado, embora o mais
elevado custo de “funding” dos bancos portugueses acresça a esse factor.
Questão diferente é a de saber se em cada país – e no nosso em particular
– existe uma discriminação adequada do preço do crédito em função do
risco das empresas.
Uma condição essencial da redução do risco de crédito é o reforço dos
capitais próprios das PME e a recolocação dos seus rácios de autonomia
financeira em níveis semelhantes aos verificados noutros mercados.
Para além dos indicadores de autonomia financeira já apontados, de
acordo com dados referidos no relatório de Estabilidade Financeira do FMI
referente a 2013:
 A dívida financeira das empresas não financeiras em % do PIB
situa-se entre as mais altas da União Europeia (120% do PIB,
com a nova classificação);
 Numa amostra de empresas de um conjunto de países (Portugal,
Espanha, Irlanda, Itália, Alemanha, Reino Unido e Estados
Unidos) a percentagem de dívida de empresas portuguesas com
elevada alavancagem e cobertura de juros pelo EBITDA inferior
a 2 corresponde a 16% do total da amostra, contra cerca de 12%
de empresas irlandesas, 10% de espanholas, 2% de norteamericanas e italianas e valores residuais para o Reino Unido, a
Alemanha e a França;
 Cerca de 45% das empresas (valor dos activos) com elevada
alavancagem e “Free cash-flow” líquido negativo (média das
projecções 2013/2018) são portuguesas, contra cerca de 35%
espanholas, 17% italianas, cerca de 10% francesas, 5% dos
Estados Unidos e valores residuais para alemãs, irlandesas e
inglesas.
Estes números ilustram bem o maior desequilíbrio financeiro das
empresas portuguesas. Se a tudo o que foi dito juntarmos os factos de
38% das empresas apresentarem um EBITDA inferior aos juros que
pagam, 29% terem capitais próprios negativos e de os juros – mesmo num
quadro de taxas de juro muito baixas – absorverem em média cerca de 1/3
do EBITDA, creio que é cristalina a conclusão de que as empresas
portuguesas não precisam de mais crédito, mas de mais capital.
3. Tudo o que foi referido aconselha a adopção de um extenso programa de
recapitalização das PME portuguesas, preferencialmente do sector
transacionável. Este poderá ser um poderoso instrumento de políticas
económicas no sentido de fomentar o investimento produtivo e
consequentemente o aumento da competitividade e do produto potencial.
Tal programa passaria pela identificação das PME economicamente
saudáveis mas com insuficiência de capitais permanentes (baixa
autonomia financeira e/ou excesso de dívida de curto prazo); pela
concepção
de
soluções
de
reforço
dos
capitais
permanentes
preferencialmente baseadas em instrumentos de mercado e com suporte
dos fundos estruturais da UE; pela negociação dessas soluções e da forma
da sua execução com os bancos financiadores das PME e com as
próprias. Temos aqui uma extensa cadeia de valor, com uma
multiplicidade de intervenientes – empresas, instituições financeiras
públicas e privadas e o mercado português gerido pela Euronext – cuja
conjugação e sintomia de esforços será essencial.
Os instrumentos de capitalização a adoptar devem ser adequados às
necessidades das empresas e às especificidades do mercado de capitais
português. Sendo certo que, em termos realistas, apenas um número
restrito de empresas pode aspirar a ter acções cotadas num prazo
relativamente curto, haverá que garantir o seu acesso ao mercado muitas
vezes por via indirecta. Para além do capital de risco (o “verdadeiro”),
instrumento particularmente apropriado às características do tecido
empresarial português, a aquisição de acções/obrigações por Fundos de
Investimento, Fundos de Capital de Risco ou Sociedades de Investimento
em Valores Mobiliários, cujas unidades de participação dos Fundos ou das
acções da SIMO sejam cotadas no mercado Euronext poderá ser uma via
adequada de acesso indirecto ao mercado.
Idealmente, deveria contemplar-se um regime fiscal mais favorável para o
investimento nestes títulos.
Para o conjunto de PME (essencialmente médias empresas) que possam
aceder directamente aos mercados, estão disponíveis os instrumentos
tradicionais, quer de capital (acções) quer de quase capital (por exemplo,
obrigações participantes e obrigações convertíveis em acções).
4. Criaram-se alguns mitos e fantasmas que têm contribuído para adiar
sucessivamente a mudança indispensável na forma de financiamento das
empresas portuguesas. O primeiro tem que ver com a falta do “bom
momento” para ir ao mercado. Os últimos anos foram férteis no uso deste
argumento de imobilismo. E, no entanto, por todo o mundo os IPO têm
proliferado e assumido grande expressão. Em Portugal, não foram os bem
sucedidos IPO correspondente à privatização dos CTT e da Espírito Santo
Saúde e continuar-se-ia a dizer que o momento não era bom ….
O mito final é o dos custos – monetários e de informação – que a presença
no mercado de capitais implica. O primeiro – o dos custos monetários não resiste a um cálculo objectivo, embora eu defenda a introdução de um
benefício fiscal que os atenue para as PME. O segundo tem conseguido
certa popularidade e há mesmo pressões no sentido de aliviar as
obrigações informativas das PME. Este não é, em meu entender, o melhor
caminho. Primeiro porque as obrigações de informação não são
certamente mais extensas do que as que normalmente deverão ser
exigidas por um banco que conceda um crédito de médio prazo e faça uma
análise de risco e um acompanhamento do crédito diligentes e
competentes. Segundo porque um dos factores de agravamento da
percepção de risco das PME é precisamente a falta de informação
adequada sobre as suas características, as suas pessoas e os seus
negócios.
A maior transparência será um elemento essencial de um acesso em
melhores condições não só ao mercado de capitais mas ao próprio
financiamento bancário. E podem todos estar seguros de que a CMVM
tem para com todos os emitentes uma postura cooperativa e de bom
senso, não impondo custos que sejam dispensáveis.
A verdade é que o mercado português tem respondido bem às empresas
(mesmo de média dimensão) que o têm procurado. Se exceptuarmos as
empresas cujas acções cotadas resultaram de privatizações, encontramos
no nosso mercado várias empresas que cresceram com o apoio dos
fundos que levantaram no mercado e que, sem ele, não teriam certamente
tido o mesmo desenvolvimento.
Como já foi apontado num exame da OCDE, temos um mercado moderno
e bem regulado. É claro que subsiste um desincentivo fiscal ao
financiamento por capitais próprios, traduzido no ainda mais favorável
tratamento fiscal dos juros da dívida das empresas, discriminação que
deveria
ser
eliminada
ou,
de
preferência,
transformada
numa
discriminação positiva (temporária) dos capitais próprios. De resto, o fraco
papel do financiamento de mercado, decorre largamente de barreiras
culturais e comportamentais das empresas, do sistema financeiro e dos
investidores institucionais. Em particular, é essencial que o sistema
financeiro encontre formas (incluindo institucionais) de prestar às PME
portuguesas serviços de aconselhamento financeiro, de análise de risco
de médio e longo prazo e de apoio ao acesso a fontes alternativas de
financiamento que permitam um significativo reforço dos seus capitais
permanentes.
Penso que o passado recente trouxe algumas lições que devem ser
apreendidas pelos diversos agentes e que podem contribuir para a
mudança cultural e comportamental necessária. Porque ter PME
financeiramente saudáveis é certamente do seu interesse mas igualmente
das instituições que as financiam. Creio que as organizações empresariais
poderão e deverão também contribuir para essa mudança. Mudança que
inclui pôr de lado os fantasmas e os mitos e ver a realidade como ela é,
sem ceder ao argumento fácil de que é assim porque sempre foi assim.
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