Tempo que diz
De tempo somos.
Somos seus pés e suas bocas.
Os pés do tempo caminham em nossos pés.
Cedo ou tarde, já sabemos, os ventos do tempo apagarão
as pegadas.
Travessia do nada, passos de ninguém? As bocas do
tempo contam a viagem.
7
A viagem
Oriol Vall, que cuida dos recém-nascidos em um hospital
de Barcelona, diz que o primeiro gesto humano é o abraço.
Depois de sair ao mundo, no princípio de seus dias, os bebês
agitam os braços, como buscando alguém.
Outros médicos, que se ocupam dos já vividos, dizem
que os velhos, no final de seus dias, morrem querendo
erguer os braços.
E assim são as coisas, por mais voltas que se queira dar
à questão, e por mais palavras que se digam. A isso, simples
assim, se reduz tudo: entre o primeiro bater de asas e o derradeiro, sem maiores explicações, transcorre a viagem.
8
Testemunhas
O professor e o jornalista passeiam pelo jardim.
E então Jean-Marie Pelt, o professor, se detém, aponta
com o dedo e diz:
– Quero apresentar você às nossas avós.
E o jornalista, Jacques Girardon, se agacha e descobre
uma bolinha de espuma que assoma no meio do capim.
É uma população de microscópicas algas azuis. Nos dias
de muita umidade, as algas azuis se deixam ver. Assim, todas
juntas, parecem uma cusparada. O jornalista franze o nariz: a
origem da vida não tem um aspecto dos mais atrativos, mas
é dessa baba, dessa porcaria, que viemos todos aqueles que
temos pernas, patas, raízes, aletas ou alas.
Antes do antes, nos tempos da infância do mundo,
quando não havia cores nem sons, elas, as algas azuis, já
existiam. Jorrando oxigênio, deram cor ao mar e ao céu.
E um belo dia, um dia que durou milhões de anos, muitas
algas azuis decidiram transformar-se em algas verdes. E as
algas verdes foram gerando, pouco a pouco, liquens, fungos,
musgos, medusas e todas as cores e sons que depois vieram,
viemos, a alvoroçar o mar e a terra.
Mas outras algas azuis preferiram continuar do jeito que
eram.
E assim continuam a ser.
Desde aquele remoto mundo que foi, elas olham o
mundo que é.
Não se sabe o que elas acham.
9
Verderias
Quando o mar já era mar, a terra não passava de uma
rocha nua.
Os liquens, vindos do mar, fizeram as campinas. Eles
invadiram, conquistaram e verdejaram o reino da pedra.
Isso ocorreu no ontem dos ontens, e continua ocorrendo.
Onde nada vive, os liquens vivem: nas estepes geladas,
nos desertos ardentes, no alto mais alto das mais altas
montanhas.
Os liquens vivem enquanto dura o matrimônio entre as
algas e seus filhos, os fungos. Se o matrimônio se desfaz,
se desfazem os liquens.
Às vezes, as algas e os fungos se divorciam, por
incompatibilidade de gênios. Elas dizem que eles as mantêm
trancadas e não as deixam ver a luz. Eles dizem que elas
os deixam entalados e enjoados de tanto açúcar que lhes
dão, noite e dia.
10
Pegadas
Um casal vinha caminhando pelo cerrado, no oriente da
África, enquanto nascia a estação das chuvas. Para dizer a
verdade, aquela mulher e aquele homem ainda se pareciam
bastante aos macacos, embora já andassem erguidos e não
tivessem rabo.
Um vulcão vizinho, agora chamado Sadiman, estava
jorrando cinzas pela boca. Aquela cinza guardou os passos
do casal, desde aqueles tempos, pelos tempos afora. Debaixo do manto acinzentado ficaram, intactas, as pegadas.
E aqueles pés nos dizem, agora, que aquela Eva e aquele
Adão vinham caminhando juntos, quando a certa altura ela
se deteve, se desviou e caminhou alguns passos por conta
própria. Depois, voltou ao caminho compartilhado.
As pegadas humanas mais antigas deixaram a marca
de uma dúvida.
Alguns anos se passaram. A dúvida permanece.
11
Os jogos do tempo
Dizem que se diz por aí que havia uma vez dois amigos
que estavam contemplando um quadro. A pintura, obra sabese lá de quem, vinha da China. Era um campo de flores no
tempo da colheita.
Um dos dois amigos, sabe-se lá por que, tinha os olhos
cravados em uma mulher, uma das muitas mulheres que no
quadro colhiam amapolas em suas cestas. Ela estava com
os cabelos soltos, chovidos sobre os ombros.
Ela finalmente devolveu o olhar, deixou cair a cesta,
estendeu os braços e, sabe-se lá como, o levou.
Ele se deixou levar sabe-se lá para onde, e com aquela
mulher passou as noites e os dias, sabe-se lá quantos, até
que um vendaval o arrancou de lá e devolveu-o à sala onde
seu amigo continuava plantado na frente do quadro.
Tão brevíssima fora aquela eternidade, que o amigo
nem tinha percebido a sua ausência. E também não tinha
percebido que aquela mulher, uma das muitas mulheres que
no quadro colhiam amapolas em suas cestas, estava, agora,
com os cabelos presos na nuca.
12
Os tempos do tempo
Ele é um dos fantasmas. Assim as pessoas de Sainte
Elie chamam os poucos velhos que continuam afundados
no barro, moendo pedras, cavando areia, nessa mina abandonada que jamais teve cemitério, porque nem os mortos
quiseram ficar.
Há meio século esse mineiro, vindo de muito longe,
chegou ao porto de Caiena e foi-se terra adentro à procura
da terra prometida. Naqueles tempos, aqui havia florescido o
jardim de ouro, e o ouro redimia qualquer forasteiro morto de
fome e o devolvia para casa muito gordo de ouro, se assim
quisesse a sorte.
A sorte não quis. Mas esse mineiro continua aqui, sem
outra roupa que um tapa-rabo, comendo nada, comido pelos
mosquitos. E à procura de nada revolve a areia dia após dia,
sentado na frente da bateia, debaixo de uma árvore mais
magra que ele, e que mal o defende da ferocidade do sol.
Sebastião Salgado chega a essa mina perdida, visitada
por ninguém, e senta-se ao seu lado. Ao caçador de ouro só
resta um dente, um dente de ouro, que quando ele fala brilha
na noite de sua boca.
– Minha mulher é muito linda – diz.
E mostra uma foto trincada e borrada.
– Ela está me esperando – diz.
Ela tem vinte anos.
Faz meio século que ela tem vinte anos, em algum lugar
do mundo.
13
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