PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC SP Raquel Gonçalves Dantas O conhecimento na comunicação artística: o papel do corpo na exposição Sala de Jejum, de Milena Travassos MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO SETEMBRO 2011 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC SP Raquel Gonçalves Dantas [email protected] O conhecimento na comunicação artística: o papel do corpo na exposição Sala de Jejum, de Milena Travassos MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira. SÃO PAULO SETEMBRO 2011 2 BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira, PUC-SP _____________________________________ Prof.ª Dr.ª Christine Greiner, PUC-SP _____________________________________ Prof. Dr. Wellington Júnior, UFC-CE 3 – À minha mãe, Edna Maria Lima Gonçalves, que me apoiou, incondicionalmente, nesta importante etapa da vida; – Ao grupo Nzinga de capoeira angola, espaço que me serviu de alimento para o corpo e a alma. 4 Agradecimentos Durante minha jornada, foram muitos aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho. Decidi deixar minha cidade, família e amigos em busca de um sonho e a conclusão desse mestrado é, sem dúvida, somente o início desta realização. Com certeza, sozinha seria impossível ter dado esse primeiro passo, tão corajoso e desafiador. Primeiramente, gostaria de agradecer a meu tio, Daciberg Gonçalves, que me recebeu em sua casa logo que cheguei a São Paulo e possibilitou que eu iniciasse o mestrado sem preocupações até eu me estruturar na cidade e alugar o meu espaço. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq pela bolsa concedida para a realização de minha pesquisa durante os últimos 17 meses de desenvolvimento da dissertação. Sem dúvida, foram fundamentais para uma dedicação exclusiva à pesquisa. É com muito carinho que agradeço ao companheiro Diogo Arakilian Marcondes, quem me fez acreditar novamente no amor e me ensinou a não levar vida tão a sério. À sua mãe, Vanda, sempre tão atenciosa e cuidadosa. Gostaria de agradecer aos meus amigos, pessoas tão importantes com quem dividi momentos incríveis. Com Lívia Rios, aqui em São Paulo, dei boas risadas. Renata Gauche também me trouxe alegrias. Natália Paiva e Amanda Queirós alimentaram e alimentam o desejo de encontrar meu espaço profissional nessa cidade maluca. Outros estavam mais longe. A distância entre São Paulo e Fortaleza diminui quando o coração está perto. Tiago Coutinho, Mila Pereira, Jamile Alcântara, Carol Domingues, Bruno Xavier, Maíra Bosi, Angélica Feitosa, Rúbia Mércia, Cristiane Sampaio. Muito obrigada, meus amores, pelo companheirismo e amizade. Kamilla Farias, em Brasília; Natacha Lemos, em Miami, vocês também ocupam parte grande no meu coração. Gostaria de agradecer aos amigos que fiz no grupo Nzinga de Capoeira Angola, espaço tão importante para minhas reflexões em torno do corpo e para meu exercício de cidadania. Foi como integrante deste grupo que pude entender que a construção do conhecimento se dá sim no corpo. É através da tradição oral e dos movimentos da capoeira angola que meu corpo perpetua os ensinamentos ancestrais de mestre Pastinha. E foi assim que pude entender, de fato, sua frase: “Capoeira é tudo que a boca come.” Obrigada mestra Janja, Léo, Serginho, Dani, Dênis, Mandala, Mais, Laura, Maurinho, Lili, Maré, Bia, Manô, Cacá, Andreza, Adrián, Ângelo, Anderson, 5 Thiago, Kosuke, Ingrid, Fernando, Rosemberg, Rodrigo e todos os outros que fazem parte da família Nzinga. A este último, Rodrigo Fonseca, um agradecimento especial pelos desenhos que ajudaram a ilustrar minha proposta de curadoria, no capítulo 3. Meus sinceros agradecimentos ao meu orientador, Jorge de Albuquerque Vieira e a todos os outros professores que me acompanharam nesta jornada, Amálio Pinheiro, Rogério da Costa, Helena Katz, Norval Baitelo. A Christine Greiner, agradeço por aceitar compor minha banca examinadora ao lado de Wellington Júnior, que veio de tão longe – por conta própria – para prestigiar meu trabalho. Obrigada, professores. À Milena Travassos, que disponibilizou um vasto material de pesquisa sobre sua obra e me recebeu de portas abertas no Rio de Janeiro para entrevistá-la, me fazendo conhecer um pouco mais da autora do meu objeto de pesquisa. A Fernanda Meireles, pela revisão ortográfica deste trabalho. Obrigada, primos; Bia, Bruno e Ricardo pelos encontros despretensiosos e cheios de carinho. A Nuno Gonçalves e Maíra Castanheira todo meu amor e gratidão pela presença constante via skype, estivessem na Bahia ou no México. À minha irmã, Lídia Gonçalves Dantas Tavares, pelo seu amor imensurável. Sua presença diária na minha vida me faz acreditar que eu nunca estarei só. Ao meu cunhado, Henrique Tavares, por fazer minha irmã feliz e terem, recentemente, me dado a sobrinha mais linda do mundo. Ao meu pai, Marcelo Ramalho Dantas, mesmo tão ausente, simplesmente por ele existir. À minha mãe, Edna Maria Lima Gonçalves, mulher guerreira a quem dedico este trabalho e devo todas as minhas conquistas, um agradecimento especial, pelo amor, pelo total apoio em minhas escolhas, respeito e dedicação. Muito obrigada, mãe. 6 Resumo: Não é de hoje que o corpo é alvo dos holofotes de pesquisadores tanto na academia quanto na esfera da arte. Para o estudo do tema, será necessário recorrer ao processo de construção e às transformações que esta interface humana, chamada corpo, passou a partir dos anos 50, principalmente no universo artístico e na reconstituição do sujeito diante de novos paradigmas. Uma atenção especial será dada à legitimação do conhecimento tácito, desenvolvido por Michael Pollanyi. A experiência artística proporciona ao homem um modo de conhecer da ordem do sensível. A cognição humana é ativada através de mecanismos que fogem do habitual. Isto, sem dúvida, altera os processos culturais no entorno, assim como abre novas possibilidades de conexões cognitivas no corpo humano. A legitimação de outras formas de conhecimento por intermédio da sensibilidade do corpo traz uma nova perspectiva na compreensão da comunicação. Um novo conceito aponta nesse início de século: a Teoria Corpomídia, de Katz & Greiner. A partir daí, questiono as formas de comunicação que acontecem nas experiências artísticas e o que elas têm provocado no corpo humano induzidos pelos vários fatores que regem o atual processo cultural e psicossocial, dentre eles, as novas tecnologias. Como a Umwelt humana é dilatada e ativada pela experiência artística, estando ela apoiada ou não na tecnologia? Mais especificamente: como a cognição humana é alterada pelo exercício complexo de uma experiência artística? A partir desse problema, usarei o trabalho de Milena Travassos, Sala de Jejum, como estudo de caso para estruturar minha pesquisa baseada na seguinte hipótese: a cognição humana desenvolve-se por um processo co-evolutivo em relação ao ambiente humano e a tecnologia fornece uma forma de extrasomatização apoiada nos sentidos do corpo que acelera esse processo, dilatando a Umwelt da nossa espécie. Estará presente neste trabalho a discussão filosófica de Jorge Vieira sobre a Teoria Geral dos Sistemas. Giorgio Agambem entrará na pesquisa com o conceito de profanação. Na base da discussão sobre os caminhos traçados pela comunicação, Jesús Martín Barbero, Nestór Garcia Canclini, Marshall McLuhan, Boaventura Sousa Santos aparecerão, assim como Walter Benjamin, autor base para os estudos da artista visual analisada. Para discutir os processos cognitivos e o surgimento de uma nova comunicação cultural, Muniz Sodré, Edward Hutchins, Helena Katz, Mark Johnson, Richard Sennet, António Damásio dentre outros. Palavras-chave: comunicação, conhecimento tácito, arte, corpomídia 7 Abstract It is not a novelty that the body is a target to spotlights of researchers such within academy as in art sphere. For the study of this topic, it will be necessary to resort to the construction process and to the transformations that this human interface called body passed through the fifties, mainly in the artistic universe and in the reconstitution of the subject facing new paradigms. A special attention will be given to legitimating tacit knowledge, developed by Michael Pollanyi. Artistic experience provides to the man a way of knowing proper from the sensitive order. Human cognition is activated through mechanisms which escape from usual. This, without a question, alters cultural processes, as well as new possibilities of cognitive connections in human body. The legitimacy of other ways of knowledge through body sensitivity brings a new perspective to communication understanding. A new concept emerges in the beginning of this century: the Bodymedia Theory of Katz & Greiner. From this point, I question the ways of communication which happen within artistic experiences and what they have provoked in human body induced by many factors which are rulers of the current cultural and psychosocial process, among them, the new technologies. How is human Unwelt dilated and activated by artistic experience, based or not in technology? More specifically: how is human cognition altered by the complex exercise of an artistic experience? Starting with this problem, I will use the work of Milena Travassos, Sala de Jejum, as case study to build a structure for my research based upon the following hypothesis: human cognition is developed by a co-evolutive process related to human environment and technology offers a way of extrasomatisation relying on the body senses which accelerates such process, dilating the Unwelt of our specie. It will be present in this work the philosophical discussion of Jorge Vieira on the General Systems Theory. Giorgio Agambem will be present with the profanation concept. Intertwining with the discussion on the communication field, Jesús Martín Barbero, Nestór Garcia Canclini, Marshall McLuhan, Boaventura Sousa Santos will appear, as well as Walter Benjamin, author base to the studies of the visual artist analyzed. To discuss cognitive processes and the emerging of a new cultural communication, Muniz Sodré, Edward Hutchins, Helena Katz, Mark Johnson, Richard Sennet, António Damásio, among others. Key-words: Communication, tacit knowledge, art, bodymedia. 8 Sumário INTRODUÇÃO _______________________________________________________10 1. Tateando as artes visuais 1.1 Apresentando uma ninfa ___________________________________________13 1.2 Reinventando o corpo _____________________________________________24 1.3 Corpo distendido: agente na construção da cultura ______________________ 27 1.4 Movimento é o pensamento do corpo _________________________________29 2. Análise das obras 2.1 Restituir ao uso livre do homem _____________________________________34 2.2 Vida e arte não se dissociam ________________________________________45 2.3 Olhar atento ____________________________________________________ 47 2.4 Revisitando a iconosfera ___________________________________________50 2.5 Tecnologia e percepção ___________________________________________ 54 2.6 Apreço ao belo __________________________________________________ 63 2.7 Emoções e sentimentos: a chave do conhecimento ______________________ 68 2.8 Travessia de superfície ____________________________________________74 2.9 Mídia e imagem: manipulação e imersão ______________________________83 2.10 Arte como dispositivo ____________________________________________86 3. Conexões filosóficas: caminhos e possibilidades da comunicação artística 3.1 Por uma autonomia coletiva ________________________________________91 3.2 Entropia viabilizando autonomia ____________________________________ 94 3.3 Estratégias para uma nova curadoria ________________________________ 100 3.3.1 Sala de jejum ______________________________________________100 3.3.2 O Banho__________________________________________________ 101 3.3.3 Náiades __________________________________________________ 101 3.3.4 Vertigem __________________________________________________102 3.3.5 Tudo que Sustenta___________________________________________104 3.3.6 Tempo de Paisagem e Para Ver Amarelo________________________ 105 3.3.7 Vigília____________________________________________________106 3.3.8 Na mesma direção __________________________________________107 4. CONCLUSÃO ____________________________________________________ 108 5. Referências bibliográficas ____________________________________________111 5.1 Bibliografia de Pesquisa __________________________________________ 113 6. Anexo 1 – Entrevista com Milena Travassos _____________________________115 7. Anexo 2 – Currículo Artístico _________________________________________122 9 Introdução Em uma de suas muitas obras sobre o corpo, o sociólogo francês David Le Breton escreve: “O corpo é similar a um campo de força em ressonância com os processos de vida que o cercam” (BRETON, p.26, 2007). Esta afirmação nunca fez tanto sentido quanto depois da experiência que me fez desenvolver esta pesquisa. Uma vivência estritamente sensorial no campo da arte que reverberou para outras esferas da minha vida. Em novembro de 2007, o Teatro Oficina Usyna Uzona encenou em Quixeramobim, interior do Ceará, o clássico da literatura Os Sertões, de Euclides da Cunha. Depois de assistir/participar da experiência, tive os primeiros questionamentos a respeito de como acontece a produção de conhecimento no homem. Aquela experiência gerou em mim a sensação mais estranha que me ocorreu numa vivência artística. Uma mistura de mal estar e prazer de estar ali. Eu sabia que não se tratava somente de uma opinião embasada na estética, em um “gostar” ou “não gostar”. A imersão do meu corpo na obra foi capaz de provocar e transformar minha percepção de valores relativos ao ser humano tão engessado em nosso meio social. Explorar o mundo estranho de forma não só a tomar conhecimento, mas experimentá-lo, na forma mais complexa do termo, significa entrar em contato com um repertório cultural diferente do seu. Depois disso, percebi que os mistérios que envolviam as experiências artísticas me interessavam quanto forma de explorar outros universos e saber que, dali, era possível estruturar conhecimentos no corpo de outra ordem, diferente dos espaços formais e legitimados pela sociedade capitalista. Durante o curso de Especialização em Audiovisual e Meios Eletrônicos, realizado na Universidade Federal do Ceará, pude conhecer a artista visual Milena Travassos1, que tinha uma pesquisa em torno do corpo que me chamava atenção. Ao longo do curso, pudemos trocar algumas impressões teóricas sobre o tema e percebemos nossa afinidade em torno de um interesse comum. Junto aos professores do curso, como Renata Gomes, André Parente, Daniel Cardoso, Wellington Jr, busquei uma bibliografia especializada e comecei a amadurecer um projeto de pesquisa que discutisse a arte como forma de conhecimento, tendo o corpo como elemento central de comunicação. 1 Atualmente, a artista mora no Rio de Janeiro, onde desenvolve sua pesquisa de doutorado no departamento de Comunicação e Cultura, na UFRJ Eco, na linha de pesquisa Tecnologias da Comunicação e Estética. Ver anexo 1, onde ela descreve sua pesquisa de doutorado em entrevista. 10 Nesta pesquisa bibliográfica e no amadurecimento do projeto, descobri que existem outros objetos que vem realocando conceitos e reestruturando formas de ação no mundo que tem interferido diretamente nas relações sociais, além de redefinir esses encontros entre os sujeitos e as produções artísticas. São elas as tecnologias. A partir daí, surgiu o problema que desencadeou minha pesquisa. Questiono sobre as formas de imersão que acontecem nas experiências artísticas e o que elas têm provocado no corpo humano induzidos pelos vários fatores que regem o atual processo cultural e psicossocial, dentre eles, as novas tecnologias. Como a Umwelt humana é dilatada e ativada pela experiência artística, estando ela apoiada ou não na tecnologia? Questiono, mais especificamente: Como a cognição humana é alterada pelo exercício complexo de uma experiência artística? A arte-tecnológica se posiciona de que maneira dentro deste processo? Desta forma, usarei o trabalho de Milena Travassos, Sala de Jejum (2009), como estudo de caso para estruturar minha pesquisa baseada na seguinte hipótese: a cognição humana desenvolve-se por um processo co-evolutivo em relação ao ambiente humano e a tecnologia fornece uma forma de extrasomatização apoiada nos sentidos do corpo que acelera esse processo, dilatando a Umwelt da nossa espécie. No primeiro capítulo, será apresentada a artista, contextualizando a produção Sala de Jejum em relação a trabalhos anteriores desenvolvidos por ela, além de citar autores que discutiram a obra de Milena Travassos em publicações anteriores como artigos, catálogos e produções científicas. Será feito também um apanhado teórico em torno do conceito corpomídia, que guiará o cerne da discussão desta dissertação, através de autores como Christine Greiner e Helena Katz. A partir do pensamento de Marshal Mc Luhan, serão expostas alguma releituras de suas teorias. O movimento como um pensamento do corpo estará presente neste capítulo, além de apontar pistas para os rumos que o desenvolvimento do trabalho irá tomar. No capítulo seguinte, encontra-se a análise dos doze trabalhos que compõem a exposição Sala de Jejum: Para Ver Amarelo, Casulo, Apnéia, Tempo de Paisagem, Sala de jejum, Vertigem, Tudo que Sustenta, O Banho, Sonata, Náiades, A um Passante e Vigília. Sob diversos olhares teóricos, será trabalhada a discussão de Giorgio Agamben em torno do conceito de profanação. De Walter Benjamin, autor que inspirou a artista na nomeação e criação de Sala de Jejum, será focado principalmente as idéias que ele discute em A Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Jesus Martín Barbero ao lado de Nestor Garcia Canclini aparecem em suas análises sobre a cultura e sociedade. Roman Gubern traz um olhar crítico sobre a inserção das imagens na vida social, desde 11 a modernidade até os dias atuais. Mark Johnson, Edward Hutchins e Michael Tomasello contribuem com suas associações entre a cultura e a cognição humana, sem excluir o corpo como um mediador desse processo. Muniz Sodré entra com a discussão de política em torno dos afetos e dos sentimentos, dentre outros autores. A análise dos trabalhos aparece enlaçada com as discussões teóricas para que o leitor possa visualizar em que ponto aquele autor se encaixa na experiência prática do trabalho da artista, além de sugerir as brechas quando isso não acontece. No capítulo três serão discutidas maneiras de se olhar para a realidade a partir da Teoria Geral dos Sistemas. Em torno dos conceitos filosóficos trabalhados por Jorge de Albuquerque Vieira, como Umwelt, permanência, entropia, sistemas, autonomia, será desenvolvido uma sugestão de caminho a ser adotado em busca por autonomias conquistadas coletivamente. Será exposto o papel da arte nesse processo, além de propor estratégias de uma nova curadoria. Em anexo, o leitor pode ter acesso ao CD que reúne os vídeos apresentados nos trabalhos da exposição analisada, uma entrevista com a artista, além do currículo artístico de Milena Travassos, contendo as exposições individuais, coletivas e outras informações sobre sua trajetória, como sua participação em exposições internacionais. 12 1. Tateando as artes visuais 1.1 Apresentando uma ninfa Uma ninfa pousou nas laranjeiras. Decidiu mudar os ares, deixou sua terra quente e desceu para o sudeste. Foi morar no Rio de Janeiro, lugar de terras úmidas e frutíferas. Aos sábados pela manhã, ela colhe flores nos campos da esquina e renova a energia da sua casa. Foi lá onde eu a encontrei. Em seu lar, no coração das Laranjeiras. Eu queria saber sobre o seu mundo encantado, seus vôos, viagens e criações. Encontrei uma mulher com cara de menina, que, às vezes, se transmuta em fada, em ser mitológico, em água e vento. De fala mansa e idéias, por vezes, cheia de idas e vindas, me falou de suas invenções, curiosidades, inquietações e anseios. Estivemos juntas por dois dias. Conversamos, rimos, saímos, assistimos filme, fomos à exposições e trocamos muita figurinha sobre o universo artístico que ronda o corpo, a comunicação, o conhecimento e a sua produção quanto artista visual. Era maio de 2011. Antes de me receber para a conversa „séria‟, que seria gravada, ela, descontraída, – com aquele rostinho que ora se mostrava até envergonhada – me pediu alguns minutos de leitura antes da entrevista. Debruçou-se sobre o texto O enigma do Espelho, do livro Desgostos – Novas Tendências Estéticas, de Mário Perniola e, somente então, me recebeu. O meu primeiro encontro com Milena de Lima Travassos se deu anos antes, mas foi em maio de 2011 e na realização desta pesquisa que conheci seus trejeitos, descobri um pouco mais de sua personalidade e pude conhecer a fundo o seu trabalho. Sua produção artística já me encantava de outrora, quando tive contato pelos corredores de Fortaleza. Mas a idéia de tomar a sua produção como objeto de estudo para ilustrar as minhas inquietações em torno da arte tardou. Agosto de 2010. – Milena, você poderia me passar o material da exposição Sala de Jejum, catálogo, fotos, matérias que saíram na mídia? Escolhi tua exposição como objeto de pesquisa do meu mestrado. Vou estudar a arte como forma de conhecimento, tendo o corpo como elemento central nesse processo. – Oi, Raquel, claro, eu te passo sim. Vou te dar também um CD com os vídeos que foram editados para a montagem das vídeos-instalação. O que você precisar pode contar comigo. 13 Quando o diálogo aconteceu, já tinha um ano que havia iniciado o mestrado. Mas a necessidade do recorte não poderia me fazer adiar mais esta escolha. Aquela menina, naquele momento, deixava de ser apenas uma colega de classe que eu tive na especialização e se tornava objeto exclusivo de minha atenção por, pelo menos, mais um ano. E assim foi. Milena Travassos nasceu em Recife, mas teve uma infância cheia de idas e vindas. Morou em Salvador, Teresina, Fortaleza, Recife de novo até fazer sua escolha. Decidiu por Fortaleza. Aos 35 anos – recém completados em 12 de julho – Milena me contou sobre sua trajetória. Mulher, mas com cara de menina, ela não nega suas raízes pernambucanas, mas sabe que não foi lá onde obteve suas maiores conquistas. “Em Recife eu nunca concretizei nada mais sólido. Nunca expus lá, por exemplo. Eu acho que eu ainda estava querendo me encontrar quando eu saí de lá”. (ANEXO 1). Antes de aportar em Fortaleza de vez, aos 23 anos, estudou no Instituto de Arte Contemporânea – IAC, em Recife. Lá, ela conheceu pessoas relevantes para a sua formação e aprimorou seus estudos com pintura e desenho. Mas não foi o suficiente. Decidiu seguir para Fortaleza, onde seus pais moravam na época. Logo que chegou à capital cearense, ingressou na primeira turma de Artes Visuais da faculdade Gama Filho. Também tentou vestibular para Educação Física, Biologia e Filosofia. E foi nesta última que o interesse lhe fisgou. Cursou filosofia na Universidade Estadual do Ceará – UECE e, a partir daí, não largou mais o osso. “A filosofia me surpreendeu! Eu nunca tinha pensado em fazer filosofia, mas no momento em que eu passei, eu já me interessei em fazer o curso. As leituras que eu encontrei na filosofia me encheram de inspiração para criar”. (ANEXO 1). E se encantou com os escritos de Walter Benjamin. Foi assim que aquela menina determinada enveredou pelas reflexões filosóficas do autor. Procurou alguém para lhe orientar e deparou-se com a professora Teresa Calado. Ao lado dela, Milena desenvolveu a monografia, concluindo a graduação, e também a dissertação, no mestrado, fazendo na seqüência. “Eu tinha interesse em pensar arte e política e, como ele tratava do audiovisual, me parecia que ia ser um autor muito útil. O tema na monografia foi A Necessidade Filosófica e Política da Arte. Já no mestrado foi A Estética do Choque e a Política de Walter Benjamin. Por isso, encontrar a Teresa Calado foi importantíssimo. O Benjamin me encanta. Ele pega temas do cotidiano e os enriquece com um vocabulário interessante, uma forma de escrita muito poética, lírica. Ele se volta muito para artistas em seus escritos. Para arte em geral, 14 como ele fez com o Proust, Kafka. Isso me interessa muito.” (ANEXO 1). Em Fortaleza, Milena alicerçou seu conhecimento acadêmico e amadureceu sua produção enquanto artista visual. Em paralelo com os estudos, começou a expor em galerias, centros culturais de Fortaleza e a participar da política de editais. Seus primeiros contatos com a arte deu-se através de Chagall, Odillon Redon e Gustav Klimt, artistas que marcaram sua trajetória. “É engraçado como tem influências que ficam ali imanando o seu interesse de produção. (...) Ele [Gustav Klimt] tinha umas pinturas que eram só mulheres em cena. Eram bem coloridas. É engraçado porque hoje eu estou em todos meus trabalhos.” (ANEXO 1). Mais tarde, surge o interesse pelo cinema e a linguagem do vídeo, quando conhece Tarkovsky, Sokurov e Bill Viola. No Brasil, o olhar cotidiano do documentarista Cao Guimarães e a sensibilidade natural da artista Brígida Baltar são referências para esta mente inquieta que não se acomoda no tempo. Maya Deren, Agnès Varda, Hatsushiba e Pipillot Rist também instigam a veia artística. Em sua produção, a transparência sempre foi um elemento relevante. O livro de vidro foi sua primeira obra, “com inscrições que se apresentavam como uma constelação de signos a serem decifrados” (RIBEIRO, 2007), define Sólon Ribeiro, fotógrafo, crítico de arte e, posteriormente, curador de exposições da qual a artista fez parte. O observador podia manusear as páginas de vidro do livro. Mas sua primeira exposição individual foi Ligações, em 2003, realizada no Centro Cultural Banco do Nordeste. Nesta, segundo a artista, o elemento da transparência já aparecia, mas ainda não era central. A complementaridade das obras com o espaço era o foco. O trabalho se baseava em sistemas compostos por linhas e pontos que montavam uma rede, conectando informações com o espaço entre as torres de acrílico e o próprio ambiente de exposição. “Meu desenho era bem esquemático”, recorda Milena. Para a curadora da exposição Luíza Interlenghi, Ligações eram diagramas simples, porém indecifráveis, que se mesclavam com os diferentes planos arquitetônicos, “sugerindo marcações para um projeto a ser implantado, ou radiografias poéticas de circuitos alojados para além das paredes opacas.” (INTERLENGHI, 2004). Ela ainda continua sobre a artista: “Sobre vidro e acrílico, os traçados de Milena propõem representações destes sistemas complexos, tornando-os parcialmente 15 visíveis, mas sempre em transformação e abertos a novos processos de integração: de um pequeno círculo parte um tracejado que atinge um disco opaco e continua até uma conexão mais distante; símbolos gráficos como a chave sugerem o contato entre dois pontos complementares enquanto o curso de uma outra linha é delimitado por caracteres incompreensíveis, apenas vestígios de linguagem.” (INTERLENGHI, 2004). Olhando para trás, Milena não guarda tanta poesia quando lembra sua primeira exposição. “Ele [o trabalho Ligações] me incomoda um pouco, porque acho ele meio frio. Ele não faz mais tanto sentido. É um trabalho com uma linha muito marcada, reta, não traz um movimento. Não aproxima tanto o visitante. (ANEXO 1). Mas a pesquisa continuou e a ânsia de criar também. O interesse por objetos delicados, de vidro vinha se tornando mais forte. Em Pedaços Profundos, Milena teve a oportunidade de “brincar” com dezenas deles, construindo um labirinto de vidrinhos que passava pelo chão e subia pelas paredes do Alpendre, espaço que recebeu este seu trabalho. Ora apareciam cheios com um líquido azul, ora se esvaziavam. “Trabalhando com esses objetos eu fui criando o interesse de levá-los para o corpo. Foi quase que instantâneo. Comecei a fazer testes, tentei ver se eles aderiam a pele e, talvez pelo formato deles, pensei que o lugar ideal para se tentar conjugá-lo no corpo seria ao longo da coluna vertebral.” (ANEXO 1). As pessoas que Milena foi encontrando no seu caminho foram também peças importantes do quebra-cabeça que se desenhava. A convivência com amigos, professores, companheiros contribuiu bastante para o seu amadurecimento de criação. O meio artístico por qual ela passou a circular foi fundamental para ela se encontrar quanto artista visual também. Waléria Américo, Euzébio, Alexandre Veras, Sólon Ribeiro estavam ali, ao lado de Milena, criando, trocando, crescendo, desenvolvendo projetos juntos. O Eusébio, que trabalhava com o teatro, fez um trabalho comigo, chamado Nossa Senhora. Ele me vestiu como uma santa e me fotografou. A Wal [Waléria Américo], também nessa época, pensava o corpo dela em cena. Embora fosse sob outra perspectiva, diferente da minha, tudo isso foi me influenciando e me fazendo pensar nessa proposta de se colocar em cena. (ANEXO 1). A vontade de se colocar em cena também veio no mesmo compasso que a sua pesquisa em torno das transparências. A fragilidade, a delicadeza, o sutil aparecem num corpo personagem. Não é a Milena Travassos que ocupa a cena. É mais um elemento de 16 composição: um corpo, objetos transparentes de vidro, os fluídos, os materiais orgânicos. Fotografias impressas em vidros. Ora cúbicos, ora em placas. Corpos retorcidos e em movimento. Ao longo da coluna vertebral, objetos transparentes alinham o eixo de sustentação do corpo. A Observadora, No Parapeito, Sobre Duas Janelas, desenvolvidos em 2006, marcam seu trabalho em torno da fotografia impressa em vidros, explorando elementos como a profundidade e a terceira dimensão visual do expectador. A diluição de fronteiras ressalta a mescla com o espaço de exposição. A Observadora (2006) No catálogo da exposição Projéteis de Arte Contemporânea 2005, publicado em 2007, na Galeria do Palácio Gustavo Campanema, no Rio de Janeiro, a curadora Carolina Soares discorreu sobre a natureza inorgânica do vidro trabalhado pela artista. Por ser sólido e frágil, simultaneamente, surge a consciência sobre um corpo rígido, porém quebradiço. Em A Observadora está a experiência de um corpo consciente de si, afirma a curadora. “São extensões, a partir das quais a artista transmuta as singularidades de seu próprio corpo, suscitando reflexões sobre sua estrutura anatômica e fisiológica. Essa espécie de metamorfose, que por vezes provoca estranhamento, também seduz. A pele branca, a nudez sensual, a feminilidade da pose, a suavidade da luz encantam. A relação dicotômica estabelecida é evidenciada quando as imagens fotográficas são deslocadas para a dimensão tridimensional de cubos de vidros, cuja transparência possibilita ao espectador perceber a expansão poética proposta pela artista.” (SOARES, 2006). 17 Sobre o mesmo trabalho, o curador da exposição Quase Nordeste, Ricardo Resende, na época era diretor do Museu da Arte Contemporânea do Ceará (2005 – 2007) falou sobre o impacto da obra da artista, a colocando entre as cinco artistas de destaque no cenário da arte contemporânea cearense, ao lado de Yuri Firmeza, Waléria Américo, Járed Domício e Jussara Correia. Embora com estilos diferentes, os cinco despontam nos circuitos de arte do país e em 2007 ocuparam a Galeria Oeste, em São Paulo. “Milena Travassos possui um trabalho delicado que ronda o surreal.(...) Existe algo de fantástico na simplicidade poética e sensual de suas imagens transparentes em que incorpora um personagem de si mesma, que se metamorfoseia ao diluir-se na translucidez de suas imagens.” (RESENDE, 2007). Este trabalho da artista ganhou bastante destaque na mídia nacional, sendo divulgado em sites – como o Portal ONNE –, jornais e guias – como o Guia da Vogue e da Folha de São Paulo. Como Milena Travassos mesmo enfatiza, os lugares e os objetos a convidam. A criação, a realização de um trabalho dá-se a partir desses encontros. E foi assim quando ela se deparou com o sobrado do Alpendre – Casa das Artes2, ainda em 2006, espaço que resultou na criação de Debruçado e Um Lugar Fora Dele. O ato de balançar-se aparece como um elemento de grande relevância em sua produção. Com estas duas vídeos-instalação, o expectador consegue enxergar a preocupação da artista em incluir o lugar como elemento chave da cena. Ricardo Resende, curador da exposição Um Lugar Fora Dele – apresentada no próprio Alpendre, em 2006 – acredita que as paredes e os telhados do velho casario do Alpendre representam: “(...) a estranheza dos não lugares, sem chão firme, cheios de uma nostalgia branca e uma certa dose de afogamento sufocante na atmosfera pesada desses ambientes ou „quartos‟ de memória que mais representam o „peso‟ do cotidiano.(...) O clima é de um mundo fantástico e irreal, cujo silêncio só é quebrado pelo ruído do atrito dos frascos de vidro e do ranger choroso das correntes. Vivenciamos dois territórios humanos: o de uma visão enlouquecida proposta no estranhamento do mundo criado ali, e o da escuta com os sons desconhecidos captados no espaço. (RESENDE, 2006). Esta descrição do curador sobre o ato de balançar-se e a captação dos sons em Um Lugar Fora Dele, encaixa-se em situações seguintes, na obra de Milena. Isso mostra uma preocupação recorrente com esses elementos. O fio condutor da obra da 2 O Alpendre – Casa das Artes é um espaço destinado a produção de arte e cultura, principalmente ligado ao vídeo, dança e cinema. Fundada e dirigida por Alexandre Veras, tem um importante papel na cidade de Fortaleza no incentivo as artes. A casa está em funcionamento desde o início dos anos 90 e já recebeu importantes mostras, exposições e espetáculos de nível nacional e internacional. 18 artista dá-se por meio dos mesmos elementos, porém, apresentam-se com poéticas distintas. Nesta mesma crítica, Resende associa a poética trabalhada no corpo personagem com a mitologia grega. A imagem daquele corpo nu, balançando-se sobre uma janela, escondendo-se por traz dos longos fios loiros de seus cabelos, tendo afixado em sua coluna vertebral uma estrutura de vidro causando estranhamento no expectador, permite um imediato jogo de ligações com o fantástico e o trágico. Ele diz: “(...) É quase impossível para mim ao deparar-me com a produção experimental e carregada de poesia mais recente de Milena Travassos, e não pensar em algo fantástico e trágico só visto nas tragédias gregas (românticas?), nos romances enlouquecidos da história da humanidade ou nos abismais e horripilantes poços descritos nos infernos de Dante e povoados por halos brancos no formato de belas ninfas transparentes.” (RESENDE, 2006). Outro lugar que fez Milena Travassos transbordar de idéias foi o seu grande contato com a fazenda3 da família de Alexandre Veras. Foi lá onde Milena Travassos deparou-se com o poço. Ali ela maturou ações em torno das mesmas inquietações que já lhe ocorriam, porém através de outras imagens. Em 2007, surge o Vertigem – que depois viria a integrar a exposição Sala de Jejum, sob outro formato – como mais um trabalho que deu continuidade a sua pesquisa. Na mesma época, Mergulho também ganhava vida. Tanto em Vertigem como em Mergulho, o cenário muda. Aqui, o espaço não é mais de concreto. Milena propõe um corpo mais orgânico, que se dissolve na realidade natural dos espaços ao ar livre. Açude, lama, raízes, água, poço, plantas e lá estão os objetos de vidro novamente. Em Mergulho, ações filmadas e projetadas no fundo de uma bacia com água. Um corpo nu lança vidrinhos no açude que se espalham na margem com o lento ir e vir das águas movidas pelo vento. Outra ação, que também integrou Mergulho, é a imagem de um corpo, vestido de lilás, boiando num grande poço de água turva, ao lado de uma bacia de alumínio, cheia de pétalas e folhas. Os elementos orgânicos encontram-se espalhados por toda parte – posteriormente, esta mesma ação viria a compor outro trabalho, chamado Sonata, que também aparece em Sala de Jejum. 3 Espaço onde Milena Travassos se recolheu para terminar de escrever sua dissertação de mestrado, fato que lhe rendeu tanto produção intelectual acadêmica quanto criação artística. 19 Imagens do vídeo que integrou, inicialmente, Mergulho (2007) e, posteriormente, a obra Sonata (2009). Vertigem consiste na ação de balançar-se sobre um grande poço. O observador não vê onde as cordas do balanço foram presas, apenas acompanha o ir e vir contra o vento daquele corpo nu, de cabelos longos, que vai e vem sobre o grande abismo de um poço abandonado, sombrio, que não se vê o fundo. A crítica de arte Cecília Bedê, editora do site de arte Canal Contemporâneo, escreveu sobre Vertigem: “Talvez esse seja o lugar [o poço] e momento perfeito para realizar uma fantasia, seguir um desejo súbito gerado pela vertigem presente na cova funda aberta no solo. Sobe um frio na barriga só de pensar que diante dele posso ter um capricho irresistível, posso ceder a uma tentação, agir por impulso. Banhar, nadar, pular, cuspir, fazer um pedido, declarar um amor reprimido, ouvi-lo ecoar, ver o próprio reflexo, corpo nu. Ação geradora de subversão. Subverter o tempo, o espaço e até indícios de humanidade. Personagem de si mesmo em um mundo surreal. Atingir algo que é sublime. Milena realizou seu desejo. Tornou-se um mito, um ser que habita águas sagradas. Balança seu corpo nu, frágil, possuidor de algo divino. Metamorfose que atravessa a fronteira da realidade, ser outro, outro lugar, em outro tempo.” (BEDÊ, 2009). A ação desencadeia uma mistura de sensações. O medo do ambiente inóspito é quebrado pela serenidade daquele corpo tranqüilo que apenas desfruta do prazer de balançar-se. O ambiente tira o observador do plano real e o eleva à realidade fantástica dos contos de fadas ou da mitologia. Eduardo Jorge Oliveira, doutorando em literatura comparada pela UFMG, também contemplado pela Bolsa de Produção Crítica em Artes Visuais, FUNARTE, em 2010, acredita que “O limite da nudez do corpo feminino que se balança são as vértebras transparentes de uma coluna que aparece na exterioridade do corpo. O corpo que se balança, portanto, não é um corpo humano. E não o é por muito 20 pouco. Trata-se de um nu pictório, mas de um corpo enigmático, de uma ninfa.” (OLIVEIRA, p.34, 2010). Vertigem (2007) Ainda no clima efusivo de criação em torno dos espaços ao ar livre e a diluição do corpo com os elementos da natureza, nasce Tudo que Sustenta. A idéia de criação veio numa noite em que a artista conversava, despretensiosamente, na varanda da fazenda e lhe ocorreu uma cena de O Espelho, de Tarkovski. Ela descreve: “A bacia estava lá, ainda sem uso, aí eu falei pra o Ale [Alexandre Veras]: „eu podia fazer um banho‟, daí veio na mesma hora uma cena de O Espelho, do Tarkovsky, que a atriz começa a molhar os cabelos em uma bacia, a lavar, e você percebe bem que a cena está de trás pra frente, porque tem um estranhamento, e ela está com uma camisola, e as paredes do quarto começam a jorrar água, e a cair, como se fosse um quarto bem úmido. Aí eu falei: „eu queria fazer um banho embaixo dessa árvore‟. Daí fizemos! (ENTREVISTA PARTICULAR, 5/2011). Na escuridão noturna, um corpo nu sentado aos pés de uma árvore centenária, banha-se, lentamente. A câmera se aproxima do eixo de sustentação da coluna vertebral, onde pequenos e delicados objetos de vidro estão afixados. Aqui, o observador tem um estranhamento profundo ao entrar em contato com detalhes da estrutura de vidro na coluna. Fabulação e mistério são palavras que combinam com o ato visto em cena. É a partir de um desdobramento de Tudo que Sustenta e Mergulho que surge, posteriormente, O Banho, trabalho apresentado em Sala de Jejum. 21 Na curadoria de Confrontações Poéticas (2007), realizada no BNB–CE, Sólon Ribeiro discorre sobre o trabalho de Milena Travassos, não tão especificamente relacionado às obras da artista que compunham a exposição coletiva – Mergulho, Tudo que Sustenta, Tomando Fôlego –, mas sobre sua produção como um todo, uma vez que ele já acompanhava o trabalho da artista desde o início de sua produção.4 “Ampliando as margens da pesquisa poética, elege o vidro transparente, como suporte e cria objetos que mantém com o espaço uma cumplicidade, objetos que absorve e expande o lugar que os acolhe. Com prazer e segurança mergulha num universo onde o domínio do fazer é questão primordial para atingir o sublime. No inicio era o verbo a ser decodificado, agora é o corpo que transcende o objeto. Milena constrói uma estética onde o corpo ganha lugar de destaque, encena pequenas mitologias individuais que a colocam além do ritual da auto-representação. A artista se integra à paisagem e nos oferece a possibilidade de atravessar o espelho do real. Olhá-la é sentir seu poder.” (RIBEIRO, 2007). Tomando como referência as produções descritas até aqui, pesquisa que irá alicerçar a base criativa e teórica da construção da última exposição individual da artista – a ser analisada nesta dissertação – Sala de Jejum, vale destacar a relevância deste encontro entre Milena Travassos, os espaços da fazenda e Alexandre Veras 5. O envolvimento de Veras em torno da produção audiovisual também contribuiu para a pesquisa de Milena. Tanto que, nesta mesma época, eles desenvolveram juntos um dos trabalhos mais impactantes de Sala de Jejum, chamado Náiades, como veremos no capítulo seguinte. Os anos de 2007 e 2008 foram períodos de maturação e experimentação em torno de uma pesquisa em andamento que fecundou a exposição Sala de Jejum e não cessou enquanto processo de transformação. Em 2007, Maria do Carmo Nino, artista visual e professora do departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, foi a curadora da exposição Corpo Instável, realizada em Recife, na Galeria Vicente do 4 Sólon Ribeiro foi professor de Milena Travassos na faculdade de Artes Visuais, além de um dos fundadores do curso. Ele é artista visual e curador, formado em comunicação e arte pela L‟École Superieure des Artes Décoratifs, em Paris. 5 Alexandre Veras é diretor fundador do Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, onde coordena o Núcleo de Vídeo e Artes Visuais. Trabalha com vídeo desde 1989 e tem desenvolvido intensa atividade como professor de vídeo, dando cursos de vídeo-arte, documentário, vídeo-dança, história e teoria do filme experimental. Ele tem desenvolvido pesquisas e produções em documentários, vídeo-arte, vídeodança, imagens projetadas e colaborado em projetos de vídeo e vídeos-instalação de vários artistas. Este ano trabalha em seu primeiro longa de ficção: Quando todos os acidentes acontecem, contemplado pelo MINC. Foi professor de Milena Travassos na faculdade de Artes Visuais, onde se tornou seu parceiro de produção, com quem, posteriormente, a artista viria a casar-se. 22 Rego Monteiro. Ela chamou a atenção para a produção de Vertigem e Tudo que Sustenta dentro da pesquisa da artista. “Milena, aparência de ninfa, tem seu próprio corpo como pátria na construção de uma poética calcada na vulnerabilidade do ser humano. No vídeo-instalação Tudo o que sustenta assim como também em Vertigem, encontramos um certo número de referências presentes na trajetória da artista: entre elas a eleição do vidro transparente incrustado no corpo desnudo reforçando a linha encurvada da coluna vertebral, elemento responsável pela sustentação, verticalização, movimento e equilíbrio do nosso corpo no espaço.” (NINO, 2007). E o processo criativo continua quando Milena Travassos ganha o financiamento de três novas fontes para desenvolver sua pesquisa e realizar Sala de Jejum: edital das artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Secult, o Prêmio Sérgio Mota e, recentemente, em 2010, a Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais FUNARTE. A primeira exposição da Sala de Jejum foi em 2009, no Sobrado Dr. José Lourenço, espaço onde irá se focar a análise desta dissertação. Sala de Jejum é composto por doze trabalhos, onde dez deles são vídeosinstalação e dois compõem um trabalho com fotografia impresso em vidro. A exposição, produzida para o espaço do Sobrado José Lourenço, se faz em completa harmonia e conexão com a pesquisa que a artista já vinha desenvolvendo ao logo de sua trajetória. Os trabalhos entre si dialogam de maneira conectada, fazendo o visitante se perder pelos corredores do casarão e refletir sobre questões cotidianas da realidade. Quando o cineasta Luiz Rosemberg Filho discorre sobre o trabalho da artista ele enfatiza a importância do reencontro com o encantamento do silêncio proposto pelas obras, que encurrala saberes agonizantes. Ele ainda cita o pensamento de Artaud, que retrata com bastante sensibilidade a produção de Milena: “O que vocês afirmam ser minhas obras, eram apenas os restos de mim, estas raspas da alma que o homem normal não acolhe.” (ARTAUD apud FILHO, 2009). Esta definição encaixa perfeitamente na perspectiva que Milena Travassos trabalha. A criação da artista não se dissocia de sua vida, não somente porque existe um corpo que se põe em cena, mas pela maneira subjetiva que a 23 arte se emaranha em sua vida e a própria vida se faz criação na produção de Milena Travassos. Rosemberg Filho define Sala de Jejum: “Vídeos-instalações sobre momentos entre a teatralização do olhar e o gozo tranqüilo muito além do voyeurismo publicitário. Cria-se uma desordem de momentos sagrados e belos. Fundamentalmente poéticos, corporeizado por assimilações de espaços vazios. (...) Milena produz encantamentos mágicos que nos [sic] envolve à todos, onde o eficaz é se deixar levar no seu tempo. Tornando-nos sujeitos de celebrações dionisíacas, instrumentalizando apenas a poesia e a liberdade de ousar. Ousar para ser melhor ao nos desvendarmos como parte de uma vacuidade lingüística. Milena torna-nos mais humanos e profundos ao nos aproximarmos do entendimento da antinaturalidade do real. (FILHO, 2009) Antes de esmiuçar a análise de cada trabalho que integra a exposição Sala de Jejum, gostaria de discorrer sobre um tema que é muito caro à Milena Travassos e irá aparecer ao longo de toda a dissertação: o corpo. 1.2 Reinventando o Corpo Pensar o corpo como o eixo conector entre o indivíduo e o mundo é pensar numa relação complexa onde está inserida uma discussão de cunho sócio-cultural. As manifestações do indivíduo que constituem o comportamento social pressupõem um estudo do significado e das relações que envolvem este eixo conector entre o homem e o mundo, chamado corpo. O corpo visto como comunicação se apresenta como linguagem. Depois que se experimenta com o corpo, ativam-se outras percepções. É no corpo onde as informações são processadas, modificando a si e alterando o meio. “O processo pelo qual as informações que nos constituem tomam a forma do nosso corpo é longo, e se estruturam na experiência. Experiência, aqui, sempre se refere a um estado cognitivo durável que tenha resultado da percepção.” (KATZ, 2005 p. 56). A produção de conhecimento depende da relação entre sujeito cognitivo e objeto da cognição que implica estar sujeito às condições internas e externas a esse sujeito. “A informação se constrói, inevitavelmente no „entre‟, na „mediação‟, na ação inteligente dos signos” (GREINER, 2005, p. 76). As representações assumidas pelo corpo são retratos da complexidade que envolve o sujeito. Este corpo é capaz de produzir inúmeras construções simbólicas a 24 partir das experiências vividas no meio. “O corpo é socialmente construído tanto em suas ações sobre a cena coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento ou nas relações que mantém com o homem que encarna” (BRETON, 2007, p.26). O antropólogo David Le Breton compara ainda o corpo humano com “um campo de força em ressonância com os processos de vida que o cercam” (BRETON, 2007, p. 26). Esse entendimento coloca o corpo diante do mundo como uma interface em constante troca. “No fundamento de qualquer prática social, como mediador privilegiado e pivô, o corpo está no cruzamento de todas as instâncias da cultura, o ponto de atribuição por excelência do campo simbólico (BRETON, 2007, p. 31). A compreensão do corpo como um elemento pivô no cruzamento das instâncias da cultura nos faz refletir sobre que relação ele estabelece com a comunicação. As mídias e seus processos associados são vistos como elementos que imprimem complexidade e autonomia às formas de conectividade entre o corpo e o meio. Estando isso na base da produção de conhecimento, podemos citar o conceito de corpomídia, desenvolvido por Helena Katz e Christine Greiner. As pesquisadoras admitem a idéia de corpo como algo que está sendo e não como algo que é. O corpo entendido em seus diferentes estados, “sendo sempre ativo e nunca considerado como instrumento ou objeto” (GREINER, 2005, p. 23). Negando a idéia de corpo como um recipiente de informações, elas defendem o entendimento de corpo como mídia de si. “A comunicação engloba, nesse sentido, uma visão bem mais ampla do que aquela da comunicação de massa. Relaciona-se à circulação, a vinculação e aos processos de cognição, por isso não se restringe „as mídias‟.(...) A arqueologia dos saberes da comunicação não pode ser restrita aos „objetos da comunicação‟, aos chamados „meios de comunicação‟, mas nasce fundamentalmente dos processos de mediação (ações pensantes) entre o corpo e o mundo, estabelecendo uma rede complexas de relações”(GREINER, 2005, p. 51, 52 e 53). Em contato com o meio ambiente constante, o corpo é algo em permanente transformação, onde ele reorganiza todo um conjunto de informação antes construída nesse sistema de troca com as novas experiências, realocando toda a rede de informação. “O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia a qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão 25 constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação.” (KATZ e GREINER, 2005, p.7). Esta compreensão torna-se fundamental para discorrermos sobre os processos cognitivos pelos quais o sujeito está submetido enquanto ser vivo, portanto, será em torno dela a base de desenvolvimento analítico da exposição Sala de Jejum. A teoria corpomídia vem desmontar o entendimento de corpo como um simples espaço onde os eventos acontecem (como a saída e chegada de informação, por exemplo). O corpo torna-se o ambiente contextual dos processos entre o sujeito e o ambiente. Ele é também agente de um processo que, durante muitos anos, acreditou-se ser somente um suporte físico que viabilizaria a ação. A partir daí, entendo que o contato entre o corpo do observador e o trabalho artístico é o momento em que a construção do conhecimento se dá. Em Sala de Jejum, a experiência se dá tanto com a presença do corpo da artista em cena como com o envolvimento do corpo do observador na exposição. Há uma valorização dos espaços de encontro entre obra e visitante, de maneira a proporcionar um ambiente propício a comunicação. No universo humano que discute corpo e mente, Greiner afirma: “Ele [o debate entre a relação corpo e mente] se origina em uma experiência prática, vivida (taiken) que implica num continuum mente-corpo em um sujeito e em seus trâmites com o ambiente. A teoria precisa ser necessariamente uma reflexão da experiência vivida, porque ela se organiza durante a ação”. (GREINER, 2005, p.23). O movimento, nesse sentido, é a manifestação desse corpo interligado com o ambiente. É o sinal que o corpo aciona para iniciar o “conhecer algo”. “(...) Sheets-Johnstone considera fundamental observar „novos modos de pensar‟. Isso se dá pelo toque e pela experiência do corpo cinéticotátil, ou seja, é através do movimento, que se distinguem coisas importantes como saber que se está andando na areia ou num chão de pedra, o toque da mão na boca que faz um som de „m‟ ou um som de „p‟ e assim por diante. O sensorialmente sentido parece ser a fonte da cognição” (GREINER, 2005, p. 101). Embora comunicação e cognição não sejam sinônimos e tampouco estabeleçam uma relação de causa e efeito, ambas apresentam um traço comum que é o fato de serem processuais. O processo comunicativo que acontece no e com o corpo pode ser o alicerce para um conhecer que ainda está por vir. E no universo da arte, esse 26 processo se dá de maneira menos previsível, pois a cognição é afetada por mecanismos que nem sempre são codificados ou da ordem do palpável e do concreto. “(...) a comunicação não pode ser restrita a significados. Afinal, nem tudo que se comunica opera em torno das mensagens codificadas. Há taxas diferentes de coerência, incluindo, por exemplo, a comunicação de estados e nexos de sentido que modificam o corpo. Esse processo tem lugar no tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no ambiente, no sistema sensóriomotor e nervoso. Quem dá início ao processo é o sentido do movimento. É o movimento que faz do corpo um corpomídia.” (KATZ e GREINER, 2005, p.9) Os deslocamentos perceptivos são necessários para possibilitar outros estados de cognição. A capacidade de compreender esse conceito destinado ao corpo, possibilita ao homem a experiência da alteridade, indispensável para a sobrevivência e a permanência. Como se sabe, todo processo de comunicação pressupõe a existência da diferença. É preciso ser capaz de reconhecer um "outro", existir algo que se destaque em um ambiente de iguais para que a comunicação se estabeleça. Mesmo a mais básica das trocas de energia e/ou informação só acontece fora da homogeneidade plena. (KATZ, 2005, p. 18) O fluxo pelo qual as informações se corporificam é comunicacional, entendendo que toda e qualquer comunicação começa e termina no corpo. Portanto, esta é a premissa que guiará a compreensão de corpo dentro deste trabalho. 1.3 Corpo distendido: agente na construção da cultura Quando McLuhan foca-se na célebre máxima “o meio é a mensagem” abre-se outro campo de reflexão sobre os processos de comunicação e compreensão do corpo social. Quando ele afirma isso, McLuhan coloca em evidência a forma. O meio é a forma que se iguala em relevância ao conteúdo. O conjunto de ambas as partes formam um único processo. O entendimento dualista que separa estas duas dimensões cai por terra e a televisão não significa mais apenas uma caixa que transmite informações. O sentido não é exclusividade do conteúdo. Agora, o conjunto da informação e do meio que se transmite a mensagem, juntamente com o interlocutor, configuram um único processo dentro da comunicação e da produção do conhecimento. 27 Admitir esta totalidade da ação permite-se considerar toda a complexidade do sujeito, incluindo os afetos evolvidos no processo de recepção. Esta compreensão encaixa-se com a leitura de Milena Travassos em torno de sua própria produção. Conteúdo e forma são relevantes para a apreensão de um trabalho. Quando questionada sobre as facilidades tecnológicas que vem viabilizando mais pessoas realizarem trabalhos artísticos, ela foi enfática: “Não é a linguagem que se usa que vai dizer se o trabalho é mais interessante que outro, se é melhor ou pior. É preciso olhar o conteúdo, o trabalho por dentro e avaliar o conjunto. A forma também faz parte do conjunto. Podem ter obras clássicas utilizando o suporte do celular ou mesmo a pintura em tela.” (ANEXO1). O doutorando em literatura comparada Eduardo Jorge Oliveira acredita que Milena Travassos, cria situações que a aproximam do cinema e da pintura, simultaneamente. “Vídeos como Vertigem (2006) e Tudo que Sustenta (2008) inserem o pictórico na repetição e na dilatação do gesto” (OLIVEIRA, 2010, p.33). Dentro dessa lógica, o corpo também, inevitavelmente, integra o processo. Como já foi dito anteriormente, o corpo não é um recipiente que armazena informações e as expele. Não é uma mera conexão entre o mundo e a mente. O corpo é o meio e o meio também é mensagem, uma vez que este está em constante reestruturação. Olhando para os aparatos tecnológicos, McLuhan afirmou: “(...)as conseqüências sociais e pessoais de qualquer meio – ou seja, de qualquer umas das extensões de nós mesmos – constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou uma extensão de nós mesmo”. (MCLUHAN, 1964, p. 21). Quando ele acredita que a tecnologia é a extensão do corpo do homem ele justifica. “Qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão ou auto-amputação de nosso corpo, e essa extensão exige novas relações e equilíbrios entre os demais órgãos e extensões do corpo. (...) Como extensão e aceleração da vida sensória, todo meio afeta de um golpe o campo total dos sentidos. (MCLUHAN, 1964, p. 63). Porém, Katz e Greiner desenvolveram uma idéia que vai além do que McLuhan anunciou na década de 60, casando melhor com o conceito de corpomídia que elas trabalham e que será utilizado nesta pesquisa. Elas acreditam na idéia de distensão do corpo. Uma vez que o corpo entra em contato com a tecnologia e possibilita o sujeito acessar outras realidades entrando em contato com outros processos cognitivos e transformando o mundo à medida que também se auto modifica, este corpo foi distendido. 28 Não é difícil caminhar para a reflexão da construção da cultura enquanto corpo social depois de conectar o conhecimento sensível, a nova concepção de corpo distendido – não só mediador dos meios, mas também agente dessa construção coparticipante do conhecimento – e os novos parâmetros adquiridos nas ciências cognitivas e na comunicação. McLuhan afirma: “Os meios, ao alterar o meio ambiente, fazem germinar em nós percepções sensoriais de agudeza única. O prolongamento de qualquer de nossos sentidos altera nossa maneira de pensar e de agir – o modo de perceber o mundo. Quando essas relações se alteram, os homens mudam.” (MCLUHAN, 1969, p. 69). Que tipo de relação se estabelece entre a exposição Sala de Jejum, a discussão de McLuhan – com as devidas releituras de Katz e Greiner – e a teoria corpomídia? A experiência do observador que se deixa imergir no ambiente artístico proposto em Sala de Jejum, cheio de aparatos tecnológicos, é suficiente para uma alteração corpórea e cognitiva do observador enquanto ser no mundo. Quando McLuhan diz que os homens mudam quando as relações se alteram, é nesse sentido que podemos afirmar: Sala de Jejum altera as relações entre sujeito e ambiente cotidiano, quando ela traz noções distintas de tempo, espaço, velocidade e sentimento, questionando os conceitos impostos socialmente numa estrutura rígida e presa às amarras do sistema. O cineasta Rosemberg Filho atesta: “(...) Cria-se uma totalidade de sonhos labirínticos, onde o olhar sem um rosto definido embriaga-se com a potencialização de intensidades poéticas. Ora, não se está fazendo uma imagem para vender esta ou aquela mercadoria, mas para gozar a sua gestação mesclada de abismos ilimitados. Uma doce e delicada obsessão por começos onde o tempo torna-se corpo. (...) E que define, de certo modo, o Estado de desejo-fascista em que vivemos todos, ejaculando sangue sem sonho algum. (...) A asfixia é trabalhada nos gestos, nos objetos e nos devaneios. Trabalha-se o desencontro com o próprio Eu.” (FILHO, 2009). 1.4 Movimento é o pensamento do corpo Retomemos a reflexão sobre o processo de integração entre a formação da cultura e a cognição dos indivíduos, descrita agora por Hutchins. Ele acreditava que a cultura é um processo adaptativo que acumula soluções parciais para freqüentemente surgirem novos problemas e se reestruturar diante dos novos parâmetros. O 29 entendimento de sujeito sem considerar os processos culturais é fundamentalmente falho. “These things [culture, context and history] are fundamental aspects of human cognition and cannot be comfortably integrated into a perspective that privileges abstract properties of isolated individual minds. Some of what has been done in cognitive science must now be undone so that these things can be brought into the cognitive picture.”6(HUTCHINS, 1995, p. 354). O autor reconstrói a formação da cultura pelo viés da antropologia e vai apresentando discordâncias de vários teóricos até chegar nessa integração entre as ciências cognitivas e a sociologia como atributos da cultura. Pensando nesse sujeito agente da formação cultural por meio da socialização de seu comportamento através de sentimentos e emoções, temos o corpo como uma das principais fontes de conhecimento do homem. O corpo é o pivô do conhecimento. As formas de acessá-lo sensorialmente – seja através da arte, da viagem, do riso, da dor, da dança, do jogo, do frio, da labuta, da experiência, em geral – têm que quebrar a hegemonia absoluta do racionalismo, da ditadura da linguagem escrita e tirar as emoções e os sentimentos do nível de dominados. Greiner estabelece uma relação interessante entre os modos de conceituar as coisas e significá-los a partir da experiência. “Os mesmos mecanismos neurais e cognitivos que nos permitem perceber e mover são os que criam nossos sistemas conceituais” (GREINER, 2005, p. 45). Conceituar pressupõe nomear algum sentido a determinado fato. Esta ação, inevitavelmente ocorrerá de forma metafórica. A palavra metáfora aqui diz respeito a maneira como conceituamos, como estruturamos uma experiência em termos de outra. Não se trata apenas da metáfora como uma característica da linguagem. Os conceitos estruturam o que percebemos, como nos relacionamos com o mundo e com as outras pessoas. “Como a comunicação é baseada no sistema conceitual que usamos para pensar e agir, a linguagem é obviamente uma fonte importante de evidência, mas é bom lembrar que não é a única. Os processos de pensamento, antes de serem organizados como linguagem, são 6 Estas coisas [cultura, contexto e história] são aspectos fundamentais da cognição humana e não podem ser confortavelmente integradas à perspectiva que privilegia as propriedades abstratas das mentes isoladas dos sujeitos. O que tem sido feito nas ciências cognitivas agora deve ser desfeito para que essas coisas possam ser levadas para a imagem cognitiva. 30 largamente metafóricos, ou seja, metáfora neste estudo não é apenas figura de linguagem. (...) A comunicação pela sua própria natureza de operar como uma espécie de „transportadora‟, já cria novas metáforas organizando o trânsito entre ação e palavra, entre dentro e fora do corpo e assim por diante” (GREINER, 2005, p. 45). É possível perceber que as metáforas do corpo são construídas ao mesmo tempo em que possibilitam novos modos de organização do ambiente ao redor, “na medida em que se transformam em metáforas do mundo” (GREINER, 2005, p.55). Este aspecto da comunicação é o fio condutor para se entender o elo existente entre o ato de conhecer e o corpo vivido. “As experiências são fruto dos nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, maquiagem emocional etc), de nossas relações com o nosso ambiente físico (mover, manipular objetos, comer etc) e de nossas interações com outras pessoas (em termos sociais, políticos, econômicos e religiosos).(...) Assim, conclui-se que há uma sistematicidade interna para cada metáfora que só serve como veículo para um entendimento de um conceito se for amparada por uma experiência prática” (GREINER, 2005, p. 46). A discussão entre o dentro e o fora do corpo nos ajuda a entender como pensamos e aprendemos com o corpo todo e não somente com o cérebro ou o sistema nervoso. Daí pode-se conectar o ato de conhecer com o ato de mover. A dimensão do movimento como forma de recategorizar informações e atribuir novos sentidos abre a possibilidade para pensarmos a dança, o teatro, a performance, a capoeira como mecanismos de conhecimento muito valiosos, que envolvem o corpo e a presença do outro. “A tese de que o pensamento é modelado no corpo é embasada em evidências diferentes que são sempre ancoradas por conceitos cinético-táteis que subentendem comportamentos ou são gerados por eles (...) Tudo isso parte de dois pressupostos: a possibilidade do corpo ser uma forma animada, viva e de ter conformação espacial, posturas cotidianas, modos específicos de locomoção, movimentos e gestos. Por isso falar em forma animada é, neste contexto, um modo de descrever a espacialidade do corpo em todas as suas dimensões” (GREINER, 2005, p. 100) Helena Katz escreveu que a dança é o pensamento do corpo. O termo pensamento empregado por ela designa uma maneira específica de organizar informações. O pensamento não é algo que vem depois da ação, ele se constrói justamente na ação. Baseando-se na teoria da pesquisadora, parto do pressuposto que a dança a que ela se refere compartilha modos de estruturação semelhantes com algumas 31 outras atividades que exigem algum tipo de movimento, dependendo como elas são utilizadas. “Quando o corpo pensa, isto é, quando o corpo organiza o seu movimento com um tipo de organização semelhante ao que promove o surgimento dos nossos pensamentos, então ele dança. Pensamento entendido como o jeito que o movimento encontrou para se apresentar.” (KATZ, 2005, p.04) Assim, podemos interpretar que o corpo dança em diferentes situações de movimentos, incluindo outras formas de arte. Ou seja, o corpo organiza informações que irão gerar o movimento com um tipo de estruturação semelhante ao surgimento dos pensamentos numa ginga angoleira, seguida de um rabo de arraia7, por exemplo. A conexão com o outro, gerada a partir dos movimentos realizados, configuram o pensamentos-ação de que Katz fala. O corpo dança. Greiner, ao falar do corpo artista, admite que “são os pensamentos organizados pelo corpo artista que nascem com aptidão para desestabilizar outros arranjos, já organizados anteriormente, de modo a acionar o sistema límbico (o centro da vida) e promover o aparecimento de novas metáforas complexas no trânsito entre corpo e ambiente” (GREINER, 2005, p.109). Este processo não pode se dar na forma da criação do movimento? Os movimentos gestuais que estão dentro da linguagem do corpo aparecem na performance como um dos principais elementos de comunicação, mobilizada pela vivência e pelo contato com o outro. Ali, vê-se o jeito que o movimento encontrou para se apresentar, a partir de uma troca com o ambiente. Ali, vê-se o pensamento do corpo. “Os pensamentos não representam um feudo exclusivo da consciência. (...) O corpo não aprende por processos lineares distintos. (...) Linear e caótico convivem, saqueiam os sentidos e, por vezes, mostram que a crença na onipresença da consciência como uma fiadora da racionalidade que nos singulariza, não passa de um sopro oco. A dança no corpo é uma rajada de vento centrada. A dança não tem proporção para episódios: ela é o rumor do movimento” (KATZ, 2005, p. 39, 40) 7 Movimentos próprios da Capoeira Angola criada no Brasil-Colônia por escravos e descendentes africanos. Também conhecido como Jogo de Angola. Definida como um mix de jogo, mandinga, luta e dança, a Capoeira Angola é difundida através da oralidade e das vivências em grupo, onde a cultura afro e a luta pela resistência são marcas fortes de seus fundamentos. Assim, dois ramos da Capoeira surgiram na década de 30 e se distinguiram mais efetivamente a partir dos anos 70. Ocorreu, por um lado, a organização da capoeira esportiva (Capoeira Regional) como arte marcial, e, por outro lado, a mobilização de grupos de resistência cultural afro-baiana, que perceberam nos poucos grupos angoleiros a manutenção dos elementos da capoeira trazidos pelos africanos de origem banto. 32 O pensamento do corpo integra um sistema complexo de relações em torno da realidade. “Pensamento seria, portanto, movimento, fluxo de imagens, ação movida por um propósito. Esta seria a fonte primária da comunicação. Não o corpo como coisa ou instrumento, mas o corpomídia, criador de cadeias sígnicas” (GREINER, 2005, p.116). Enveredei por este tópico para trabalhar com a premissa: o movimento estrutura um pensamento do corpo. Então, a maneira como as obras em Sala de Jejum foram dispostas no ambiente do Sobrado José Lourenço incitam um determinado movimento por entre os corredores e salas do casarão. Sem especificar os trabalhos que provocam o mexer, o mover e convidavam ao exercício dos sentidos como o toque, o olhar por outro ângulo, o caminhar, o ouvir. Quando pensamos nessa perspectiva da recepção, estamos falando da relevância desse encontro entre o produto artístico e o público, para além do que foi pensado inicialmente pelo criador. Que tipo de construção do conhecimento é feito nos espaços artístico onde os corpos participantes têm espaço para “pensar” (leiase: dançar), se expressar e interagir? É levando em consideração as questões apresentadas neste capítulo que daremos início à análise de cada obra que compõe a exposição Sala de Jejum, de Milena Travassos. 33 2. Análise das Obras 2.1 Restituir ao uso livre do homem O nome da exposição Sala de Jejum refere-se a um pequeno texto de Walter Benjamin que a artista Milena Travassos adaptou chamado Sala Desjejum, publicado na obra Rua de Mão Única, da coleção Obras Escolhidas, vol. II. O texto inicia falando de uma tradição popular que adverte contra contar sonhos ainda pela manhã, em jejum. “O homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo de sortilégio do sonho.” Benjamin discorre sobre este limiar tênue entre o ato de dormir e o acordar. Este não lugar em que se encontra o sujeito no estado de sono ao despertar. Como se o indivíduo tivesse na espera do retorno de sua consciência plena. E o corpo, dentro desse processo, se encontra em jejum. “Quem está em jejum fala do sonho como se falasse de dentro do sono”. (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.2 –, 1987, p.11, 12). Foi inspirada nestas poucas linhas do autor que Milena Travassos iniciou o seu processo criativo para montar a exposição Sala de Jejum. Os doze trabalhos que envolvem a exposição circundam temas suscitados a partir do texto, onde o estado de recolhimento proposto é experimentado pelo corpo, borrando as fronteiras entre a existência no mundo dos sentidos e no mundo imaginário; entre o onírico e o real; evocando e acionando um estado de percepção na quietude e lentidão. “Sala de Jejum evoca a percepção e um estado de recolhimento, onde os sentidos estejam apurados e vividos, mas não na forma de um estado sempre alerta e de tensão que o dia-a-dia urbano nos impõe, e sim, de quietude, de observação e de escuta” (TRAVASSOS, 2009, p.1). A exposição é composta por vídeos-instalação realizadas em vários lugares, abertos e fechados, que compõem a vivência da autora e dialogam com os anseios subjetivos da criação artística de Milena, colocando a questão do corpo em evidência enquanto recorre às temáticas do texto Sala de Desjejum. As relações entre os elementos naturais, os materiais utilizados e o corpo-artista alinhavam a estrutura necessária à obra. Água, fogo, vidro, plantas costuram-se dando unidade à exposição. Os trabalhos se apresentam imersos numa paisagem bucólica, seja na imagem de um corpo deitado sobre os galhos de uma árvore com os cabelos ao vento; num grande poço de água cercado de plantas; numa noite escura ao pé de uma árvore centenária com suas raízes tortuosas ou mesmo num casarão antigo sobre suas escadarias de madeira que rangem a 34 cada passo. Todos eles se conectam sob um corpo que se mostra ora estático, ora em movimento; ora acordado, ora sob a inércia do sono; ora denso, ora fluido. A primeira edição da exposição ocorreu em abril de 2009, no Sobrado Dr. José Lourenço, na cidade de Fortaleza, localizado no centro da cidade. A escolha do espaço foi um elemento fundamental na produção da obra, incluindo a criação do trabalho que deu nome à exposição. A análise exposta nesta dissertação será feita a partir da primeira montagem da exposição Sala de jejum proposta para o Sobrado José Lourenço, uma vez que quando exposta em outros espaços, as relações estabelecidas entre obra e público são alteradas. A vídeo-instalação chamada Sala de Jejum foi realizada em uma das escadarias do Sobrado, onde, mais tarde, sediaria a projeção que compõe um dos doze trabalhos da exposição. Isto enriquece o trabalho de maneira única, limitando o potencial da exposição quando ela sai dali. Apesar disso, Sala de Jejum já ocupou outros espaços como a ONG Alpendre, em Fortaleza; o Museu de Arte Contemporânea Parque Florestal, em Santiago, no Chile; e a Galeria Funarte, em Belo Horizonte. Como foi dito no capítulo anterior, a exposição Sala de Jejum foi fruto de uma longa pesquisa realizada ao longo da trajetória da artista, tendo incluído em Sala de Jejum, trabalhos antes já desenvolvidos, porém sob formatos distintos, antes ainda não experimentados. São eles Vertigem (2006), Tudo que Sustenta (2006) e O Banho (2009), tendo este último surgido a partir de um desdobramento de trabalhos anteriores (como O Mergulho, 2007) e não somente apresentado sob um novo formato. Uma característica importante da vídeo-instalação Sala de Jejum – trabalho que dá nome a exposição – é o tempo em que ela se passa: durante a aurora, o amanhecer, a passagem da madrugada para o dia. O claro e o escuro se alternam no jogo de imagens enquanto a artista, vestida num longo e único traje branco, lembrando a roupa de dormir, acende, vagarosamente, lampiões espalhados ao longo da escadaria. Degrau por degrau, ela vai subindo e acendendo. O áudio está focado no barulho dos fósforos riscando, no manuseio do vidro que envolve as chamas dos lampiões e nos passos na escada de madeira do casarão antigo. A iluminação é amarela, como o fogo, e divide espaço com a escuridão da noite que vai perdendo espaço vagarosamente para o dia que chega. Quanto mais ela sobe a escada e acende os lampiões, mais ela se aproxima da janela localizada no andar de cima, no alto da escadaria. Por esta janela de madeira e vidro, a luz do dia entra. Vê-se uma leve claridade. A artista chega até a janela, abre, debruça-se sobre o olhar da aurora por alguns minutos e vai embora. 35 Ao realizar este vídeo, Milena pôde experimentar o espaço e incluí-lo dentro de seu processo de criação. O Sobrado Dr. José Lourenço não foi somente um espaço que sediou a exposição, mas também foi agente de construção e inspiração. “A ação executada me possibilitou um mergulho no espaço, quase um me perder nele.” (TRAVASSOS, 2009, p.2). Para o doutorando em literatura comparada Eduardo Jorge Oliveira, o ato de abrir a janela revelando o amanhecer do dia, expresso em Sala de Jejum, não remete somente a mostrar “o céu como uma promessa de redenção, mas também uma espécie de desvio, de esgotamento da repetição do gesto de acender as lamparinas – gesto concentrado de um corpo notívago, que cultiva pequenas fontes luminosas, fracas e oscilantes – em uma noite em claro.” Ele ainda reforça: O jejum está relacionado ao espaço que aquele corpo habita. O movimento da camisola branca associa-se à casa ou a um lugar que já foi plenamente habitado. Esse corpo pode ser visto, assim, como uma organização de linhas de força que tornam o espaço vazio visualmente habitado, como uma das forças visíveis junto ao mundo natural que culmina em uma aparição. Como um assombro, pois ele não deveria – visualmente – está ocupando aquele lugar e, no entanto, está”. (OLIVEIRA, 2010, p. 47). Sala de Jejum 36 Durante a exposição, as imagens são projetadas numa janela fechada. Ou seja, o vídeo produzido na escadaria do Sobrado com grande enfoque na aurora através de uma janela é projetado também em uma janela do próprio espaço. Embora as duas janelas usadas – locação do vídeo e projeção – não sejam exatamente a mesma, a técnica aparece como uma espécie de metalinguagem. O observador reconhece o espaço de locação enquanto assiste – no caso, uma janela do casarão – e vê-se diante do mesmo objeto, usado como suporte no vídeo: uma janela do casarão. Aqui, a janela real e a imagem da janela se sobrepõem trazendo uma nova utilização daquele objeto para os olhos do observador. Sobre este fato, a artista escreve: “Um lugar que se descola de seu contexto, de seu uso. Limitando-se ao contorno da janela é como se a imagem ficasse mais confortável, e, por outro lado, fazendo a janela saltar. A janela ganha uma corporeidade sutil. Na sala com a projeção da janela o observador se depara com uma situação instalativa que nasce da simbiose de dois espaços imagéticos, um material, outro imaterial.” (TRAVASSOS, 2009, p.2) Este recurso, que aparece também em outros trabalhos – como veremos a seguir –, nos permite fazer uma ponte com a discussão teórica recente trazida pelo italiano Giorgio Agambem. Não seria esta forma uma maneira de profanação da arte? Quando o espaço da janela é utilizado para outros fins que não aquele comum, inicialmente proposto, ela não traz ao observador uma possibilidade de repensar os usos dos objetos cotidianos? Milena afirma que “uma das idéias da vídeo-instalação Sala de Jejum era descontextualizar o lugar para irradiar novos sentidos a ele, como também às imagens que o habitam”. (TRAVASSOS, 2009, p. 3). O mesmo acontece no trabalho O Banho. Um vídeo é projetado sobre uma bacia de alumínio posta no chão (detalharemos a ação quando for abordado o trabalho Tudo que Sustenta). As imagens não ficam claras, uma vez que a superfície da bacia não é plana. Identifica-se um corpo nu, banhando-se, sentado aos pés de uma árvore centenária. O corpo retira a água com as mãos em concha de uma bacia (a mesma sob a qual está sento projetado o vídeo) e leva à cabeça, deixando a água escorrer sobre a pele. A projeção de um banho sobre uma bacia é que é usada na ação vista nas imagens. A bacia real perde sua função única de armazenar água e funciona como um suporte de acesso às imagens que a ela foram destinadas. O mesmo ocorre com a janela real do Sobrado, em Sala de Jejum. Em ambos os casos, há uma espécie de metalinguagem. A artista se utiliza de uma linguagem – do vídeo, por exemplo – para descrever um 37 sistema de signos que se apresenta na exposição sob outra linguagem – projeção sobre a bacia de alumínio, objeto utilizado na ação vídeo. O Banho O Banho esteve presente dentro da exposição Realidades Imprecisas (2009), no SESC Pinheiros, em São Paulo, e a curadora da exposição Carolina Soares, o descreveu: “Da reunião desses elementos [imagens, bacia de alumínio e água] resulta a imaterialidade, o fugidio, a transparência, o reflexo. Tudo nos escapa. Mesmo a existência concreta da bacia dilui-se no convívio com elementos que se colocam fora do alcance das mãos. Se retirada, da bacia restaria apenas o utensílio doméstico sem mais encantos. Mas o que se vê é um conjunto que parece ocultar mistérios irreveláveis. A sensualidade da imagem projetada sob a água reverbera uma transparência que não se deixa por completo transparecer.” (SOARES, 2009). A idéia da construção de O Banho veio do desdobramento de outra idéia já inicialmente gestada em outros dois trabalhos. Em O Mergulho (2007), Milena já havia trabalhado com a idéia de projetar na bacia, mas as ações escolhidas para estarem lá não encaixavam tão bem quanto as imagens editadas de Tudo que Sustenta, que são as que compõem O Banho. “A primeira vez que eu trabalhei com essas várias cenas – o balanço, o poço, o banho noturno na árvore, eu no açude jogando esses vidrinhos foi em O Mergulho. Era tudo projetado na bacia. Eu olhando praquele trabalho, pensei: “tem muita imagem aqui, eu poderia enxugar um pouco isso e pensar em outros trabalhos”, explicou a artista em entrevista. 38 A partir do momento em que a arte, segundo Benjamin, passa a fundar-se na práxis da política, abre-se a possibilidade para uma nova forma de comunicação: a profanação na arte. Quando Agamben escreveu Profanações, muito já se tinha dito em torno de temas como “o sagrado e o profano”; “zonas de indistinção”; “dispositivos” etc. Nos escritos da artista sobre a obra, inclusive, ela desenvolve a idéia de dispositivo, trabalhada por André Parente, assim como o conceito de cinema expandido. Porém, será sobre o conceito de „profanar‟ que discutirei a questão apresentada nestes dois trabalhos. Sodré acredita na dimensão da imagem em que o afeto e a tatilidade se sobrepõem à pura e simples circulação de conteúdos. Em Sala de Jejum e O Banho, temos ambos os elementos, afeto e tatilidade do espaço ali apresentado duplamente tanto em imagem quanto em realidade. “Trata-se finalmente de reconhecer a potência emancipatória contida na ilusão, na emoção do riso, no sentimento da ironia, mas também na imaginação, requisito indispensável do „capital humano‟ compatível com as formas flexíveis do novo capitalismo” (SODRÉ, 2006, p.13). Através da forma, trabalhando elementos sensíveis da obra, chega-se a combinações que tocam os sujeitos através de uma maneira de profanar. Quando Agamben diz “Profanar, por sua vez, significa restituir ao uso livre dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65); ou “Profanação significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007, p. 66) ele abre uma série de precedentes que nos permite pensar o ato de profanar através da arte. O espaço é um dos elementos cabíveis para se pensar as possibilidades e as novas formas de uso. Em geral, a maioria são espaços cristalizados, de difícil restituição do uso comum. Agamben fala do espaço do museu e o utiliza como metáfora para tratar do espaço de maneira geral. “A impossibilidade de usar tem seu lugar tópico no museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. (...) Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O Museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira, com uma região, e até mesmo com um grupo de indivíduos. De forma mais geral, tudo hoje pode-se tornar museu, na medida que esse termo indica a exposição de uma impossibilidade de usar, habitar, de fazer experiência” (AGAMBEN, 2007, p. 73). 39 Nesse caso, o espaço do casarão antigo Sobrado Dr. José Lourenço sediando a exposição, servindo de locação para a vídeo-instalação Sala de Jejum, realocando o espaço específico da janela como lugar de projeção e produção, simultaneamente, nos permite encaixá-los dentro da discussão de Agamben. O mesmo acontece em O Banho. A partir do momento que o observador está diante da obra, ele toma consciência de que o seu contato com ela iniciou-se desde o momento em que ele entrou naquele casarão. Ele vai experimentando os trabalhos e entra em cena a comunicação, além de todo o processo complexo que se estabelece entre o observador e a obra, em sua completude, quando falamos de experiências desse gênero. O observador entende que aquele vídeo exposto na bacia é o mesmo ou, senão, tem como base de edição as mesmas imagens utilizadas em Tudo que Sustenta. Ele faz conexões entre os trabalhos e vai se emaranhando no espaço imersivo da obra. Benjamin abre a possibilidade para a arte assumir o caráter profanador, quando ele fala que ela deixa de fundar-se no ritual e passa a se basear na práxis política. A criação faz parte de um conjunto cujo processo pressupõe a presença do outro. Um outro que irá ver, assistir, consumir, tocar, criticar, participar, rir, chorar, em suma, experienciar aquela criação de alguma forma, seja ela uma pintura, uma peça teatral, uma exposição de fotografia, uma performance ou mesmo – como é o caso – uma vídeo-instalação. Este universo ligado ao espaço onde se dará esse encontro, onde os processos se consumarão, não necessariamente limita-se à fisicalidade do lugar. É viável que reconheçamos como o trânsito entre corpo e ambiente se constrói, podendo levar o sujeito a um não-lugar bastante complexo: o das intermediações. “Este não-lugar onde nada existe de modo acabado, as possibilidades de relação se fazem presentes o tempo todo, reinventa a noção de universalidade, de nacionalidade e do que significa estar no mundo” (GREINER, 2005, p. 108). Gubern também atribui a este espaço das mediações à arte, ressaltando seu caráter, possivelmente, também manipulador. “(...) Hay que concluir que el arte se define por su caráter mediador y necessariamente manipulador, y que toda imagen es una representación plástica de una representación mental o sensóriomental del artista” (GUBERN, 1996, p.36).8 Restituir as coisas ao uso livre do homem é, de maneira geral, o que a arte tenta fazer quando ela quebra padrões, desmistifica a moral, traz à tona a hipocrisia 8 Tradução: Conclui-se que a arte se define pelo seu caráter mediador e necessariamente manipulador, e que toda imagem é uma representação plástica mental o sensório-mental do artista. 40 social, inverte valores, reutiliza espaços não convencionais, vai de encontro a conceitos pré-estabelecidos, brinca com a decadência humana etc. A arte tira as coisas do lugar e chacoalha tudo realocando os objetos. Às vezes, ela chega a cometer negligências em nome da profanação. “A criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante.” (AGAMBEN, 2007, p.75). No caso da exposição Sala de Jejum temos o espaço de um casarão antigo sediando uma exposição de arte – uso não convencional – com um grande apelo aos recursos tecnológicos, já que a exposição é composta, a maior parte dela, por vídeosinstalação. As projeções e as telas de plasma ao longo das paredes, dos salões e das escadarias do casarão escuro ambientalizam o observador dentro da idéia proposta pela artista, na medida em que a temática escolhida evoca este limiar fronteiriço entre o claro e o escuro; o real e o onírico. A maioria dos trabalhos da exposição também joga com este uso não convencional dos objetos e espaços, mas as vídeos-instalação Sala de Jejum e O Banho, especificamente, brincam com a metalinguagem da obra, o que lhes garantem uma maneira peculiar para o exercício de outros caminhos da cognição do observador, outros corredores para acessar o que não se conhece. Eduardo Jorge Oliveira, mais uma vez: “É como se, para o corpo, imagem e poema, culturalmente complexos, fossem modos de operação privilegiados para captar toda a relação cognitiva que abarca o próprio deslizamento para aquilo que não se conhece, para tudo aquilo que está dado e posto como limite” (OLIVEIRA, 2010, p. 37). Façamos o gancho com outro trabalho da exposição. Náiades é uma obra assinada por Milena Travassos e Alexandre Veras e surgiu a partir de uma pesquisa dos dois, fruto do 7º Prêmio Sérgio Mota de Arte e Tecnologia. É o trabalho que ocupa maior espaço físico entre as obras de Sala de Jejum. Náiades é composto por dois ambientes. Um interno e outro externo. A idéia era reproduzir a estrutura da fita de Moebius,9 fazendo uma alusão às Náiades, da mitologia grega, que Milena Travassos acessou através do dicionário de mitologia grega do Jean-Pierre Vernant. Em entrevista, ela conta: “Eu pensando em figuras que pudessem me inspirar, eu li um fragmento das Náiades, que tem uma relação meio dúbia com o que elas apresentam. Elas são produtoras de nascentes, de fontes de água. 9 Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efectuar meia volta numa delas. São estruturas que permitem a formalização de conceitos tais como convergência, conexidade e continuidade, conceitos próprios da matemática moderna. 41 E em algumas histórias, em alguns momentos, elas deixam que as pessoas se banhem. Na verdade, elas deixam pra adquirirem algum bem em troca. A pessoa está com algum mal, então ela permite que a pessoa se banhe, e aquele banho retorna para elas com outro benefício. Já em outros momentos, ela impede que as pessoas cheguem próximo dessas nascentes, dessas fontes d‟água, como algo a ser preservado, algo sagrado.” (ENTREVISTA PARTICULAR 05/2011). A partir daí, a instalação adquiriu um espaço convidativo, atraente: o lado imersivo que foi estruturado na parte interna, e outro mais repulsivo, que distancia o observador, o lado impeditivo, na parte externa. Alexandre e Milena queriam trabalhar com estas duas esferas do trabalho. A parte convidativa consiste em seis vídeos distintos com um único plano, câmera parada. São imagens capturadas de uma parede de pedra imersa debaixo d´água, contendo lodo e plantas nela grudada. A luz do sol refletindo de forma distinta em cada vídeo dá movimento às imagens. As cores geradas por esta iluminação também proporcionam texturas diferentes para cada um. O movimento da água também é elemento de distinção. A disposição na montagem deu-se de forma circular, envolvendo o observador sob uma estrutura que inicia alta e, à medida que o círculo vai se completando, a parede vai diminuindo até o chão, quando o observador depara-se com a parte externa do trabalho. Como se o observador tivesse entrando num grande aquário e, através daquelas “janelas” (no caso, cada vídeo), é possível enxergar a parede que os envolve. O principal elemento na parte convidativa de Náiades, dá-se na sonoridade. Quando o observador chega neste ambiente circular, ouve-se o barulho de água escorrendo, pingando, continuamente. Náiades –lado imersivo 42 Aqui, a imersão proposta, exorbita os sentidos. Uma experiência sinestésica pode alcançar o observador. O olhar, o ouvir e o sentir se conectam de tal maneira a misturar-se. O corpo não distingue facilmente sob quais sentidos precisa recorrer para experimentar aquela obra, então ele aciona simultaneamente mais de um. Esta sinestesia dos sentidos suscita uma questão interessante em torno do ato de profanar. Além dos espaços, podemos pensar em subverter as formas de recepção tradicional da arte e restituí-la ao uso livre do homem. Quando o observador está dentro de um ambiente que simula uma espécie de aquário, o corpo é submetido a sensações que se devem exatamente a esta „confusão‟ dos sentidos, a esta sinestesia. Quando Gubern discorre sobre o processo de imersão no universo das imagens, ele afirma: “(...) una experiência cenestésica y cinestésica: cenestésica por cuanto permite la conciencia de la posición y de la actividad del cuerpo em el espacio, y cinestesica ya que permite la conciencia de los desplazamientos em tal espacio.10 (GUBERN, 1996, p.158). Nesta perspectiva, pode-se pensar também em formas de redefinir os usos comuns dos próprios sentidos do corpo, uma vez que é nele que a comunicação se dá. Uma vez que a obra provoca esta sinestesia, por que não pensarmos em explorar novas possibilidades de usar o tato ou o olfato, por exemplo? Se permitir desenhar o som que se escuta ou sentir o cheiro de uma pintura não seria uma forma de profanar os sentidos para que, assim, se possa tentar organizar novas conexões no ato de conhecer e, então, profanar através deles? Deixar-se enganar pelos próprios sentidos e sentir a pele molhada como se estivesse dentro de um aquário ou enxergar a água escorrendo não seria um exemplo de profanação dos sentidos em Náiades? Quando somos convidados a rir num momento de formalidade devido a ação de um clown, por exemplo, ou a participar junto com os atores em um ato de uma peça teatral ou a rabiscarmos alguns versos numa exposição de poemas estamos trabalhando uma forma particular dessa separação entre obra e público, diluindo essas fronteiras. Estamos reafirmando a zona de indistinção entre esses dois elementos indispensáveis no processo de comunicação. Identificando esta zona, conseguimos observar mais claramente a perda da aura do objeto diante dos olhos do receptor. “A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido 10 Tradução: uma experiência cenestésica e sinestésica: cenestésica por permitir a consciência da posição e da atividade do corpo no espaço, e cinestésica já que permite a consciência dos deslocamentos em tal espaço. 43 profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituída ao uso” (AGAMBEN, 2007, p. 68). Já anunciava Benjamin no início do século XX sobre “retirar os objetos dos invólucros e destruir a sua aura”. A percepção humana é alterada diante das possibilidades, gerando outros paradigmas. Dicotomias vão caindo por terra, à medida que novas configurações vão se estabelecendo. “(...) o conceito de técnica representa o ponto de partida dialético para uma superação do contraste infecundo entre forma e conteúdo.” (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.122). Após esta experiência contundente de imersão convidativa, o observador depara-se com a parte externa de Náiades, o lado impeditivo, onde a proposta é exatamente oposta, trabalhar com outras sensações, que geram outros sentimentos. Medo, insegurança podem aparecer quando se vê uma projeção no chão, circular, de três metros de diâmetro com imagens gravadas no grande poço, com câmera de pino, 90º. Na imagem, vê-se um corpo vestido de branco, boiando no poço, enquanto a água realiza movimentos circulares, em redemoinho. Os elementos da cena – o grande poço, um corpo que bóia sem movimento próprio, a água em redemoinho – remete a morte, a inanição, ao abismo que se encontra diante do observador, como se estivesse na beira do poço. Milena refere-se ao corpo nesta produção como algo que se dissolve por completo à paisagem e compara com outros trabalhos: “Nesse vídeo eu me torno água, acho que até mais do que em Apnéia. No Apnéia eu tô com um vestido mais volumoso, lilás. Nesse não, parece que eu sou pura água mesmo, como é a idéia das Náiades, da mitologia.” (ENTREVISTA PARTICULAR 05/2011) Náiades – lado impeditivo O contraste entre as duas ambientações acontece. Diferente do lado imersivo, na parte externa de Náiades, o observador não se sente convidado a se fundir naquele 44 ambiente. Sensações como vertigem podem visitar o observador ao acompanhar o movimento circular que aquele corpo faz sobre a água. Em Náiades, o observador é convidado a se perder nas sensações, podendo descolar-se livremente pelo espaço circular escuro, deixando o olhar passear livremente entre as telas coloridas de imagens fluidas11. E, ao mesmo tempo, traz a dimensão sombria da obra, tirando o observador da zona de conforto. Náiades acolhe e repugna, simultaneamente. Embora não exista nenhuma técnica mais evidente de diluição entre obra e público, algo que convide realmente o observador a uma interação com a obra, interferindo diretamente, as fronteiras se borram mesmo na inércia de um simples caminhar, deixando os sentidos serem aguçados pela obra. A tecnologia se apresenta de maneira expressiva e a técnica se mistura ao conteúdo enigmático da obra. Eduardo Jorge Oliveira tece comentários em torno da figura mitológica que envolve a ninfa em Náiades. “Se o mito tem essa característica de linha de força, também pode problematizar um suporte, como sugeriu o videomaker Alexandre Veras (...). Por esse motivo, a instalação é um elemento importante para que aconteça uma irradiação do mito para a imagem e da imagem para a técnica. Em entrevista, Veras pontuou que a figura das ninfas das águas conhecidas por náiades são importantes para ajudálos a problematizar a questão da técnica, que implica em como apresentar a referida obra como uma instalação. Nesse caso, o mito surge para alargar a linguagem da imagem em um determinado suporte, criando uma rede de objetos e situação no espaço expositivo.” (OLIVEIRA, 2010, p.43). 2.2 Vida e arte não se dissociam Esta imersão do corpo do observador na obra proposta pela exposição não é algo novo, nem tampouco recente. Não é possível excluir a relevância das experiências anteriores do observador para deixar-se envolver no trabalho proposto. Estamos falando de um tipo de conhecimento que depende de uma série de variantes subjetivas, que não se resume a um conceito formal, previamente dado. Estamos falando do conhecimento tácito, que se dá na experiência, à medida que o homem vai experimentando novas possibilidades desse contato entre o corpo e o meio. Este conceito foi amplamente debatido pelo filósofo Michael Pollanyi, no final da 11 Quando eu visitei Náiades, a primeira coisa que eu fiz quando sai do espaço foi respirar fundo – como quem retoma o fôlego depois de sair debaixo d´água – e perceber que tinha me dado vontade de fazer xixi. 45 década de 60.12 Ainda na década de 40, a filósofa Susanne Langer propôs uma discussão sobre a arte e a criação e já anunciava sobre a riqueza no ato de experimentar: “A experiência de cada homem pode somar-se a experiências de outros homens, que vivem em seu tempo ou viveram antes; e assim, um mundo comum de experiência, maior de que a sua própria observação, pode ser vivenciado por todo homem” (LANGER, 1971, p. 17). Embora os estudos dela tenham tratado do processo artístico de forma generalista e uniforme, caindo num reducionismo ao colocar as diversas linguagens no mesmo patamar de categorização, sua reflexão, ainda no início do século XX, contribuiu bastante para os estudos que seguiram no campo da arte. Esta afirmação da pesquisadora nos faz acreditar na idéia de transformação através da experiência vivida não só pelo sujeito indivíduo, mas também pelo outro que lhe antecedeu, ou seja, pela experiência de um corpo social em constante transformação. Quando Benjamin trouxe a reflexão, ainda em meados da década de 30, sobre a emancipação da arte, aproximando o homem do objeto artístico a partir de sua reprodutibilidade técnica, as pessoas puderam experimentar a arte de maneira diferenciada, iniciando um processo de legitimação de outras formas do conhecimento. Com a perda da aura e a popularização artística, o público pôde estabelecer outra relação com a arte, permitindo novas conexões entre os saberes. Com esse processo, inicia-se uma reformulação no entendimento da arte. “As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso (...). Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual” (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.171). As reflexões de Benjamin são exemplos de que retornar ao passado para entender as insurgências do presente configura-se uma prática legítima e coerente. “A nossa tarefa consiste em reinventar o passado de modo a que ele assuma a capacidade de fulguração, de irrupção e de redenção que Benjamin imaginou com grande presciência” (SANTOS, 2008, p. 82). Abordar este tema é pertinente para tratarmos do ponto crucial que julgo quando trabalhamos com a arte: a indissociação com a vida. A emancipação de que Benjamin fala possibilita uma fruição maior entre esses dois campos. Para Jesus Martín Barbero, estas duas esferas nunca podem se separar: “(...) a continuidade da arte com a 12 POLANYI, Michael. Knowing and Being; The University of Chicago Press, 1969. POLANYI, Michael; PROSCH, Harry. Meaning; The University of Chicago Press, 1975. 46 vida, encarnada no projeto de lutar contra tudo o que separe a arte da vida, visto que mais do que nas obras, a arte reside é na experiência. E não na experiência de alguns homens especiais, os „artistas-gênios‟, mas mesmo na do homem mais humilde que sabe narrar ou cantar ou entalhar a madeira” (BARBERO, 2009, p. 44). E ainda complementa: “a cultura legítima rechaça antes de tudo uma estética que não sabe distinguir, as formas, os estilos e, sobretudo, que não distingue a arte da vida” (BARBERO, 2009, p. 120). Esta compreensão da arte como forma de conhecimento encarnado na vida, seja do corpo-artista no ato da criação ou do corpo-observador que se deixa imergir e levar-se pelas obras, perpassa toda a obra da artista Milena Travassos. Não só em Sala de Jejum, mas em suas criações ao longo da vida. Não é à toa que ela mesma fala que os lugares e os objetos a encontram e não o inverso. A inspiração para a criação de cada nova obra dá-se por um exercício cotidiano do olhar em deixar-se ser capturada pelo espaço e pelos objetos que cruza no seu caminho.13 2.3 Olhar Atento Retomando a idéia da espacialidade como elemento fundamental na construção dos trabalhos de Milena Travassos, coloco em evidência esta característica em suas criações. Tanto o espaço que sedia as exposições, como os lugares escolhidos para as ações são fundamentais e determinantes na construção da linguagem desenvolvida por ela. É exatamente no tocante desta esfera inseparável entre a vida e a arte que estas seleções se dão. A artista é fisgada pelos espaços que lhe convidam a realizar uma ação. “Não se trata de performance, as ações são realizadas para serem filmadas em um lugar específico, previamente escolhido e estudado. Posteriormente transformam-se em vídeos-instalação. Falo em escolha de um lugar, mas os encontros também se dão despretensiosamente, pois nem sempre há a procura, e sim o olhar atento. Deparo-me com esses lugares em meu cotidiano; de repente, acontece de aparecer na minha frente uma árvore, um poço, um sobrado, uma escadaria.” (TRAVASSOS, 2009, p.4) 13 Assim aconteceu recentemente quando a artista visitava um brechó, no Rio de Janeiro. Ao entrar na loja de antiguidades, despretensiosamente, deparou-se com alguns objetos de vidro compridos, de formas arredondadas, feito garrafas e não hesitou: comprou todo o estoque da loja. O que será feito? Ela ainda não sabe, mas os próximos encontros dirão. O ato criativo é um exercício diário. 47 Podemos dizer que a artista trabalha constantemente com a subjetividade barroca desestabilizadora que a encarna. No caminhar de seus trajetos, as idéias saltam a partir de suas experiências. Ela encontra a brecha para realocar objetos e deixar as idéias virem à tona a partir dos encontros. Encontros rotineiros entre seu corpo e o meio, mas que caem no olhar atento de Milena, abrindo as portas para a janela da criação. Como define Boaventura Sousa Santos: “Uma subjetividade desestabilizadora é uma subjetividade dotada de uma especial capacidade, energia e vontade de agir com clinamen14(...) Por ser incapaz de planear a sua própria repetição ad infinitum, a subjetividade barroca investe no local, no particular, no momentâneo, no efêmero e no transitório. Mas o local não é vivido de uma forma localista, ou seja, não é experienciado como ortopia. O local aspira antes a inventar um outro lugar, uma heterotopia, se não mesmo uma utopia” (SANTOS, 2008, p.91; p. 206). Em Apnéia, por exemplo, a artista faz uma alusão a Epicuro, devido a forma como os elementos estão dispostos em cena. “Os personagens não tem uma marcação precisa, estão livres para os encontros ocasionados por seus movimentos e pelo ritmo da água” (TRAVASSOS, 2009, p.5). A câmera passeia em movimentos lentos e circulares em torno dos elementos que compõem a cena submersa, dispostos dentro de um espaço aquoso, sempre no limite entre o fora e o dentro da água. Estes elementos são garrafas de vidros, materiais orgânicos (como plantas, flores e galhos) e o corpo-artista de Milena. Ali, ele aparece boiando, num traje de cor lilás, volumoso, como mais um elemento de composição dos planos. Corpo e paisagem se fundem. Ele é tão relevante quanto cada material que flui e se mexe frente à câmera. Ele está a deriva, como todos os outros elementos imersos. Milena está sempre à procura de uma abordagem lírica da paisagem, como ela mesma define, pois entende suas vídeos-instalação como poemas visuais. A água aparece ora turva, ora transparente. As garrafas funcionam como lentes que formam e deformam as imagens, enquanto se chocam e mudam de direção no ambiente aquoso. O vídeo de 33 minutos é projetado de forma invertida, numa grande parede de uma sala escura, em 300 X 600 cm. A técnica causa estranhamento no observador que dificilmente perceberá como aquilo foi feito, apenas se deixará envolver pela estética 14 Boaventura Sousa Santos se apropria do conceito de climanen utilizado por Epicuro e Lucrécio, para referir-se ao desvio, à inclinação que perturbam as relações de causa e efeito sobre os átomos de Demócrito. “O Climanen é o que faz com os átomos deixem de parecer inertes e revelem um poder de inclinação, ou seja, um poder de movimento espontâneo” (EPICURO, 1926; LUCRETIUS, 1950 apud SANTOS, p. 90). 48 peculiar, de fronteiras borradas e imagens sem linearidade. A coloração do vídeo – em alguns momentos – também é alterada a partir da técnica. Os tons de cinza dão textura à imagem, destacando o material orgânico em movimento dentro do ambiente fluido. Assim como em Náiades, o áudio exerce uma função de ambientalização para a imersão na experiência da obra. O espaço acústico proposto funciona como guia para o observador para conseguir conectar-se à obra e mergulhar na realidade imagética proposta. Apnéia “Sabemos que nossa percepção do espaço, nosso senso de orientação é marcado eminentemente por nossa experiência auditiva. Interferir no espaço acústico a partir do uso de sonoridades instáveis constitui então uma das estratégias de romper com a frontalidade da imagem bidimensional. Ao entrar nesse espaço, o visitante é convidado a manter-se em um estado que mistura atenção e inércia, por algum tempo seu corpo e olhar devem se deixar levar pela atmosfera desse espaço de experiência em torvelinho” (TRAVASSOS, 2009, p.5). Esta afirmação suscita uma discussão em torno de temas como a tecnologia e a percepção humana. Os estudos sobre o surgimento e o desenvolvimento do cinema, além da disseminação das imagens são fundamentais para entendermos esta marca forte das imagens dentro do trabalho da artista visual analisada. “As tecnologias comunicativas e a reorganização industrial da cultura não substituem as tradições nem massificam homogeneamente, mas transformam as condições de obtenção e renovação 49 do saber e da sensibilidade” (CANCLINI, 2008, p. 263). É nesta renovação do saber e da sensibilidade que o corpo social se modifica, possibilitando trabalhos desta ordem. 2.4 Revisitando a iconosfera As imagens tiveram um importante papel na construção de uma nova cognição social. O surgimento do cinema designou à arte o caráter de entretenimento. Este fato não só legitimou a existência das massas como também as incluiu no processo de ebulição do novo ecossistema cultural que eclodiu na segunda metade do século XX. “Com o que se estava afirmando uma nova relação da massa com a arte, com a cultura, na qual a distração é uma atividade e uma força da massa diante do degenerado recolhimento da burguesia(...). O espectador de cinema se torna um novo tipo de experto, no qual não se opõem, mas se conjugam a atividade crítica e o prazer artístico” (BARBERO, 2009, p. 84). É nesse sentido o entendimento de Benjamin quando enxerga nas massas e na técnica a emancipação da arte. A possibilidade de deleitar-se diante de uma obra, atribuindo a ela o caráter de entretenimento, faz da produção artística um objeto de prazer. Característica que perpassa a exposição analisada. Nota-se uma preocupação estética em cada trabalho, um cuidado com os sentidos do observador. Não só aos olhos, mas também à mistura de sensações. O prazer do deleite de estar diante dos trabalhos de Sala de Jejum, foi uma preocupação da autora. Em meados do século XX se verificava várias experiências no Brasil e no mundo em torno da vídeo-arte e do cinema experimental. A expansão icônica que alavancou nesse período trouxe efeitos marcantes para a sociedade. Benjamin destaca a mudança de foco nos sentidos em torno da visão, com a grande disseminação das imagens. “Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho aprende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.167). 50 Esta declaração de Benjamin nos permite conectá-la aos escritos de Richard Sennett sobre as habilidades manuais e visuais do homem. Sennett cita Charles Bell que, ainda no início do século XIX, conferia uma posição privilegiada à mão na criação, “tendo efetuado várias experiências para sustentar que o cérebro recebe do toque da mão informações mais confiáveis que as imagens do olho – cedendo este com muita freqüência a aparências falsas e enganosas” (SENNETT, 2009, p. 170). Aqui temos um paradigma apresentado por duas vertentes de compreensão dos sentidos. De um lado, a confiabilidade naquilo em que se toca. Do outro, o deslumbramento e a velocidade de acesso a informação proporcionada pelo olho. De fato, esta última viria a se consolidar em grande massa nos tempos atuais. Benjamin estava certo. O olho aprende mais rápido, porém, corre um grande risco de cair em armadilhas. A confiabilidade do tato conferido à mão foi se tornando um processo de verificação raro e se perdendo proporcionalmente a aceleração das imagens no meio social. A partir daqui, a imersão do observador no universo artístico passa por um processo progressivo. Os recursos permitidos pela disseminação imagética e pelas tecnologias para esta imersão caminham disparados. Tudo isso possibilitou a designação de novos conceitos. Iconosfera foi um deles. O termo foi proposto em 1959, por Gilbert Cohen Seat, para designar o entorno imagético surgido a partir da televisão, do cinema e seus derivados. Um pouco mais tarde pudemos ver o conceito de semiosfera, criado por Yuri Lotman para designar o ambiente ou o entorno de signos que envolviam o homem moderno. Tudo isso surgia com a proposta de firmar a função fundamental que a imagem tinha adquirido na comunicação social, membro central do novo ecossistema cultural que emergia. “(...) formado por las imagenes del cine, la televisión, la publicidad, las revistas ilustradas – y cuyos efectos psicológicos e sociales parecián a veces inquietantes y potencialmente amenazadores para la tradicional y solida cultura Gutembergiana de la palabra escrita”15 (GUBERN, 1996, p. 108). A expansão do cinema como nova linguagem, como arte para as massas, chegou se apropriando de um sistema vocabular já existente, como terminologias profissionais de artes precedentes. 15 Tradução: Formada pelas imagens do cinema, a televisão, a publicidade, as revistas ilustradas – cujos efeitos psicológicos e sociais pareciam as vezes inquietantes e potencialmente ameaçadores para a tradicional e sólida cultura Gutembergiana da palavra escrita. 51 “El encuadre, la composición, el claroscuro, el escorzo y los valores plásticos procedieron del vocabulario de los pintores y fotógrafos. De la literatura tomo los conceptos de narración, acción paralela, fashback, flash-forward y metáfora. De la terminología y de las práticas teatrales adoptó la puesta en escena, el decorado, la iluminación y la interpretación de los atores. De la musica provino el concepto de ritmo.Y los cineastas soviéticos adoptaron de la ingeniería el conceptpo crucial de montaje”.16 (GUBERN, 1996, p. 110). Esse movimento mostra que, mesmo com o surgimento da tecnologia, a arte continuou recorrendo a outras linguagens para se estruturar como forma própria. Embora a literatura e a aura da palavra escrita tenha se mantido por muito tempo em seu pedestal artístico, o intercâmbio entre as linguagens sempre existiu, mas acabou se consagrando entre as massas a partir da sua emancipação. Quando Milena Travassos se apresenta como filósofa e artista visual, se torna evidente o movimento entre as diversas linguagens da arte em que ela transita. Esta é uma característica comum dos artistas atuais, a grande inserção em discussões de várias áreas; a interdisciplinaridade. Atentemo-nos ainda para o grande impacto que questões trazidas pelo cinema contribuíram para teóricos da comunicação e para a história da arte. Benjamin compara: “Mas as dificuldades com que a fotografia confrontou a estética tradicional eram brincadeiras infantis em comparação com as suscitadas pelo cinema.” (BENJAMIN, 1994, p.176). A capacidade de abstração do real gerado pelo cinema não é da ordem somente do lúdico ou da força poética do conteúdo da história. Isso também é mérito da técnica. A potencialidade imersiva que o cinema adquiriu, possibilitou às massas uma força política antes não experimentada no âmbito artístico. O mesmo público que utilizava o cinema para o entretenimento também pôde utilizá-lo como ferramenta política, ainda que alguns críticos tenham dificuldade para reconhecer essa potencialidade. A recepção se manifesta diferente de acordo com o produto apresentado. “(...) tudo que é percebido e tem caráter sensível, é algo que nos atinge. Com isso favoreceu a demanda pelo cinema, cujo valor de distração é fundamentalmente de ordem tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador.” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 –, 1994, p.192). 16 Tradução: O enquadre, a composição, o claro-escuro, o escorço e os valores plásticos procederam do vocabulário dos pintores e dos fotógrafos. Da literatura tomaram-se os conceitos de narração, ação paralela, flash-back e metáfora. Da terminologia e das práticas teatrais se adotou o pôr em cena, o cenário, a iluminação, e a interpretação dos atores. Da música proveniente do concerto de ritmo. E os cineastas soviéticos adotaram da engenharia o conceito crucial de montagem. 52 É através do olhar que o cinema ativa o sistema tátil do expectador. Os efeitos de choque das seqüências de imagens dominam o corpo, num espaço onde a coletividade procura a distração. É ali que ocorre a reestruturação do sistema perceptivo. “A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 , 1994, p.194). É este processo, que tem início no cinema, que só continua a se expandir e a trazer novas possibilidades de imersão para o observador. Para Milena, a tecnologia digital traz aos artistas novas possibilidades de „produção‟ e não só de „reprodução‟, como anunciou Benjamin no início do século passado ao referir-se às inovações tecnológicas da época, como o cinema, por exemplo. Sobre as tecnologias atuais, ela lança: “A realidade virtual, por exemplo, um dos resultados mais enigmáticos da tecnologia digital, não é uma mera tradução de dados em imagem de tamanho natural que imitam a realidade; é a própria realidade.” (TRAVASSOS, 2009, p. 3). E é trabalhando com esta premissa de produção e não de reprodução, que a artista entende a contribuição das tecnologias em sua arte. Ela faz uma adaptação do que Benjamin disse em 1935. “Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução (...) Retirar o objeto de seu invólucro, destruir a sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja a capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda, que graças a reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.170). A percepção humana vai sendo alterada diante das possibilidades, das combinações e dos rearranjos culturais que a sociedade vai passando. As novas relações que o corpo começa a estabelecer com o seu entorno também sinalizam o caminhar desse processo de transformação cultural. É impossível impedir o corpo de experimentar as variações sensoriais da cultura. Quando falamos do corpo que vive inserido num social coletivo, a tendência é sempre o aumento da experiência sensível dentro do laboratório da cultura. 53 2.5 Tecnologia e percepção Dentro desta ótica que Travassos traz a partir de sua produção, quanto a relevância e as estratégias permitidas pela tecnologia, acrescento a análise sobre as conseqüências desta no ambiente social coletivo. Quando admitimos esta inserção crescente das tecnologias, não só nos ambientes artístico, mas no cotidiano social, percebemos que as relações entre o indivíduo e a coletividade começam se estruturar de maneira diferente. A cognição humana é um dos alvos mais certeiros de mudanças com estas relações emergentes. Sousa Santos adverte sobre o impacto da tecnologia no avanço das ciências humanas: “A impossibilidade ou a dificuldade crescente de desenvolver projetos de pesquisas capazes de investigar as conseqüências das novas capacidades de manipulação da vida ao longo do tempo e sobre os ecossistemas e a sociedade, cria um hiato perigoso entre a crescente capacidade de intervenção e a transformação através da inovação tecnológica e a reduzida compreensão dos processos que organizam a vida (SANTOS, 2008, p. 64)”. Esta é uma questão global trazida pelo autor a partir desse contexto social tecnológico que se apresenta nos dias atuais. O alerta é sobre as transformações culturais sem perder de vista os fatos ocorridos no curso da história. “O surgimento de tais tecnologias na América Latina se inscreve, em todo caso, num velho processo de esquizofrenia entre modernização e possibilidades reais de apropriação social e cultural daquilo que nos moderniza” (BARBERO, 2009, p. 256). Cabe-nos olhar tal fato com relevância sem escorregar no ufanismo fetichista de atribuir ao surgimento desta a razão da mudança dos paradigmas que movem o século XXI, pois Barbero já anunciava: “a imagem das „novas‟ tecnologias educa as classes populares latino-americanas na atitude mais conveniente para seus produtores: a fascinação pelo novo fetiche” (BARBERO, 2009, p. 258). Sem dúvida, os tipos de estética proporcionados a partir das tecnologias geram fetiches de várias ordens no imaginário do observador. O deslumbramento com o belo é um recurso eficaz numa exposição de arte e ele tem se dado de maneira diferente na era tecnológica, mas não é ele o único responsável pelas novas articulações culturais em que as sociedades se encontram. As transformações envolvem maior complexidade, que articulam diversos elementos. 54 Em Sala de Jejum, a tecnologia funciona como elemento central para a exposição das obras. É comum uma associação reducionista da tecnologia com a impessoalidade e um simples desenvolvimento de uma técnica. Em Sala de Jejum, o afeto se potencializa com a forma de apresentação dos trabalhos. O que poderia ser contrastante, de difícil enlace, se apresenta de forma fluida e conectada. Milena Travassos consegue fazer elementos bucólicos e intimistas chegarem ao observador através da tecnologia sob vídeos-instalação. A característica sinestésica e sensorial a que a obra recorre é típica do universo das imagens. Gubern fala de uma aspiração plurisensorial – visual, auditiva, tátil e olfativa. Mexer com os sentidos é mexer nos afetos, e isto faz do uso da tecnologia em Sala de Jejum, uma obra regada de subjetividade. “A situação narrativa que Milena Travassos provoca é aquela em que a técnica e o mito partilham do mesmo paradoxo: a ambivalência da imagem” (OLIVEIRA, 2010, p.42), reforça Eduardo Jorge Oliveira a dimensão marcante do uso das imagens no trabalho da artista. Em Vertigem e Tudo o que Sustenta, por exemplo, temos um balanço, um poço, uma árvore centenária e um corpo nu em busca de interação com aqueles elementos e integração no espaço. Milena fala de um corpo que age como um personagem, totalmente integrado a cena. Tão relevante quanto os outros elementos que ali compõem a obra. Há diversas facetas a serem exploradas em um corpo. E isto se deve a sua carga plástica e ao seu potencial poético, acredita a artista. A questão da não personificação da imagem desse corpo aparece como um problema a ser explorado pela artista no universo das imagens de seus trabalhos. Eduardo Jorge Oliveira pontua: “O corpo posto em cena, mesmo sendo o próprio corpo da artista, não dispõe de um eu, de um rosto, que torne sua obra autobiográfica. Milena Travassos dispõe de seu próprio corpo para abrir mão de sua materialidade. E evoca, pois, uma condição fantasmática. (...) Entre mito e modelo, mais uma vez as ninfas se insinuam na imagem” (OLIVEIRA, 2010, p. 41 e 42). Vertigem mostra um balanço sobre um grande poço cheio com água turva esverdeada, rodeado por uma plantação rasteira. Um corpo nu a balançar-se, onde o observador só o vê de costas, enquanto acompanha o ir e vir do balanço. Ao longo da colona vertebral, frascos de vidro estão fixos sobre cada vértebra, formando o eixo de sustentação daquele corpo que se balança. Um desenho sinuoso se sobressai daquela linha frágil de sustentação a partir do balançar-se. Aqueles frascos, transparentes, 55 delicados e equilibrados sobre as costas evocam a união orgânica entre aqueles objetos inanimados e a vida, a junção entre a paisagem e um corpo. Estranheza e delicadeza encontram-se num mesmo contexto visual. O observador não vê onde o balanço está preso. Só consegue acompanhar as cordas que vão e vêm no alto do vídeo, como se viessem do infinito. Ainda sobre o corpo, Eduardo Jorge Oliveira detém-se, agora sobre a nudez. Ele cita Jaques Derrida, em O Animal que logo Sou: “assim, nus sem saber, os animais não estariam, em verdade nus. Eles não estariam nus porque eles são nus” (DERRIDA apud OLIVEIRA, 2010, p.45). O que lhe chama a atenção é a despersonificação de um rosto. A figura da artista se apaga. Milena reconstrói um significado para os corpos que aparecem em seus trabalhos, os distanciando de um corpo humano que habita o mesmo mundo que o visitante, encaminhando a imaginação para o universo mitológico e surreal, onde vivem ninfas e fadas. A nudez não aparece do ponto de vista erótico. Ela é natural. “O que torna duvidosa a nudez em Vertigem é uma coluna externa de vidro na figura feminina que se balança. Uma nudez ambígua, quando se trata de uma situação narrativa onde o corpo é outro, despido de uma condição humana, isto é, o já nu – pensando aqui a nudez como algo humano, enfim, um saber-se nu, isto é, perceber-se em tal condição: despido. A nudez de Milena é ambígua porque joga com a nudez animal (...)” (OLIVEIRA, 2010, p. 45). Vertigem 56 Espaço de reflexão. O ato de balançar-se remete à tranqüilidade, à contemplação. Ao mesmo tempo em que o estranhamento daquele eixo de sustentação frágil sobre o corpo promove um ruído visual e atrai o observador para uma reflexão em torno daquela cena. O balançar-se sobre o abismo, sobre o fosso de um grande poço também causa estranhamento. Em Tudo que Sustenta a inquietação visual se repete. Aos pés de uma árvore centenária, com raízes que saltam terra afora, está o mesmo corpo nu, com a mesma estrutura de vidro nas costas. Uma bacia de alumínio com água. É noite e o ambiente é iluminado somente com uma faixa de luz amarela. O corpo sentado diante da bacia cheia de água realiza um único movimento: colhe a água da bacia com as mãos e a leva sobre a cabeça, molhando o cabelo liso, fazendo-a escorrer sobre a pele branca. Como um batismo ou um ritual de iniciação, define Oliveira. Esta ação é captada por diversos ângulos, tanto de perto como distantes. Aqui, a semelhança com um ser animalesco é maior. A ação reflete uma necessidade de qualquer ser vivo: banhar-se. E em movimentos lentos, a ação se repete, em total consonância com a natureza. O ambiente escuro leva o observador a um ambiente sombrio. “O corpo ultrapassa a noção de escala e oscila entre o desejo e o luto, ou ainda entre o extático e o depressivo. A paisagem contribui para uma apreensão do pulsar extático-depressivo contido no movimento de um corpo que nos é estranhamente familiar. Entre as duas obras existe uma oscilação de luz, o claro e o escuro, que incidem sobre a pele de uma ninfa em contato com o ar (no caso do balanço) ou com a terra e a água (no caso do banho noturno).” (OLIVEIRA, 2011, p.37). Em Tudo que Sustenta, a câmera capta imagens mais próximas que em Vertigem da estrutura de vidro que acompanha a coluna vertebral do corpo, trazendo este elemento de estranhamento mais visível aos olhos do observador. Através do uso do vídeo e dos recursos disponibilizados pela tecnologia, como os „closes‟, por exemplo, é permitido ao observador o acesso àquele corpo de forma detalhada. A estrutura dos objetos de vidro ao longo das vértebras do corpo vista de perto estabelece outra relação com o observador. O fato de ele conseguir desvendar o mistério sobre o que seriam aqueles objetos grudados nas costas do corpo – devido aos closes e a forma de exposição em uma televisão de tela plana de alta resolução – faz da reflexão sobre o seu significado o questionamento maior daquelas obras. O estranhamento gira em torno da função daqueles objetos no contexto visual artístico e não deixa dúvidas sobre o que 57 são: frascos de vidros transparentes grudados na pele branca do corpo ao longo de cada vértebra. Porém, se o observador encaminha uma tentativa de desvendar, esta ação é falida. A obra de Milena Travassos não é para ser decifrada. Os enigmas se dão na poética do texto visual. Cada trabalho complementa o outro. A experiência estética não exige explicações. A lógica artística dispensa a busca de significados. “Acho que o meu trabalho tem muito de enigma, mas não um enigma a ser decifrado. Eu não coloco o espectador como um astuto que está ali diante de uma imagem e precisa decifrar o que está posto. É mais uma experiência de „eu não alcanço muito esse vídeo, mas ele me convida e me chama para uma experiência que não é da ordem da interpretação, não é da ordem do „ah, entendi‟. Ele te convida a embarcar naquele enigma e se perder nele.” (ENTREVISTA PARTICULAR, 05/ 2011). Tudo que Sustenta A cena com pouca luz, tendo o corpo ligado a terra e a água de forma tão rudimentar, aproxima o observador de um ambiente sombrio, o que nos permite relacioná-lo com a mesma tensão daquele corpo balançando-se diante do abismo do poço, em Vertigem. A bacia aqui poderia ser uma metonímia para o poço? Questiona Eduardo Jorge Oliveira e continua: “Como pensar uma banhista fora d´água, se não pela linguagem, isto é, por uma espécie de metonímia que é a própria bacia?” (OLIVEIRA, 2010, p. 36). Aqui, a analogia do professor se dá através de outra figura de linguagem. Ele usa a metonímia para estabelecer seus parâmetros de diálogos entre os trabalhos. 58 Quando ele refere-se à bacia – que aparece em O Banho, Tudo que Sustenta, Sonata –, ele propõe uma analogia entre os recipientes que também reservam água e, ocasionalmente, também servem para banhar-se. Logo bacia e poço desempenhariam a mesma função, uma vez que o poço não estivesse posto para o seguinte fim em Vertigem. Em O Banho, como foi dito anteriormente, faço a analogia através da metalinguagem, quando se projeta um banho sobre uma bacia de alumínio com água – utilizando-se a mesma bacia que aquela vista nas imagens. E agora, a partir do olhar de Eduardo Jorge, entendo que há também metonímia, quando aquele objeto sólido, de alumínio, poderia estar representando grandes mananciais onde ninfas se banham naturalmente. Não necessariamente somente uma metonímia do poço, mas de todos e quaisquer ambientes aquosos, próprios das náiades mitológicas, como rios, riachos e mananciais convenientes ao banho. Oliveira afirma: “Em O Banho, temos uma situação limite tanto para Vertigem, quanto para Tudo que Sustenta, pois a projeção das imagens acontece sobre a bacia com água. A bacia, ainda, é poço e ponto de contato entre as duas obras, entre as duas condições metamórficas do corpo, a de ninfa e a de banhista.” (OLIVEIRA, 2010, p.36). Em Sala de Jejum, a tecnologia se funde com o corpo da artista. Como ela mesma disse, seu corpo também é vídeo. Segundo Milena Travassos, a experiência com o corpo é marcada pelos efeitos fragmentados das tecnologias da era pós-industrial. “Estamos adentrando uma nova era e os corpos apresentados pelos artistas não somente anunciam estes novos tempos, mas se afirmam como protagonistas da trama intersubjetiva que constitui o social. Identifico-me quando Bill Viola afirma: Minha obra é centrada em um processo de realização e descoberta pessoal. O vídeo é uma parte do meu corpo é intuitivo e inconsciente.17 Gosto de pensar que há algo de intuitivo e inconsciente nos processos de criação, pois Flusser já nos advertiu quanto as ilusões de liberdade com relação ao uso de equipamentos tecnológicos pré-programados, não gostaria de ser uma operadora de rótulos, ou uma operadora de botões18”. (TRAVASSOS, 2009, p.6). Embora em seu artigo sobre a exposição Sala de Jejum a artista não deixe claro sobre a que exatamente ela se refere quando utiliza o termo “novos tempos”, cabe-me fazer uma leitura sobre as transformações culturais que vem assolando algumas esferas sociais desde o início do século XX. Podemos identificar elementos relacionados à 17 RUSH, Michael. Novas Mídias na Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006. FLUSSER, Vilém. A Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.São Paulo: Relume Dumara, 2005. 18 59 tecnologia que vem alterando sensivelmente a percepção e a cognição humana. Porém, estas transformações não se devem exclusivamente a elas. As maneiras de compreender e de conhecer afetam a construção social e coletiva da cultura, à medida que também são afetadas por ela ao longo da história. O processo não se dá por uma via de mão única. O autor Michael Tomaselo alertou-se justamente para estas novas representações cognitivas sociais. Ele afirma que elas não surgem do cérebro do “novo” homem, inserido na era tecnológica, e sim, de todo um processo de transformação social que ocorrem entre os indivíduos de diferentes culturas que passam por diferentes transformações. A tecnologia seria apenas uma delas. “It is perhaps paradoxical, in this age of computer and this „decade of the brain‟, that this radically new and powerful form of cognitive representation emanates not from any new storage facilities or computing power inside the human brain, but rather from the new forms of social cognition, that take place between individuals inside humans cultures.” (TOMASELLO, 1999, p. 213, 214).19 Corpo e cognição agora se encontram no mesmo caldeirão cultural num processo de troca constante com o ambiente. Se pensarmos nos métodos co-evolutivos, temos um mundo que não se altera sem alterar os corpos que nele habitam e vice versa. Ambos são interdependentes e conectados em rede, formando um sistema que busca constantemente o equilíbrio adaptativo. As realidades psicossociais se alteram em busca de uma congruência com o mundo, assim como o mundo vai se adequando às novas organizações psicossociais do homem. “Falar em co-evolução significa dizer que não é apenas o ambiente que constrói o corpo, nem tampouco o corpo que constrói o ambiente. Ambos são ativos o tempo todo. A informação internalizada no corpo não chega imune. É imediatamente transformada e, como explicou Edelman, mesmo quando o tema é a memória (que sinaliza fluxo de informação com alta taxa de estabilidade), há processos incessantes de recategorização. Não há estoque, apenas percursos transcorridos e conexões já experimentadas” (GREINER, 2005, p.43). 19 Tradução: É talvez paradoxal, nesta época de computador e desta "década do cérebro", que esta forma radicalmente nova e poderosa de representação cognitiva não emana de instalações de armazenamento ou poder de computação dentro do cérebro humano, mas sim das novas formas da cognição social que ocorrem entre diferentes indivíduos dentro de culturas e seres humanos. 60 O corpo biológico e o corpo cultural integram um só sistema. Greiner busca no filósofo Mark Johnson muitas reflexões em torno dessa discussão entre corpo e mente. “(...) a significação compreende os esquemas da experiência corporal e das estruturas pré-concebidas da nossa sensibilidade, nosso modo de percepção, nossa maneira de orientar e de interagir com outros objetos, eventos ou pessoas.” (GREINER, 2005, p. 43). Diferente da compreensão dos estudos tradicionais, corpo e mente não se dissociam, uma vez que ambos integram o sujeito em seus aspectos singulares e apresentam-se ao mundo de forma co-dependentes e interligados. A partir dessa premissa, uma série de ramificações surge nos estudos do corpo capaz de provocar reflexões sobre os novos parâmetros da realidade social presente. As teorias em torno do tema ganham cada vez mais força e mostram-se cada vez mais coerentes, tendo em vista a forma como elas se aplicam dentro do contexto atual. Este entendimento direciona a reflexão para outra dimensão do humano que envolve diretamente o corpo, implica o seu estar no mundo e dialoga com a produção analisada Sala de Jejum: a expressão dos sentimentos. Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo; Edwin Hutchins, estudioso das ciências cognitivas são exemplos de pesquisadores que embasaram seus estudos científicos sustentando a dimensão social e cultural dos sentimentos. Isso dá margem a compreensão de que não existe uma universalização dos sentimentos ou, se quer, uma essência. A subjetividade do ato de sentir aparece em cada corpo de maneira distinta. A sensibilidade de Milena Travassos é exclusiva de seu corpo e, de alguma maneira, aparece em sua produção. “A diversidade nos modos de sentir e, ao mesmo tempo, a singularidade por vezes radical de cada experiência configurada fazem do sensível uma espécie de terreno brumoso para a consciência do sujeito auto-reflexivo, porque o lançam numa imediatez múltipla e fragmentada, onde os julgamentos tendem a ser mais estéticos do que morais”. (SODRÉ, 2006, p.11). Não se pode falar em uma natureza das emoções, uma vez que elas se manifestam de forma singular em cada indivíduo, de acordo com o universo cultural em que ele é imerso e suas construções psicossociais desenvolvidas ao longo da existência humana. “É o homem quem faz a dor conforme o que ele é” (BRETON, 2007, p. 53). Quando Darwin e outros pesquisadores oriundos da etologia e das ciências biológicas perceberam que não conseguiriam provar nada desta ordem, que separassem 61 estas esferas, pipocaram estudos de várias áreas das ciências humanas trabalhando exatamente sobre a premissa inversa. “Para que o sentimento seja experimentado e expresso pelo ator, deve pertencer de qualquer maneira ao repertório cultural de seu grupo. A sociologia pode dedicar-se à descoberta desse conhecimento difuso que atravessa as manifestações afetivas dos atores e contribui para a evidência do vínculo social, graças a uma partilha de simbologia que cada ator traduz com seu estilo próprio, mas numa área de reconhecimento mútuo.” (BRETON, 2007, pag. 52) Utilizando a dor como um exemplo de emoção para fazer sua análise, David Le Breton discorre ainda: “Entre o excitante e a percepção da dor, há a extensão do indivíduo enquanto singularidade e ator de uma dada sociedade. As normas implícitas, escapando ao julgamento do indivíduo, determinam sua relação com o estímulo doloroso. Essa relação não responde a nenhuma essência pura, ela traduz uma relação infinitamente mais complexa entre as modificações do equilíbrio interno do corpo e os ressentidos por um ator que aprendeu a conhecer essa sensação e a relacioná-la a um sistema de sentido e valor. (...) os homens não sofrem da mesma maneira e nem a partir da mesma intensidade da agressão” (BRETON, 2007, pag. 53) Tendo em vista a estruturação das idéias postas acima, podemos afirmar que a experiência corporal modela nossa percepção sensorial através da integração de cada nova informação que o sujeito entra em contato. O pensamento de Edwin Hutchins sobre a cultura e o seu papel na construção da cognição é fundamental para a construção desse corpo sensível, fruto da experiência coletiva como ativador do processo cognitivo. Não existe uma coleção de coisas que podemos nomear como cultura, isso varia de acordo com o meio onde ela está sendo construída. “(...) A cultura se constrói no trânsito entre o individual e o coletivo, entre o dentro e o fora do corpo, operando o tempo inteiro num continuum entre emoção, razão, ação corpórea incluindo a aptidão para conceituação (...)” (GREINER, 2005, p. 103). As pessoas integram a cultura, logo, a construção do que elas determinam ser cultura passa pelos processos cognitivos coletivos. “It is a human cognitive process that takes place both inside and outside the minds of people. I am proposing an integrated view of human cognition in which a major component of culture is a cognitive process (it is also an energy process, but I‟m not dealing 62 with that) and cognition is a cultural process”20 (HUTCHINS, 1995, p. 354). Nesse sentido, o individual e o coletivo se constroem continuamente. Já tendo em vista esta discussão sobre a construção cognitiva e cultural do homem; e o papel das tecnologias neste processo, incluo neste caldeirão parte do meu entendimento sobre a “nova era” e os “novos tempos” a que Milena Travassos se refere em seu artigo. Quando ela afirma que se identifica com a premissa em que o vídeo integra o seu corpo, ela se insere no contexto do aparecimento de novos elementos que fazem parte da construção cognitiva coletiva. São transformações que alteram a percepção e se traduzem de outras maneiras no âmbito artístico. No caso de Sala de Jejum, esta fusão entre o corpo e a tecnologia é clara e o observador pode experimentar esta realidade colocando diante da obra também o seu corpo, suas emoções e lançar sua percepção no jogo de sensações proposto em cada trabalho. 2.6 Apreço ao belo Sala de Jejum sugere, constantemente, elementos que remetem ao fantástico. Talvez pela forte presença do onírico, do universo dos sonhos, apareçam detalhes que levem o observador a outra instância da realidade, ao imaginário dos contos de fadas. Quando a artista funde paisagem e corpo, o espaço cenográfico apresentado através das vídeos-instalação e todo o contexto visual da exposição chega à percepção do observador permeado de subjetividade, de sentimento e de emoções. Falar destas instâncias é admitir a dimensão tácita do conhecimento que habita o universo artístico, desde sua mais simples e rudimentar forma à moderna e tecnológica expressão. “(...) el ciberespacio aparece como uma nueva última frontera digna de exploración y de especial interés para los artistas (...) La confusión entre vida real y ficción ha sido eficazmente preparada por várias décadas de cultura cinematográfica, televisiva y publicitária, y abonada por uma presión mediática hacia el culto narcisista al look personal, um look que no es otra cosa que la imposición de una ficción embellecedora a una existência personal insatisfatória.”21 (GUBERN, 1996, p.175). 20 Tradução: “É um processo cognitivo humano que posiciona igualmente a parte interna como a externa da mente das pessoas. Eu estou propondo uma integração do ponto de vista da cognição humana onde o maior componente da cultura é um processo de cognição (é também um processo de energia, mas não vamos tratar disso agora) e a cognição é um processo cultural. 21 O ciberespaço aparece como nova fronteira digna de exploração e de especial interesse para os artistas (...) A confusão entre vida real e ficção tem sido eficazmente preparada por várias décadas pela cultura 63 O belo do qual Gubern se refere aparece imbricado nas relações midiáticas, gerando apatia. O belo proposto em Sala de Jejum comunga com a idéia de promover uma inércia sobre os sentidos na contramão da velocidade dos canais midiáticos tradicionais. São formas distintas de trabalhar o belo. A contemplação permite ao observador espaço de reflexão, o que não ocorre no contato midiático diário. Para o cineasta Luiz Rosemberg Filho, Sala de Jejum trabalha com um ideal de antinaturalismo que se vincula a um novo sentido de potência que é: “não movido por promessas que nunca se realizam [como visto nas imagens midiáticas], mas por responsabilidades poéticas profundas, (...) pois vivemos num tempo onde o real empobrecedor serve bem a política e a comunicação, mas não ao humano”. (FILHO, 2009, p.4). Em Tempo de Paisagem, mais uma vez, o corpo se camufla na paisagem. A árvore carrega nos braços e envolve aquele corpo, ninando-o ao som do vento. Ele aparece entre largos galhos, em cima da árvore. Numa tomada circular e constante, de baixo para cima, os enquadramentos enfocam a copa do Ipê amarelo, os galhos retorcidos e o corpo deitado sobre as curvas naturais. A mistura de cores das folhas amarelas, dos galhos marrons, do vestido branco que veste o corpo e do cabelo comprido caído feito cipó orna a composição imagética da cena. Assim como em Vigília (falaremos logo a seguir), Tempo de Paisagem conta com um elemento de grande eloqüência na construção deste ambiente lírico: o vento. Neste trabalho, o áudio editado é o natural, o som ambiente. Escuta-se o barulho do vento e do balançar dos galhos. São sons da natureza. O sentimento de paz e harmonia que desencadeia a partir do contato do observador com a imagem é proporcional ao que ele imagina da possível sensação que aquele corpo estaria sentindo naquela situação. Aquele corpo espera. Mais um ambiente onde a inércia é acionada. O observador é induzido à contemplação. cinematográfica, televisiva e publicitária, e abonada por uma pressão mídiatica para o culto narcisista de um look pessoal, um look que não é outra coisa se não a imposição de uma ficção embelezadora a uma existência pessoal insatisfatória. 64 Tempo de Paisagem Em Vigília, o zelo pela estética, que permeia toda a exposição, chega ao ápice. O cenário: um navio encalhado há 25 anos, carcomido pela ferrugem, à 700 metros da costa Fortalezense; um balanço, que mais uma vez, o expectador não identifica onde ele foi preso; um corpo vestido de branco; uma botija de vidro com água pela metade. O enquadramento do vídeo se dá no corpo sentado no balanço de costas, a fazer movimentos leves, como se empurrasse o chão para mover-se, sem tirar os pés do chão, para frente e para trás. O barulho forte de vento no áudio do equipamento pode ser constatado também com o cabelo daquele corpo voando. Embora o navio estivesse próximo da costa, não deixa de ser em alto mar. O mar dá uma dimensão para o vídeo de grandes amplitudes, de um espaço aberto, totalmente ao ar livre. Aos pés da artista, uma garrafa transparente, cheia de água. O reflexo dos pés da artista pode ser visto na água do frasco, para frente e para trás, com a imagem invertida. Como se o vidro e a água capturassem o corpo ali que se balança. A opinião do cineasta Luiz Rosemberg Filho traz uma perspectiva curiosa em torno da inversão de imagens que se dá na botija de água. “Balançar sobre a paisagem não deixa de ser um rigoroso princípio de inversão. Avança-se e recua-se numa espécie de confronto contínuo com a nefasta gestação da normalidade. Onde o impulso para frente investe na liberdade e no risco. Já o recuo marcando nossas muitas imperfeições.” (FILHO, 2009, p.3). 65 As imagens são cheias de detalhes. E, assim como em Tempo de Paisagem, o vento desempenha seu papel com incidência, conduzindo o observador ao deleite, à espera, ao prazer de ficar ali parado, estabelecendo a sua própria relação com a imagem e com o tempo. “A idéia era ficar ali, num balanço mais sutil. O lugar é quase uma ilha, por mais que não tenha referência a isso e eu não me importe em dar esta referência no vídeo, isso dá contexto pro trabalho. Tudo aquilo fica no meu imaginário, quando eu tô criando. Sempre me vinha em mente esse navio encalhado, o mar, essa situação de um balanço que é quase uma espera ali. Ou de saída, ou de chegada. Não é uma espera sofrida. É totalmente sem ansiedade. Ali é como se o tempo quase parasse. Os vidros funcionam como lentes também, igual em Apnéia, que sugam as imagens pra dentro, miniaturalizam e as inverte. A questão do vidro me encanta. Ele é um material orgânico, artesanal, por mais que ele seja industrializado, ele é areia.” (ENTREVISTA PARTICULAR, 05/2011).” Quando falamos de estética, tratamos de um conceito milenar, discutido desde muito tempo, sob vários aspectos teóricos. Então, sabendo que muitos significados foram incorporados a semântica deste termo, proponho a definição de Ronaldo Bispo dos Santos sobre o fenômeno: “Toda percepção sensível de um objeto ou situação que ativa uma rotina somática e/ou cerebral imediata tal que induz a alguns dos seguintes afetos e/ou cognições: alegria, prazer, interesse vontade de vida, beleza, atenção/concentração, vivacidade, lágrima nos olhos, sorriso no rosto, rápida associação de idéias e sentimentos, vontade de permanecer sob o efeito do objeto etc.” (SANTOS, 2004, p.40). Portanto, é sob esta conceituação que Sala de Jejum promove seu flash aesthesis, como define o autor, o momento deste encontro entre o belo e o sujeito; obra e observador. A experiência estética pela qual cada sujeito passa é intrínseca e intransferível. O papel do corpo e da ação desenvolvida por ele são determinantes nesse processo. O conjunto de ações que compõem a cena, inclusive a „não ação‟, interferem cognitivamente nesse encontro. Greiner fala do momento em que estas informações são colocadas em relação no corpo do indivíduo. Em termos de percepção, aos poucos torna-se claro que no momento em que a informação vem de fora e as sensações são processadas no organismo, colocam-se em relação. É quando o processo imaginativo se desenvolve. Assim, a história do corpo em movimento é também a história do movimento imaginado que se corporifica em ação. Os 66 diferentes estados corporais modificam o modo como a ação será processada e o estado da mente pode ser entendido como uma classe de estados funcionais ou de imagens sensóriomotoras com autoconsciência. (GREINER, 2005, p.64). Vigília Diferente de Vertigem e Tudo que Sustenta, Vigília e Tempo de Paisagem não trazem um elemento estranho – como os frascos de vidro ao longo da coluna vertebral nos trabalhos citados. Vigília e Tempo de Paisagem se voltam para a idéia de contemplação com força total. São os trabalhos de Sala de Jejum que mais evocam o belo a partir do ambiente proposto nas vídeos-instalação, sem elementos de incômodo. Em ambos prevalecem a estética visual para o deleite dos olhos e a distensão dos sentidos. O trabalho de Milena é suave. Ele age de maneira branda. São poucos os elementos de estranhamento diante daqueles que acionam o prazer da beleza estética. Para Eduardo Jorge Oliveira, há um tom fantasmagórico naquela cena sobre um navio encalhado e o casco enferrujado, argumentação que discordo, uma vez que a referência do espaço não se torna clara para o observador que acessa o vídeo. Para o expectador, o casco enferrujado se confunde com o marrom da terra escura, não assegurando a referência espacial onde aquele corpo se balança. Os planos são bem fechados na ação. De cenário, vê-se apenas o mar, o chão (casco que se confunde com a 67 terra), e rápidos lances de outra estrutura de ferro comida pela maresia (o que é comum próximo ao mar). No plano mais aberto, vê-se ainda uma rala e rasteira vegetação que nasceu sobre o casco úmido e enferrujado, reforçando a idéia de que aquele chão é terra e não ferro. Oliveira afirma: “Há outra construção com a paisagem, que passa não pela tensão, mas por uma melancolia impregnada pela ferrugem da velha proa. Um corpo que se movimenta como uma antiga sobrevivente de um naufrágio, ou ainda, como um fantasma. Saímos da pele branca para o pano branco. As dobras do pano movimentadas pelo vento trazem uma paisagem no limite da aparição, da visão, do assombro.” (OLIVEIRA, 2010, p. 39). Na exposição, eles não ganharam projeções exclusivas, talvez justamente para diluir esta explosão do belo por outros espaços. Tempo de Paisagem aparece numa televisão de plasma de alta resolução, no mesmo ambiente de Para ver amarelo, outro trabalho que falaremos em seguida, que, ao lado de Casulo, não consiste em vídeoinstalação. E Vigília aparece sob o mesmo suporte de tela plana em alta resolução num dos corredores do Sobrado, ao lado de Tudo que Sustenta e Vertigem, todos do mesmo tamanho. O discernimento para a apresentação de Vigília, Tudo que Sustenta e Vertigem no corredor do Sobrado, em seqüência, em TVs de médio porte e em alta resolução, veio a partir da reflexão da artista em torno das ações únicas e cíclicas que envolvem as três obras . Ela explica: “Acho que os três apresentados juntos ficam bons nesse formato, o Vertigem, o Tudo que Sustenta e o Vigília. Todas criam ações cíclicas. Para mim a ação lá do Sala de Jejum, por exemplo, é acender os lampiões, abrir a janela e sair. Existe uma começo meio e fim, tem momentos de ação. Já o Vertigem é só o balanço, o Tudo que Sustenta é o movimento de eu me molhando. Por mais que o balanço do Vigília seja mais contido, é também uma ação única de estar ali sentada, se balançando com o pé. É um balanço bem tímido, mas não tem um desdobramento.” (ENTREVISTA PARTICULAR 5/2011). 2.7 Emoções e sentimentos: a chave do conhecimento O espaço comum ao observador e à obra, o espaço das mediações, que não necessariamente refere-se ao espaço físico, mas ao espaço perceptivo de conexão, 68 saltam à pele, se processam no corpo, quando colocados frente a frente. Emoções e sentimentos são elementos fundamentais para a experiência artística, principalmente quando colocamos em evidência a produção de conhecimento por meio da presença e do contato com o outro. Façamos um retrospecto teórico sobre o assunto. Falar das manifestações de emoções e sentimentos no corpo humano implica ainda lidarmos com o fantasma do racionalismo exacerbado como único meio válido para o conhecimento que herdamos do Iluminismo no século XVIII e ainda se arrasta até os dias atuais. Denominado o século das luzes, foi nessa época em que se consolidou, de fato, a idéia de que somente à luz da razão o homem poderia chegar ao verdadeiro conhecimento científico. Com a discussão entre as idéias empiristas e racionalistas, constituiu-se um novo pensamento filosófico no século XVIII, que reverberou em todos os âmbitos da sociedade e até hoje sentimos os seus efeitos. René Descartes foi um desses pensadores que até hoje é citado pela suas contribuições no campo da razão em contraponto com seu contemporâneo Francis Bacon. Juntos acabaram reproduzindo, de algum modo, os embates de Platão versus Aristóteles. “Aristotle believed that ideas are acquired from experience. Plato, on the other hand, believed that ideas are innate and need only to be dug out from the sometimes hidden nooks and cranies of the mind” (STERNBEG, 1999, p. 56).22 Estes dualismos só levaram o pesquisador Sternberg a acreditar que “the most plausible solution is that a synthesis of both experience and innate ability contribute to many aspects of cognition and other psychological constructs” (STERNBERG, 1999, p. 56)23. Como admitir que as emoções constituam o sujeito e integrem o mesmo processo cognitivo que a razão? Embora atualmente o tema já esteja bastante discutido, o pensamento dominante ainda é aquele que submete as emoções ao domínio da razão, como se, biologicamente, eles acontecessem em processos distintos. O fato é que o homem conhece bem menos os processos biológicos no que diz respeito às emoções e aos sentimentos, e é por isso que, ainda hoje, eles são subjugados ao domínio da razão. Porém, pesquisadores mais recentes da psicologia e dos estudos cognitivos como António Damásio, Mark Johnson, Sternberg, Muniz Sodré tentam, aos poucos, desconstruir essa máxima tão engessada no corpo social. “Alma e corpo são a mesma 22 Tradução: Aristóteles acreditava que as idéias eram adquiridas com a experiência. Platão, por outro lado, acreditava que as idéias eram inatas e precisam apenas serem escavadas de recantos escondidos da mente. 23 Tradução: A solução mais plausível é que uma síntese da experiência e uma habilidade inata contribuam para muitos aspectos da cognição e outros construtos psicológicos. 69 coisa, apenas manifestada de formas diferentes, tendo a corporeidade relevância e precedência, uma vez que a alma é a sua idéia ou a sua representação” (SODRÉ, 2006, pag. 23). Inspiram-se, em muitos casos, em Spinoza, filósofo precursor do pensamento iluminista, que acreditava que a mente humana era a idéia do corpo humano, já no século XVII. Mesmo que Francis Bacon e John Locke, por exemplo, tenham, ainda no século XVII, sido partidários do empirismo, sustentando a experiência sensível como algo que estava na origem do pensamento, esta compreensão foi suprimida pela hegemonia racionalista da época. Eles acreditavam que não era possível o aparecimento de nenhuma idéia no campo do pensamento sem que antes houvesse surgido no campo dos sentidos. À luz de Damásio, admite-se que a emoção funciona como reguladora do conhecimento. “Independentemente do mecanismo pelo qual as emoções são induzidas, o corpo é palco principal das emoções, seja diretamente, seja por intermédio de sua representação em estruturas sômato-sensitivas do cérebro” (DAMÁSIO, 2000, p. 363). Não existe processo de conhecimento sem emoção. E, mais uma vez, tudo isso se dá no corpo. “O fato inescapável e notável no que concerne esses três fenômenos – emoção, sentimento, e consciência – é sua relação com o corpo.” (DAMÁSIO, 2000, p. 359). Mark Johnson se baseia nos estudos do pesquisador para desenvolver seu trabalho e partilha de seu entendimento de emoção e sentimento. As ciências cognitivas passaram por grandes transformações depois dos estudos desses pesquisadores. Para Johnson, a dupla António Damásio e Josef Le Doux tem grande contribuição nessa reestruturação. Quanto à Damásio, o autor afirma: “I am attracted by his philosophical turn of mind, as he grapples with problems of how emotion and feeling shape the nature of mind, thought, consciousness, and communication.24 (JOHNSON, 2007, pag. 55). Johnson costurou a comunicação com os processos de transformação do conhecimento que ocorrem na mente, incluindo emoções e sentimentos que se manifestam no corpo. O autor interliga as ciências cognitivas e os processos de comunicação de tal maneira que nos permite conectá-lo à teoria corpomídia com prudência. Suas análises trouxeram grandes contribuições para a compreensão da construção do conhecimento a partir da experiência na arte. 24 Tradução: Eu me sinto atraído pela mudança de direção da filosofia da mente deles, como eles se agarram com os problemas de como as emoções e os sentimentos formam a natureza da mente, do pensamento, da percepção e da comunicação. 70 Os sentimentos e as emoções são sistemas que integram a grande rede biológica do corpo humano junto aos outros sistemas como o imunológico, o metabólico, o reflexo motor etc. Esta rede composta por diferentes níveis de relações dentro do corpo são essenciais para a construção dos nossos significantes e das atividades que sustentam a vida. Sem esta rede, nossa existência se encontraria ameaçada e nós não teríamos a possibilidade de intensificar a qualidade de nossas experiências. Esta compreensão fez Johnson concluir: “What is meaningful to us, and how it is meaningful, depends fundamentally on our ongoing of our bodily states as we experience and act within our world”25 (JOHNSON, 2007, pag.57). Aqui, podemos fazer a leitura sobre a experiência particular de cada sujeito que se submete a Sala de Jejum, considerando suas particularidades. O conjunto de informações que habita cada corpo visitante e a experiência individual soma-se aos estados emocionais e sentimentais que cada um se encontra no momento da troca, do diálogo, da contemplação, da ação do corpo sobre si. A emoção é da ordem do sensório, é o instantâneo, aquele que responde de imediato a situação. A emoção precede o sentimento que se caracteriza por ser mais residual, ter uma duração maior e não necessariamente apresenta-se sob a manifestação de alguma emoção. Dizemos que o sentimento perpassa pelos sentidos, ou seja, pode iniciar numa emoção, e continuar agindo sobre o corpo. “(...) o sentimento é também conotado como durável, embora mais atenuado, enquanto a emoção é aguda e efêmera.” (SODRÉ, 2006, p.37). Culturalmente, este entendimento de que a emoção faz parte também do processo de conhecimento é rechaçado pela sociedade. A emoção é tida como uma “verdadeira expressão do sentimento” quando, muitas vezes, ela é apenas uma manifestação pontual que irá se transformar ainda em um sentimento que pode ou não corresponder àquela emoção primeira. Isso é um grande impasse para os estudos cognitivos na atualidade. Sodré complementa: “A emoção não expressa assim, a independência de um afeto, porque surge sempre acompanhada de pensamento e representação. Ou seja, há um pensamento por trás dela, logo, uma separação entre sujeito e objeto, entre o um e o outro, e o afeto surge da fantasia ou da imagem idealizada que a subjetividade (o mental) forma de algo colocado no 25 O que é significativo para nós e como isto é significativo, depende fundamentalmente do monitoramento de nosso processo de estados do corpo como nossas experiências e ações dentro do mundo. 71 mundo externo. A emoção é o afeto pelo mundo próprio, que pertence por sua vez ao ego e a idéia” (SODRÉ, 2006, p.44). Toda manifestação que se dá no corpo se insere no contexto processual do conhecimento. Não se podem separar transformações que ocorrem dentro de um mesmo processo. Razão e emoção caminham juntas e são co-dependentes. A dimensão afetiva na razão e no pensamento não se organiza como uma estrutura. Ela é mais conteúdo sensível do que forma organizada. “Há uma co-dependência entre perceber uma forma representacional e a concepção de uma situação. Isto envolve categorias perceptuais, significados semânticos e um contexto, tudo isso co-construído” (GREINER, 2005, p.113). Sala de Jejum apresenta-se para o observador como uma explosão de conteúdo sensível. A dimensão afetiva da obra perpassa sentimentos e emoções que não se estruturam em forma organizada, nem tampouco de maneira seqüenciada e repetida. A exposição contou com uma forma de apresentação e produção pensada e trabalhada pela artista e sua equipe. Porém, os espaços de mediações que surgem a partir do diálogo entre obra e o público se multiplicam a cada minuto. Principalmente quando se trabalha com o universo imagético, as variações se dão desde as particularidades de cada observador até o estado relacional que cada corpo estabelece com o mundo no momento do encontro. Gubern escreve: “(...) la imagen es una abstración, una categoria perceptual y cognitiva, mientras que las imágenes icônicas son textos, manifestaciones singulares en forma de diferentes modalidades técnicas derivadas daquele modelo26 (...) Los textos particulares los que lo entronizan como supermodelo textual, de caráter preceptivo. O si se quiere, que lo universal nace de la destilación de los casos particulares. Al fin y Al cabo, no hay lengua sin habla, ni tampouco habla sin lengua.” (GUBERN, 1996, p. 126 e 127).27 Existe uma dimensão não explícita, silenciosa, por onde o conhecimento se dá. Este tipo de conhecimento chama-se tácito. Certamente, é esta a dimensão com que se constrói a cultura, aquela que recorre ao campo sensório, através de emoções e 26 O autor faz uma comparação que me cabe esclarecer entre „la imagen‟, referindo-se ao sistema icônico e „las imagenes‟, referindo-se às diversas representações materiais e relaciona as duas dentro do modelo dicotômico de Saussure, entre a língua e a fala. 27 Tradução: A imagem é uma abstração, uma categorial perceptual e cognitiva, enquanto que as imagens icônicas são textos, manifestações singulares em forma de diferentes modalidades técnicas derivadas daquele modelo. Pois são os textos particulares que o consagram como um supermodelo textual, de caráter prescritivo. Ou melhor, o universal vem a partir da destilação dos casos particulares. Enfim, não há língua sem fala, nem tampouco fala sem língua. 72 sentimentos. Sodré, em sua produção sobre afeto, mídia e política, afirma: “(...) a cultura passa a definir-se mais por signos de envolvimento sensorial do que pelo apelo ao racionalismo da representação tradicional, que privilegia a linearidade da escrita.” (SODRÉ, 2006, pag. 19). As habilidades humanas de avaliação e de julgamento, por exemplo, passam, impreterivelmente, pelo processo emocional. E o universo icônico e imagético vai de encontro justamente com estas representações tradicionais ditadas pelo racionalismo. Sodré atribui este racionalismo exacerbado à hegemonia da linguagem escrita fincada no iluminismo. O poder da palavra impera sobre outras formas de expressão e de linguagem, por isso é tão difícil para a ciência aceitar a dimensão tácita do conhecimento. Porém, “uma parte ponderável do pensamento contemporâneo é atravessada pela intuição de que a dimensão dos afetos pode escapar da apregoada onipotência da razão metafísica” (SODRÉ, 2006, pag. 24). Ainda de acordo com Sodré, pode-se falar de uma inteligência emocional: “(...) uma inteligência baseada não apenas na racionalidade cognitiva, mas também naquilo que se dá a conhecer como afetos e que constituiria um elo essencial entre corpo e a consciência. Trata-se, assim, tanto da emoção enquanto percepção direta dos estados corporais quanto do emocionalismo, ou campo próprio do amor, da raiva, da alegria, da tristeza, das diversas paixões.” (SODRÉ, 2006, pag. 31). Aos olhos de Johnson, é importante acompanhar como o estudo da neurociência cognitiva se transformou ao longo da história e como se chegou a idéia de que é exatamente nas emoções que se encontra a chave para o conhecimento humano. “What I find especially important in this research is the way it shows how emotion and feeling are the means by which we are most primordially in touch with our world, are able to make sense of it, and are able to function within it.”28 (JOHNSON, 2007, pag. 54). À medida que estas reflexões guiam minha análise, entendo o ato de submeter-se a experiências que ativam nosso sistema perceptivo da seguinte forma: a ação prevê o acionamento de processos que recorrem às emoções e sentimentos na elaboração do conhecimento através da vivência artística. O encontro diário entre o corpo e o mundo está em constante construção e é papel da arte manter o sujeito dentro dessa máquina 28 Tradução: O que eu encontro de mais importante nesta pesquisa é a maneira de mostrar como as emoções e os sentimentos são um método para nós, primordialmente, entrarmos em contato com o mundo, podendo elaborar o senso das coisas e capaz de entender as suas funções. 73 em funcionamento. O combustível vital para este processo está justamente nas emoções e sentimentos. 2.8 Travessia de superfícies Como já foi dito no início deste trabalho, a artista Milena Travassos tem uma pesquisa longa em torno das transparências e do material de vidro. Dentro da exposição Sala de Jejum, ela apresenta dois trabalhos que não são vídeos-instalação. Casulo e Para ver amarelo são trabalhos que dão continuidade à exploração destes materiais, desenvolvendo sua pesquisa e, a partir das imagens fotográficas impressas em vidro, trazem outra dimensão para as imagens-movimento vistas nas vídeos-instalação de Sala de Jejum. Embora aqui as imagens não se apresentem em movimento, elas chegam aos olhos do observador através de lâminas de vidro superpostas, dando a idéia de profundidade. Em Casulo, por exemplo, a imagem de um corpo nu, sentado ao chão, encolhido sobre um piso de madeira corrida (dando a impressão que é o mesmo piso sob o qual o observador está no momento em que observa o trabalho) aparece sob formas difusas e superpostas. A impressão da imagem sobre três peças de vidro apresentam-se montadas uma sobre as outras com uma diferença de superposição suficiente para trazer a idéia de um corpo em camadas. As imagens impressas também não são exatamente as mesmas. Pequenas modificações na forma do corpo se diferenciam. Sombras e reflexos são elementos que aparecem na obra. A visão, mais uma vez, é aguçada, sob alguns elementos comuns em relação a outros trabalhos da mesma exposição. A percepção confusa da imagem não deixa a visão identificar com clareza o que vê, uma vez que suas fronteiras estão borradas, devido à superposição dos vidros. O sentido da visão é ludibriado, dando a idéia de uma profundidade imagética. “Uma espécie de tridimensionalização por acumulação de planos visuais, onde as placas de vidro superpostas criam uma percepção difusa da planaridade da imagem” (TRAVASSOS, 2009, p.7). 74 Casulo Tanto em Para Ver Amarelo como em Casulo, ambos evocam um elemento externo, porém, tão importante quanto cada placa de vidro: a iluminação. Por serem impressas em superfícies transparentes, as imagens ganham forma à medida que são lançadas sobre elas determinada iluminação. No dicionário Michaelis, temos o seguinte conceito para a palavra translúcido: “1- Diz-se do corpo que deixa passar a luz, mas através do qual não se vêem os objetos com nitidez; diáfano. 2- Transparente. 3- Que não oferece qualquer dúvida; evidente, claríssimo. Antôn (acepções 1 e 2): opaco.” (MICHAELLIS, 2009). O vidro onde as imagens foram impressas é translúcido, ele deixa a luz passar. Isso faz com que os objetos cheguem ao observador de forma embaçada. A falta de nitidez proporciona uma percepção difusa daquela terceira imagem que se forma na junção das placas de vidro. A composição se dá de maneira borrada. Citando a artista, um corpo sutil surge daí. Outro ponto recorrente já tratado quando analisado O Banho e Sala de Jejum é a questão do espaço cena e o espaço ação. É notória a associação entre o piso que o observador caminha na sala e aquele expresso nas imagens. Diante dos olhos do observador, o piso das imagens ora se apresenta sob uma coloração forte, ora suave, chegando, por vezes, a se camuflar com o piso real da sala, uma vez que as placas estão 75 encostadas na parede, em pé, sobre a madeira corrida do chão. Uma superfície se liga a outra, num olhar contínuo que só não deixa o chão real confundir-se ao chão imagem, por estarem dispostos em direções transversais e não contínua29. Em Para Ver Amarelo a idéia da superposição de imagens aparece novamente, porém o corpo não é mais o elemento central da superposição. A paisagem formada – incluindo o corpo com um dos elementos dessa paisagem – a partir da superposição das placas é o principal elemento na composição deste trabalho. Sob os mesmos princípios utilizados em Casulo, Para Ver Amarelo traz impresso imagens estáticas, fisgadas daquelas captadas em movimento para a vídeo-instalação Tempo de Paisagem (tanto que ambos os trabalhos são expostos na mesma sala). Impressa na placa, tem-se fotografias de partes da folhagem de um Ipê amarelo. Em outra, vê-se o tronco carregando o corpo feminino vestido de branco com o cabelo esvoaçante. Numa terceira, galhos retorcidos com a folhagem verde. Este trabalho forma uma extensa composição, na horizontal, onde partes da árvore aparecem superpostas justamente no jogo de luz da superfície translúcida. As superposições formam uma grande imagem labirinto entre folhas e galhos da árvore em um formato estático e retangular. No meio das folhagens e dos troncos superpostos, o corpo feminino deitado aparece, compondo a paisagem em superfície transparente. Para Ver Amarelo 29 A foto grande que apresenta Casulo não foi tirada no espaço de exposição analisado, Sobrado José Lourenço, pois, como se vê, o chão não é de madeira corrida. A foto pequena, na página anterior, representa o espaço de exposição de Sala de jejum. 76 As imagens formadas nas superfícies transparentes enriquecem a estética da exposição, além de dar continuidade à pesquisa desenvolvida pela artista. Nos vídeos, a água também funciona como um desses elementos de transparência. Casulo e Para Ver Amarelo dialogam com as vídeos-instalação à medida que paisagem, corpo e imagem estão no cerne dos trabalhos. O jogo de imagens superpostas, por vezes, engana a visão do observador quando se borram as fronteiras. Este jogo com os sentidos também aparece ao longo de toda a exposição. Quando a imersão proposta em Apnéa e Náiades, por exemplo, aparece, ela confunde os sentidos também, através de mecanismos distintos. Em nível gradual, os trabalhos que utilizam os recursos tecnológicos acabam sendo mais competentes nesta tarefa de dissolver o observador na obra através dos sentidos. Isto assim se caracteriza pela inclusão crescente do ciberespaço no cotidiano das pessoas e da maneira como os indivíduos tem se relacionado com o ambiente virtual. Gubern o define: “El ciberespaço es, en efecto, un paradójico lugar y un espacio sin extensión, un espacio figurativo inmaterial, un espacio mental iconizado esterescopicamente, que permite el efecto de penetración ilusoria em un território infográfico para vivir dentro de una imagen, sin tener la impresión de que se está dentro de tal imagen, y viajar así en la imovilidad.”30 (GUBERN, 1996, p.166). A partir desta definição, entende-se como se dá a experiência imersiva no ambiente imagético. No espaço artístico, este ambiente por onde se navega tem sido bastante utilizado como recurso. Sala de Jejum recorre ao ciberespaço para conduzir o observador no labirinto da obra, pelos corredores do casarão. A terminologia “navegar”, comumente utilizada para referir-se à maneira de deslocamento no ambiente virtual remete ao ambiente fluido encontrado em Sala de Jejum. Gubern, ao discorrer sobre o tema, refere-se ao espaço onírico encaixando-o como uma luva no espaço explorado pela artista visual na obra analisada. “Por el ciberespaço si „navega‟ – no se camina – para expresar con este verbo la fluidez del entorno, que tiene también algo de espacio onírico, pues permite atravesar ilusoriamente puertas y paredes.”31 (GUBERN, 1996, p.168). 30 Tradução: O ciberespaço é, de fato, um lugar paradoxo e um espaço sem extensão, um espaço figurativo imaterial, um espaço mental iconizado estereoscopicamente, que permite o efeito de penetração ilusória em um território infográfico para viver dentro de uma imagem, sem ter a impressão de que se está dentro de tal imagem e viajara assim na imobilidade. 31 Tradução: Pelo ciberespaço se navega – não se caminha – para expressar com este verbo a fluidez do entorno, que tem também algo de espaço onírico, pois permite atravessar ilusoriamente portas e paredes. 77 Em Sonata, um movimento semelhante acontece. Dispostos na vertical, três grandes projeções são organizadas lado a lado, como grandes portais. A palavra sonata, segundo o dicionário da língua portuguesa Michaellis, possui dois significados. “So.na.ta1 sf 1- Mús. Peça musical para um ou dois instrumentos, divergindo as partes dela em caráter e andamento. 2 - poét. Concerto ou conjunto de melodias agradáveis ao ouvido. So.na.ta2 sf (de sono) pop 1- O mesmo que soneca. 2- O mesmo que sonolência.” (MICHAELLIS, 2009). O trabalho recorre tanto ao sentido da audição – dialogando com a melodia agradável do conceito um, descrito no parágrafo anterior – como ao estado de sonolência que também é evocado no ato da contemplação, da imersão na peça – como se descreve no conceito dois. Neste sentido, a capacidade imersiva da obra caminha na mesma direção que em Apnéia, uma vez que as dimensões das imagens são da mesma proporção, diferindo apenas que, em Sonata, o espaço da parede não é preenchido apenas com uma única vídeo-instalação. O fato de serem três projeções incita o observador a vagar o olhar entre cada „portal‟, assumindo a existência de três realidades distintas. Discorrer sobre os significados que dão nome aos trabalhos é um exercício curioso para se construir analogias de semântica, embora saibamos que a construção real do conhecimento se dá no encontro entre a obra e o observador, na experiência, independente dessas analogias. Elas, de maneira nenhuma, são determinantes para a conceituação da obra. A relação que o indivíduo estabelece no momento do encontro é que se consumará. Prender-se a conceitos ainda permeia a lógica da supervalorização da palavra, criticada já neste trabalho. No universo das imagens, estas associações nem sempre se dão de forma clara entre os significantes e os significados das obras, causando confusão ao observador. Gubern já dizia: “Paradigma de la imagen-laberinto, las imagenes simbólicas proponen significantes cuyo significado, no es, en aquel contexto, el común y obvio, de modo que engañan a la mirada y a la inteligência del observador, presentandole cosas que no significan aquello que aparentan significar.”32 (GUBERN, 1996, p.89). Este jogo de ilusão que se dá no âmbito das imagens acaba sendo um elemento de fácil exploração por diferentes setores. No universo artístico, ele só enriquece as 32 Tradução: Paradigma da imagem-labirinto, as imagens simbólicas propõem significantes cujo significado não é, naquele contexto, o comum e o óbvio, de modo que enganam o olhar e a inteligência do observador, apresentando coisas que não significam aquilo que aparentam significar. 78 possibilidades, amplia os canais criativos e diversifica as formas de elaboração do conhecimento tácito. Em Sonata, são três vídeos que compõem uma única vídeo-instalação. Neles são utilizados os mesmos elementos de Apnéia. São eles garrafas de vidros, materiais orgânicos (como plantas, flores e galhos) e o corpo-artista. No primeiro, uma câmera do alto enquadra a superfície aquosa de um poço (o mesmo utilizado em Vertigem), um corpo vestido de lilás boiando, estático sobre a água. Leves movimentos são feitos, quase que imperceptíveis. No mesmo plano, uma bacia de alumínio (a mesma de O Banho e Tudo que Sustenta) cheia de pétalas de rosas reúne parte do material orgânico que se vê, o tempo todo, solto, boiando na superfície e debaixo d´água. Ora o plano vêse do alto, com a câmera externa, ora vê-se do lado oposto, de dentro do poço. Neste enquadramento, a imagem torna-se bicolor. O verde da água turva preenche a tela e aparece no centro, o contorno sombreado do corpo que bóia na superfície. Aqui, a câmera está submersa, o enquadre é de dentro para fora. Há uma alternância lenta dos enquadramentos. No segundo vídeo e no terceiro, uma câmera próxima prioriza os detalhes e recorta partes do corpo da artista dado o enquadramento. O corpo aparece submerso entre os frascos de vidro e pétalas, no segundo; flores e elementos orgânicos, no terceiro. O jogo entre o dentro e o fora persiste. Ora a câmera emerge, ora submerge. Nas duas últimas, o passar pela fronteira entre o submerso e o ambiente externo dá-se de forma muito sutil, com uma fundição de imagens ou mesmo com o enquadramento duplo, fora e dentro, simultaneamente. Diferente do primeiro, onde prevalece a câmera parada fora, de cima para baixo e, depois de um corte brusco, vê-se de dentro, de baixo para cima. Aqui a câmera realiza movimentos lentos e leves, na horizontal, sem alterar a perspectiva de profundidade. 79 Sonata O encontro do observador com os três trabalhos simultaneamente formando um único, no caso, a vídeo-instalação Sonata, desperta uma atenção difusa, sem deixar perder seu caráter uníssono. Embora as imagens apareçam fragmentadas, quando postas uma ao lado da outra, formam uma paisagem única, que se modifica lentamente, formando diferentes composições. A atenção nos detalhes e o lento movimento das imagens vão de encontro à velocidade característica do cotidiano midiático. O observador vê-se, mais uma vez, convidado a desacelerar e a contemplar cada nova formação paisagística que se dá no jogo dos três vídeos. Gubern contribui: “La imagen-escena habla el mismo lenguaje que los sueños y de ahí deriva su capacidad paradójica, su turbador ilusionismo, su eficácia para la comunicación emocional, su sugestión libidinal y sus enormes potencialidades para el engaño y la confusión.”33 (GUBERN, 1996, p. 49). Dentro deste universo, a confusão pode ser fruto, justamente, desta imersão. O estranhamento é uma característica recorrente em alguns trabalhos de Sala de Jejum. Este estranhamento vem à tona, muitas vezes, para incomodar. Ele deve sim ser questionado – mas não decifrado, pois é a partir destas inquietações que os elementos se reorganizam para sair de suas crises e reformular os sistemas. E nas experiências artísticas imersivas esta conexão entre os elementos subjetivos do observador e a obra se dão de forma profunda. 33 A imagem cena fala da mesma linguagem que os sonhos e daí deriva a sua capacidade paradoxal, seu desorganizador ilusionista, sua eficácia para a comunicação emocional, sua sugestão libidinal, e suas enormes potencialidades para o engano e a confusão. 80 Quando o observador cruza com A um Passante, exposta no meio do corredor do casarão, ele depara-se com o ato de caminhar – ação base do trabalho –, enquanto anda pelo corredor onde a televisão de plasma está pendurada, na vertical. Entre uma sala e outra, duas pernas caminham imersas num meio aquoso até os quadris. Um ambiente com elementos orgânicos boiando, pernas em movimento e pés deslizantes. Um caminhar incessante, de onde não se vê a origem e tampouco o destino. Esta é a ação que se vê nas imagens movimento de A um Passante. O observador pára de andar pelos corredores do casarão, posiciona-se defronte a instalação e continua caminhando na obra, porém de maneira mais densa, lenta, com uma leve dificuldade de deslocamento, como ocorre em meios submersos. Mais uma vez percebe-se um jogo de metalinguagem. A um Passante convida a se perder nesta caminhada pelo labirinto da exposição, no tempo de quem caminha debaixo d´água. A ação evoca o passageiro. Tudo passa. Os trabalhos pedem uma atenção profunda, que paralisa e anestesia o corpo, conduzindo o observador a um mover-se pausadamente ou mesmo a uma inércia paralisante. Considerando a experiência particular que as imagens proporcionam aos sujeitos que se submetem a elas, despertando percepções singulares em cada um, compartilho da conclusão de Gubern sobre a iconosfera: “(...) hablamos de modos de mirar, de modos de ver y de modos de leer las imagenes. Existe uma visión activa y otra pasiva, del mismo modo que existe una mirada consciente y outra distraída. (...) Al fin y al cabo la iconosfera es un entorno óptico que solo puede ser activado por la mirada humana”34 (GUBERN, 1996, p. 136). Logo, o entorno ótico que emerge de Sala de Jejum é ativado à medida que diferentes olhares passam pelos corredores do Sobrado José Lourenço, despertando percepções distintas nos transeuntes que se perdem no labirinto de imagens. Outras formas e significações são atribuídas nesse processo de experimentação individual e coletiva da obra. Surgem encontros que ramificam o potencial criativo e perceptivo da obra, enriquecendo-a e modificando-a, a cada novo visitante que a experimenta. Eduardo Jorge Oliveira atribui à caminhada submersa de A uma Passante a força de reter a velocidade dos grandes centros urbanos. “(...) Pelo demorar-se e pelo título, evoca a condição de flâneur do poeta, que um dia escreveu o poema sobre a pressa. (...) 34 Tradução: Falamos de modos de olhar, modos de enxergar e modos de ler as imagens. Existe um olhar ativo e outro passivo, do mesmo modo que existe um olhar consciente e outro distraído. Afinal, a iconosfera é um entorno ótico que só pode ser ativado pelo olhar humano. 81 O caminhar é lento, e essa lentidão é o vídeo. Mais uma vez, insistir no gesto. Fazer da imagem uma condição de demora” (OLIVEIRA, 2011, p.40). A Um Passante E ao se aproximar do fim do capítulo de seu livro onde ele condensou a pesquisa sobre a artista, Oliveira conclui: “Milena Travassos reordena silenciosamente o que está posto em memória. Imagens mudas (mas não sem ruídos), que igualmente deixam o observador mudo, oscilando entre a angústia e o desejo. Nas transformações que Milena Travassos opera existe um desnudamenbto de todos esses fantasmas em torno do mito feminino, um fantasma que provoca curiosidade como imagem, mas que mesmo com sua aparente ausência de carne, com a brancura da pele e as dobras do tecido , seduz como uma sereia cujo o discurso pode ser apenas o som do mar vindo de seu ouvido” (OLIVEIRA, 2010, p. 49, 50). 82 2.9 Mídia e Imagem: manipulação e imersão Dentro do bombardeio imagético que assola as sociedades na atualidade, a artista Milena Travassos se questiona sobre como utilizar as imagens de maneira eficiente em um mundo que se encontra tão saturada delas. A ligação da artista com o universo cinematográfico é grande, assim como sua paixão pelas imagens em movimento. Por isso, a produção técnica e o conteúdo das imagens foram utilizados e amadurecidos dentro de suas reflexões teóricas na exposição Sala de Jejum. A mídia tem contribuído bastante para a disseminação das imagens na sociedade e para suscitar questionamentos em torno do uso delas. Vale enveredar pela discussão em torno do tema, uma vez que Sala de Jejum tem como base vídeos-instalação compostas de imagens em movimento com grande apelo imersivo. Tendo o corpo como um elemento munido de afetos, sentimentos e em constante transformação, nos cabe refletir sobre quais mecanismos de manipulação a mídia se apropria para estabelecer relação com o outro. Existe uma série de jogos de interesse, grupos que se beneficiam utilizando as mídias para apelos publicitários, por exemplo, tendo a imagem como principal elemento desse jogo de manipulação. Isto traz riscos à maneira como se constrói as relações dos homens com a imagem. “(...) es um proceso de abstración progressivo que tiende a volatilizar las relaciones humanas y los procesos de la vida cotidiana”35. (GUBERN, 1996, p. 165). Discorrendo sobre este tema Sodré marca sua crítica sobre formas de utilização dos afetos. Sabendo que estes são fundamentais na construção da cognição humana, a mídia recorre a eles para fazer pontes e estabelecer hierarquias, além de interferir no processo global da cultura. A inserção das mídias na formação do corpo social se deu de forma tão articulada e tentacular, depois do surgimento da televisão, que se discute o grau em que se tem hoje esta relação. Que nível de dependência pode-se atribuir e de que maneira estes laços se estabeleceram? “Se aceitarmos como vital a experiência da realidade criada pelos dispositivos técnicos e mercadológicos da comunicação, segue-se que seus efeitos de convencimento têm uma especificidade, não necessariamente afinada com a razoabilidade tradicional”. (SODRÉ, 2006, p.43). 35 Tradução: É um processo de abstração progressiva que tende a volatilizar as relações humanas e os processos da vida cotidiana. 83 A dimensão do afeto é colocada em outra esfera pela mídia, banalizando emoções e moldando o intelecto de acordo com os interesses sociais vigentes do capitalismo. “(...) Se esvanece a força imaginativa do afeto, perdendo-se a dimensão do Outro como diferença sensível e motivadora. De fato, na contemporaneidade, quando o mundo se faz imagem por efeito da razão tecnológica, a redescoberta pública (e publicitária) do afeto fazse sob a égide da emoção como um aspectos afetivo das operações mentais, assim como o pensamento é o seu aspecto intelectual” (SODRÉ, 2006, p.47). Na conjectura política onde “a trama do poder ocupa o psiquismo e o corpo dos indivíduos por meio do desejo” (SODRÉ, 2006, p.55), questiona-se sob quais princípios se formulam as relações sociais. A grande mídia exerce a função mediadora nesse processo, porém conduzida por núcleos de interesses que reforçam a “sociedade de controle36”, dissecada por Deleuze. Agora as relações não se dão mais na esfera disciplinar – entre patrão e operário – como anunciou Foucault. Os jogos de poder se apresentam de forma simbólica, muitas vezes aparecem camuflados, difíceis de serem identificados. Fronteiras sutis, tênues e perigosas. Redes mais difíceis de serem desconectadas. A mídia aparece como um forte dispositivo de fixação dos sujeitos, enquanto comunidade afetiva. Deste modo, “o trabalho (também sob forma de lazer), invade toda a vida como repressão fundamental, como controle, como ocupação permanente em lugares e tempos regulados, segundo um código onipresente” (SODRÉ apud BAUDRILLARD, 2006, p. 59). Um mecanismo simples de verificar a atuação da mídia nesse processo é perceber como ela recorre ao campo afetivo do humano através do riso ou das lágrimas de forma, muitas vezes, gratuitas. “A emoção está aí a serviço da produção de um novo tipo de identidade coletiva e de controle social, travestido na felicidade pré-fabricada.” (SODRÉ, 2006, p. 51). Fala-se, então, da onipresença das imagens. A opulência imagética reproduzida pelas mídias acaba criando determinadas realidades que funcionam como biombos, direcionando para um lado e ocultando o outro. 36 A Sociedade de Controle foi definida por Gilles Deleuze em 1990 num artigo chamado Post Scriptum – Sobre as Sociedades de Controle, quando ele decide comparar as novas formas de controle comparandoas com as Sociedades Disciplinares de Michael Foucault. O que reinaria agora não seria mais as estruturas de confinamento, responsáveis pela dinâmica coersiva das fábricas, mas a falsa liberdade dos discursos empresariais, monitorando o controle por mecanismos regido pelo dinheiro. “Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por fomação de disciplina por fixação de cotação, mais que por redução de custos, por transformação do produto mais que por especialização de produção” (DELEUZE, 1990, p.3) 84 “No pocas veces las imágenes tienden hoy a enmascarar las realidades ingratas de la vida social con el despliegue de su tranqüilizadora sonrisa institucionaly, como han hecho notar Jean Baudrillard y Paul Virilio analizando las nuevas tecnologias de la imagen, ele efecto de real tiende a suplantar la realidad inmediata. (...) De manera que la famosa „pantalización‟ de la sociedad, responsable de la densificación icônica es también responsable de su banalización icônica”.37 (GUBERN, 1996, p. 124). Apesar de a atmosfera afetiva gerada pela mídia dar espaço a um sentimento forte de comunidade, o caminho traçado pela horizontalidade e a precariedade das emoções tornam o processo cada vez mais distante da lucidez e da verticalidade sólida dos sentimentos. “É de fato o mercado, coadjuvado pela publicidade e pela mídia, que influi poderosamente na redefinição da subjetividade contemporânea, acentuando os elementos do imaginário e do desejo” (SODRÉ, 2006, p. 63). Ao realizar suas análises sobre os impactos visuais sofridos pela percepção humana quando surgem as telonas cinematográficas, Gubern discorre sobre características que, já tendo sido parte delas identificadas na televisão, também funcionam como mecanismo de manipulação acessando os afetos de maneira gratuita. Embora a preocupação artística ligada à produção cinematográfica seja superior à da produção televisiva, em ambas as linguagens identifica-se facilmente o mecanismo de ação. “Pero el encuadre que más contribuyó a diferenciar la estética del teatro de la del cine y a potenciar su expresividad dramática fue el primer plano, percepción visual que le está negada al espectador teatral y cuyo uso avanzaría explorando sus progresivas potencialidades semánticas (para hacer visible o legible um detalle demasiado pequeño de la acción o de decorado), dramáticas (sobre todo aplicado a escrutar la expresión del rostro humano) y, por fin, sinecdóquicas (o la parte por el todo)” (GUBERN, 1996, p. 115).38 A partir desta descrição, identificamos sob quais elementos o mundo imagético exerce o fascínio sobre os homens, mexendo na percepção humana. Assim, é 37 Tradução: Freqüentemente, as imagens tendem a mascarar as realidades ingratas da vida social e os desdobramentos de seu tranqüilizador sorriso institucional e, como tem feito notar Jean Baudrillard e Paul Virilio analisando as novas tecnologias da imagem, o efeito de real tende a suplantar a realidade imediata. (...) De maneira que a famosa espetacularização da sociedade, responsável pela densificação icônica é também responsável pela sua banalização. 38 Tradução: Mas o quadro que mais contribuiu para diferenciar a estética do teatro e a do cinema e a potencializar sua expressividade dramática foi o primeiro plano, a percepção visual que é negada ao público teatral e cujo uso seguiria explorando progressivamente o potencial semântico (para tornar visível ou legível um detalhe demasiado pequeno da ação ou do cenário), dramática (especialmente aplicado para controlar a expressão facial humana) e, finalmente, a sinédoque (ou parte de um todo). 85 possível trabalhar sobre estes mecanismos de forma a manipulá-los. Quando tratamos do assunto na esfera artística, temos o uso das imagens de acordo com a proposta do autor. Em Sala de Jejum, a contemplação hipnótica do belo, a imersão dos sentidos e a tênue fronteira entre o onírico e o real proposto nas imagens sugerem a relação estabelecida entre obra e observador. É por este viés que se dá a „manipulação‟. Sobre o assunto, Milena Travassos afirma: “Um dado que logo chama atenção é que nossa relação com a imagem, no dia a dia, está submetida ao apelo publicitário e submissa a literalização, também que esse encontro ocorre com um estado de atenção mínima, nosso olhar não se fixa em nada e nada se fixa em nós. Não nos permitimos manter o nosso olhar por muito tempo em algo, uma paisagem, alguém, um detalhe, uma imagem, tampouco nos permitimos sentir a atmosfera do que se passa em torno do que olhamos” (TRAVASSOS, 2009, p.9) A exposição é um exercício corporal e perceptivo que vai, justamente, na contramão desses estágios fugazes de atenção mínima que o mundo impõe aos cidadãos. Sala de Jejum pede predisposição e delicadeza; calma e paciência; dedicação e imersão. “Estamos submetido a um fluxo de sensações, mas estas não se fixam em nossas experiências.” (TRAVASSOS, 2009, p. 9). Tendo em vista esta análise da realidade diante dos fluxos de informações e bombardeios de imagens na sociedade atual é que Sala de Jejum se justifica e se firma quanto obra. A discussão a ser feita a partir deste panorama é a respeito das maneiras de trabalhar a arte tirando os afetos da esfera de manipulação das mídias com a missão de resgatá-los e explorar seu potencial de fulguração. De que forma este manuseio é possível? Quando pensamos o corpo como uma mídia de si temos uma sugestão de resposta para o questionamento dado. Um corpo que não hesita em doar-se ao saber que é através dele que a experiência se consumará, tendo os afetos como aliados nesse processo. 2.10 Arte como dispositivo A terminologia profanar, conceituada por Agamben, se aplica aos objetos no mundo frente a diferentes situações. Para exemplificar no âmbito artístico, tratarei antes do tema sob a metáfora benjaminiana. Inspirado em um dos fragmentos póstumos de Benjamin, Agambem compara o capitalismo com religião para metaforizar as relações de poder e o ato de profanar. “Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia 86 sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente improfanável” (AGAMBEN, 2007, p.71). Esta afirmação tem a ver com a capacidade de reestruturação rápida do sistema quando este se encontra em alguma situação de ameaça. Ou seja, o caráter improfanável da religião capitalista está na impossibilidade de enfrentamento, já que tudo é absorvido e integrado. Em outras palavras: a capacidade do sistema em sanar a própria entropia e regenerar-se sem perder o tipo de relação de poder antes já estabelecida é tamanha que mina-se qualquer chance utópica de harmonia entre os sistemas. Aqui se inclui este como mais um elemento de alta complexidade. O capitalismo possui uma flexibilidade incrível de se reestruturar diante das crises, além de incorporar ao sistema todo e qualquer manifesto subversivo que já se tenha surgido ao longo de seu regime. Na obra O Estado de Exceção, Agamben retrata isso demonstrando como se configura as relações de poder numa situação política de estado de exceção. É clara a estrutura vertical e hierarquizada que o Estado continua mantendo diante dos cidadãos sob a chancela da “exceção”. Ele apazigua as massas com concessões que logo se tornam a regra, mantendo a situação de domínio. “Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode também ser definido pelo oxímoro êxtase-pertencimento” (AGAMBEN, 2004, p. 57). Através dessa leitura, do “estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer” também podemos fazer uma ponte com o paradoxo atual do universo artístico. Muitas vezes, a arte é utilizada como dispositivo, perdendo seu caráter profanador. Ela aparece, tem o espaço, porém num lugar totalmente pré-determinado pelo sistema. Ela é mais um elemento de manipulação e adestramento que se aplica sobre as massas. Os experimentos de jogos com as novas tecnologias, por exemplo, estão dando uma falsa sensação de liberdade aos usuários que, levados pelo entretenimento, imergem num universo da apatia, de grande ilusão de controle proporcionada pela realidade virtual. Gubern afirma: “(...) el programa es percibido como una extensión orgánica de su conciencia. Esta impresión de ser libre dentro de uma estrutura impuesta por outro, 87 dentro de un laberinto emocionante, constituye uno de los estímulos mayores de los videojuegos.” 39(GUBERN, 1996, p. 153). Essa sentença nos faz olhar a realidade cultural atravessada por essas experiências tecnológicas e refletir sobre como a arte está se apropriando desses recursos. Assim, questiono: há ainda experiências artísticas profanadoras diante da cooptação dos mecanismos subversivos, principalmente com a mídia mediando em prol da manutenção do sistema e não da transformação? “Os dispositivos midiáticos têm como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem como meio puro, impedir que o meio abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra.” (AGAMBEN, 2007, p. 76). Nas palavras de Baudrillard, “Vivimos en um mundo en que la más alta función del símbolo es la de hacer desaparecer la realidad y la de enmascarar al mismo tiempo esta desaparición”.40 (BAUDRILLAD apud GUBERN, 1996, p.178). Neste sentido, a mídia neutraliza mecanismos e mascara a realidade, roubando a autonomia e a capacidade de profanação de vários espaços e linguagens. Os mecanismos de organização do sistema engendram um novo processo de adaptação daqueles elementos que surgiram, inicialmente, com caráter profanador. A mutabilidade e a capacidade de readequação para se manter a estrutura do sistema dificultam a restituição dos objetos ao uso livre do homem. Imaginar uma sociedade sem classes, por exemplo, é pensar sobre quais estratégias foram utilizadas para se conseguir tal fato. “Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda a memória das diferenças de classes, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros” (AGAMBEN, 2007, p. 75). Agamben diz que “é importante toda vez arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram” (AGAMBEN, 2007, p.79). Este é o desafio. Tentar desativar os dispositivos que nos cercam, inclusive aqueles que se apropriaram da arte – sem cair em armadilhas. 39 Tradução: O programa é percebido como uma extensão orgânica de sua consciência. Esta impressão de ser livre dentro de uma estrutura imposta por outro, dentro de um labirinto emocionante, constitui um dos maiores estímulos dos videogames. 40 Tradução: Vivemos em um mundo que a mais alta função do símbolo é a de fazer desaparecer a realidade e de mascarar ao mesmo tempo este desaparecimento. 88 Dentro deste contexto, questiono: em que medida Sala de Jejum tem a contribuir como uma experiência profanadora? Este método proposto pela artista e sua curadoria trabalham com mecanismos do universo conceitual da profanação? Refazendo usos do espaço, propondo outra lógica do tempo incitando a inércia, se utilizando dos sentidos para mexer nas sensações e nos afetos são elementos que se enquadram no ato de profanar. A experiência corporal imersiva pode sim proporcionar uma lógica de organização cognitiva totalmente distinta daquelas que o mundo oferece diariamente. A escolha de submeter-se pode – se assim deixarem envolver-se – reverberar em uma experiência única e singular, onde os frutos poderão ser colhidos na associação com novas informações que o sujeito possa a vir a entrar em contato no futuro. A percepção do conhecimento tácito não se dá no ato da experiência. Ele se apresenta em outra situação, onde o sujeito não mensura suas fronteiras, mas se for atento, identifica onde ele se manifesta. Através da arte, trabalhamos a cognição e a afetividade, assim, podemos ampliar nossa percepção e o campo sensório para o desenvolvimento do conhecimento tácito, sendo plausível recordarmos a análise de Benjamin em torno das transformações perceptivas coletivas da sociedade. “No interior de grandes períodos históricos, a forma da percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente” (BENJAMIN – Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.169). O mesmo dispositivo utilizado pela mídia para garantir a manutenção do sistema, o afeto, pode ser utilizado de maneira profanadora no universo da arte. Sodré partilha do pensamento de António Negri quando o cita: “(...) Apostando no afeto como uma potência de liberdade, Negri envereda por um projeto de resgate político da dimensão afetiva enquanto „sedimento ontológico‟ de lutas sociais enquanto potência de transformação expansiva, presumidamente capaz de revalorizar „o que é comum‟ em termos de singularidade e universalidade” (SODRÉ, 2006, p.62), casando muito bem com a conclusão de Milena Travassos no seu artigo sobre a obra: “Hoje, vendo a imagem submetida a esse fluxo total informacional que nos retira dessa zona de opacidade inventiva, cabe pensar as experiências visuais provocadas pelos dispositivos imagéticos como 89 espaços de resistência, um outro povoamento de sentido, uma outra temporalidade, uma experiência; é aqui que me coloco enquanto produtora de imagens. Como já refletira Deleuze41: fazer já é pensar, pensar é viver.” (TRAVASSOS, 2009, p.9). 41 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: editora 34, 1992, p.90 e 92. 90 3. Conexões filosóficas: caminhos e possibilidades da comunicação artística 3.1 Por uma autonomia coletiva Ao destrinchar os parâmetros sistêmicos fundamentais da Teoria Geral dos Sistemas admitem-se três, dispostos hierarquicamente: permanência, ambiente e autonomia. É partindo desta premissa teórica que irei compor um panorama social viável para a permanência e a convivência coletiva em sociedade, a fim de discutir as relações estabelecidas de autonomia e dominação, procurando localizar o papel da arte dentro deste processo. A permanência é o parâmetro primordial da existência de todas as coisas. Tudo tende a permanecer no mundo. Partindo da hipótese evolucionista do Big Bang, “a expansão do universo implica uma transformação termodinâmica, com dissipação de energia na forma da expansão e com produção de entropia. É como se o universo dimensionasse „canais‟ para que essa transformação seja viabilizada a partir do local para o global” (VIEIRA, 2008a, pag. 33). As condições de permanência de um sistema, inevitavelmente, estão ligadas ao surgimento de outros sistemas e as interações estabelecidas entre eles. Admitindo que os sistemas são abertos e encontram-se permanentemente em trocas, é através do ambiente que ele irá obter mais complexidade para garantir a sua permanência. Estas trocas agregam ao sistema a autonomia necessária sob o acúmulo de reservas. Nos sistemas humanos, a autonomia se manifesta sob a forma de estoque como a paciência, competência, tolerância, vontade etc. Estes atributos permitem, mesmo com o elevado teor de complexidade dos sistemas vivos, a permanência e a convivência em sociedade. A conquista de autonomia é o que proporciona aos sistemas vivos a dinâmica do maior sistema motor da cultura: o psicossocial. “A permanência está na aptidão do vivo para se organizar sempre em relação a algo ou alguém, na tentativa de manter vínculos de naturezas diversas (sonhos, afetos, ideias e assim por diante) e sobreviver”. (GREINER, 2005, p.82). Como foi citado anteriormente, Hutchins acredita que a experiência coletiva é o grande ativador do processo cognitivo. A compreensão da Teoria Geral dos Sistemas toma por base a compreensão co-evolutiva do mundo, atribuindo o equilíbrio entre os fatores biológicos e culturais do sistema à construção do universo. Este raciocínio nos leva a entender que os traços biológicos na evolução dos sistemas são radicalmente interceptados pelas transformações psicossociais desenvolvidas pela interação entre os vários sistemas de diferentes níveis de 91 complexidade no mundo. Não temos como sobrepor uma característica a outra na evolução natural dos sistemas vivos humanos. Evidentemente, temos casos específicos em espécies vivas – no caso, os animais irracionais – cuja complexidade é inferior a da espécie humana. Assim, o fator predominante na evolução daquele sistema é o biológico. Isso não nos impede de avaliar singularmente as diferentes manifestações na espécie humana, admitindo a forte influência de ambas as características. Sem dúvida, a construção da memória nos sistemas vivos humanos é um dos principais fatores que comprovam o aumento de complexidade do sistema. “É a partir da memória, aqui generalizada, que um sistema consegue conectar seu passado, na forma de uma história, com o presente transiente e com possíveis futuros.” (VIEIRA, 2008b, pag. 22). Essa constatação sobre a existência concreta da função memória estabelece o ser humano numa rede complexa de sistemas universais que nos leva a, cada vez mais, ficarmos atentos ao surgimento dos parâmetros psicossociais da evolução humana. De acordo com cada sociedade, temos hábitos específicos criados que relacionam esses parâmetros psicossociais de maneiras distintas. Greiner afirma que falar de hábito para Mauss refere-se à origem etimológica do latim habitus. “Isso porque seria sempre uma habilidade adquirida, que pedia uma investigação acerca da memória, das práticas coletivas, das ações individuais, e de como tudo isso estaria enredado nos processos cognitivos” (GREINER, 2005, p. 98). Sendo a memória uma propriedade sistêmica fundamental para a sobrevivência, vale nos atermos às formas como ela se manifesta nos indivíduos. “Como as categorias perceptivas não são imutáveis e se modificam sob o efeito de comportamentos do animal, a memória, vista por este ângulo, resulta de um processo de recategorização contínua. Por isso não pode ser explicada como um arquivo em computador e nem tampouco como „coisas dentro das gavetas de uma cômoda‟. Por sua própria natureza ela interfere através de procedimentos, em uma atividade motriz, contínua, caracterizada por tentativas repetidas em diversos contextos.” (GREINER, 2005, p. 41). Em um dos seus artigos, este publicado no II Congresso Arte e Ciência: Qualidade de Vida, em 1997, realizado na USP, Vieira discorre sobre o tema qualidade de vida e discute o sistema social, reproduzindo a constituição de Mario Bunge dotada de quatro subsistemas: biológico, cultural, econômico e político. O pesquisador afirma que o sistema o cultural é aquele fundamental, de maior importância, sendo este classificado como sistema hipercomplexo. Greiner, ao partilhar do pensamento do 92 etólogo Dominique Lestel, afirma que “o fenômeno cultural pode ser caracterizado como um fenômeno de individualização e de comportamento de complexidade progressiva, no qual a cultura humana constitui um caso particular” (GREINER, 2005, p.40). A partir dos estudos sobre o corpo desenvolvido pela pesquisadora, não faz mais sentido separar instâncias como o corpo biológico do corpo cultural. “O corpo anatômico e o corpo vivo atuando no mundo, tornaram-se inseparáveis.” (GREINER, 2005, p. 42). Venho por meio desta vertente teórica, mais uma vez, tentar expor as facetas da constituição cultural que a imbricam na realidade do sujeito no mundo sem possibilidade de separá-las. A cognição humana, inevitavelmente, atua no processo cultural ao mesmo tempo em que é afetada por ele. No ambiente das mediações, o corpo funciona como processador de informações que também age sobre a realidade e sofre com as modificações oriundas desta. A constituição do sujeito enquanto ser social nos impõe essa rede de fatores que predispõe a permanência do sistema no universo e nos remete a uma reflexão de cunho sócio-político quanto às conquistas humanas individuais e coletivas que garantem a tal permanência. A compreensão de autonomia somente como mecanismo de permanência não estaria reduzindo as capacidades desse sistema quanto ao alcance coletivo dos usos que são feitos dessas trocas de informação, energia e matéria com o ambiente? Faço tal questionamento tentando livrar-nos da compreensão errônea que o termo autonomia pode gerar como algo alcançado unicamente pelo indivíduo, excluindo a relevância do processo co-relacionado com o outro, também agente desta ação. A busca pela autonomia é um denso exercício das complexidades humanas no âmbito da vida social. As relações entre os variados sistemas seguem na direção da permanência, recorrendo a vários recursos do conhecimento universal para que isso ocorra da melhor forma. A arte, a filosofia e a ciência são formas de conhecimento que, quando trabalhadas em conjuntos numa sociedade, produzem autonomia suficiente para manter um sistema cultural ativo. Foquemo-nos no conhecimento artístico. Voltar-se aos sistemas que envolvem o conhecimento artístico é admitir “que os mistérios humanos são decifrados pela sensibilidade”. (SANTAELLA, 2004, p. 81). Breton afirma que de um universo cultural para outro, as pessoas decifram sensorialmente o mundo de maneira diferenciada. “Essa é a dimensão mais enraizada na intimidade do sujeito, a mais intocável, é aquela do claro-escuro, uma vez que drena o imenso campo sensório” (BRETON, 2007, P. 55). 93 Esta dimensão do conhecimento exige sensibilidade do sistema para que as trocas com o ambiente e com outros sistemas se estabeleçam, respeitando devidamente as soluções inesperadas e caóticas às quais os sistemas complexos estão sujeitos. Vieira atribui à sensibilidade uma das capacidades necessárias aos sistemas para permanecer no tempo. “Deve possuir sensibilidade no sentido de reagir adequadamente e ao tempo às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente. Essas cadeias de eventos, geradoras de processos, se manifestam para o sistema como sinais ou simplesmente fluxos de informações”. (VIEIRA, 2008b, pag. 21). Sendo assim, não teríamos em Sala de Jejum uma obra que contribui para esta sensibilização dos sistemas? O conhecimento artístico é uma maneira de experimentar outras formas de autonomia para a permanência dentro dos sistemas. Viver em sociedade pressupõe encarar as crises que esta vivência traz. A experiência artística pode funcionar tanto como catalisador de ruídos como apaziguador, uma vez que a busca pela autonomia coletiva faz parte de um processo complexo e instável. 3.2 Entropia viabilizando autonomia A coerência do sistema complexo mantém-se sempre no curto período até a próxima crise, sempre tão recorrentes. “Se um sistema cognitivo, potencialmente com certa complexidade, não encontra complexidade coerente em seu ambiente, torna-se ameaçado de extinção” (VIEIRA, 2008b, pag. 23). Quando a entropia desses sistemas encontra-se em nível elevado, a forma de recomposição organizacional pode se dar por intermédio de uma produção artística. Esses sistemas dialogam com um ambiente, muitas vezes, difícil de encontrar uma correspondência. A sensibilidade do sistema é tamanha que a Umwelt correspondente ao ambiente adequado é parte do universo de poucos. Mas são eles que, quando conseguem a conectividade, tocam e atingem altos níveis de complexidade do outro, que conhecimento científico ou filosófico nenhum atingiria. O conceito de Umwelt, termo desenvolvido pelo biólogo Uexküll, pressupõe uma discussão específica. A tradução da palavra Umwelt significa “mundo à volta”, “mundo entorno” ou “mundo particular”. Segundo Vieira, a Umwelt seria uma espécie de interface entre o sistema vivo e a realidade, funcionando como um filtro de informações, onde todo o material que o ser humano possui para construir o conhecimento é representacional. Greiner define: “uma propriedade que diz respeito ao modo como uma referida espécie constrói o seu mundo na relação com o ambiente onde 94 vive” (GREINER, 2005, p. 38). Esse conceito tornou-se a base biológica da teoria dos signos ou a semiótica, no sentido peirceano. “A internalização do fluxo de informações e sua conseqüente elaboração, um processo bastante íntimo à Umwelt, é que embasa o mecanismo de cognição (...) Tendo em vista que a Umwelt é a interface, a ponte, entre a realidade objetiva e o mundo representacional de um sistema cognitivo, vemos que o conceito não pode ser visto como puramente objetivo ou subjetivo. Ele é o domínio das mediações” (VIEIRA, 2008b, p. 80) Greiner complementa a idéia: “Tudo vai depender das mediações, sobretudo das mediações entre o corpo e o ambiente que são o momento estrutural da existência humana. (...) Trata-se de uma mediação entre o corpo e ambiente, entre o interior do corpo vivo e exterior” (GREINER, 2005, p. 40). Portanto, sobre o processo de conhecer através da arte, temos algumas das autonomias mais difíceis de serem elaboradas: a afetividade, sensibilidade e a emoção do indivíduo. Assim como todas as outras, estas formas de elaboração da autonomia são completamente dependentes do outro ser. “(...) Há uma ordem a partir do ruído que pode vir a manifestar-se como muito fértil” (VIEIRA, 2008b, pag. 34). O ambiente no qual o indivíduo identifica os canais perceptivos para a conexão com o outro se dá de forma categórica, ainda que estas categorias, algumas vezes, tenham fronteiras tênues. “Não há qualquer razão inefável ou qualquer essencialidade humana (a exemplo da razão cultuada pelo Iluminismo) por trás da sensibilidade, e sim contingências, que presidem a identificação dos indivíduos com outros dentro de circunstâncias históricas precisas, estimulando-lhes a potência de agir pela mobilização afetiva” (SODRÉ, 2006, p. 54). Os sistemas estão em constante busca de uma autonomia coletiva, a fim de sair de suas crises, aumentarem suas complexidades e se prepararem para novas formas de organização. “Acreditamos que esta última [qualidade de vida] vai depender, na sua efetivação, do natural exercício de capacidades emotivas e afetivas dos elementos humanos envolvidos” (VIEIRA, 2008b, pag. 24). Tudo isso está ligado ao conceito de conhecimento tácito, desenvolvido pelo pesquisador Michael Pollanyi, já discutido aqui neste trabalho. Vieira discute sobre várias formas de conhecimento, dentre eles o conhecimento compreensivo, que se baseia na apreensão do psíquico através das múltiplas exteriorizações. “(...) passar de uma exteriorização do interno à sua vivência originária e isso seria o compreender: a 95 relação entre a exteriorização e o conjunto de atos que a produzem” (VIEIRA, 2008b, p. 52). Para refletirmos sobre a produção do conhecimento nas experiências artísticas, é indispensável recorrermos a estrutura do psiquismo do sujeito, a tríade: razão, sentimento e vontade, trabalhado dentro do conceito de mundividência, por Luís Washington Vita, em sua obra Introdução à Filosofia. Esse conceito se baseia no “conjunto de intuições que dominam não só as particularizações teóricas de um tipo humano ou cultural e condicionam toda a ciência, como também englobam, em particular, as formas normativas, fazendo da Mundividência uma norma para a ação” (VITA, 1964, p.20). Esta compreensão nos faz entender que o mundo é a junção de vários níveis mundividentes, que une os seus habitantes. Podemos falar de uma dimensão coletiva das Umwelten individuais. A mundividência é a Umwelten social. Esta vivência social nos traz um “„estar no mundo‟, em um conjunto de circunstâncias, o nosso modo de viver, a nossa „lei de vida‟. Sob esse ponto de vista, o ideal da ciência seria superar limitações mundividentes e elaborar uma imagem de mundo que não dependesse do indivíduo, o que difere do procedimento artístico, não compromissado com uma (única) realidade” (VIEIRA, 2008b, pag. 55). Esta definição nos faz pensar no exercício do conhecimento artístico como livre da responsabilidade de unificar uma forma de conhecimento dentro da mundividência. Pelo contrário, ele admite a multiplicidade de “bolhas” que se fundem e trabalha com a possibilidade do acaso, sem determinismos ou generalizações. Desta forma, as relações entre os sistemas se tornam imprescindíveis como uma forma de preservar a coletividade na conquista de autonomia. É reconhecendo esta diversidade espacial que o conhecimento artístico se diferencia do sistema formal e científico de produção do conhecimento. “(...) De alguma forma arte e corpo artista colaboram para os estudos contemporâneos do corpo e a formulação de novas epistemologias” (GREINER, 2005, p. 111). Quando a pesquisadora questiona sobre quais as especificidades do corpo artista e qual a função da arte no processo evolutivo da humanidade, ela provoca uma discussão sobre como podemos reformular algumas questões em torno do tema, além de tentar salientar a importância da arte para a sobrevivência humana. 96 “O corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo. E o corpo artista é aquele em que aquilo que ocorre ocasionalmente como desestabilizador de todos os outros corpos (acionando o sistema límbico) vai perdurar. (...) Mas o motivo mais importante é que desta experiência, necessariamente arrebatadora, nascem metáforas imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadores de outras experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos (corpo e ambiente) mapeados instantaneamente de modo que o risco torna-se-á inevitavelmente presente” (GREINER, 2005, p. 122 e 123). A partir daí, questiono: como o corpo humano trabalha essa tríade, – razão, sentimento e vontade – quando se submete a imersões artísticas que confundem a experiência representacional com o universo real? Quando as imagens remetem a um tempo diferente do cotidiano, a um universo onírico que se sobressai a realidade, conduzindo o observador a um estado mental e corporal suspenso? “Sentimento, inteligência e vontade sempre se encontram mesclados no devir interno do humano, formando um sistema triúnico: pela razão buscamos conhecer o mundo; pelo sentimento lidamos com os valores deste mundo e pelo desejo e vontade vemos o mundo como um cenário de ação” (VIEIRA, 2008b, p. 56). A aquisição de determinadas autonomias coletivas pressupõe um equilíbrio social dessa tríade. “(...) afeto pode muito bem equivaler a idéia de energia psíquica, assinalada por uma tensão em campos de consciência contraditórios. Mostra-se assim, no desejo, na vontade, na disposição psíquica do indivíduo que, em busca de prazer, é provocado pela descarga da tensão.” (SODRÉ, 2006, p. 29). A experiência artística entra justamente para mexer nesse equilíbrio, seja desorganizando sistemas ou permitindo uma reorganização de estruturas que pareciam naufragar dentro de suas próprias crises. Nos dois casos, há uma elevação considerável no nível de complexidade do sistema. Assim, surgem novas formas de autonomias coletivas a partir do conhecimento produzido na experiência. E é isto que ocorre na experiência proposta em Sala de Jejum. Para uns, ela reorganiza estruturas psíquicas, para outros, provoca incômodo que pode gerar um processo de desestabilização, mas não menos importante, já que ambos caminham para a permanência da gangorra do sistema cultural ativo. Montando esse quebra cabeça, proponho um entendimento que traz a busca pela autonomia como uma das principais fontes do amadurecimento humano para uma vivência coletiva em harmonia dentro dos parâmetros que regem a sociedade atual. Sodré, ao lançar-se sobre o ethos, conceito de Heráclito – o entendendo como a 97 ambiência sensório-cognitiva, onde se estabelecem as diferenças e as aproximações constitutivas da comunidade – conclui que “o ethos de hoje se deixa ver como a consciência atuante e objetivada de um grupo social – explicitada em costumes, hábitos, regras e valores –, onde se manifesta a compreensão histórica do sentido da existência, onde têm lugar as interpretações simbólicas do mundo e, portanto, funciona a instância de regulação das identificações individuais e coletivas” (SODRÉ, 2006, p. 67). Certamente, a arte entra nessa esfera como um fator provocador e desestabilizador de sistemas. São as produções artísticas que, muitas vezes, catalisam as crises, desorganizam sistemas, os pondo em contato com um tipo de conhecimento rechaçado pela ciência formal, o conhecimento tácito. Confrontar Umwelten a fim de dilatá-los e alterar mundividências em prol da conquista cada vez maior de autonomias, obriga o próprio sistema a se auto-organizar com novos elementos em vista, o que favorece a sociabilidade humana. É tendo em vista justamente esta instância de regulação das identificações individuais e coletivas que se imprime o sentido de reformulações. Nesse processo, há o aumento da complexidade, possibilitando novas formas de interações e possíveis integrações entre sistemas. A arte, elemento fundamental nesse processo, tem o conhecimento tácito como um de seus principais aliados dentro das tensões aplicáveis a ethos atual. O encontro do sujeito e obra, quando em contato com o corpo, é capaz de provocar alterações desconhecidas à percepção, impossíveis de serem mapeadas. Isso, muitas vezes, deslegitima o conhecimento tácito perante a ciência. Greiner cita o autor Semir Zeki acreditando que haveria uma questão chave para indagar o que a arte mapeia: “ela mesma, objetos existentes no mundo, outros universos simbólicos (como as mitologias), objetos como imagens mentais e não coisas, o corpo, os processos de conhecimento.” (GREINER, 2005, p.110). A compreensão da cultura como processo totalmente interligado à construção da cognição humana, ainda é uma discussão resistente dentro das correntes científicas psicológicas. Porém, não temos mais como negá-las. Gubern atribui três fatores determinantes a estas singularidades da percepção humana: o fator fisiológico, programado pela genética, pelo equipamento sensorial e pela biologia; “El factor cultural o socio-cultural, determinado por las tradiciones, convenciones y hábitos compartidos y que remiten a la historia del grupo social al que pertenece el sujeto perceptor (...). Y, por último, el factor individual determinado por los condicionamientos 98 personales y subjetivos, por la singularidades derivadas de la história personal del sujeto, tanto en el plano orgânico como en el psicológico, generando determinadas escalas de valores, expectativas, preferências, aversiones etc.”42 (GUBERN, 1996, p. 17e 18). Dentro da perspectiva por uma autonomia coletiva, acredito que um dos maiores desafios sociais da atualidade é a conquista da afetividade. A elaboração desta é uma das mais complexas formas de autonomia que garantiria, de forma utópica, a harmonia geral dos sistemas, entre outros fatores. Como sabemos que são muitos os elementos que envolveria esta utopia, trabalhamos por uma busca constante dela. Em cada sistema no seu tempo. É o que nos move o estar no mundo. Em cada ciclo social em suas dimensões e com suas peculiaridades culturais. Sala de Jejum é terno. É lírico. É poético. É belo. Assim como também é estranho. Incomoda. Mas não mais que provoca prazer. O deleite vivido durante a experiência entre os corredores e salões do sobrado, sem dúvida, é superior às provocações. E isto aguça os sentidos e induz a afetividade. As entropias sempre assolarão os sistemas, o desafio é perceber cada vez mais a eficácia da dimensão tácita do conhecimento no processo de dilatação das Umwelten, que nos oferecem novas ferramentas para reorganizar informações, rearranjando laços e modificando a rede. “Tudo que é vivo deve co-habitar com a desordem e a instabilidade. Não há escolha, esta é a natureza do vivo. Assim, no que diz respeito ao corpo, para estudar um regime de atividade corporal é preciso estudar a estabilidade e a instabilidade que, em certas circunstâncias, têm uma configuração e em outras já são modificadas.” (GREINER, 2005, p. 39). Por isso, falar de criação nos permite pensar em outras esferas de organização de sistemas, inserindo mecanismos provenientes do universo da arte, que evoca, imediatamente, o campo sensório. “Assim, „criar‟, é organizar categorizações perceptuais com a possibilidade de estabilizar internamente eventos que se diferenciam em relação a experiências passadas. A idéia de „criar informação‟ se ampara na idéia de que detectar já é um evento, uma experiência no tempo”. (GREINER, 2005, p.115). 42 Tradução: O fator cultural e sócio-cultural, determinado pelas tradições, convenções e hábitos partilhados e que remetem a história do grupo social a que pertence o sujeito perceptor (...). E, por último, o fator individual determinado pelos condicionamentos pessoais e subjetivos, pelas singularidades derivadas da história pessoal do sujeito tanto no plano orgânico como no plano psicológico, gerando determinadas escalas de valores, expectativas, preferências, aversões etc. 99 3.3 Estratégias para uma nova curadoria Tendo como base a discussão desenvolvida ao longo dessa dissertação, venho propor uma maneira diferente de expor as obras que compõe a exposição Sala de Jejum. Gostaria de deixar claro que as idéias que serão aqui apresentadas tentam encaixar-se numa proposta teórica, sob os moldes de minhas lentes. A minha experiência de vida, as informações processadas no meu corpo, as minhas trocas sensíveis com o ambiente, o meu estar no mundo, os meus canais de percepção, a dilatação da minha Umwelt são elementos determinantes para a maneira como eu dialoguei com a discussão teórica desenvolvida em torno da exposição Sala de Jejum. Estamos diante da análise de um trabalho artístico, que pressupõe um exercício complexo, onde regras e padrões têm cada vez menos espaço na discussão das mediações no processo de comunicação. O que tento construir nesta proposta é uma curadoria que contemple o espaço do observador, que ele desfrute de um ambiente mais acolhedor e que o convide, de maneira mais contundente, à espera, à observação, ao sentir, à desaceleração, à contemplação, até mesmo, à confusão dos sentidos. 3.3.1 Sala de Jejum Comecemos pela vídeo-instalação que dá nome à exposição. Sala de Jejum está projetada numa janela branca, no piso superior do sobrado. Ou seja, ao deparar-se com a obra, o visitante já terá subido a escadaria que foi palco da produção da vídeoinstalação. A proposta seria colocar lampiões ao longo da escadaria apagados, com fósforos ao lado, sugerindo um convite ao observador a acendê-los. Um convite a interatividade. Provavelmente, ele não tenha esta iniciativa enquanto sobe a escadaria, antes de deparar-se com a projeção na janela. Mas os objetos estarão ali, no percurso do observador. Como objetos enigmáticos. Ao chegar diante da vídeo-instalação projetada na janela do andar superior, o observador faria a conexão entre a ação e aqueles objetos que ele encontrou no caminho, o instigando, assim, a repetir a ação. Seria uma maneira de continuar trabalhando em torno de enigmas, abordando a ação também do observador, que se vê entre a inércia da contemplação e a iminência de uma ação. 100 3.3.2 O Banho O Banho foi um dos trabalhos que se destacaram da exposição Sala de Jejum para ser apresentado em exposições coletivas. Recentemente, em abril de 2011, no Ateliê 397, em São Paulo, O Banho compôs a exposição coletiva A 4 Graus do Equador, composto por diversos trabalhos de artistas cearenses. A curadora Carolina Soares reservou um ambiente interessante para o trabalho de Milena Travassos: o banheiro. A projeção na vertical, de cima para baixo, despejava as imagens na circunferência da bacia de alumínio, que se situava no chão, vazia. A maneira como O Banho foi exposto no Sobrado José Lourenço se dava de outra maneira. Um espaço vazio, livre de referências ligadas ao ambiente do banho (como um banheiro, por exemplo). Apenas uma bacia de alumínio, cheia de água, iluminada pela própria projeção que incidia 90º, de cima para baixo, em direção a bacia. O observador via a projeção de um banho noturno (imagens editadas de Tudo que Sustenta) sobre a água colhida na bacia. Eu julgo que a água dentro da bacia é de total relevância para se trabalhar o elemento da transparência e dos fluidos na obra da artista. A água dentro da bacia não se configura um elemento dispensável. A idéia é manter essa forma de projeção, frisando a importância da bacia cheia d´água. Ao lado dela, colocam-se algumas toalhas de rosto, de forma que o observador sinta-se convidado a molhar suas mãos, misturando-as com as imagens projetadas na água. A toalha serviria para secar as mãos do observador após a imersão. Isso, certamente, exigiria a troca da água com alguma freqüência pela organização da exposição, além das toalhas. Seria esta uma maneira de exercitar o tato na exposição. 3.3.3 Náiades Nesta obra, sugiro duas intervenções. A primeira seria no lado imersivo da obra. Colocar goteiras na sala circular para que o observador sinta-se dentro de um aquário gotejante, seguindo a sugestão do áudio. Enquanto se desloca contornando as “paredes do poço” que o envolve, o observador sente gotas de água sobre a pele, além de perceber o chão levemente molhado, devido a algum vazamento que ele demora a identificar que vem do teto, uma vez que a iluminação do ambiente é reduzida. A segunda intervenção seria no lado impeditivo. Erguer uma construção de tijolo em torno da projeção arredondada, com uma formação vegetal encobrindo, 101 tentando simular a boca de um poço. A altura seria algo em torno de 1,5m. Estruturas de pequenas escadas levariam o observador a subir e debruçar-se sobre a borda do poço para então conseguir ver o seu interior e deparar-se com a projeção em movimentos circulares. Projeção 1 para Náiades, lado impeditivo A idéia de poço, que já existe na proposta inicial, seria reforçada, diminuindo ainda mais as fronteiras entre o real e o imagético. Projeção 2 para Náiades, lado impeditivo 3.3.4 Vertigem Vertigem é um trabalho que já foi bastante experimentado, em vários formatos. Embora não tenha presenciado, uma das primeiras propostas de exposição me pareceu bem interessante, realizada em 2006. A projeção dava-se numa grande placa de vidro suspensa pelo teto por cabos de aço, onde ela atravessava a estrutura antes de chegar à parede. Então, via-se a imagem no vidro, que se formava sobre a poeira contida na grande placa e na parede. Em ambas as superfícies as imagens não se apresentavam 102 claras e definidas. E a artista ainda colocou uma TV virada pra cima, no chão, com imagens do reflexo do balanço na água. “Então tinha essa coisa do poço, do reflexo, e o balanço em cima mais sutilmente, que era a projeção do vidro.” (ENTREVISTA PARTICULAR, 5/2011), relembra Milena Travassos. Posteriormente, projeções grandes em parede cheia também estão na coleção de maneiras de expor Vertigem. Lembrando que no sobrado ela aparece num corredor, ao lado de Tudo que Sustenta e Vigília, em tamanhos medianos em TV de plasma. A artista tem um grande apreço em manusear suas obras e repensá-las a partir de novas pesquisas e da criação de novas idéias. De fato, ela desconstrói o conceito de aura da arte, tão criticada em Benjamin. Não existe um trabalho intocável para Milena Travassos. Ela faz e refaz, sem pudores de repensar sua própria obra. Em entrevista particular, Milena soltou sua inquietação com o formato em que a obra se apresentou em Sala de Jejum e desabafou sobre suas futuras propostas. “Porque, às vezes, você ainda está entendendo o trabalho, você apresenta e depois você vê que tem muito mais que o trabalho pode te oferecer como desdobramento”, justifica a artista. A idéia de Milena é experimentar o Vertigem em um formato pequeno, ainda menor do que aquele apresentado em Sala de Jejum, que dava-se numa TV de plasma mediana. Expor a vídeo instalação numa sala grande, vazia, numa TV menor, onde o áudio pudesse tomar conta do espaço. O observador entraria no ambiente e seria imediatamente tomado pelo som e, aos poucos, como se olhasse por uma fechadura, se aproximaria daquela imagem miniaturalizada. Trabalhar com outra dimensão de Vertigem integra o plano de pesquisa de Milena Travassos. Apresento, aqui, a sugestão da própria artista de apresentação do trabalho, além da minha, em seguida. Vertigem proporciona algumas sensações em torno da ação executada no vídeo. Porém, nesta forma miniaturalizada, o ato inseguro de balançar-se sobre um grande poço ganha conotações irreais. A vertigem que a ação poderia causar é surpreendida por uma cena que tira o observador do mundo real, o conduzindo para o universo da fantasia. A minha proposta de apresentação dá-se no espaço de onde o observador verá a obra. Para reforçar estas idéias contrastantes entre a insegurança do ato de balançar-se sobre o abismo e a serenidade irreal da ninfa que habita seu lar natural, proponho que o observador esteja sobre uma ponte suspensa na sala – de madeira e cordas –, onde ele pudesse caminhar por ela, equilibrando-se, enquanto olha a vídeo-instalação projetada em grandes dimensões, em parede cheia. 103 Projeção para Vertigem A imagem de um corpo nu visto de costas, com a coluna vertebral às avessas (onde as vértebras são frascos delicados de vidros), a balançar-se sobre um poço profundo onde não se vê o fundo demanda gigantismo na projeção. O ato que pode parecer sombrio se contrasta com a idéia de simplicidade e naturalidade que aquele corpo desempenha tal ação. Juliana Monachesi descreve: “O balanço tem uma coisa. Lembra jogos de infância, quando o tempo parecia eterno e se podia empregar em grandes quantidades em atividades quase destituídas de sentido aos olhos de um adulto. Crianças correm por correr, brincam por brincar, constroem castelos de areia e livros de areia, fantasiam por fantasiar, giram por girar, vão e vêm no balanço pelo simples prazer de se balançar e de sentir o vento bater no rosto.” (MONACHESI, 2007). 3.3.5 Tudo que Sustenta O vídeo produzido para este trabalho possui um enquadramento de câmera bem próximo da ação. Em Tudo que Sustenta, o observador vê os detalhes da estrutura delicada de vidro que acompanha o eixo de sustentação da coluna vertebral do corpo artista. Os frascos de vidro se tocam com o movimento do corpo e produzem um som que caracteriza os objetos com frágeis. Neste trabalho o estranhamento diante das estruturas de vidro ao longo do corpo se dá de maneira mais forte, já que o observador vê de perto. Proponho que réplicas destes frascos de vidro estejam espalhadas pela sala, formando um caminho por onde o observador deve caminhar. Logo, este caminhar, vai lhe exigir um cuidado maior 104 para não quebrar os frascos. Também proponho uma sala exclusiva para o trabalho, com as imagens numa televisão de plasma de alta resolução de, pelo menos, 49 polegadas. A riqueza desta vídeo-instalação está nos detalhes que a câmera capta ao fazer alguns closes na ação. O elemento que quero ressaltar nessa proposta é a delicadeza. Projeção para Tudo que Sustenta 3.3.6 Tempo de Paisagem e Para Ver Amarelo A proposta aqui é o observador poder deitar e desfrutar da tranqüilidade vista nas imagens tanto quanto a personagem. Sugiro uma projeção no teto – como já foi experimentada antes pela artista no espaço do Alpendre – e a sala com três ou quatro estruturas de madeira que simulem os troncos de uma árvore, onde as pessoas possam sentar, deitar, apoiar-se, interagir, de alguma forma, com aquelas estruturas enquanto assiste o vídeo no teto. Sai de cena a televisão de plasma – como foi apresentado no sobrado – e entra a projeção no teto. Na exposição vista em 2009, Tempo de Paisagem dividiu o mesmo espaço que Para Ver Amarelo, em uma das salas do Sobrado. A proposta é que se mantenha a aproximação entre elas, já que elas dialogam muito bem. Porém, há algo que as impede de ocupar exatamente o mesmo ambiente. Para Ver Amarelo pede luz do sol, iluminação natural, já Tempo de Paisagem, nos moldes como proponho, precisa de uma sala escura. 105 Projeção 1 para Tempo de Paisagem Projeção 2 para Tempo de Paisagem Sugiro que Para Ver Amarelo se encontre no corredor que leva à sala de Tempo de Paisagem, onde as placas de vidro possam receber a luz natural do dia. À noite, sugiro iluminação artificial específica, com canhões de luz focados nas placas. É interessante que o visitante tenha acesso aos dois trabalhos em seqüência. 3.3.7 Vigília Vigília também merece outro espaço diferente do que lhe foi destinado em 2009. Não necessariamente uma sala exclusiva, mas, pelo menos, uma parede exclusiva. A proposta é manter a televisão de plasma, porém, se possível, em dimensões maiores. 106 Sugiro uma de 49 polegadas. A idéia é pendurar alguns balanços frente à tela, onde três ou quatro observadores possam sentar-se diante da televisão e assistir a vídeoinstalação, simultaneamente, na mesma cadência que a personagem em cena. Um elemento importante a ser destacado neste trabalho é o vento, como já foi colocado no capítulo anterior. Com os balanços a disposição dos visitantes, sensação semelhante poderá ser experimentada por aquele que escolher assistir ao vídeo balançando-se. Apesar de o ambiente fechado diferir bastante do espaço de locação do vídeo – totalmente ao ar livre, conectado com a natureza – o ato de balançar-se faz com que haja o deslocamento do ar, proporcionando o contato entre a pele do observador e o vento. 3.3.8 Na mesma direção As obras Casulo, Apnéia, Sonata e A um Passante não entraram no pacote de novas formas de apresentação. A exposição como um todo ganha uma nova forma de visitação quando alteradas a maneira de expor dos outros oito trabalhos. Na verdade, alguns não se modificam tanto, como Para Ver Amarelo, que se desloca apenas da sala que dividia com Tempo de Paisagem. A maneira como Casulo, Apnéia, Sonata e A um Passante se apresentaram em 2009, no Sobrado José Lourenço, contempla a minha proposta de curadoria que trago a partir deste tópico 3.3. Ao se situarem dentro do ambiente macro de Sala de Jejum, ao lado de trabalhos vestidos com uma nova roupagem, eles se resignificam no contexto espacial. As relações podem se dar de forma mais intensa. A idéia é trazer o visitante o máximo possível para esse ambiente onírico que a exposição suscita e levar o observador a imergir no contexto metafórico que o mundo fantástico, surrealista o conduz através das imagens. Sala de Jejum pode ter seu potencial imersivo intensificado a partir de pequenos gestos suscitado pelos trabalhos, onde a experiência sensível pode ser vivida de maneira mais aguçada, possibilitando outras conexões para o desenvolvimento do conhecimento tácito. 107 4. Conclusão Discutir o potencial da arte como um meio de acessar um conhecimento de ordem tácita através da comunicação que se estabelece entre o corpo e o meio não é uma tarefa simples. Neste trabalho eu aponto caminhos para tentar entender esse processo, a partir de discussões teóricas, tomando por base a obra de Milena Travassos. Arlindo Machado questiona: “Em que nível de competência tecnológica deve operar um artista que pretende realizar uma intervenção verdadeiramente fundante?” (MACHADO, 2001, p. 35). Para esta colocação, o posicionamento de que os meios tecnológicos não sustentam, por si só, uma produção artística de qualidade, nem tampouco possibilitam o conhecimento a partir da comunicação artística, fica claro neste trabalho. Milena Travassos também partilha desta idéia, quando ela recorre a estes recursos – o vídeo, por exemplo – totalmente vinculado ao conteúdo de suas idéias, pesquisas e criações. Não se pode falar em separar estas duas instâncias do objeto artístico. Forma e conteúdo não se dissociam, nem tampouco se sobrepõem. E quando se trata do corpo, há ainda uma dificuldade maior nessa tentativa. Então, quando me vejo diante do questionamento que direcionou esta pesquisa – como a Umwelt humana é dilatada e ativada pela experiência artística, estando ela apoiada ou não na tecnologia? – concluo que o fato desta experiência estar apoiada ou não na tecnologia não é determinante para promover esta dilatação da Umwelt humana, uma vez que ela viria como mais um artifício do conjunto da obra para agregar o processo. Os fatores que envolvem a dilatação da Umwelt não se resumem a equipamentos tecnológicos. Ela depende de toda uma complexa estrutura de relações entre o sujeito e o ambiente que perpassa pela configuração da cultura. A cognição humana tem sido alterada, sim, pelo exercício complexo das experiências artísticas e as tecnologias têm contribuído nestes desdobramentos. Quando Román Gubern questiona “Estamos asistiendo a una verdadera revolución cultural, además de tecnológica?43 (GUBERN, p.177, 1996), ele coloca em xeque a que tipo de transformação é válido nos referirmos em tempos atuais. Ele traz para a discussão presente as questões que vão além de uma transformação tecnológica, que envolve as relações entre sujeito e cultura. Ele responde dizendo que a tecnologia da imagem é mais uma reposta que surge para um questionamento velhíssimo da cultura 43 Tradução: Estamos assistindo a uma verdadeira revolução cultural, além de tecnológica? 108 ocidental, sobre a questão da mimese, da ilusão referencial, da aspiração de duplicar perceptivos perfeitos das aparências do mundo. As novas relações que o corpo estabelece com o seu entorno sinalizam a direção desta caminhada rumo a mudanças estruturais da cultura. Acredito que a chave deste processo está justamente na maneira como os sentimentos, as emoções e os afetos se colocam nessa rede. O encontro diário entre o corpo e o mundo está em constante construção e é a arte que mantém o sujeito sensível dentro dessa máquina. O ato de submeter-se a experiências que ativam nosso sistema perceptivo prevê o acionamento de processos que recorrem às emoções e sentimentos na elaboração do conhecimento através da experiência artística. Quando exponho minha preocupação em torno da apropriação dos afetos pelos meios de comunicação dentro do capitalismo, lanço sobre a arte a responsabilidade de redefinir os usos desses afetos e resgatar a capacidade de fulguração que eles possuem. Ela parece estar se perdendo neste contexto político ríspido em que as sociedades atuais se encontram. Quando pensamos o corpo como uma mídia de si temos uma sugestão de solução para o problema dado. Os homens não podem esquecer o papel do corpo na construção social da cultura, nem tampouco da potência dos afetos para reestruturar formas dadas. Um corpo não hesita em lançar-se na experiência ao saber que é através dele que o conhecimento se consumará e isto requer afetos, sentimentos e emoções. Volto a citar o pensamento de António Negri, partilhado por Sodré: “(...) Apostando no afeto como uma potência de liberdade, Negri envereda por um projeto de resgate político da dimensão afetiva enquanto „sedimento ontológico‟ de lutas sociais enquanto potência de transformação expansiva, presumidamente capaz de revalorizar „o que é comum‟ em termos de singularidade e universalidade” (SODRÉ, 2006, p.62). A partir dessa compreensão, o objeto escolhido para ilustrar esta questão que assola diversas realidades sociais, a exposição Sala de Jejum, contribui para a sensibilização dos sistemas. Assim como ela, inúmeras outras produções artísticas desempenham seu papel de provocar um rearranjo de informações no corpo humano capaz de despertá-lo para maneiras de enxergar o mundo de forma diferente, proporcionando vivências antes nunca experimentadas, capazes de dilatar a Umwelt da espécie. Trago aqui reflexões já expostas no capítulo três. O conhecimento artístico é uma maneira de experimentar outras formas de autonomia para a permanência dentro dos sistemas. Viver em sociedade pressupõe encarar as crises que esta vivência traz. A 109 experiência artística pode funcionar tanto como catalisador de ruídos como apaziguador, uma vez que a busca pela autonomia coletiva faz parte de um processo complexo e instável. Encarar a arte como um dispositivo de resistência ainda faz desse espaço, um lugar para se pensar novos sentidos e valores para os objetos do cotidiano. O corpo entra nesse jogo através do movimento e do gesto como mecanismo de mediação, já dizia Greiner. “(...) O gesto é a exibição da mediação, o processo de tornar o significado visível. As artes que pertencem essencialmente ao reino da ética e da política e não apenas da estética, encontram no seu âmago o gesto, uma vez que ele é o fundamento da comunicação” (GREINER, 2005, p.92). Quando proponho uma nova curadoria que insira o corpo do visitante num ambiente que o faça captar de outra maneira aquele contato que ele estabelece com aquela obra, é porque acredito, assim como Milena Travassos, que a arte está posta no mundo para ser reinventada e experimentada. Tento introduzir o visitante numa realidade maior de diluição de seu corpo na obra, uma vez que acredito ser este o caminho para maiores impactos entre sujeito e arte, dando outras possibilidades a dilatação da Umwelt. Quando nos deparamos com Sala de Jejum, temos uma obra que trabalha exatamente com os elementos que Boaventura se refere nesta fala: “Vivemos num tempo de repetição, e a aceleração da repetição produz simultaneamente uma sensação de vertigem e uma de estagnação” (SANTOS, 2008, p. 67). Sala de Jejum representa uma afronta ao comodismo social atual, questionando exatamente esta repetição, a aceleração e a estagnação do homem diante da vida. 110 5. Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo - SP: Boitempo, 2007. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo - SP: Boitempo, 2004. BARBERO, Jesús Martín. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro - RJ: editora UFRJ, 2009 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política (Obras Escolhidas; V.1). São Paulo - SP: Ed. Brasiliense, 1994. _____________, Rua de Mão Única (Obras Escolhidas; V.2). São Paulo - SP: : Ed. Brasiliense, 1987. BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Petrópolis – RJ: Vozes, 2007. 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Quem você admirava artisticamente nessa época? É engraçado como tem influências que ficam ali guardadas, e influenciam no seu interesse de produção. Eu gostava do Chagall, do Gustav Klimt, o austríaco. Ele tinha umas pinturas que eram só mulheres em cena. Eram bem coloridas. É engraçado porque hoje eu estou em todos meus trabalhos. O Odillon Redon também, com uma pintura mais surreal. Ele tem um trabalho chamado Danae, ligado a mitologia grega. E esse universo foi ficando dentro de mim, assim como coisas do cinema. Eu vejo obras que eu me identifico muito como Tarkovsky, Sokurov que tem esse universo de trabalho de cor, de imagens descoladas, de uma narrativa linear ou explicativa. 3. E como você saiu de Recife e foi parar em Fortaleza? Tentei duas vezes vestibular, não passei, e acabei ficando quatro, cinco anos em Recife. Aí fui trabalhar e fiquei fazendo minha pesquisa em paralelo. Em Recife eu nunca concretizei nada mais sólido. Nunca expus lá. Eu acho que eu ainda tava querendo me encontrar. Daí, fui passar umas férias em Fortaleza, porque meus pais já tinham ido morar lá de novo, e foi o ano que surgiu o curso da Gama Filho, de Artes Visuais, em 2000. Aí eu me inscrevi, passei. Eu tinha 23 anos. Em Fortaleza tentei vestibular para outras coisas também, Biologia na UFC, Educação Física na Unifor e Filosofia na UECE. Passei na UECE e fiquei fazendo as duas. A Filosofia à noite e as Artes Visuais, durante o dia. Levei os dois cursos. E a Filosofia me surpreendeu. Eu nunca tinha 115 pensado em fazer filosofia, mas no momento que eu passei eu me interessei em fazer o curso. As leituras que eu encontrei na filosofia me encheram de inspiração para criar. 4. E a faculdade de Artes Visuais? Lá foi um grande encontro de pessoas que tinham interesse em trabalhar, de alguma maneira, com a arte, apesar de a turma ter sido bem eclética. Waléria Américo, eu, o Euzébio Zloccowick, o Yuri Firmeza, o Murilo Maia, a Cecília Bedê. Todos estavam entre a primeira, segunda turma do curso. E nessa época a gente trocou muito. Eu falava da pintura urbana do Basquiat que eu tinha conhecido em Recife e todo mundo conversava sobre as coisas que tinham marcado cada um. Eu tinha um interesse muito forte na arte contemporânea, mas eu tinha também interesse grande na pintura, que permanece até hoje. Por exemplo, no fim do ano passado eu viajei para Europa para ver obras que pra mim eram importantes conhecer ao vivo. Quando eu estou criando, pensando que imagem eu vou filmar, eu leio, eu desenho. Porém, tirando a época da faculdade, eu nunca apresentei um trabalho que a base fosse meus desenhos. Sempre predominaram mais os objetos, a instalação, o vídeo. 5. De que você falava na 1º exposição individual, Ligações ? Eram sistemas, redes, relações. Meu desenho era bem esquemático. Eu os fazia num suporte de acrílico, eram torres. Eu criava uma rede que ligavam as obras, utilizando o espaço como mecanismo de ligação também. Eram linhas, pontos. Era tudo impresso no acrílico. Eu queria vidro, mas diante das dificuldades de fazer estas torres, ficou acrílico mesmo. Também foi a única vez que eu fiz com acrílico, depois eu parti logo para o vidro. Aqui tinha a questão da transparência, mas ainda não era o mais importante. A questão da complementaridade dos desenhos na coluna com o próprio espaço era o foco. Depois que eu comecei a desenhar na transparência. 6. Como você vê este trabalho hoje? Ele me incomoda um pouco, porque acho meio frio. Ele não faz mais tanto sentido. É um trabalho com uma linha muito marcada, reta, não traz um movimento. Não aproxima tanto o visitante. 116 7. E como surgem os outros elementos, o corpo, o vídeo? Meu primeiro trabalho mesmo com transparência foi um livro de vidro. É anterior a este. Eu já trabalhava com transparência. Depois eu comecei a utilizar os objetos de vidro pequenininhos. Em Pedaços Profundos, eu fazia uns desenhos no chão com vidrinho, subia pela parede. Daí eles também iam se esvaziando. Trabalhando com esses objetos eu fui criando o interesse de levá-los para o corpo. Foi quase que instantâneo. Comecei a fazer testes, tentei ver se eles aderiam a pele e, talvez pelo formato deles, pensei que o lugar ideal para se tentar conjugá-lo no corpo seria ao longo da coluna vertebral. Antes disso ainda teve um trabalho proposto na faculdade de Artes Visuais. Era eu atrás de uma janela de vidro, desenhando essa janela. Então tinha a minha imagem, o vidro, o desenho. Tudo isso foram exercícios onde eu me colocava em cena e o elemento da transparência e do vidro foi ganhando mais força no meu trabalho. O Euzébio [Zloccowick], que trabalhava com o teatro, fez um trabalho comigo, chamado Nossa Senhora. Ele me vestiu como uma santa e me fotografou. A Wal [Waléria Américo], também nessa época, pensava o corpo dela em cena. Embora fosse sob outra perspectiva, diferente da minha, tudo isso foi me influenciando e me fazendo pensar nessa proposta de se colocar em cena. Quando eu me coloco, desde a primeira vez, o corpo que aparece é a criação de um personagem. Não é a Milena que está ali. É outra pessoa. Como eu vinha lidando com a transparência, pensei num corpo na mesma perspectiva. Eu não queria um corpo pesado, eu queria um corpo sutil. Nessa época, eu comecei a freqüentar muito a fazenda e a me deparar com ambientes interessantes. O Alexandre [Veras] me apresentou muitas coisas também que são referências pra mim, principalmente ligados ao universo do vídeo e do cinema, que são referências fortes no meu trabalho. O Alpendre [Casa das Artes] também me conectou com outro movimento de arte em Fortaleza, proporcionando vários encontros. Nessa altura, Recife já nem fazia mais sentido. Fortaleza estava tão pulsante, eu estava me deparando com muitas coisas que eu me identificava, com coisas novas e estimulantes. Eu fui me contaminando pelo espaço da cidade e das pessoas. Isso é bom. O Sólon Ribeiro também foi uma pessoa muito importante na minha formação. 8. Como se deu a disseminação do seu trabalho pelo país? Como se deu os primeiros convites para expor no exterior, uma vez que seu trabalho já foi a Cuba, Espanha, Chile, Estados Unidos? 117 Esse contato com outros artistas foi importante também para eu ficar atenta a editais de arte e com um deles eu entrei para o Paço das Artes, na USP, quando eu tive o primeiro convite da curadora do Paço para ir para a Mostra na Espanha. Eu me interesso em ocupar outros espaços que não somente galerias, porque eu acho que o público das galerias não se modifica. São sempre as mesmas pessoas que freqüentam. Muita gente que eu conheço não vai atrás de edital. Fica super tranqüilo com a sua galeria e pronto. Está vendendo, se sustentando. E é engraçado com eu me preocupo em circular e em participar de diferentes editais. Já expus de norte a sul do país. De Florianópolis a Belém. Então os editais configuram uma outra forma de ocupação e circulação em espaços por aí afora. Embora meu trabalho não tenha a preocupação de ocupar a cidade, o espaço urbano, eu penso em espaços mais alternativos que não se limitam somente a galerias. Como o próprio Sobrado José Lourenço. Eu penso ainda em fazer grandes projeções em edifícios. Eu ainda não me movimentei para isso, mas tenho interesse. Eu tenho trabalhos que super funcionariam nesses moldes de grandes projeções. 9. Como você conheceu o Walter Benjamin? Conheci nas Artes Visuais, na Gama Filho. Com o professor Chiquinho Aragão, passando o texto mais famoso dele: A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Esse texto me afetou muito. A questão da aura também me chamou muita atenção. Como era essa questão da perda da aura? Fiquei muito curiosa. Posteriormente, me interessei pelo conceito de alegoria, o drama barroco, que eu vim trabalhar agora no doutorado, pensando a arte contemporânea. Durante a faculdade eu descobri que tinha uma professora que tinha terminado o doutorado dela em Benjamin, na USP. Aí eu fui falar com ela porque a minha monografia da filosofia seria sobre ele. Eu tinha interesse em pensar arte e política e, como ele tratava do audiovisual, me parecia que ia ser um autor muito útil. O tema na monografia foi A Necessidade Filosófica e Política da Arte. Já no mestrado foi A Estética do Choque e a Política de Walter Benjamin. Por isso, encontrar a Teresa Calado foi importantíssimo. Ela foi minha orientadora tanto na graduação como no mestrado, ambos na UECE. O Benjamin me encanta. Ele pega temas do cotidiano e os enriquece com um vocabulário interessante, uma forma de escrita muito poética, lírica. Ele se volta muito para artistas em seus escritos. Para arte em geral, como ele fez com o Proust, Kafka. Isso me fascina. 118 10. Você acredita que existe uma ‘tendência’ dentro da arte contemporânea que se coloca junto com o século XXI? Hoje se fala muito em imagem, vídeo, fotografia, mas se for pensar, lá na década de 60, o corpo já estava colocado e o audiovisual também. Hoje por conta do acesso, das facilidades, das tecnologias ao alcance tem se falado mais nesse assunto. Mas a arte caminha junto com o que está sendo colocado para a sociedade. Nós temos exemplos no mundo todo de grupos que já mexiam com tudo isso na década de 60. Temos experiências bem inventivas, que misturavam técnicos de som, artistas, dançarinos, performers. O Stockhausen, por exemplo. Eu não tenho essa preocupação de inventar „o novo‟ ou uma „nova moda‟. Questões ligadas ao corpo sempre existiram, não é de hoje. Não é a linguagem que se usa que vai dizer se o trabalho é mais interessante que outro, se é melhor ou pior. É preciso olhar o conteúdo, o trabalho por dentro e avaliar o conjunto. A forma também faz parte do conjunto. Podem ter obras clássicas utilizando o suporte do celular ou mesmo a pintura em tela. Por falar nisso, a pintura está voltando, eu tenho visto pinturas mais realistas ultimamente, cenas cotidianas. O Fábio Baroli, por exemplo, ele está pintando uns quadrinhos pequenos com cenas tipo: a mulher no banheiro ou alguém no sofá com revistas na mão. Todos com muitas cores e com umas pinceladas quase que pixeladas. 11. O que você estuda no seu doutorado? São dois momentos de pesquisa bem definidos. O título do projeto foi Cena e Performance: a mise-em-scène no vídeo contemporâneo. Mas ele está sofrendo algumas alterações, o que é normal. Mas eu trabalho muito em torno desse conceito de mise-enscène. Ele está muito presente no meu trabalho. Eu me proponho a pensar como se dá a câmera diante da cena e do corpo. Por mais que as primeiras experiências com o corpo, em 60, os artistas que estavam falando em performances tentavam fugir de uma certa representação que estava muito presente no universo do teatro, de uma construção de cena também muito presente no cinema, resumindo numa mise-en-scène, eles estavam apostando mais numa ação que era „o ali e o agora‟, às vezes improvisada, para fugir também dessa coisa de um corpo aprisionado, de uma mise-en-scène pré-definida. E também querendo fugir um pouco da experiência do cinema, usando o vídeo. No vídeo, a câmera podia estar ali, filmando mais próximo do corpo, com detalhes. Já se via a imagem captada rapidamente, não era preciso passar pelo processo de revelação, que era custoso. E o cinema também tinha uma forma de apresentação muito comum, com o 119 público lá, diante da tela. Já no vídeo, as projeções apareciam muitas vezes sobre o corpo, muito mais próximas do indivíduo expectador. A minha proposta é pensar algumas obras que, muitas vezes, são vistas apenas como registros de uma performance, mas pretendo pensá-las quanto obra em si. Porque a câmera quanto elemento de linguagem está ali agregando sentido para aquela performance feita. Francis Naumann, Letícia Parente. Esse pessoal tinha performances que se davam para a câmera. Por mais que muitas dessas fossem câmeras fixas. Os elementos tempo e movimento estavam presentes e agregavam sentido ao trabalho, um recorte foi escolhido. Configura-se um novo ponto de vista. Quando o vídeo entra, aparecem elementos na linguagem que agregam ao trabalho, que não é só o registro de uma ação que aconteceu. Por exemplo, a efemeridade da performance se acaba com este recurso. Muitas vezes, as análises dessas obras se voltam muito para falar do contexto da época, pra se falar do que está se vendo na imagem, mas não para falar dessa linguagem propriamente do vídeo. Nessas experiências de performances, penso numa mise-en-scène que se dá nessa relação da câmera com o objeto, com o corpo, com tudo que estiver ali no lugar. Essa relação que não é fechada, mas é partilhada por todos esses elementos. Num segundo momento, seria analisar essa câmera com esses elementos mais claros, como a de Bill Viola, com uma preocupação em torno da mise-en-scène. Para eles, essa câmera não está ali imune. Existe uma razão para se apresentar daquela maneira. Aí eu gostaria de me voltar para alguns conceitos. Além de mise-en-scène, pensar o gesto que não se esgota em si mesmo, de Bertolt Brecht, mas um gesto que encadeia várias outras coisas. Daí tem o Benjamin que discute gesto também, o [Gilles] Deleuze, o Roland Barthes. Quero discutir o conceito de alegoria, de Benjamin, junto com o espanhol José Luiz Brea, trazendo também para pensar obras mais contemporâneas, como em vídeoperformances. Eu tomo cuidado para não pegar um conceito que foi desenvolvido lá atrás, que está fora, e aplicá-lo no objeto contemporâneo sem a trabalhá-lo de forma adequada. Quero ver o conceito agindo, ele não virá cru. O Deleuze mesmo tem um texto lindo sobre o [Samuel] Beckett que chama O Gesto Esgotado, que ele pega o conceito de gesto e traz um outro elemento que é o „esgotado‟ para falar do gesto de outra maneira. E eu quero fazer isso com o conceito de alegoria, ligando o conceito com algum elemento que a obra suscite. O Benjamin vai falar que o símbolo é mais enrijecido, mais atemporal, que não está presente numa historicidade, já a alegoria não, ela vai se transmutando e se montando a partir de vários elementos descontextualizados. É sempre um dizer de outro. A alegoria está lá com aqueles elementos, mas ela sempre 120 significa outra coisa, sempre sujeita a abertura de outros significados. Já o símbolo, não. Ele significa aquilo e ponto final. E eu olho para essa discussão e vejo que a arte contemporânea está aí, trabalhando com alegorias, significando outras coisas que não estão ali postas de forma objetiva. 12. Como você avalia o panorama da arte contemporânea nacional? Como você contextualizaria sua obra dentro dele? Eu estou me colocando nesse exercício de ver mais coisas agora com a pesquisa do doutorado. Eu também não sou uma profunda conhecedora da arte contemporânea não. Tem alguns artistas que eu gosto muito como a Brígida Baltar, por exemplo. Tem um momento forte do documentário que tem me chamado bastante atenção dentro das artes visuais. O Cao Guimarães, por exemplo, trabalha com histórias do cotidiano, mas trazendo outra camada para aquela realidade. Fora do Brasil tem a Maya Deren, Agnès Varda, a Pipillot Rist. Tem também o Hatsushiba, que eu gosto muito. Ele tem uma instalação que é toda submersa. Tem uma crítica por traz sobre as carroças humanas do Japão. Tem algo de documental nesse trabalho dele que eu gosto muito. Então, me interessa usar essa realidade documental para um universo lírico, poético. Acho que em todo momento tem coisas interessantes se produzindo. A gente vive um bom momento de produção. A gente precisa é encontrar essas coisas. Hoje em dia eu até acredito que as pessoas tem trocado mais, tem surgido mais autorias coletivas, com a internet. A produção de arte aumentou muito. É claro que a quantidade de coisas ruins também aumentou, mas deu a oportunidade para muita coisa boa surgir também. 121 7. Anexo 2 Currículo Artístico de Milena de Lima Travassos E-mail: [email protected] EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS: 2011 - Sala de jejum – Galeria da Funarte, Belo Horizonte MG; 2010 - Pequena sala de jejum – Alpendre, Fortaleza CE; 2010 - Pequena sala de jejum – Museu de Arte Contemporânea - Parque Florestal, Santiago, Chile; 2009 - Sala de jejum – Sobrado Dr José Lourenço, Fortaleza CE. 2007 - Corpo instável - Projeto Trajetórias 2007 – Galeria Vicente do Rego Monteiro, Recife – PE; - Vertigem - Temporada de Projetos do Paço das Artes 2007/ 2008 - Paço das Artes, São Paulo – SP; 2006 - Um lugar fora dele, Galeria do Alpendre - Casa de Arte, Pesquisa e Produção, Fortaleza – CE; 2003 - Ligações, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE. EXPOSIÇÕES COLETIVAS: 2011 - Como o tempo passa quando a gente se diverte – Casa Triângulo, São Paulo – SP; 2011 - A 4 Graus do Equador – Ateliê 397, São Paulo – SP; 2011 122 - O cinema dos pequenos gestos (des)narrativos – Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE; 2010 - Salão de Abril 1980-2009 - De casa para o mundo, do mundo para casa – Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE; - deVercidade – Mercado do Pinhões, Fortaleza – CE; 2009 - Entre Margens – Espaço Cultural Oi Futuro, Rio de Janeiro – RJ; - La Atmosfera – V Festival de Videodanza DVDanza Habana, Havana/ Cuba, - Coleção MAM-BA – 50 anos de arte brasileira, Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador – BA; - 63º Salão Paranaense – Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba – PN; - Realidades imprecisas – SESC Pinheiros, São Paulo – SP. 2008 - 27º Arte Pará – Museu Histórico do Estado do Pará, Belém – PA; - Paisagens – Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid, Espanha; - Circuito intensivo – Alpendre, Fortaleza – CE. - 59º Salão de Abril – intervenção urbana no centro da cidade, Fortaleza – CE. 2007 - DeVercidade – Mercado do Pinhões, Fortaleza – CE; - I Contemporâneo – Feira de fotografia, São Paulo – SP; - Quase Nordeste – Galeria Oeste, São Paulo – SP; - Abre-Alas – Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro – RJ; - Projéteis de Arte Contemporânea 2005, Galeria do Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro – RJ; - O Mergulho - Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE. 2006 - 25º Arte Pará – Museu Histórico do Estado do Pará, Belém – PA; - 9º Salão Victor Meirelles - Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis – SC; - Fiat Mostra Brasil – Porão da Bienal, São Paulo – SP; - DeVercidade – Mercado dos Pinhões, Fortaleza – CE; - Dias estranhos vistos de perto, Galeria de Arte da UNICAMP, Campinas – SP; - de um lugar a outro, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE; - 57º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE. 123 2005 - 12º Salão da Bahia, Museu de Arte Moderna de Salvador, Salvador – BA. - Projeto Atos Visuais 2004-2005, Galeria Fayga Ostrower, Brasília – DF; - Projéteis de Arte Contemporânea 2004, Galeria do Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro – RJ; - Programa Exposições - MARP, Casa da Cultura de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto – SP; - 56º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE; 2004 - 3º Semana de Artes Visuais do Recife/ Spa, Rua Imperatriz Teresa Cristina, Recife – PE; - VII Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE; - Adesgraçadalebre, Alpendre Casa de Arte, Pesquisa e Produção, Fortaleza – CE; - Contemporâneos - Mostra de Artistas Plásticos cearenses no Maranhão, Galeria Mauro Soh, Imperatriz – MA; 2003 - Experimental II – Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE. - 54º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE; - VI Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE; 2002 - Ainda Gravura, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE. - Mostra de Arte e Tecnologia, Base, Fortaleza – CE; - 53º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE; - V Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE; - Múltiplas Poéticas, Centro Cultural Oboé, Fortaleza – CE; 2001 - Novíssimos, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza – CE; - Gravuras, Galeria Casa D‟arte, Fortaleza – CE. - Mostras de desenhos, Galeria Aldemir Martins, Fortaleza – CE; 2000 - Pintura e palavra, Galeria Aldemir Martins, Fortaleza – CE. 124 PRÊMIOS: - Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais, FUNARTE, 2010; - Prêmio Funarte de Arte Contemporânea Ocupação dos Espaços Funarte 2010, FUNARTE, 2010; - Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Artística em Artes Visuais, FUNARTE, 2008; - IV Edital de Incentivo às Artes, da SECULT-CE, 2008; - 7º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, Bolsa de fomento à pesquisa, 2007; - 25º Arte Pará, Menção Honrosa 2006 - Novos Talentos; - 12º Salão da Bahia, Prêmio Aquisição, Museu de Arte Moderna de Salvador, Salvador BA, 2005; - 57º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE, 2006; - 4º Salão da Base Aérea, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE, 2002. DEBATES: - Pequena sala de jejum, Museu de Arte Contemporânea - Parque Florestal, Santiago, Chile, 2010; - Pequena sala de jejum, Galeria de arte Arquipélago, Florianópolis – SC, 2009; - Imagem e pensamento, Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes, Belo Horizonte – MG, 2008; - Projeto Chá com porradas, Museu de arte contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE, 2006; - Projeto Fala de Artista, Museu de arte contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE, 2004; SUAS OBRAS ENCONTRAM-SE NOS SEGUINTES ACERVOS: - Museu de Arte Moderna da Bahia (BA); - Museu de Arte Contemporânea do Ceará (CE); - Fundação Rômulo Maiorana (PA); - Na coleção do colecionador Paulo Geyerhah (RJ); - Na coleção da colecionadora Marisa D`Vari (NY); - Na coleção da colecionadora Eliza Ryan (NY); - Na coleção da museóloga Maguinólia Serrão (CE). 125