PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC SP
Raquel Gonçalves Dantas
O conhecimento na comunicação artística: o papel do corpo na exposição Sala de
Jejum, de Milena Travassos
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
SETEMBRO 2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC SP
Raquel Gonçalves Dantas
[email protected]
O conhecimento na comunicação artística: o papel do corpo na exposição Sala de
Jejum, de Milena Travassos
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
sob a orientação do Prof. Dr. Jorge de
Albuquerque Vieira.
SÃO PAULO
SETEMBRO 2011
2
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira, PUC-SP
_____________________________________
Prof.ª Dr.ª Christine Greiner, PUC-SP
_____________________________________
Prof. Dr. Wellington Júnior, UFC-CE
3
– À minha mãe, Edna Maria Lima
Gonçalves,
que
me
apoiou,
incondicionalmente, nesta importante
etapa da vida;
– Ao grupo Nzinga de capoeira
angola, espaço que me serviu de
alimento para o corpo e a alma.
4
Agradecimentos
Durante minha jornada, foram muitos aqueles que, de alguma maneira,
contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho. Decidi deixar minha cidade,
família e amigos em busca de um sonho e a conclusão desse mestrado é, sem dúvida,
somente o início desta realização. Com certeza, sozinha seria impossível ter dado esse
primeiro passo, tão corajoso e desafiador.
Primeiramente, gostaria de agradecer a meu tio, Daciberg Gonçalves, que me
recebeu em sua casa logo que cheguei a São Paulo e possibilitou que eu iniciasse o
mestrado sem preocupações até eu me estruturar na cidade e alugar o meu espaço.
Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– CNPq pela bolsa concedida para a realização de minha pesquisa durante os últimos 17
meses de desenvolvimento da dissertação. Sem dúvida, foram fundamentais para uma
dedicação exclusiva à pesquisa.
É com muito carinho que agradeço ao companheiro Diogo Arakilian
Marcondes, quem me fez acreditar novamente no amor e me ensinou a não levar vida
tão a sério. À sua mãe, Vanda, sempre tão atenciosa e cuidadosa.
Gostaria de agradecer aos meus amigos, pessoas tão importantes com quem
dividi momentos incríveis. Com Lívia Rios, aqui em São Paulo, dei boas risadas. Renata
Gauche também me trouxe alegrias. Natália Paiva e Amanda Queirós alimentaram e
alimentam o desejo de encontrar meu espaço profissional nessa cidade maluca. Outros
estavam mais longe. A distância entre São Paulo e Fortaleza diminui quando o coração
está perto. Tiago Coutinho, Mila Pereira, Jamile Alcântara, Carol Domingues, Bruno
Xavier, Maíra Bosi, Angélica Feitosa, Rúbia Mércia, Cristiane Sampaio. Muito
obrigada, meus amores, pelo companheirismo e amizade. Kamilla Farias, em Brasília;
Natacha Lemos, em Miami, vocês também ocupam parte grande no meu coração.
Gostaria de agradecer aos amigos que fiz no grupo Nzinga de Capoeira
Angola, espaço tão importante para minhas reflexões em torno do corpo e para meu
exercício de cidadania. Foi como integrante deste grupo que pude entender que a
construção do conhecimento se dá sim no corpo. É através da tradição oral e dos
movimentos da capoeira angola que meu corpo perpetua os ensinamentos ancestrais de
mestre Pastinha. E foi assim que pude entender, de fato, sua frase: “Capoeira é tudo que
a boca come.” Obrigada mestra Janja, Léo, Serginho, Dani, Dênis, Mandala, Mais,
Laura, Maurinho, Lili, Maré, Bia, Manô, Cacá, Andreza, Adrián, Ângelo, Anderson,
5
Thiago, Kosuke, Ingrid, Fernando, Rosemberg, Rodrigo e todos os outros que fazem
parte da família Nzinga. A este último, Rodrigo Fonseca, um agradecimento especial
pelos desenhos que ajudaram a ilustrar minha proposta de curadoria, no capítulo 3.
Meus sinceros agradecimentos ao meu orientador, Jorge de Albuquerque
Vieira e a todos os outros professores que me acompanharam nesta jornada, Amálio
Pinheiro, Rogério da Costa, Helena Katz, Norval Baitelo. A Christine Greiner, agradeço
por aceitar compor minha banca examinadora ao lado de Wellington Júnior, que veio de
tão longe – por conta própria – para prestigiar meu trabalho. Obrigada, professores. À
Milena Travassos, que disponibilizou um vasto material de pesquisa sobre sua obra e
me recebeu de portas abertas no Rio de Janeiro para entrevistá-la, me fazendo conhecer
um pouco mais da autora do meu objeto de pesquisa. A Fernanda Meireles, pela revisão
ortográfica deste trabalho.
Obrigada, primos; Bia, Bruno e Ricardo pelos encontros despretensiosos e
cheios de carinho. A Nuno Gonçalves e Maíra Castanheira todo meu amor e gratidão
pela presença constante via skype, estivessem na Bahia ou no México.
À minha irmã, Lídia Gonçalves Dantas Tavares, pelo seu amor imensurável. Sua
presença diária na minha vida me faz acreditar que eu nunca estarei só. Ao meu
cunhado, Henrique Tavares, por fazer minha irmã feliz e terem, recentemente, me dado
a sobrinha mais linda do mundo. Ao meu pai, Marcelo Ramalho Dantas, mesmo tão
ausente, simplesmente por ele existir.
À minha mãe, Edna Maria Lima Gonçalves, mulher guerreira a quem dedico
este trabalho e devo todas as minhas conquistas, um agradecimento especial, pelo amor,
pelo total apoio em minhas escolhas, respeito e dedicação. Muito obrigada, mãe.
6
Resumo:
Não é de hoje que o corpo é alvo dos holofotes de pesquisadores tanto na academia
quanto na esfera da arte. Para o estudo do tema, será necessário recorrer ao processo de
construção e às transformações que esta interface humana, chamada corpo, passou a
partir dos anos 50, principalmente no universo artístico e na reconstituição do sujeito
diante de novos paradigmas. Uma atenção especial será dada à legitimação do
conhecimento tácito, desenvolvido por Michael Pollanyi. A experiência artística
proporciona ao homem um modo de conhecer da ordem do sensível. A cognição
humana é ativada através de mecanismos que fogem do habitual. Isto, sem dúvida,
altera os processos culturais no entorno, assim como abre novas possibilidades de
conexões cognitivas no corpo humano. A legitimação de outras formas de
conhecimento por intermédio da sensibilidade do corpo traz uma nova perspectiva na
compreensão da comunicação. Um novo conceito aponta nesse início de século: a
Teoria Corpomídia, de Katz & Greiner. A partir daí, questiono as formas de
comunicação que acontecem nas experiências artísticas e o que elas têm provocado no
corpo humano induzidos pelos vários fatores que regem o atual processo cultural e
psicossocial, dentre eles, as novas tecnologias. Como a Umwelt humana é dilatada e
ativada pela experiência artística, estando ela apoiada ou não na tecnologia? Mais
especificamente: como a cognição humana é alterada pelo exercício complexo de uma
experiência artística? A partir desse problema, usarei o trabalho de Milena Travassos,
Sala de Jejum, como estudo de caso para estruturar minha pesquisa baseada na seguinte
hipótese: a cognição humana desenvolve-se por um processo co-evolutivo em relação
ao ambiente humano e a tecnologia fornece uma forma de extrasomatização apoiada nos
sentidos do corpo que acelera esse processo, dilatando a Umwelt da nossa espécie.
Estará presente neste trabalho a discussão filosófica de Jorge Vieira sobre a Teoria
Geral dos Sistemas. Giorgio Agambem entrará na pesquisa com o conceito de
profanação. Na base da discussão sobre os caminhos traçados pela comunicação, Jesús
Martín Barbero, Nestór Garcia Canclini, Marshall McLuhan, Boaventura Sousa Santos
aparecerão, assim como Walter Benjamin, autor base para os estudos da artista visual
analisada. Para discutir os processos cognitivos e o surgimento de uma nova
comunicação cultural, Muniz Sodré, Edward Hutchins, Helena Katz, Mark Johnson,
Richard Sennet, António Damásio dentre outros.
Palavras-chave:
comunicação, conhecimento tácito, arte, corpomídia
7
Abstract
It is not a novelty that the body is a target to spotlights of researchers such within
academy as in art sphere. For the study of this topic, it will be necessary to resort to the
construction process and to the transformations that this human interface called body
passed through the fifties, mainly in the artistic universe and in the reconstitution of the
subject facing new paradigms. A special attention will be given to legitimating tacit
knowledge, developed by Michael Pollanyi. Artistic experience provides to the man a
way of knowing proper from the sensitive order. Human cognition is activated through
mechanisms which escape from usual. This, without a question, alters cultural
processes, as well as new possibilities of cognitive connections in human body. The
legitimacy of other ways of knowledge through body sensitivity brings a new
perspective to communication understanding. A new concept emerges in the beginning
of this century: the Bodymedia Theory of Katz & Greiner. From this point, I question
the ways of communication which happen within artistic experiences and what they
have provoked in human body induced by many factors which are rulers of the current
cultural and psychosocial process, among them, the new technologies. How is human
Unwelt dilated and activated by artistic experience, based or not in technology? More
specifically: how is human cognition altered by the complex exercise of an artistic
experience? Starting with this problem, I will use the work of Milena Travassos, Sala de
Jejum, as case study to build a structure for my research based upon the following
hypothesis: human cognition is developed by a co-evolutive process related to human
environment and technology offers a way of extrasomatisation relying on the body
senses which accelerates such process, dilating the Unwelt of our specie. It will be
present in this work the philosophical discussion of Jorge Vieira on the General Systems
Theory. Giorgio Agambem will be present with the profanation concept. Intertwining
with the discussion on the communication field, Jesús Martín Barbero, Nestór Garcia
Canclini, Marshall McLuhan, Boaventura Sousa Santos will appear, as well as Walter
Benjamin, author base to the studies of the visual artist analyzed. To discuss cognitive
processes and the emerging of a new cultural communication, Muniz Sodré, Edward
Hutchins, Helena Katz, Mark Johnson, Richard Sennet, António Damásio, among
others.
Key-words:
Communication, tacit knowledge, art, bodymedia.
8
Sumário
INTRODUÇÃO _______________________________________________________10
1. Tateando as artes visuais
1.1 Apresentando uma ninfa ___________________________________________13
1.2 Reinventando o corpo _____________________________________________24
1.3 Corpo distendido: agente na construção da cultura ______________________ 27
1.4 Movimento é o pensamento do corpo _________________________________29
2. Análise das obras
2.1 Restituir ao uso livre do homem _____________________________________34
2.2 Vida e arte não se dissociam ________________________________________45
2.3 Olhar atento ____________________________________________________ 47
2.4 Revisitando a iconosfera ___________________________________________50
2.5 Tecnologia e percepção ___________________________________________ 54
2.6 Apreço ao belo __________________________________________________ 63
2.7 Emoções e sentimentos: a chave do conhecimento ______________________ 68
2.8 Travessia de superfície ____________________________________________74
2.9 Mídia e imagem: manipulação e imersão ______________________________83
2.10 Arte como dispositivo ____________________________________________86
3. Conexões filosóficas: caminhos e possibilidades da comunicação artística
3.1 Por uma autonomia coletiva ________________________________________91
3.2 Entropia viabilizando autonomia ____________________________________ 94
3.3 Estratégias para uma nova curadoria ________________________________ 100
3.3.1 Sala de jejum ______________________________________________100
3.3.2 O Banho__________________________________________________ 101
3.3.3 Náiades __________________________________________________ 101
3.3.4 Vertigem __________________________________________________102
3.3.5 Tudo que Sustenta___________________________________________104
3.3.6 Tempo de Paisagem e Para Ver Amarelo________________________ 105
3.3.7 Vigília____________________________________________________106
3.3.8 Na mesma direção __________________________________________107
4. CONCLUSÃO ____________________________________________________ 108
5. Referências bibliográficas ____________________________________________111
5.1 Bibliografia de Pesquisa __________________________________________ 113
6. Anexo 1 – Entrevista com Milena Travassos _____________________________115
7. Anexo 2 – Currículo Artístico _________________________________________122
9
Introdução
Em uma de suas muitas obras sobre o corpo, o sociólogo francês David Le
Breton escreve: “O corpo é similar a um campo de força em ressonância com os
processos de vida que o cercam” (BRETON, p.26, 2007). Esta afirmação nunca fez
tanto sentido quanto depois da experiência que me fez desenvolver esta pesquisa. Uma
vivência estritamente sensorial no campo da arte que reverberou para outras esferas da
minha vida. Em novembro de 2007, o Teatro Oficina Usyna Uzona encenou em
Quixeramobim, interior do Ceará, o clássico da literatura Os Sertões, de Euclides da
Cunha. Depois de assistir/participar da experiência, tive os primeiros questionamentos a
respeito de como acontece a produção de conhecimento no homem.
Aquela experiência gerou em mim a sensação mais estranha que me ocorreu
numa vivência artística. Uma mistura de mal estar e prazer de estar ali. Eu sabia que não
se tratava somente de uma opinião embasada na estética, em um “gostar” ou “não
gostar”. A imersão do meu corpo na obra foi capaz de provocar e transformar minha
percepção de valores relativos ao ser humano tão engessado em nosso meio social.
Explorar o mundo estranho de forma não só a tomar conhecimento, mas experimentá-lo,
na forma mais complexa do termo, significa entrar em contato com um repertório
cultural diferente do seu.
Depois disso, percebi que os mistérios que envolviam as experiências artísticas
me interessavam quanto forma de explorar outros universos e saber que, dali, era
possível estruturar conhecimentos no corpo de outra ordem, diferente dos espaços
formais e legitimados pela sociedade capitalista.
Durante o curso de Especialização em Audiovisual e Meios Eletrônicos,
realizado na Universidade Federal do Ceará, pude conhecer a artista visual Milena
Travassos1, que tinha uma pesquisa em torno do corpo que me chamava atenção. Ao
longo do curso, pudemos trocar algumas impressões teóricas sobre o tema e percebemos
nossa afinidade em torno de um interesse comum. Junto aos professores do curso, como
Renata Gomes, André Parente, Daniel Cardoso, Wellington Jr, busquei uma bibliografia
especializada e comecei a amadurecer um projeto de pesquisa que discutisse a arte
como forma de conhecimento, tendo o corpo como elemento central de comunicação.
1
Atualmente, a artista mora no Rio de Janeiro, onde desenvolve sua pesquisa de doutorado no
departamento de Comunicação e Cultura, na UFRJ Eco, na linha de pesquisa Tecnologias da
Comunicação e Estética. Ver anexo 1, onde ela descreve sua pesquisa de doutorado em entrevista.
10
Nesta pesquisa bibliográfica e no amadurecimento do projeto, descobri que
existem outros objetos que vem realocando conceitos e reestruturando formas de ação
no mundo que tem interferido diretamente nas relações sociais, além de redefinir esses
encontros entre os sujeitos e as produções artísticas. São elas as tecnologias.
A partir daí, surgiu o problema que desencadeou minha pesquisa. Questiono
sobre as formas de imersão que acontecem nas experiências artísticas e o que elas têm
provocado no corpo humano induzidos pelos vários fatores que regem o atual processo
cultural e psicossocial, dentre eles, as novas tecnologias. Como a Umwelt humana é
dilatada e ativada pela experiência artística, estando ela apoiada ou não na tecnologia?
Questiono, mais especificamente: Como a cognição humana é alterada pelo exercício
complexo de uma experiência artística? A arte-tecnológica se posiciona de que maneira
dentro deste processo? Desta forma, usarei o trabalho de Milena Travassos, Sala de
Jejum (2009), como estudo de caso para estruturar minha pesquisa baseada na seguinte
hipótese: a cognição humana desenvolve-se por um processo co-evolutivo em relação
ao ambiente humano e a tecnologia fornece uma forma de extrasomatização apoiada nos
sentidos do corpo que acelera esse processo, dilatando a Umwelt da nossa espécie.
No primeiro capítulo, será apresentada a artista, contextualizando a produção
Sala de Jejum em relação a trabalhos anteriores desenvolvidos por ela, além de citar
autores que discutiram a obra de Milena Travassos em publicações anteriores como
artigos, catálogos e produções científicas. Será feito também um apanhado teórico em
torno do conceito corpomídia, que guiará o cerne da discussão desta dissertação, através
de autores como Christine Greiner e Helena Katz. A partir do pensamento de Marshal
Mc Luhan, serão expostas alguma releituras de suas teorias. O movimento como um
pensamento do corpo estará presente neste capítulo, além de apontar pistas para os
rumos que o desenvolvimento do trabalho irá tomar.
No capítulo seguinte, encontra-se a análise dos doze trabalhos que compõem a
exposição Sala de Jejum: Para Ver Amarelo, Casulo, Apnéia, Tempo de Paisagem, Sala
de jejum, Vertigem, Tudo que Sustenta, O Banho, Sonata, Náiades, A um Passante e
Vigília. Sob diversos olhares teóricos, será trabalhada a discussão de Giorgio Agamben
em torno do conceito de profanação. De Walter Benjamin, autor que inspirou a artista
na nomeação e criação de Sala de Jejum, será focado principalmente as idéias que ele
discute em A Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Jesus Martín Barbero ao lado
de Nestor Garcia Canclini aparecem em suas análises sobre a cultura e sociedade.
Roman Gubern traz um olhar crítico sobre a inserção das imagens na vida social, desde
11
a modernidade até os dias atuais. Mark Johnson, Edward Hutchins e Michael Tomasello
contribuem com suas associações entre a cultura e a cognição humana, sem excluir o
corpo como um mediador desse processo. Muniz Sodré entra com a discussão de
política em torno dos afetos e dos sentimentos, dentre outros autores.
A análise dos trabalhos aparece enlaçada com as discussões teóricas para que o
leitor possa visualizar em que ponto aquele autor se encaixa na experiência prática do
trabalho da artista, além de sugerir as brechas quando isso não acontece.
No capítulo três serão discutidas maneiras de se olhar para a realidade a partir da
Teoria Geral dos Sistemas. Em torno dos conceitos filosóficos trabalhados por Jorge de
Albuquerque Vieira, como Umwelt, permanência, entropia, sistemas, autonomia, será
desenvolvido uma sugestão de caminho a ser adotado em busca por autonomias
conquistadas coletivamente. Será exposto o papel da arte nesse processo, além de
propor estratégias de uma nova curadoria.
Em anexo, o leitor pode ter acesso ao CD que reúne os vídeos apresentados nos
trabalhos da exposição analisada, uma entrevista com a artista, além do currículo
artístico de Milena Travassos, contendo as exposições individuais, coletivas e outras
informações sobre sua trajetória, como sua participação em exposições internacionais.
12
1. Tateando as artes visuais
1.1 Apresentando uma ninfa
Uma ninfa pousou nas laranjeiras. Decidiu mudar os ares, deixou sua terra
quente e desceu para o sudeste. Foi morar no Rio de Janeiro, lugar de terras úmidas e
frutíferas. Aos sábados pela manhã, ela colhe flores nos campos da esquina e renova a
energia da sua casa. Foi lá onde eu a encontrei. Em seu lar, no coração das Laranjeiras.
Eu queria saber sobre o seu mundo encantado, seus vôos, viagens e criações. Encontrei
uma mulher com cara de menina, que, às vezes, se transmuta em fada, em ser
mitológico, em água e vento. De fala mansa e idéias, por vezes, cheia de idas e vindas,
me falou de suas invenções, curiosidades, inquietações e anseios. Estivemos juntas por
dois dias. Conversamos, rimos, saímos, assistimos filme, fomos à exposições e
trocamos muita figurinha sobre o universo artístico que ronda o corpo, a comunicação, o
conhecimento e a sua produção quanto artista visual.
Era maio de 2011. Antes de me receber para a conversa „séria‟, que seria
gravada, ela, descontraída, – com aquele rostinho que ora se mostrava até envergonhada
– me pediu alguns minutos de leitura antes da entrevista. Debruçou-se sobre o texto O
enigma do Espelho, do livro Desgostos – Novas Tendências Estéticas, de Mário
Perniola e, somente então, me recebeu.
O meu primeiro encontro com Milena de Lima Travassos se deu anos antes,
mas foi em maio de 2011 e na realização desta pesquisa que conheci seus trejeitos,
descobri um pouco mais de sua personalidade e pude conhecer a fundo o seu trabalho.
Sua produção artística já me encantava de outrora, quando tive contato pelos corredores
de Fortaleza.
Mas a idéia de tomar a sua produção como objeto de estudo para ilustrar as
minhas inquietações em torno da arte tardou. Agosto de 2010.
– Milena, você poderia me passar o material da exposição Sala de Jejum,
catálogo, fotos, matérias que saíram na mídia? Escolhi tua exposição como objeto de
pesquisa do meu mestrado. Vou estudar a arte como forma de conhecimento, tendo o
corpo como elemento central nesse processo.
– Oi, Raquel, claro, eu te passo sim. Vou te dar também um CD com os vídeos
que foram editados para a montagem das vídeos-instalação. O que você precisar pode
contar comigo.
13
Quando o diálogo aconteceu, já tinha um ano que havia iniciado o mestrado.
Mas a necessidade do recorte não poderia me fazer adiar mais esta escolha. Aquela
menina, naquele momento, deixava de ser apenas uma colega de classe que eu tive na
especialização e se tornava objeto exclusivo de minha atenção por, pelo menos, mais
um ano. E assim foi.
Milena Travassos nasceu em Recife, mas teve uma infância cheia de idas e
vindas. Morou em Salvador, Teresina, Fortaleza, Recife de novo até fazer sua escolha.
Decidiu por Fortaleza. Aos 35 anos – recém completados em 12 de julho – Milena me
contou sobre sua trajetória. Mulher, mas com cara de menina, ela não nega suas raízes
pernambucanas, mas sabe que não foi lá onde obteve suas maiores conquistas. “Em
Recife eu nunca concretizei nada mais sólido. Nunca expus lá, por exemplo. Eu acho
que eu ainda estava querendo me encontrar quando eu saí de lá”. (ANEXO 1). Antes de
aportar em Fortaleza de vez, aos 23 anos, estudou no Instituto de Arte Contemporânea –
IAC, em Recife. Lá, ela conheceu pessoas relevantes para a sua formação e aprimorou
seus estudos com pintura e desenho. Mas não foi o suficiente.
Decidiu seguir para Fortaleza, onde seus pais moravam na época. Logo que
chegou à capital cearense, ingressou na primeira turma de Artes Visuais da faculdade
Gama Filho. Também tentou vestibular para Educação Física, Biologia e Filosofia. E foi
nesta última que o interesse lhe fisgou. Cursou filosofia na Universidade Estadual do
Ceará – UECE e, a partir daí, não largou mais o osso. “A filosofia me surpreendeu! Eu
nunca tinha pensado em fazer filosofia, mas no momento em que eu passei, eu já me
interessei em fazer o curso. As leituras que eu encontrei na filosofia me encheram de
inspiração para criar”. (ANEXO 1).
E se encantou com os escritos de Walter Benjamin. Foi assim que aquela
menina determinada enveredou pelas reflexões filosóficas do autor. Procurou alguém
para lhe orientar e deparou-se com a professora Teresa Calado. Ao lado dela, Milena
desenvolveu a monografia, concluindo a graduação, e também a dissertação, no
mestrado, fazendo na seqüência.
“Eu tinha interesse em pensar arte e política e, como ele tratava do
audiovisual, me parecia que ia ser um autor muito útil. O tema na
monografia foi A Necessidade Filosófica e Política da Arte. Já no
mestrado foi A Estética do Choque e a Política de Walter Benjamin.
Por isso, encontrar a Teresa Calado foi importantíssimo. O Benjamin
me encanta. Ele pega temas do cotidiano e os enriquece com um
vocabulário interessante, uma forma de escrita muito poética, lírica.
Ele se volta muito para artistas em seus escritos. Para arte em geral,
14
como ele fez com o Proust, Kafka. Isso me interessa muito.”
(ANEXO 1).
Em Fortaleza, Milena alicerçou seu conhecimento acadêmico e amadureceu
sua produção enquanto artista visual. Em paralelo com os estudos, começou a expor em
galerias, centros culturais de Fortaleza e a participar da política de editais. Seus
primeiros contatos com a arte deu-se através de Chagall, Odillon Redon e Gustav Klimt,
artistas que marcaram sua trajetória. “É engraçado como tem influências que ficam ali
imanando o seu interesse de produção. (...) Ele [Gustav Klimt] tinha umas pinturas que
eram só mulheres em cena. Eram bem coloridas. É engraçado porque hoje eu estou em
todos meus trabalhos.” (ANEXO 1).
Mais tarde, surge o interesse pelo cinema e a linguagem do vídeo, quando
conhece Tarkovsky, Sokurov e Bill Viola. No Brasil, o olhar cotidiano do
documentarista Cao Guimarães e a sensibilidade natural da artista Brígida Baltar são
referências para esta mente inquieta que não se acomoda no tempo. Maya Deren, Agnès
Varda, Hatsushiba e Pipillot Rist também instigam a veia artística.
Em sua produção, a transparência sempre foi um elemento relevante. O livro
de vidro foi sua primeira obra, “com inscrições que se apresentavam como uma
constelação de signos a serem decifrados” (RIBEIRO, 2007), define Sólon Ribeiro,
fotógrafo, crítico de arte e, posteriormente, curador de exposições da qual a artista fez
parte. O observador podia manusear as páginas de vidro do livro. Mas sua primeira
exposição individual foi Ligações, em 2003, realizada no Centro Cultural Banco do
Nordeste. Nesta, segundo a artista, o elemento da transparência já aparecia, mas ainda
não era central. A complementaridade das obras com o espaço era o foco. O trabalho se
baseava em sistemas compostos por linhas e pontos que montavam uma rede,
conectando informações com o espaço entre as torres de acrílico e o próprio ambiente
de exposição. “Meu desenho era bem esquemático”, recorda Milena.
Para a curadora da exposição Luíza Interlenghi, Ligações eram diagramas
simples, porém indecifráveis, que se mesclavam com os diferentes planos arquitetônicos,
“sugerindo marcações para um projeto a ser implantado, ou radiografias poéticas de
circuitos alojados para além das paredes opacas.” (INTERLENGHI, 2004). Ela ainda
continua sobre a artista:
“Sobre vidro e acrílico, os traçados de Milena propõem
representações destes sistemas complexos, tornando-os parcialmente
15
visíveis, mas sempre em transformação e abertos a novos processos
de integração: de um pequeno círculo parte um tracejado que atinge
um disco opaco e continua até uma conexão mais distante; símbolos
gráficos como a chave sugerem o contato entre dois pontos
complementares enquanto o curso de uma outra linha é delimitado
por caracteres incompreensíveis, apenas vestígios de linguagem.”
(INTERLENGHI, 2004).
Olhando para trás, Milena não guarda tanta poesia quando lembra sua primeira
exposição. “Ele [o trabalho Ligações] me incomoda um pouco, porque acho ele meio
frio. Ele não faz mais tanto sentido. É um trabalho com uma linha muito marcada, reta,
não traz um movimento. Não aproxima tanto o visitante. (ANEXO 1).
Mas a pesquisa continuou e a ânsia de criar também. O interesse por objetos
delicados, de vidro vinha se tornando mais forte. Em Pedaços Profundos, Milena teve a
oportunidade de “brincar” com dezenas deles, construindo um labirinto de vidrinhos
que passava pelo chão e subia pelas paredes do Alpendre, espaço que recebeu este seu
trabalho. Ora apareciam cheios com um líquido azul, ora se esvaziavam. “Trabalhando
com esses objetos eu fui criando o interesse de levá-los para o corpo. Foi quase que
instantâneo. Comecei a fazer testes, tentei ver se eles aderiam a pele e, talvez pelo
formato deles, pensei que o lugar ideal para se tentar conjugá-lo no corpo seria ao longo
da coluna vertebral.” (ANEXO 1).
As pessoas que Milena foi encontrando no seu caminho foram também peças
importantes do quebra-cabeça que se desenhava. A convivência com amigos,
professores, companheiros contribuiu bastante para o seu amadurecimento de criação. O
meio artístico por qual ela passou a circular foi fundamental para ela se encontrar
quanto artista visual também. Waléria Américo, Euzébio, Alexandre Veras, Sólon
Ribeiro estavam ali, ao lado de Milena, criando, trocando, crescendo, desenvolvendo
projetos juntos.
O Eusébio, que trabalhava com o teatro, fez um trabalho comigo,
chamado Nossa Senhora. Ele me vestiu como uma santa e me
fotografou. A Wal [Waléria Américo], também nessa época, pensava
o corpo dela em cena. Embora fosse sob outra perspectiva, diferente
da minha, tudo isso foi me influenciando e me fazendo pensar nessa
proposta de se colocar em cena. (ANEXO 1).
A vontade de se colocar em cena também veio no mesmo compasso que a sua
pesquisa em torno das transparências. A fragilidade, a delicadeza, o sutil aparecem num
corpo personagem. Não é a Milena Travassos que ocupa a cena. É mais um elemento de
16
composição: um corpo, objetos transparentes de vidro, os fluídos, os materiais
orgânicos.
Fotografias impressas em vidros. Ora cúbicos, ora em placas. Corpos
retorcidos e em movimento. Ao longo da coluna vertebral, objetos transparentes
alinham o eixo de sustentação do corpo. A Observadora, No Parapeito, Sobre Duas
Janelas, desenvolvidos em 2006, marcam seu trabalho em torno da fotografia impressa
em vidros, explorando elementos como a profundidade e a terceira dimensão visual do
expectador. A diluição de fronteiras ressalta a mescla com o espaço de exposição.
A Observadora (2006)
No catálogo da exposição Projéteis de Arte Contemporânea 2005, publicado
em 2007, na Galeria do Palácio Gustavo Campanema, no Rio de Janeiro, a curadora
Carolina Soares discorreu sobre a natureza inorgânica do vidro trabalhado pela artista.
Por ser sólido e frágil, simultaneamente, surge a consciência sobre um corpo rígido,
porém quebradiço. Em A Observadora está a experiência de um corpo consciente de si,
afirma a curadora.
“São extensões, a partir das quais a artista transmuta as
singularidades de seu próprio corpo, suscitando reflexões sobre sua
estrutura anatômica e fisiológica. Essa espécie de metamorfose, que
por vezes provoca estranhamento, também seduz. A pele branca, a
nudez sensual, a feminilidade da pose, a suavidade da luz encantam.
A relação dicotômica estabelecida é evidenciada quando as imagens
fotográficas são deslocadas para a dimensão tridimensional de cubos
de vidros, cuja transparência possibilita ao espectador perceber a
expansão poética proposta pela artista.” (SOARES, 2006).
17
Sobre o mesmo trabalho, o curador da exposição Quase Nordeste, Ricardo
Resende, na época era diretor do Museu da Arte Contemporânea do Ceará (2005 –
2007) falou sobre o impacto da obra da artista, a colocando entre as cinco artistas de
destaque no cenário da arte contemporânea cearense, ao lado de Yuri Firmeza, Waléria
Américo, Járed Domício e Jussara Correia. Embora com estilos diferentes, os cinco
despontam nos circuitos de arte do país e em 2007 ocuparam a Galeria Oeste, em São
Paulo. “Milena Travassos possui um trabalho delicado que ronda o surreal.(...) Existe algo
de fantástico na simplicidade poética e sensual de suas imagens transparentes em que
incorpora um personagem de si mesma, que se metamorfoseia ao diluir-se na translucidez
de suas imagens.” (RESENDE, 2007). Este trabalho da artista ganhou bastante destaque na
mídia nacional, sendo divulgado em sites – como o Portal ONNE –, jornais e guias – como
o Guia da Vogue e da Folha de São Paulo.
Como Milena Travassos mesmo enfatiza, os lugares e os objetos a convidam.
A criação, a realização de um trabalho dá-se a partir desses encontros. E foi assim
quando ela se deparou com o sobrado do Alpendre – Casa das Artes2, ainda em 2006,
espaço que resultou na criação de Debruçado e Um Lugar Fora Dele. O ato de
balançar-se aparece como um elemento de grande relevância em sua produção. Com
estas duas vídeos-instalação, o expectador consegue enxergar a preocupação da artista
em incluir o lugar como elemento chave da cena. Ricardo Resende, curador da
exposição Um Lugar Fora Dele – apresentada no próprio Alpendre, em 2006 – acredita
que as paredes e os telhados do velho casario do Alpendre representam:
“(...) a estranheza dos não lugares, sem chão firme, cheios de uma
nostalgia branca e uma certa dose de afogamento sufocante na
atmosfera pesada desses ambientes ou „quartos‟ de memória que mais
representam o „peso‟ do cotidiano.(...) O clima é de um mundo
fantástico e irreal, cujo silêncio só é quebrado pelo ruído do atrito dos
frascos de vidro e do ranger choroso das correntes. Vivenciamos dois
territórios humanos: o de uma visão enlouquecida proposta no
estranhamento do mundo criado ali, e o da escuta com os sons
desconhecidos captados no espaço. (RESENDE, 2006).
Esta descrição do curador sobre o ato de balançar-se e a captação dos sons em
Um Lugar Fora Dele, encaixa-se em situações seguintes, na obra de Milena. Isso
mostra uma preocupação recorrente com esses elementos. O fio condutor da obra da
2
O Alpendre – Casa das Artes é um espaço destinado a produção de arte e cultura, principalmente ligado
ao vídeo, dança e cinema. Fundada e dirigida por Alexandre Veras, tem um importante papel na cidade de
Fortaleza no incentivo as artes. A casa está em funcionamento desde o início dos anos 90 e já recebeu
importantes mostras, exposições e espetáculos de nível nacional e internacional.
18
artista dá-se por meio dos mesmos elementos, porém, apresentam-se com poéticas
distintas. Nesta mesma crítica, Resende associa a poética trabalhada no corpo
personagem com a mitologia grega. A imagem daquele corpo nu, balançando-se sobre
uma janela, escondendo-se por traz dos longos fios loiros de seus cabelos, tendo afixado
em sua coluna vertebral uma estrutura de vidro causando estranhamento no expectador,
permite um imediato jogo de ligações com o fantástico e o trágico. Ele diz:
“(...) É quase impossível para mim ao deparar-me com a produção
experimental e carregada de poesia mais recente de Milena
Travassos, e não pensar em algo fantástico e trágico só visto nas
tragédias gregas (românticas?), nos romances enlouquecidos da
história da humanidade ou nos abismais e horripilantes poços
descritos nos infernos de Dante e povoados por halos brancos no
formato de belas ninfas transparentes.” (RESENDE, 2006).
Outro lugar que fez Milena Travassos transbordar de idéias foi o seu grande
contato com a fazenda3 da família de Alexandre Veras. Foi lá onde Milena Travassos
deparou-se com o poço. Ali ela maturou ações em torno das mesmas inquietações que já
lhe ocorriam, porém através de outras imagens. Em 2007, surge o Vertigem – que
depois viria a integrar a exposição Sala de Jejum, sob outro formato – como mais um
trabalho que deu continuidade a sua pesquisa. Na mesma época, Mergulho também
ganhava vida. Tanto em Vertigem como em Mergulho, o cenário muda. Aqui, o espaço
não é mais de concreto. Milena propõe um corpo mais orgânico, que se dissolve na
realidade natural dos espaços ao ar livre. Açude, lama, raízes, água, poço, plantas e lá
estão os objetos de vidro novamente. Em Mergulho, ações filmadas e projetadas no
fundo de uma bacia com água. Um corpo nu lança vidrinhos no açude que se espalham
na margem com o lento ir e vir das águas movidas pelo vento. Outra ação, que também
integrou Mergulho, é a imagem de um corpo, vestido de lilás, boiando num grande poço
de água turva, ao lado de uma bacia de alumínio, cheia de pétalas e folhas. Os
elementos orgânicos encontram-se espalhados por toda parte – posteriormente, esta
mesma ação viria a compor outro trabalho, chamado Sonata, que também aparece em
Sala de Jejum.
3
Espaço onde Milena Travassos se recolheu para terminar de escrever sua dissertação de mestrado, fato
que lhe rendeu tanto produção intelectual acadêmica quanto criação artística.
19
Imagens do vídeo que
integrou, inicialmente,
Mergulho (2007) e,
posteriormente, a obra
Sonata (2009).
Vertigem consiste na ação de balançar-se sobre um grande poço. O observador
não vê onde as cordas do balanço foram presas, apenas acompanha o ir e vir contra o
vento daquele corpo nu, de cabelos longos, que vai e vem sobre o grande abismo de um
poço abandonado, sombrio, que não se vê o fundo. A crítica de arte Cecília Bedê,
editora do site de arte Canal Contemporâneo, escreveu sobre Vertigem:
“Talvez esse seja o lugar [o poço] e momento perfeito para realizar
uma fantasia, seguir um desejo súbito gerado pela vertigem presente
na cova funda aberta no solo. Sobe um frio na barriga só de pensar
que diante dele posso ter um capricho irresistível, posso ceder a uma
tentação, agir por impulso. Banhar, nadar, pular, cuspir, fazer um
pedido, declarar um amor reprimido, ouvi-lo ecoar, ver o próprio
reflexo, corpo nu. Ação geradora de subversão. Subverter o tempo, o
espaço e até indícios de humanidade. Personagem de si mesmo em
um mundo surreal. Atingir algo que é sublime. Milena realizou seu
desejo. Tornou-se um mito, um ser que habita águas sagradas.
Balança seu corpo nu, frágil, possuidor de algo divino. Metamorfose
que atravessa a fronteira da realidade, ser outro, outro lugar, em outro
tempo.” (BEDÊ, 2009).
A ação desencadeia uma mistura de sensações. O medo do ambiente inóspito é
quebrado pela serenidade daquele corpo tranqüilo que apenas desfruta do prazer de
balançar-se. O ambiente tira o observador do plano real e o eleva à realidade fantástica
dos contos de fadas ou da mitologia. Eduardo Jorge Oliveira, doutorando em literatura
comparada pela UFMG, também contemplado pela Bolsa de Produção Crítica em Artes
Visuais, FUNARTE, em 2010, acredita que “O limite da nudez do corpo feminino que
se balança são as vértebras transparentes de uma coluna que aparece na exterioridade do
corpo. O corpo que se balança, portanto, não é um corpo humano. E não o é por muito
20
pouco. Trata-se de um nu pictório, mas de um corpo enigmático, de uma ninfa.”
(OLIVEIRA, p.34, 2010).
Vertigem (2007)
Ainda no clima efusivo de criação em torno dos espaços ao ar livre e a diluição
do corpo com os elementos da natureza, nasce Tudo que Sustenta. A idéia de criação
veio numa noite em que a artista conversava, despretensiosamente, na varanda da
fazenda e lhe ocorreu uma cena de O Espelho, de Tarkovski. Ela descreve:
“A bacia estava lá, ainda sem uso, aí eu falei pra o Ale [Alexandre
Veras]: „eu podia fazer um banho‟, daí veio na mesma hora uma cena
de O Espelho, do Tarkovsky, que a atriz começa a molhar os cabelos
em uma bacia, a lavar, e você percebe bem que a cena está de trás pra
frente, porque tem um estranhamento, e ela está com uma camisola, e
as paredes do quarto começam a jorrar água, e a cair, como se fosse
um quarto bem úmido. Aí eu falei: „eu queria fazer um banho
embaixo
dessa
árvore‟.
Daí
fizemos!
(ENTREVISTA
PARTICULAR, 5/2011).
Na escuridão noturna, um corpo nu sentado aos pés de uma árvore centenária,
banha-se, lentamente. A câmera se aproxima do eixo de sustentação da coluna vertebral,
onde pequenos e delicados objetos de vidro estão afixados. Aqui, o observador tem um
estranhamento profundo ao entrar em contato com detalhes da estrutura de vidro na
coluna. Fabulação e mistério são palavras que combinam com o ato visto em cena. É a
partir de um desdobramento de Tudo que Sustenta e Mergulho que surge,
posteriormente, O Banho, trabalho apresentado em Sala de Jejum.
21
Na curadoria de Confrontações Poéticas (2007), realizada no BNB–CE, Sólon
Ribeiro discorre sobre o trabalho de Milena Travassos, não tão especificamente
relacionado às obras da artista que compunham a exposição coletiva – Mergulho, Tudo
que Sustenta, Tomando Fôlego –, mas sobre sua produção como um todo, uma vez que
ele já acompanhava o trabalho da artista desde o início de sua produção.4
“Ampliando as margens da pesquisa poética, elege o vidro
transparente, como suporte e cria objetos que mantém com o espaço
uma cumplicidade, objetos que absorve e expande o lugar que os
acolhe. Com prazer e segurança mergulha num universo onde o
domínio do fazer é questão primordial para atingir o sublime. No
inicio era o verbo a ser decodificado, agora é o corpo que transcende
o objeto. Milena constrói uma estética onde o corpo ganha lugar de
destaque, encena pequenas mitologias individuais que a colocam
além do ritual da auto-representação. A artista se integra à paisagem e
nos oferece a possibilidade de atravessar o espelho do real. Olhá-la é
sentir seu poder.” (RIBEIRO, 2007).
Tomando como referência as produções descritas até aqui, pesquisa que irá
alicerçar a base criativa e teórica da construção da última exposição individual da artista
– a ser analisada nesta dissertação – Sala de Jejum, vale destacar a relevância deste
encontro entre Milena Travassos, os espaços da fazenda e Alexandre Veras 5. O
envolvimento de Veras em torno da produção audiovisual também contribuiu para a
pesquisa de Milena. Tanto que, nesta mesma época, eles desenvolveram juntos um dos
trabalhos mais impactantes de Sala de Jejum, chamado Náiades, como veremos no
capítulo seguinte.
Os anos de 2007 e 2008 foram períodos de maturação e experimentação em
torno de uma pesquisa em andamento que fecundou a exposição Sala de Jejum e não
cessou enquanto processo de transformação. Em 2007, Maria do Carmo Nino, artista
visual e professora do departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE,
foi a curadora da exposição Corpo Instável, realizada em Recife, na Galeria Vicente do
4
Sólon Ribeiro foi professor de Milena Travassos na faculdade de Artes Visuais, além de um dos
fundadores do curso. Ele é artista visual e curador, formado em comunicação e arte pela L‟École
Superieure des Artes Décoratifs, em Paris.
5
Alexandre Veras é diretor fundador do Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, onde coordena o
Núcleo de Vídeo e Artes Visuais. Trabalha com vídeo desde 1989 e tem desenvolvido intensa atividade
como professor de vídeo, dando cursos de vídeo-arte, documentário, vídeo-dança, história e teoria do
filme experimental. Ele tem desenvolvido pesquisas e produções em documentários, vídeo-arte, vídeodança, imagens projetadas e colaborado em projetos de vídeo e vídeos-instalação de vários artistas. Este
ano trabalha em seu primeiro longa de ficção: Quando todos os acidentes acontecem, contemplado pelo
MINC. Foi professor de Milena Travassos na faculdade de Artes Visuais, onde se tornou seu parceiro de
produção, com quem, posteriormente, a artista viria a casar-se.
22
Rego Monteiro. Ela chamou a atenção para a produção de Vertigem e Tudo que Sustenta
dentro da pesquisa da artista.
“Milena, aparência de ninfa, tem seu próprio corpo como pátria na
construção de uma poética calcada na vulnerabilidade do ser humano.
No vídeo-instalação Tudo o que sustenta assim como também em
Vertigem, encontramos um certo número de referências presentes na
trajetória da artista: entre elas a eleição do vidro transparente
incrustado no corpo desnudo reforçando a linha encurvada da coluna
vertebral, elemento responsável pela sustentação, verticalização,
movimento e equilíbrio do nosso corpo no espaço.” (NINO, 2007).
E o processo criativo continua quando Milena Travassos ganha o
financiamento de três novas fontes para desenvolver sua pesquisa e realizar Sala de
Jejum: edital das artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Secult, o Prêmio
Sérgio Mota e, recentemente, em 2010, a Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em
Artes Visuais FUNARTE. A primeira exposição da Sala de Jejum foi em 2009, no
Sobrado Dr. José Lourenço, espaço onde irá se focar a análise desta dissertação.
Sala de Jejum é composto por doze trabalhos, onde dez deles são vídeosinstalação e dois compõem um trabalho com fotografia impresso em vidro. A
exposição, produzida para o espaço do Sobrado José Lourenço, se faz em completa
harmonia e conexão com a pesquisa que a artista já vinha desenvolvendo ao logo de sua
trajetória. Os trabalhos entre si dialogam de maneira conectada, fazendo o visitante se
perder pelos corredores do casarão e refletir sobre questões cotidianas da realidade.
Quando o cineasta Luiz Rosemberg Filho discorre sobre o trabalho da artista
ele enfatiza a importância do reencontro com o encantamento do silêncio proposto pelas
obras, que encurrala saberes agonizantes. Ele ainda cita o pensamento de Artaud, que
retrata com bastante sensibilidade a produção de Milena: “O que vocês afirmam ser
minhas obras, eram apenas os restos de mim,
estas raspas da alma que o homem normal não
acolhe.” (ARTAUD apud FILHO, 2009). Esta
definição
encaixa
perfeitamente
na
perspectiva que Milena Travassos trabalha. A
criação da artista não se dissocia de sua vida,
não somente porque existe um corpo que se
põe em cena, mas pela maneira subjetiva que a
23
arte se emaranha em sua vida e a própria vida se faz criação na produção de Milena
Travassos. Rosemberg Filho define Sala de Jejum:
“Vídeos-instalações sobre momentos entre a teatralização do olhar e
o gozo tranqüilo muito além do voyeurismo publicitário. Cria-se uma
desordem de momentos sagrados e belos. Fundamentalmente
poéticos, corporeizado por assimilações de espaços vazios. (...)
Milena produz encantamentos mágicos que nos [sic] envolve à todos,
onde o eficaz é se deixar levar no seu tempo. Tornando-nos sujeitos
de celebrações dionisíacas, instrumentalizando apenas a poesia e a
liberdade de ousar. Ousar para ser melhor ao nos desvendarmos como
parte de uma vacuidade lingüística. Milena torna-nos mais humanos e
profundos ao nos aproximarmos do entendimento da antinaturalidade do real. (FILHO, 2009)
Antes de esmiuçar a análise de cada trabalho que integra a exposição Sala de
Jejum, gostaria de discorrer sobre um tema que é muito caro à Milena Travassos e irá
aparecer ao longo de toda a dissertação: o corpo.
1.2 Reinventando o Corpo
Pensar o corpo como o eixo conector entre o indivíduo e o mundo é pensar
numa relação complexa onde está inserida uma discussão de cunho sócio-cultural. As
manifestações do indivíduo que constituem o comportamento social pressupõem um
estudo do significado e das relações que envolvem este eixo conector entre o homem e o
mundo, chamado corpo.
O corpo visto como comunicação se apresenta como linguagem. Depois que se
experimenta com o corpo, ativam-se outras percepções. É no corpo onde as informações
são processadas, modificando a si e alterando o meio. “O processo pelo qual as
informações que nos constituem tomam a forma do nosso corpo é longo, e se estruturam
na experiência. Experiência, aqui, sempre se refere a um estado cognitivo durável que
tenha resultado da percepção.” (KATZ, 2005 p. 56).
A produção de conhecimento depende da relação entre sujeito cognitivo e
objeto da cognição que implica estar sujeito às condições internas e externas a esse
sujeito. “A informação se constrói, inevitavelmente no „entre‟, na „mediação‟, na ação
inteligente dos signos” (GREINER, 2005, p. 76).
As representações assumidas pelo corpo são retratos da complexidade que
envolve o sujeito. Este corpo é capaz de produzir inúmeras construções simbólicas a
24
partir das experiências vividas no meio. “O corpo é socialmente construído tanto em
suas ações sobre a cena coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento ou
nas relações que mantém com o homem que encarna” (BRETON, 2007, p.26). O
antropólogo David Le Breton compara ainda o corpo humano com “um campo de força
em ressonância com os processos de vida que o cercam” (BRETON, 2007, p. 26). Esse
entendimento coloca o corpo diante do mundo como uma interface em constante troca.
“No fundamento de qualquer prática social, como mediador privilegiado e pivô, o corpo
está no cruzamento de todas as instâncias da cultura, o ponto de atribuição por
excelência do campo simbólico (BRETON, 2007, p. 31).
A compreensão do corpo como um elemento pivô no cruzamento das
instâncias da cultura nos faz refletir sobre que relação ele estabelece com a
comunicação. As mídias e seus processos associados são vistos como elementos que
imprimem complexidade e autonomia às formas de conectividade entre o corpo e o
meio. Estando isso na base da produção de conhecimento, podemos citar o conceito de
corpomídia, desenvolvido por Helena Katz e Christine Greiner. As pesquisadoras
admitem a idéia de corpo como algo que está sendo e não como algo que é. O corpo
entendido em seus diferentes estados, “sendo sempre ativo e nunca considerado como
instrumento ou objeto” (GREINER, 2005, p. 23). Negando a idéia de corpo como um
recipiente de informações, elas defendem o entendimento de corpo como mídia de si.
“A comunicação engloba, nesse sentido, uma visão bem mais ampla
do que aquela da comunicação de massa. Relaciona-se à circulação, a
vinculação e aos processos de cognição, por isso não se restringe „as
mídias‟.(...) A arqueologia dos saberes da comunicação não pode ser
restrita aos „objetos da comunicação‟, aos chamados „meios de
comunicação‟, mas nasce fundamentalmente dos processos de
mediação (ações pensantes) entre o corpo e o mundo, estabelecendo
uma rede complexas de relações”(GREINER, 2005, p. 51, 52 e 53).
Em contato com o meio ambiente constante, o corpo é algo em permanente
transformação, onde ele reorganiza todo um conjunto de informação antes construída
nesse sistema de troca com as novas experiências, realocando toda a rede de
informação.
“O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa,
pois toda informação que chega entra em negociação com as que já
estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde
as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de
si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada
como veículo de transmissão. A mídia a qual o corpomídia se refere
diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão
25
constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de
contaminação.” (KATZ e GREINER, 2005, p.7).
Esta compreensão torna-se fundamental para discorrermos sobre os processos
cognitivos pelos quais o sujeito está submetido enquanto ser vivo, portanto, será em
torno dela a base de desenvolvimento analítico da exposição Sala de Jejum. A teoria
corpomídia vem desmontar o entendimento de corpo como um simples espaço onde os
eventos acontecem (como a saída e chegada de informação, por exemplo). O corpo
torna-se o ambiente contextual dos processos entre o sujeito e o ambiente. Ele é também
agente de um processo que, durante muitos anos, acreditou-se ser somente um suporte
físico que viabilizaria a ação. A partir daí, entendo que o contato entre o corpo do
observador e o trabalho artístico é o momento em que a construção do conhecimento se
dá. Em Sala de Jejum, a experiência se dá tanto com a presença do corpo da artista em
cena como com o envolvimento do corpo do observador na exposição. Há uma
valorização dos espaços de encontro entre obra e visitante, de maneira a proporcionar
um ambiente propício a comunicação.
No universo humano que discute corpo e mente, Greiner afirma: “Ele [o
debate entre a relação corpo e mente] se origina em uma experiência prática, vivida
(taiken) que implica num continuum mente-corpo em um sujeito e em seus trâmites com
o ambiente. A teoria precisa ser necessariamente uma reflexão da experiência vivida,
porque ela se organiza durante a ação”. (GREINER, 2005, p.23).
O movimento, nesse sentido, é a manifestação desse corpo interligado com o
ambiente. É o sinal que o corpo aciona para iniciar o “conhecer algo”.
“(...) Sheets-Johnstone considera fundamental observar „novos modos
de pensar‟. Isso se dá pelo toque e pela experiência do corpo cinéticotátil, ou seja, é através do movimento, que se distinguem coisas
importantes como saber que se está andando na areia ou num chão de
pedra, o toque da mão na boca que faz um som de „m‟ ou um som de
„p‟ e assim por diante. O sensorialmente sentido parece ser a fonte da
cognição” (GREINER, 2005, p. 101).
Embora comunicação e cognição não sejam sinônimos e tampouco
estabeleçam uma relação de causa e efeito, ambas apresentam um traço comum que é o
fato de serem processuais. O processo comunicativo que acontece no e com o corpo
pode ser o alicerce para um conhecer que ainda está por vir. E no universo da arte, esse
26
processo se dá de maneira menos previsível, pois a cognição é afetada por mecanismos
que nem sempre são codificados ou da ordem do palpável e do concreto.
“(...) a comunicação não pode ser restrita a significados. Afinal, nem
tudo que se comunica opera em torno das mensagens codificadas. Há
taxas diferentes de coerência, incluindo, por exemplo, a comunicação
de estados e nexos de sentido que modificam o corpo. Esse processo
tem lugar no tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no
ambiente, no sistema sensóriomotor e nervoso. Quem dá início ao
processo é o sentido do movimento. É o movimento que faz do corpo
um corpomídia.” (KATZ e GREINER, 2005, p.9)
Os deslocamentos perceptivos são necessários para possibilitar outros estados de
cognição. A capacidade de compreender esse conceito destinado ao corpo, possibilita ao
homem a experiência da alteridade, indispensável para a sobrevivência e a permanência.
Como se sabe, todo processo de comunicação pressupõe a existência
da diferença. É preciso ser capaz de reconhecer um "outro", existir
algo que se destaque em um ambiente de iguais para que a
comunicação se estabeleça. Mesmo a mais básica das trocas de
energia e/ou informação só acontece fora da homogeneidade plena.
(KATZ, 2005, p. 18)
O fluxo pelo qual as informações se corporificam é comunicacional, entendendo
que toda e qualquer comunicação começa e termina no corpo. Portanto, esta é a
premissa que guiará a compreensão de corpo dentro deste trabalho.
1.3 Corpo distendido: agente na construção da cultura
Quando McLuhan foca-se na célebre máxima “o meio é a mensagem”
abre-se outro campo de reflexão sobre os processos de comunicação e
compreensão do corpo social. Quando ele afirma isso, McLuhan coloca em
evidência a forma. O meio é a forma que se iguala em relevância ao conteúdo.
O conjunto de ambas as partes formam um único processo. O entendimento
dualista que separa estas duas dimensões cai por terra e a televisão não significa
mais apenas uma caixa que transmite informações. O sentido não é
exclusividade do conteúdo. Agora, o conjunto da informação e do meio que se
transmite a mensagem, juntamente com o interlocutor, configuram um único
processo dentro da comunicação e da produção do conhecimento.
27
Admitir esta totalidade da ação permite-se considerar toda a complexidade do
sujeito, incluindo os afetos evolvidos no processo de recepção. Esta compreensão
encaixa-se com a leitura de Milena Travassos em torno de sua própria produção.
Conteúdo e forma são relevantes para a apreensão de um trabalho. Quando questionada
sobre as facilidades tecnológicas que vem viabilizando mais pessoas realizarem
trabalhos artísticos, ela foi enfática: “Não é a linguagem que se usa que vai dizer se o
trabalho é mais interessante que outro, se é melhor ou pior. É preciso olhar o conteúdo,
o trabalho por dentro e avaliar o conjunto. A forma também faz parte do conjunto.
Podem ter obras clássicas utilizando o suporte do celular ou mesmo a pintura em tela.”
(ANEXO1). O doutorando em literatura comparada Eduardo Jorge Oliveira acredita que
Milena Travassos, cria situações que a aproximam do cinema e da pintura,
simultaneamente. “Vídeos como Vertigem (2006) e Tudo que Sustenta (2008) inserem o
pictórico na repetição e na dilatação do gesto” (OLIVEIRA, 2010, p.33).
Dentro dessa lógica, o corpo também, inevitavelmente, integra o processo.
Como já foi dito anteriormente, o corpo não é um recipiente que armazena informações
e as expele. Não é uma mera conexão entre o mundo e a mente. O corpo é o meio e o
meio também é mensagem, uma vez que este está em constante reestruturação. Olhando
para os aparatos tecnológicos, McLuhan afirmou: “(...)as conseqüências sociais e
pessoais de qualquer meio – ou seja, de qualquer umas das extensões de nós mesmos –
constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou uma extensão de nós mesmo”. (MCLUHAN, 1964, p. 21). Quando ele
acredita que a tecnologia é a extensão do corpo do homem ele justifica. “Qualquer
invenção ou tecnologia é uma extensão ou auto-amputação de nosso corpo, e essa
extensão exige novas relações e equilíbrios entre os demais órgãos e extensões do
corpo. (...) Como extensão e aceleração da vida sensória, todo meio afeta de um golpe o
campo total dos sentidos. (MCLUHAN, 1964, p. 63).
Porém, Katz e Greiner desenvolveram uma idéia que vai além do que McLuhan
anunciou na década de 60, casando melhor com o conceito de corpomídia que elas
trabalham e que será utilizado nesta pesquisa. Elas acreditam na idéia de distensão do
corpo. Uma vez que o corpo entra em contato com a tecnologia e possibilita o sujeito
acessar outras realidades entrando em contato com outros processos cognitivos e
transformando o mundo à medida que também se auto modifica, este corpo foi
distendido.
28
Não é difícil caminhar para a reflexão da construção da cultura enquanto corpo
social depois de conectar o conhecimento sensível, a nova concepção de corpo
distendido – não só mediador dos meios, mas também agente dessa construção coparticipante do conhecimento – e os novos parâmetros adquiridos nas ciências
cognitivas e na comunicação. McLuhan afirma: “Os meios, ao alterar o meio ambiente,
fazem germinar em nós percepções sensoriais de agudeza única. O prolongamento de
qualquer de nossos sentidos altera nossa maneira de pensar e de agir – o modo de
perceber o mundo. Quando essas relações se alteram, os homens mudam.”
(MCLUHAN, 1969, p. 69).
Que tipo de relação se estabelece entre a exposição Sala de Jejum, a discussão
de McLuhan – com as devidas releituras de Katz e Greiner – e a teoria corpomídia? A
experiência do observador que se deixa imergir no ambiente artístico proposto em Sala
de Jejum, cheio de aparatos tecnológicos, é suficiente para uma alteração corpórea e
cognitiva do observador enquanto ser no mundo. Quando McLuhan diz que os homens
mudam quando as relações se alteram, é nesse sentido que podemos afirmar: Sala de
Jejum altera as relações entre sujeito e ambiente cotidiano, quando ela traz noções
distintas de tempo, espaço, velocidade e sentimento, questionando os conceitos
impostos socialmente numa estrutura rígida e presa às amarras do sistema. O cineasta
Rosemberg Filho atesta:
“(...) Cria-se uma totalidade de sonhos labirínticos, onde o olhar sem
um rosto definido embriaga-se com a potencialização de intensidades
poéticas. Ora, não se está fazendo uma imagem para vender esta ou
aquela mercadoria, mas para gozar a sua gestação mesclada de
abismos ilimitados. Uma doce e delicada obsessão por começos onde
o tempo torna-se corpo. (...) E que define, de certo modo, o Estado de
desejo-fascista em que vivemos todos, ejaculando sangue sem sonho
algum. (...) A asfixia é trabalhada nos gestos, nos objetos e nos
devaneios. Trabalha-se o desencontro com o próprio Eu.” (FILHO,
2009).
1.4 Movimento é o pensamento do corpo
Retomemos a reflexão sobre o processo de integração entre a formação da
cultura e a cognição dos indivíduos, descrita agora por Hutchins. Ele acreditava que a
cultura é um processo adaptativo que acumula soluções parciais para freqüentemente
surgirem novos problemas e se reestruturar diante dos novos parâmetros. O
29
entendimento de sujeito sem considerar os processos culturais é fundamentalmente
falho.
“These things [culture, context and history] are fundamental aspects
of human cognition and cannot be comfortably integrated into a
perspective that privileges abstract properties of isolated individual
minds. Some of what has been done in cognitive science must now be
undone so that these things can be brought into the cognitive
picture.”6(HUTCHINS, 1995, p. 354).
O autor reconstrói a formação da cultura pelo viés da antropologia e vai
apresentando discordâncias de vários teóricos até chegar nessa integração entre as
ciências cognitivas e a sociologia como atributos da cultura.
Pensando nesse sujeito agente da formação cultural por meio da socialização de
seu comportamento através de sentimentos e emoções, temos o corpo como uma das
principais fontes de conhecimento do homem.
O corpo é o pivô do conhecimento. As formas de acessá-lo sensorialmente – seja
através da arte, da viagem, do riso, da dor, da dança, do jogo, do frio, da labuta, da
experiência, em geral – têm que quebrar a hegemonia absoluta do racionalismo, da
ditadura da linguagem escrita e tirar as emoções e os sentimentos do nível de
dominados.
Greiner estabelece uma relação interessante entre os modos de conceituar as
coisas e significá-los a partir da experiência. “Os mesmos mecanismos neurais e
cognitivos que nos permitem perceber e mover são os que criam nossos sistemas
conceituais” (GREINER, 2005, p. 45). Conceituar pressupõe nomear algum sentido a
determinado fato. Esta ação, inevitavelmente ocorrerá de forma metafórica. A palavra
metáfora aqui diz respeito a maneira como conceituamos, como estruturamos uma
experiência em termos de outra. Não se trata apenas da metáfora como uma
característica da linguagem. Os conceitos estruturam o que percebemos, como nos
relacionamos com o mundo e com as outras pessoas.
“Como a comunicação é baseada no sistema conceitual que usamos
para pensar e agir, a linguagem é obviamente uma fonte importante
de evidência, mas é bom lembrar que não é a única. Os processos de
pensamento, antes de serem organizados como linguagem, são
6
Estas coisas [cultura, contexto e história] são aspectos fundamentais da cognição humana e não podem
ser confortavelmente integradas à perspectiva que privilegia as propriedades abstratas das mentes isoladas
dos sujeitos. O que tem sido feito nas ciências cognitivas agora deve ser desfeito para que essas coisas
possam ser levadas para a imagem cognitiva.
30
largamente metafóricos, ou seja, metáfora neste estudo não é apenas
figura de linguagem. (...) A comunicação pela sua própria natureza de
operar como uma espécie de „transportadora‟, já cria novas metáforas
organizando o trânsito entre ação e palavra, entre dentro e fora do
corpo e assim por diante” (GREINER, 2005, p. 45).
É possível perceber que as metáforas do corpo são construídas ao mesmo tempo
em que possibilitam novos modos de organização do ambiente ao redor, “na medida em
que se transformam em metáforas do mundo” (GREINER, 2005, p.55). Este aspecto da
comunicação é o fio condutor para se entender o elo existente entre o ato de conhecer e
o corpo vivido.
“As experiências são fruto dos nossos corpos (aparato motor e
perceptual, capacidades mentais, maquiagem emocional etc), de
nossas relações com o nosso ambiente físico (mover, manipular
objetos, comer etc) e de nossas interações com outras pessoas (em
termos sociais, políticos, econômicos e religiosos).(...) Assim,
conclui-se que há uma sistematicidade interna para cada metáfora que
só serve como veículo para um entendimento de um conceito se for
amparada por uma experiência prática” (GREINER, 2005, p. 46).
A discussão entre o dentro e o fora do corpo nos ajuda a entender como
pensamos e aprendemos com o corpo todo e não somente com o cérebro ou o sistema
nervoso. Daí pode-se conectar o ato de conhecer com o ato de mover. A dimensão do
movimento como forma de recategorizar informações e atribuir novos sentidos abre a
possibilidade para pensarmos a dança, o teatro, a performance, a capoeira como
mecanismos de conhecimento muito valiosos, que envolvem o corpo e a presença do
outro.
“A tese de que o pensamento é modelado no corpo é embasada em
evidências diferentes que são sempre ancoradas por conceitos
cinético-táteis que subentendem comportamentos ou são gerados por
eles (...) Tudo isso parte de dois pressupostos: a possibilidade do
corpo ser uma forma animada, viva e de ter conformação espacial,
posturas cotidianas, modos específicos de locomoção, movimentos e
gestos. Por isso falar em forma animada é, neste contexto, um modo
de descrever a espacialidade do corpo em todas as suas dimensões”
(GREINER, 2005, p. 100)
Helena Katz escreveu que a dança é o pensamento do corpo. O termo
pensamento empregado por ela designa uma maneira específica de organizar
informações. O pensamento não é algo que vem depois da ação, ele se constrói
justamente na ação. Baseando-se na teoria da pesquisadora, parto do pressuposto que a
dança a que ela se refere compartilha modos de estruturação semelhantes com algumas
31
outras atividades que exigem algum tipo de movimento, dependendo como elas são
utilizadas.
“Quando o corpo pensa, isto é, quando o corpo organiza o seu
movimento com um tipo de organização semelhante ao que promove
o surgimento dos nossos pensamentos, então ele dança. Pensamento
entendido como o jeito que o movimento encontrou para se
apresentar.” (KATZ, 2005, p.04)
Assim, podemos interpretar que o corpo dança em diferentes situações de
movimentos, incluindo outras formas de arte. Ou seja, o corpo organiza informações
que irão gerar o movimento com um tipo de estruturação semelhante ao surgimento dos
pensamentos numa ginga angoleira, seguida de um rabo de arraia7, por exemplo. A
conexão com o outro, gerada a partir dos movimentos realizados, configuram o
pensamentos-ação de que Katz fala. O corpo dança.
Greiner, ao falar do corpo artista, admite que “são os pensamentos organizados
pelo corpo artista que nascem com aptidão para desestabilizar outros arranjos, já
organizados anteriormente, de modo a acionar o sistema límbico (o centro da vida) e
promover o aparecimento de novas metáforas complexas no trânsito entre corpo e
ambiente” (GREINER, 2005, p.109). Este processo não pode se dar na forma da criação
do movimento?
Os movimentos gestuais que estão dentro da linguagem do corpo aparecem na
performance como um dos principais elementos de comunicação, mobilizada pela
vivência e pelo contato com o outro. Ali, vê-se o jeito que o movimento encontrou para
se apresentar, a partir de uma troca com o ambiente. Ali, vê-se o pensamento do corpo.
“Os pensamentos não representam um feudo exclusivo da
consciência. (...) O corpo não aprende por processos lineares
distintos. (...) Linear e caótico convivem, saqueiam os sentidos e, por
vezes, mostram que a crença na onipresença da consciência como
uma fiadora da racionalidade que nos singulariza, não passa de um
sopro oco. A dança no corpo é uma rajada de vento centrada. A dança
não tem proporção para episódios: ela é o rumor do movimento”
(KATZ, 2005, p. 39, 40)
7
Movimentos próprios da Capoeira Angola criada no Brasil-Colônia por escravos e descendentes
africanos. Também conhecido como Jogo de Angola. Definida como um mix de jogo, mandinga, luta e
dança, a Capoeira Angola é difundida através da oralidade e das vivências em grupo, onde a cultura afro e
a luta pela resistência são marcas fortes de seus fundamentos. Assim, dois ramos da Capoeira surgiram na
década de 30 e se distinguiram mais efetivamente a partir dos anos 70. Ocorreu, por um lado, a
organização da capoeira esportiva (Capoeira Regional) como arte marcial, e, por outro lado, a
mobilização de grupos de resistência cultural afro-baiana, que perceberam nos poucos grupos angoleiros a
manutenção dos elementos da capoeira trazidos pelos africanos de origem banto.
32
O pensamento do corpo integra um sistema complexo de relações em torno da
realidade. “Pensamento seria, portanto, movimento, fluxo de imagens, ação movida por
um propósito. Esta seria a fonte primária da comunicação. Não o corpo como coisa ou
instrumento, mas o corpomídia, criador de cadeias sígnicas” (GREINER, 2005, p.116).
Enveredei por este tópico para trabalhar com a premissa: o movimento estrutura
um pensamento do corpo. Então, a maneira como as obras em Sala de Jejum foram
dispostas no ambiente do Sobrado José Lourenço incitam um determinado movimento
por entre os corredores e salas do casarão. Sem especificar os trabalhos que provocam o
mexer, o mover e convidavam ao exercício dos sentidos como o toque, o olhar por outro
ângulo, o caminhar, o ouvir. Quando pensamos nessa perspectiva da recepção, estamos
falando da relevância desse encontro entre o produto artístico e o público, para além do
que foi pensado inicialmente pelo criador. Que tipo de construção do conhecimento é
feito nos espaços artístico onde os corpos participantes têm espaço para “pensar” (leiase: dançar), se expressar e interagir?
É levando em consideração as questões apresentadas neste capítulo que daremos
início à análise de cada obra que compõe a exposição Sala de Jejum, de Milena
Travassos.
33
2. Análise das Obras
2.1 Restituir ao uso livre do homem
O nome da exposição Sala de Jejum refere-se a um pequeno texto de Walter
Benjamin que a artista Milena Travassos adaptou chamado Sala Desjejum, publicado na
obra Rua de Mão Única, da coleção Obras Escolhidas, vol. II. O texto inicia falando de
uma tradição popular que adverte contra contar sonhos ainda pela manhã, em jejum. “O
homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo de sortilégio do
sonho.” Benjamin discorre sobre este limiar tênue entre o ato de dormir e o acordar.
Este não lugar em que se encontra o sujeito no estado de sono ao despertar. Como se o
indivíduo tivesse na espera do retorno de sua consciência plena. E o corpo, dentro desse
processo, se encontra em jejum. “Quem está em jejum fala do sonho como se falasse de
dentro do sono”. (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.2 –, 1987, p.11, 12).
Foi inspirada nestas poucas linhas do autor que Milena Travassos iniciou o seu
processo criativo para montar a exposição Sala de Jejum. Os doze trabalhos que
envolvem a exposição circundam temas suscitados a partir do texto, onde o estado de
recolhimento proposto é experimentado pelo corpo, borrando as fronteiras entre a
existência no mundo dos sentidos e no mundo imaginário; entre o onírico e o real;
evocando e acionando um estado de percepção na quietude e lentidão. “Sala de Jejum
evoca a percepção e um estado de recolhimento, onde os sentidos estejam apurados e
vividos, mas não na forma de um estado sempre alerta e de tensão que o dia-a-dia
urbano nos impõe, e sim, de quietude, de observação e de escuta” (TRAVASSOS, 2009,
p.1).
A exposição é composta por vídeos-instalação realizadas em vários lugares,
abertos e fechados, que compõem a vivência da autora e dialogam com os anseios
subjetivos da criação artística de Milena, colocando a questão do corpo em evidência
enquanto recorre às temáticas do texto Sala de Desjejum. As relações entre os elementos
naturais, os materiais utilizados e o corpo-artista alinhavam a estrutura necessária à
obra. Água, fogo, vidro, plantas costuram-se dando unidade à exposição. Os trabalhos
se apresentam imersos numa paisagem bucólica, seja na imagem de um corpo deitado
sobre os galhos de uma árvore com os cabelos ao vento; num grande poço de água
cercado de plantas; numa noite escura ao pé de uma árvore centenária com suas raízes
tortuosas ou mesmo num casarão antigo sobre suas escadarias de madeira que rangem a
34
cada passo. Todos eles se conectam sob um corpo que se mostra ora estático, ora em
movimento; ora acordado, ora sob a inércia do sono; ora denso, ora fluido.
A primeira edição da exposição ocorreu em abril de 2009, no Sobrado Dr. José
Lourenço, na cidade de Fortaleza, localizado no centro da cidade. A escolha do espaço
foi um elemento fundamental na produção da obra, incluindo a criação do trabalho que
deu nome à exposição. A análise exposta nesta dissertação será feita a partir da primeira
montagem da exposição Sala de jejum proposta para o Sobrado José Lourenço, uma vez
que quando exposta em outros espaços, as relações estabelecidas entre obra e público
são alteradas. A vídeo-instalação chamada Sala de Jejum foi realizada em uma das
escadarias do Sobrado, onde, mais tarde, sediaria a projeção que compõe um dos doze
trabalhos da exposição. Isto enriquece o trabalho de maneira única, limitando o
potencial da exposição quando ela sai dali. Apesar disso, Sala de Jejum já ocupou
outros espaços como a ONG Alpendre, em Fortaleza; o Museu de Arte Contemporânea
Parque Florestal, em Santiago, no Chile; e a Galeria Funarte, em Belo Horizonte.
Como foi dito no capítulo anterior, a exposição Sala de Jejum foi fruto de uma
longa pesquisa realizada ao longo da trajetória da artista, tendo incluído em Sala de
Jejum, trabalhos antes já desenvolvidos, porém sob formatos distintos, antes ainda não
experimentados. São eles Vertigem (2006), Tudo que Sustenta (2006) e O Banho
(2009), tendo este último surgido a partir de um desdobramento de trabalhos anteriores
(como O Mergulho, 2007) e não somente apresentado sob um novo formato.
Uma característica importante da vídeo-instalação Sala de Jejum – trabalho
que dá nome a exposição – é o tempo em que ela se passa: durante a aurora, o
amanhecer, a passagem da madrugada para o dia. O claro e o escuro se alternam no jogo
de imagens enquanto a artista, vestida num longo e único traje branco, lembrando a
roupa de dormir, acende, vagarosamente, lampiões espalhados ao longo da escadaria.
Degrau por degrau, ela vai subindo e acendendo. O áudio está focado no barulho dos
fósforos riscando, no manuseio do vidro que envolve as chamas dos lampiões e nos
passos na escada de madeira do casarão antigo. A iluminação é amarela, como o fogo, e
divide espaço com a escuridão da noite que vai perdendo espaço vagarosamente para o
dia que chega. Quanto mais ela sobe a escada e acende os lampiões, mais ela se
aproxima da janela localizada no andar de cima, no alto da escadaria. Por esta janela de
madeira e vidro, a luz do dia entra. Vê-se uma leve claridade. A artista chega até a
janela, abre, debruça-se sobre o olhar da aurora por alguns minutos e vai embora.
35
Ao realizar este vídeo, Milena pôde experimentar o espaço e incluí-lo dentro
de seu processo de criação. O Sobrado Dr. José Lourenço não foi somente um espaço
que sediou a exposição, mas também foi agente de construção e inspiração. “A ação
executada me possibilitou um mergulho no espaço, quase um me perder nele.”
(TRAVASSOS, 2009, p.2).
Para o doutorando em literatura comparada Eduardo Jorge Oliveira, o ato de
abrir a janela revelando o amanhecer do dia, expresso em Sala de Jejum, não remete
somente a mostrar “o céu como uma promessa de redenção, mas também uma espécie
de desvio, de esgotamento da repetição do gesto de acender as lamparinas – gesto
concentrado de um corpo notívago, que cultiva pequenas fontes luminosas, fracas e
oscilantes – em uma noite em claro.” Ele ainda reforça:
O jejum está relacionado ao espaço que aquele corpo habita. O
movimento da camisola branca associa-se à casa ou a um lugar que já
foi plenamente habitado. Esse corpo pode ser visto, assim, como uma
organização de linhas de força que tornam o espaço vazio
visualmente habitado, como uma das forças visíveis junto ao mundo
natural que culmina em uma aparição. Como um assombro, pois ele
não deveria – visualmente – está ocupando aquele lugar e, no entanto,
está”. (OLIVEIRA, 2010, p. 47).
Sala de Jejum
36
Durante a exposição, as imagens são projetadas numa janela fechada. Ou seja,
o vídeo produzido na escadaria do Sobrado com grande enfoque na aurora através de
uma janela é projetado também em uma janela do próprio espaço. Embora as duas
janelas usadas – locação do vídeo e projeção – não sejam exatamente a mesma, a
técnica aparece como uma espécie de metalinguagem. O observador reconhece o espaço
de locação enquanto assiste – no caso, uma janela do casarão – e vê-se diante do mesmo
objeto, usado como suporte no vídeo: uma janela do casarão. Aqui, a janela real e a
imagem da janela se sobrepõem trazendo uma nova utilização daquele objeto para os
olhos do observador. Sobre este fato, a artista escreve:
“Um lugar que se descola de seu contexto, de seu uso. Limitando-se
ao contorno da janela é como se a imagem ficasse mais confortável,
e, por outro lado, fazendo a janela saltar. A janela ganha uma
corporeidade sutil. Na sala com a projeção da janela o observador se
depara com uma situação instalativa que nasce da simbiose de dois
espaços imagéticos, um material, outro imaterial.” (TRAVASSOS,
2009, p.2)
Este recurso, que aparece também em outros trabalhos – como veremos a
seguir –, nos permite fazer uma ponte com a discussão teórica recente trazida pelo
italiano Giorgio Agambem. Não seria esta forma uma maneira de profanação da arte?
Quando o espaço da janela é utilizado para outros fins que não aquele comum,
inicialmente proposto, ela não traz ao observador uma possibilidade de repensar os usos
dos objetos cotidianos? Milena afirma que “uma das idéias da vídeo-instalação Sala de
Jejum era descontextualizar o lugar para irradiar novos sentidos a ele, como também às
imagens que o habitam”. (TRAVASSOS, 2009, p. 3).
O mesmo acontece no trabalho O Banho. Um vídeo é projetado sobre uma
bacia de alumínio posta no chão (detalharemos a ação quando for abordado o trabalho
Tudo que Sustenta). As imagens não ficam claras, uma vez que a superfície da bacia não
é plana. Identifica-se um corpo nu, banhando-se, sentado aos pés de uma árvore
centenária. O corpo retira a água com as mãos em concha de uma bacia (a mesma sob a
qual está sento projetado o vídeo) e leva à cabeça, deixando a água escorrer sobre a
pele. A projeção de um banho sobre uma bacia é que é usada na ação vista nas imagens.
A bacia real perde sua função única de armazenar água e funciona como um suporte de
acesso às imagens que a ela foram destinadas. O mesmo ocorre com a janela real do
Sobrado, em Sala de Jejum. Em ambos os casos, há uma espécie de metalinguagem. A
artista se utiliza de uma linguagem – do vídeo, por exemplo – para descrever um
37
sistema de signos que se apresenta na exposição sob outra linguagem – projeção sobre a
bacia de alumínio, objeto utilizado na ação vídeo.
O Banho
O Banho esteve presente dentro da exposição Realidades Imprecisas (2009),
no SESC Pinheiros, em São Paulo, e a curadora da exposição Carolina Soares, o
descreveu:
“Da reunião desses elementos [imagens, bacia de alumínio e água]
resulta a imaterialidade, o fugidio, a transparência, o reflexo. Tudo
nos escapa. Mesmo a existência concreta da bacia dilui-se no
convívio com elementos que se colocam fora do alcance das mãos. Se
retirada, da bacia restaria apenas o utensílio doméstico sem mais
encantos. Mas o que se vê é um conjunto que parece ocultar mistérios
irreveláveis. A sensualidade da imagem projetada sob a água
reverbera uma transparência que não se deixa por completo
transparecer.” (SOARES, 2009).
A idéia da construção de O Banho veio do desdobramento de outra idéia já
inicialmente gestada em outros dois trabalhos. Em O Mergulho (2007), Milena já havia
trabalhado com a idéia de projetar na bacia, mas as ações escolhidas para estarem lá não
encaixavam tão bem quanto as imagens editadas de Tudo que Sustenta, que são as que
compõem O Banho. “A primeira vez que eu trabalhei com essas várias cenas – o
balanço, o poço, o banho noturno na árvore, eu no açude jogando esses vidrinhos foi em
O Mergulho. Era tudo projetado na bacia. Eu olhando praquele trabalho, pensei: “tem
muita imagem aqui, eu poderia enxugar um pouco isso e pensar em outros trabalhos”,
explicou a artista em entrevista.
38
A partir do momento em que a arte, segundo Benjamin, passa a fundar-se na
práxis da política, abre-se a possibilidade para uma nova forma de comunicação: a
profanação na arte. Quando Agamben escreveu Profanações, muito já se tinha dito em
torno de temas como “o sagrado e o profano”; “zonas de indistinção”; “dispositivos”
etc. Nos escritos da artista sobre a obra, inclusive, ela desenvolve a idéia de dispositivo,
trabalhada por André Parente, assim como o conceito de cinema expandido.
Porém, será sobre o conceito de „profanar‟ que discutirei a questão apresentada
nestes dois trabalhos. Sodré acredita na dimensão da imagem em que o afeto e a
tatilidade se sobrepõem à pura e simples circulação de conteúdos. Em Sala de Jejum e O
Banho, temos ambos os elementos, afeto e tatilidade do espaço ali apresentado
duplamente tanto em imagem quanto em realidade. “Trata-se finalmente de reconhecer
a potência emancipatória contida na ilusão, na emoção do riso, no sentimento da ironia,
mas também na imaginação, requisito indispensável do „capital humano‟ compatível
com as formas flexíveis do novo capitalismo” (SODRÉ, 2006, p.13). Através da forma,
trabalhando elementos sensíveis da obra, chega-se a combinações que tocam os sujeitos
através de uma maneira de profanar.
Quando Agamben diz “Profanar, por sua vez, significa restituir ao uso livre
dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65); ou “Profanação significa abrir a possibilidade
de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um
uso particular” (AGAMBEN, 2007, p. 66) ele abre uma série de precedentes que nos
permite pensar o ato de profanar através da arte.
O espaço é um dos elementos cabíveis para se pensar as possibilidades e as
novas formas de uso. Em geral, a maioria são espaços cristalizados, de difícil restituição
do uso comum. Agamben fala do espaço do museu e o utiliza como metáfora para tratar
do espaço de maneira geral.
“A impossibilidade de usar tem seu lugar tópico no museu. A
museificação do mundo é atualmente um dado de fato. (...) Museu
não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado,
mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo
era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O Museu
pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira, com uma
região, e até mesmo com um grupo de indivíduos. De forma mais
geral, tudo hoje pode-se tornar museu, na medida que esse termo
indica a exposição de uma impossibilidade de usar, habitar, de fazer
experiência” (AGAMBEN, 2007, p. 73).
39
Nesse caso, o espaço do casarão antigo Sobrado Dr. José Lourenço sediando a
exposição, servindo de locação para a vídeo-instalação Sala de Jejum, realocando o
espaço específico da janela como lugar de projeção e produção, simultaneamente, nos
permite encaixá-los dentro da discussão de Agamben. O mesmo acontece em O Banho.
A partir do momento que o observador está diante da obra, ele toma consciência de que
o seu contato com ela iniciou-se desde o momento em que ele entrou naquele casarão.
Ele vai experimentando os trabalhos e entra em cena a comunicação, além de todo o
processo complexo que se estabelece entre o observador e a obra, em sua completude,
quando falamos de experiências desse gênero. O observador entende que aquele vídeo
exposto na bacia é o mesmo ou, senão, tem como base de edição as mesmas imagens
utilizadas em Tudo que Sustenta. Ele faz conexões entre os trabalhos e vai se
emaranhando no espaço imersivo da obra.
Benjamin abre a possibilidade para a arte assumir o caráter profanador, quando
ele fala que ela deixa de fundar-se no ritual e passa a se basear na práxis política. A
criação faz parte de um conjunto cujo processo pressupõe a presença do outro. Um
outro que irá ver, assistir, consumir, tocar, criticar, participar, rir, chorar, em suma,
experienciar aquela criação de alguma forma, seja ela uma pintura, uma peça teatral,
uma exposição de fotografia, uma performance ou mesmo – como é o caso – uma
vídeo-instalação.
Este universo ligado ao espaço onde se dará esse encontro, onde os processos
se consumarão, não necessariamente limita-se à fisicalidade do lugar. É viável que
reconheçamos como o trânsito entre corpo e ambiente se constrói, podendo levar o
sujeito a um não-lugar bastante complexo: o das intermediações. “Este não-lugar onde
nada existe de modo acabado, as possibilidades de relação se fazem presentes o tempo
todo, reinventa a noção de universalidade, de nacionalidade e do que significa estar no
mundo” (GREINER, 2005, p. 108). Gubern também atribui a este espaço das mediações
à arte, ressaltando seu caráter, possivelmente, também manipulador. “(...) Hay que
concluir que el arte se define por su caráter mediador y necessariamente manipulador, y
que toda imagen es una representación plástica de una representación mental o sensóriomental del artista” (GUBERN, 1996, p.36).8
Restituir as coisas ao uso livre do homem é, de maneira geral, o que a arte
tenta fazer quando ela quebra padrões, desmistifica a moral, traz à tona a hipocrisia
8
Tradução: Conclui-se que a arte se define pelo seu caráter mediador e necessariamente manipulador, e
que toda imagem é uma representação plástica mental o sensório-mental do artista.
40
social, inverte valores, reutiliza espaços não convencionais, vai de encontro a conceitos
pré-estabelecidos, brinca com a decadência humana etc. A arte tira as coisas do lugar e
chacoalha tudo realocando os objetos. Às vezes, ela chega a cometer negligências em
nome da profanação. “A criação de um novo uso só é possível ao homem se ele
desativar o velho uso, tornando-o inoperante.” (AGAMBEN, 2007, p.75).
No caso da exposição Sala de Jejum temos o espaço de um casarão antigo
sediando uma exposição de arte – uso não convencional – com um grande apelo aos
recursos tecnológicos, já que a exposição é composta, a maior parte dela, por vídeosinstalação. As projeções e as telas de plasma ao longo das paredes, dos salões e das
escadarias do casarão escuro ambientalizam o observador dentro da idéia proposta pela
artista, na medida em que a temática escolhida evoca este limiar fronteiriço entre o claro
e o escuro; o real e o onírico. A maioria dos trabalhos da exposição também joga com
este uso não convencional dos objetos e espaços, mas as vídeos-instalação Sala de
Jejum e O Banho, especificamente, brincam com a metalinguagem da obra, o que lhes
garantem uma maneira peculiar para o exercício de outros caminhos da cognição do
observador, outros corredores para acessar o que não se conhece. Eduardo Jorge
Oliveira, mais uma vez: “É como se, para o corpo, imagem e poema, culturalmente
complexos, fossem modos de operação privilegiados para captar toda a relação
cognitiva que abarca o próprio deslizamento para aquilo que não se conhece, para tudo
aquilo que está dado e posto como limite” (OLIVEIRA, 2010, p. 37).
Façamos o gancho com outro trabalho da exposição. Náiades é uma obra
assinada por Milena Travassos e Alexandre Veras e surgiu a partir de uma pesquisa dos
dois, fruto do 7º Prêmio Sérgio Mota de Arte e Tecnologia. É o trabalho que ocupa
maior espaço físico entre as obras de Sala de Jejum. Náiades é composto por dois
ambientes. Um interno e outro externo. A idéia era reproduzir a estrutura da fita de
Moebius,9 fazendo uma alusão às Náiades, da mitologia grega, que Milena Travassos
acessou através do dicionário de mitologia grega do Jean-Pierre Vernant. Em entrevista,
ela conta:
“Eu pensando em figuras que pudessem me inspirar, eu li um
fragmento das Náiades, que tem uma relação meio dúbia com o que
elas apresentam. Elas são produtoras de nascentes, de fontes de água.
9
Uma fita de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após efectuar meia volta numa delas. São estruturas que permitem a formalização de conceitos tais como
convergência, conexidade e continuidade, conceitos próprios da matemática moderna.
41
E em algumas histórias, em alguns momentos, elas deixam que as
pessoas se banhem. Na verdade, elas deixam pra adquirirem algum
bem em troca. A pessoa está com algum mal, então ela permite que a
pessoa se banhe, e aquele banho retorna para elas com outro
benefício. Já em outros momentos, ela impede que as pessoas
cheguem próximo dessas nascentes, dessas fontes d‟água, como algo
a ser preservado, algo sagrado.” (ENTREVISTA PARTICULAR
05/2011).
A partir daí, a instalação adquiriu um espaço convidativo, atraente: o lado
imersivo que foi estruturado na parte interna, e outro mais repulsivo, que distancia o
observador, o lado impeditivo, na parte externa. Alexandre e Milena queriam trabalhar
com estas duas esferas do trabalho.
A parte convidativa consiste em seis vídeos distintos com um único plano,
câmera parada. São imagens capturadas de uma parede de pedra imersa debaixo d´água,
contendo lodo e plantas nela grudada. A luz do sol refletindo de forma distinta em cada
vídeo dá movimento às imagens. As cores geradas por esta iluminação também
proporcionam texturas diferentes para cada um. O movimento da água também é
elemento de distinção. A disposição na montagem deu-se de forma circular, envolvendo
o observador sob uma estrutura que inicia alta e, à medida que o círculo vai se
completando, a parede vai diminuindo até o chão, quando o observador depara-se com a
parte externa do trabalho. Como se o observador tivesse entrando num grande aquário e,
através daquelas “janelas” (no caso, cada vídeo), é possível enxergar a parede que os
envolve. O principal elemento na parte convidativa de Náiades, dá-se na sonoridade.
Quando o observador chega neste ambiente circular, ouve-se o barulho de água
escorrendo, pingando, continuamente.
Náiades –lado imersivo
42
Aqui, a imersão proposta, exorbita os sentidos. Uma experiência sinestésica
pode alcançar o observador. O olhar, o ouvir e o sentir se conectam de tal maneira a
misturar-se. O corpo não distingue facilmente sob quais sentidos precisa recorrer para
experimentar aquela obra, então ele aciona simultaneamente mais de um. Esta sinestesia
dos sentidos suscita uma questão interessante em torno do ato de profanar. Além dos
espaços, podemos pensar em subverter as formas de recepção tradicional da arte e
restituí-la ao uso livre do homem. Quando o observador está dentro de um ambiente que
simula uma espécie de aquário, o corpo é submetido a sensações que se devem
exatamente a esta „confusão‟ dos sentidos, a esta sinestesia. Quando Gubern discorre
sobre o processo de imersão no universo das imagens, ele afirma: “(...) una experiência
cenestésica y cinestésica: cenestésica por cuanto permite la conciencia de la posición y
de la actividad del cuerpo em el espacio, y cinestesica ya que permite la conciencia de
los desplazamientos em tal espacio.10 (GUBERN, 1996, p.158).
Nesta perspectiva, pode-se pensar também em formas de redefinir os usos
comuns dos próprios sentidos do corpo, uma vez que é nele que a comunicação se dá.
Uma vez que a obra provoca esta sinestesia, por que não pensarmos em explorar novas
possibilidades de usar o tato ou o olfato, por exemplo? Se permitir desenhar o som que
se escuta ou sentir o cheiro de uma pintura não seria uma forma de profanar os sentidos
para que, assim, se possa tentar organizar novas conexões no ato de conhecer e, então,
profanar através deles? Deixar-se enganar pelos próprios sentidos e sentir a pele
molhada como se estivesse dentro de um aquário ou enxergar a água escorrendo não
seria um exemplo de profanação dos sentidos em Náiades?
Quando somos convidados a rir num momento de formalidade devido a ação
de um clown, por exemplo, ou a participar junto com os atores em um ato de uma peça
teatral ou a rabiscarmos alguns versos numa exposição de poemas estamos trabalhando
uma forma particular dessa separação entre obra e público, diluindo essas fronteiras.
Estamos reafirmando a zona de indistinção entre esses dois elementos indispensáveis no
processo de comunicação. Identificando esta zona, conseguimos observar mais
claramente a perda da aura do objeto diante dos olhos do receptor. “A profanação
implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido
10
Tradução: uma experiência cenestésica e sinestésica: cenestésica por permitir a consciência da posição
e da atividade do corpo no espaço, e cinestésica já que permite a consciência dos deslocamentos em tal
espaço.
43
profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituída ao
uso” (AGAMBEN, 2007, p. 68). Já anunciava Benjamin no início do século XX sobre
“retirar os objetos dos invólucros e destruir a sua aura”. A percepção humana é alterada
diante das possibilidades, gerando outros paradigmas. Dicotomias vão caindo por terra,
à medida que novas configurações vão se estabelecendo. “(...) o conceito de técnica
representa o ponto de partida dialético para uma superação do contraste infecundo entre
forma e conteúdo.” (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.122).
Após esta experiência contundente de imersão convidativa, o observador
depara-se com a parte externa de Náiades, o lado impeditivo, onde a proposta é
exatamente oposta, trabalhar com outras sensações, que geram outros sentimentos.
Medo, insegurança podem aparecer quando se vê uma projeção no chão, circular, de três
metros de diâmetro com imagens gravadas no grande poço, com câmera de pino, 90º.
Na imagem, vê-se um corpo vestido de branco, boiando no poço, enquanto a água
realiza movimentos circulares, em redemoinho. Os elementos da cena – o grande poço,
um corpo que bóia sem movimento próprio, a água em redemoinho – remete a morte, a
inanição, ao abismo que se encontra diante do observador, como se estivesse na beira do
poço. Milena refere-se ao corpo nesta produção como algo que se dissolve por completo
à paisagem e compara com outros trabalhos: “Nesse vídeo eu me torno água, acho que
até mais do que em Apnéia. No Apnéia eu tô com um vestido mais volumoso, lilás.
Nesse não, parece que eu sou pura água mesmo, como é a idéia das Náiades, da
mitologia.” (ENTREVISTA PARTICULAR 05/2011)
Náiades – lado impeditivo
O contraste entre as duas ambientações acontece. Diferente do lado imersivo,
na parte externa de Náiades, o observador não se sente convidado a se fundir naquele
44
ambiente. Sensações como vertigem podem visitar o observador ao acompanhar o
movimento circular que aquele corpo faz sobre a água.
Em Náiades, o observador é convidado a se perder nas sensações, podendo
descolar-se livremente pelo espaço circular escuro, deixando o olhar passear livremente
entre as telas coloridas de imagens fluidas11. E, ao mesmo tempo, traz a dimensão
sombria da obra, tirando o observador da zona de conforto. Náiades acolhe e repugna,
simultaneamente. Embora não exista nenhuma técnica mais evidente de diluição entre
obra e público, algo que convide realmente o observador a uma interação com a obra,
interferindo diretamente, as fronteiras se borram mesmo na inércia de um simples
caminhar, deixando os sentidos serem aguçados pela obra.
A tecnologia se apresenta de maneira expressiva e a técnica se mistura ao
conteúdo enigmático da obra. Eduardo Jorge Oliveira tece comentários em torno da
figura mitológica que envolve a ninfa em Náiades.
“Se o mito tem essa característica de linha de força, também pode
problematizar um suporte, como sugeriu o videomaker Alexandre
Veras (...). Por esse motivo, a instalação é um elemento importante
para que aconteça uma irradiação do mito para a imagem e da
imagem para a técnica. Em entrevista, Veras pontuou que a figura das
ninfas das águas conhecidas por náiades são importantes para ajudálos a problematizar a questão da técnica, que implica em como
apresentar a referida obra como uma instalação. Nesse caso, o mito
surge para alargar a linguagem da imagem em um determinado
suporte, criando uma rede de objetos e situação no espaço
expositivo.” (OLIVEIRA, 2010, p.43).
2.2 Vida e arte não se dissociam
Esta imersão do corpo do observador na obra proposta pela exposição não é
algo novo, nem tampouco recente. Não é possível excluir a relevância das experiências
anteriores do observador para deixar-se envolver no trabalho proposto.
Estamos falando de um tipo de conhecimento que depende de uma série de
variantes subjetivas, que não se resume a um conceito formal, previamente dado.
Estamos falando do conhecimento tácito, que se dá na experiência, à medida que o
homem vai experimentando novas possibilidades desse contato entre o corpo e o meio.
Este conceito foi amplamente debatido pelo filósofo Michael Pollanyi, no final da
11
Quando eu visitei Náiades, a primeira coisa que eu fiz quando sai do espaço foi respirar fundo – como
quem retoma o fôlego depois de sair debaixo d´água – e perceber que tinha me dado vontade de fazer
xixi.
45
década de 60.12 Ainda na década de 40, a filósofa Susanne Langer propôs uma discussão
sobre a arte e a criação e já anunciava sobre a riqueza no ato de experimentar: “A
experiência de cada homem pode somar-se a experiências de outros homens, que vivem
em seu tempo ou viveram antes; e assim, um mundo comum de experiência, maior de
que a sua própria observação, pode ser vivenciado por todo homem” (LANGER, 1971,
p. 17). Embora os estudos dela tenham tratado do processo artístico de forma generalista
e uniforme, caindo num reducionismo ao colocar as diversas linguagens no mesmo
patamar de categorização, sua reflexão, ainda no início do século XX, contribuiu
bastante para os estudos que seguiram no campo da arte. Esta afirmação da
pesquisadora nos faz acreditar na idéia de transformação através da experiência vivida
não só pelo sujeito indivíduo, mas também pelo outro que lhe antecedeu, ou seja, pela
experiência de um corpo social em constante transformação.
Quando Benjamin trouxe a reflexão, ainda em meados da década de 30, sobre
a emancipação da arte, aproximando o homem do objeto artístico a partir de sua
reprodutibilidade técnica, as pessoas puderam experimentar a arte de maneira
diferenciada, iniciando um processo de legitimação de outras formas do conhecimento.
Com a perda da aura e a popularização artística, o público pôde estabelecer outra
relação com a arte, permitindo novas conexões entre os saberes.
Com esse processo, inicia-se uma reformulação no entendimento da arte. “As
mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente
mágico, e depois religioso (...). Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se
emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do
ritual” (BENJAMIN, – Obras Escolhidas v.1 – , 1994, p.171).
As reflexões de Benjamin são exemplos de que retornar ao passado para
entender as insurgências do presente configura-se uma prática legítima e coerente. “A
nossa tarefa consiste em reinventar o passado de modo a que ele assuma a capacidade
de fulguração, de irrupção e de redenção que Benjamin imaginou com grande
presciência” (SANTOS, 2008, p. 82).
Abordar este tema é pertinente para tratarmos do ponto crucial que julgo
quando trabalhamos com a arte: a indissociação com a vida. A emancipação de que
Benjamin fala possibilita uma fruição maior entre esses dois campos. Para Jesus Martín
Barbero, estas duas esferas nunca podem se separar: “(...) a continuidade da arte com a
12
POLANYI, Michael. Knowing and Being; The University of Chicago Press, 1969.
POLANYI, Michael; PROSCH, Harry. Meaning; The University of Chicago Press, 1975.
46
vida, encarnada no projeto de lutar contra tudo o que separe a arte da vida, visto que
mais do que nas obras, a arte reside é na experiência. E não na experiência de alguns
homens especiais, os „artistas-gênios‟, mas mesmo na do homem mais humilde que sabe
narrar ou cantar ou entalhar a madeira” (BARBERO, 2009, p. 44). E ainda
complementa: “a cultura legítima rechaça antes de tudo uma estética que não sabe
distinguir, as formas, os estilos e, sobretudo, que não distingue a arte da vida”
(BARBERO, 2009, p. 120).
Esta compreensão da arte como forma de conhecimento encarnado na vida,
seja do corpo-artista no ato da criação ou do corpo-observador que se deixa imergir e
levar-se pelas obras, perpassa toda a obra da artista Milena Travassos. Não só em Sala
de Jejum, mas em suas criações ao longo da vida. Não é à toa que ela mesma fala que os
lugares e os objetos a encontram e não o inverso. A inspiração para a criação de cada
nova obra dá-se por um exercício cotidiano do olhar em deixar-se ser capturada pelo
espaço e pelos objetos que cruza no seu caminho.13
2.3 Olhar Atento
Retomando a idéia da espacialidade como elemento fundamental na
construção dos trabalhos de Milena Travassos, coloco em evidência esta característica
em suas criações. Tanto o espaço que sedia as exposições, como os lugares escolhidos
para as ações são fundamentais e determinantes na construção da linguagem
desenvolvida por ela. É exatamente no tocante desta esfera inseparável entre a vida e a
arte que estas seleções se dão. A artista é fisgada pelos espaços que lhe convidam a
realizar uma ação.
“Não se trata de performance, as ações são realizadas para serem
filmadas em um lugar específico, previamente escolhido e estudado.
Posteriormente transformam-se em vídeos-instalação. Falo em
escolha de um lugar, mas os encontros também se dão
despretensiosamente, pois nem sempre há a procura, e sim o olhar
atento. Deparo-me com esses lugares em meu cotidiano; de repente,
acontece de aparecer na minha frente uma árvore, um poço, um
sobrado, uma escadaria.” (TRAVASSOS, 2009, p.4)
13
Assim aconteceu recentemente quando a artista visitava um brechó, no Rio de Janeiro. Ao entrar na loja
de antiguidades, despretensiosamente, deparou-se com alguns objetos de vidro compridos, de formas
arredondadas, feito garrafas e não hesitou: comprou todo o estoque da loja. O que será feito? Ela ainda
não sabe, mas os próximos encontros dirão. O ato criativo é um exercício diário.
47
Podemos dizer que a artista trabalha constantemente com a subjetividade
barroca desestabilizadora que a encarna. No caminhar de seus trajetos, as idéias saltam a
partir de suas experiências. Ela encontra a brecha para realocar objetos e deixar as idéias
virem à tona a partir dos encontros. Encontros rotineiros entre seu corpo e o meio, mas
que caem no olhar atento de Milena, abrindo as portas para a janela da criação. Como
define Boaventura Sousa Santos:
“Uma subjetividade desestabilizadora é uma subjetividade dotada de
uma especial capacidade, energia e vontade de agir com
clinamen14(...) Por ser incapaz de planear a sua própria repetição ad
infinitum, a subjetividade barroca investe no local, no particular, no
momentâneo, no efêmero e no transitório. Mas o local não é vivido
de uma forma localista, ou seja, não é experienciado como ortopia. O
local aspira antes a inventar um outro lugar, uma heterotopia, se não
mesmo uma utopia” (SANTOS, 2008, p.91; p. 206).
Em Apnéia, por exemplo, a artista faz uma alusão a Epicuro, devido a forma
como os elementos estão dispostos em cena. “Os personagens não tem uma marcação
precisa, estão livres para os encontros ocasionados por seus movimentos e pelo ritmo da
água” (TRAVASSOS, 2009, p.5). A câmera passeia em movimentos lentos e circulares
em torno dos elementos que compõem a cena submersa, dispostos dentro de um espaço
aquoso, sempre no limite entre o fora e o dentro da água. Estes elementos são garrafas
de vidros, materiais orgânicos (como plantas, flores e galhos) e o corpo-artista de
Milena. Ali, ele aparece boiando, num traje de cor lilás, volumoso, como mais um
elemento de composição dos planos. Corpo e paisagem se fundem. Ele é tão relevante
quanto cada material que flui e se mexe frente à câmera. Ele está a deriva, como todos
os outros elementos imersos.
Milena está sempre à procura de uma abordagem lírica da paisagem, como ela
mesma define, pois entende suas vídeos-instalação como poemas visuais. A água
aparece ora turva, ora transparente. As garrafas funcionam como lentes que formam e
deformam as imagens, enquanto se chocam e mudam de direção no ambiente aquoso.
O vídeo de 33 minutos é projetado de forma invertida, numa grande parede de
uma sala escura, em 300 X 600 cm. A técnica causa estranhamento no observador que
dificilmente perceberá como aquilo foi feito, apenas se deixará envolver pela estética
14
Boaventura Sousa Santos se apropria do conceito de climanen utilizado por Epicuro e Lucrécio, para
referir-se ao desvio, à inclinação que perturbam as relações de causa e efeito sobre os átomos de
Demócrito. “O Climanen é o que faz com os átomos deixem de parecer inertes e revelem um poder de
inclinação, ou seja, um poder de movimento espontâneo” (EPICURO, 1926; LUCRETIUS, 1950 apud
SANTOS, p. 90).
48
peculiar, de fronteiras borradas e imagens sem linearidade. A coloração do vídeo – em
alguns momentos – também é alterada a partir da técnica. Os tons de cinza dão textura à
imagem, destacando o material orgânico em movimento dentro do ambiente fluido.
Assim como em Náiades, o áudio exerce uma função de ambientalização para a imersão
na experiência da obra. O espaço acústico proposto funciona como guia para o
observador para conseguir conectar-se à obra e mergulhar na realidade imagética
proposta.
Apnéia
“Sabemos que nossa percepção do espaço, nosso senso de orientação
é marcado eminentemente por nossa experiência auditiva. Interferir
no espaço acústico a partir do uso de sonoridades instáveis constitui
então uma das estratégias de romper com a frontalidade da imagem
bidimensional. Ao entrar nesse espaço, o visitante é convidado a
manter-se em um estado que mistura atenção e inércia, por algum
tempo seu corpo e olhar devem se deixar levar pela atmosfera desse
espaço de experiência em torvelinho” (TRAVASSOS, 2009, p.5).
Esta afirmação suscita uma discussão em torno de temas como a tecnologia e a
percepção humana. Os estudos sobre o surgimento e o desenvolvimento do cinema,
além da disseminação das imagens são fundamentais para entendermos esta marca forte
das imagens dentro do trabalho da artista visual analisada. “As tecnologias
comunicativas e a reorganização industrial da cultura não substituem as tradições nem
massificam homogeneamente, mas transformam as condições de obtenção e renovação
49
do saber e da sensibilidade” (CANCLINI, 2008, p. 263). É nesta renovação do saber e
da sensibilidade que o corpo social se modifica, possibilitando trabalhos desta ordem.
2.4 Revisitando a iconosfera
As imagens tiveram um importante papel na construção de uma nova cognição
social. O surgimento do cinema designou à arte o caráter de entretenimento. Este fato
não só legitimou a existência das massas como também as incluiu no processo de
ebulição do novo ecossistema cultural que eclodiu na segunda metade do século XX.
“Com o que se estava afirmando uma nova relação da massa com a
arte, com a cultura, na qual a distração é uma atividade e uma força
da massa diante do degenerado recolhimento da burguesia(...). O
espectador de cinema se torna um novo tipo de experto, no qual não
se opõem, mas se conjugam a atividade crítica e o prazer artístico”
(BARBERO, 2009, p. 84).
É nesse sentido o entendimento de Benjamin quando enxerga nas massas e na
técnica a emancipação da arte. A possibilidade de deleitar-se diante de uma obra,
atribuindo a ela o caráter de entretenimento, faz da produção artística um objeto de
prazer. Característica que perpassa a exposição analisada. Nota-se uma preocupação
estética em cada trabalho, um cuidado com os sentidos do observador. Não só aos olhos,
mas também à mistura de sensações. O prazer do deleite de estar diante dos trabalhos de
Sala de Jejum, foi uma preocupação da autora.
Em meados do século XX se verificava várias experiências no Brasil e no
mundo em torno da vídeo-arte e do cinema experimental. A expansão icônica que
alavancou nesse período trouxe efeitos marcantes para a sociedade. Benjamin destaca a
mudança de foco nos sentidos em torno da visão, com a grande disseminação das
imagens.
“Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi
liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora
cabiam unicamente ao olho. Como o olho aprende mais depressa do
que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens
experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível
que a palavra oral” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 – , 1994,
p.167).
50
Esta declaração de Benjamin nos permite conectá-la aos escritos de Richard
Sennett sobre as habilidades manuais e visuais do homem. Sennett cita Charles Bell
que, ainda no início do século XIX, conferia uma posição privilegiada à mão na criação,
“tendo efetuado várias experiências para sustentar que o cérebro recebe do toque da
mão informações mais confiáveis que as imagens do olho – cedendo este com muita
freqüência a aparências falsas e enganosas” (SENNETT, 2009, p. 170).
Aqui temos um paradigma apresentado por duas vertentes de compreensão dos
sentidos. De um lado, a confiabilidade naquilo em que se toca. Do outro, o
deslumbramento e a velocidade de acesso a informação proporcionada pelo olho. De
fato, esta última viria a se consolidar em grande massa nos tempos atuais. Benjamin
estava certo. O olho aprende mais rápido, porém, corre um grande risco de cair em
armadilhas. A confiabilidade do tato conferido à mão foi se tornando um processo de
verificação raro e se perdendo proporcionalmente a aceleração das imagens no meio
social. A partir daqui, a imersão do observador no universo artístico passa por um
processo progressivo. Os recursos permitidos pela disseminação imagética e pelas
tecnologias para esta imersão caminham disparados.
Tudo isso possibilitou a designação de novos conceitos. Iconosfera foi um
deles. O termo foi proposto em 1959, por Gilbert Cohen Seat, para designar o entorno
imagético surgido a partir da televisão, do cinema e seus derivados. Um pouco mais
tarde pudemos ver o conceito de semiosfera, criado por Yuri Lotman para designar o
ambiente ou o entorno de signos que envolviam o homem moderno. Tudo isso surgia
com a proposta de firmar a função fundamental que a imagem tinha adquirido na
comunicação social, membro central do novo ecossistema cultural que emergia. “(...)
formado por las imagenes del cine, la televisión, la publicidad, las revistas ilustradas – y
cuyos efectos psicológicos e sociales parecián a veces inquietantes y potencialmente
amenazadores para la tradicional y solida cultura Gutembergiana de la palabra escrita”15
(GUBERN, 1996, p. 108).
A expansão do cinema como nova linguagem, como arte para as massas,
chegou se apropriando de um sistema vocabular já existente, como terminologias
profissionais de artes precedentes.
15
Tradução: Formada pelas imagens do cinema, a televisão, a publicidade, as revistas ilustradas – cujos
efeitos psicológicos e sociais pareciam as vezes inquietantes e potencialmente ameaçadores para a
tradicional e sólida cultura Gutembergiana da palavra escrita.
51
“El encuadre, la composición, el claroscuro, el escorzo y los valores
plásticos procedieron del vocabulario de los pintores y fotógrafos. De
la literatura tomo los conceptos de narración, acción paralela, fashback, flash-forward y metáfora. De la terminología y de las práticas
teatrales adoptó la puesta en escena, el decorado, la iluminación y la
interpretación de los atores. De la musica provino el concepto de
ritmo.Y los cineastas soviéticos adoptaron de la ingeniería el
conceptpo crucial de montaje”.16 (GUBERN, 1996, p. 110).
Esse movimento mostra que, mesmo com o surgimento da tecnologia, a arte
continuou recorrendo a outras linguagens para se estruturar como forma própria.
Embora a literatura e a aura da palavra escrita tenha se mantido por muito tempo em seu
pedestal artístico, o intercâmbio entre as linguagens sempre existiu, mas acabou se
consagrando entre as massas a partir da sua emancipação. Quando Milena Travassos se
apresenta como filósofa e artista visual, se torna evidente o movimento entre as diversas
linguagens da arte em que ela transita. Esta é uma característica comum dos artistas
atuais, a grande inserção em discussões de várias áreas; a interdisciplinaridade.
Atentemo-nos ainda para o grande impacto que questões trazidas pelo cinema
contribuíram para teóricos da comunicação e para a história da arte. Benjamin compara:
“Mas as dificuldades com que a fotografia confrontou a estética tradicional eram
brincadeiras infantis em comparação com as suscitadas pelo cinema.” (BENJAMIN,
1994, p.176).
A capacidade de abstração do real gerado pelo cinema não é da ordem somente
do lúdico ou da força poética do conteúdo da história. Isso também é mérito da técnica.
A potencialidade imersiva que o cinema adquiriu, possibilitou às massas uma força
política antes não experimentada no âmbito artístico. O mesmo público que utilizava o
cinema para o entretenimento também pôde utilizá-lo como ferramenta política, ainda
que alguns críticos tenham dificuldade para reconhecer essa potencialidade. A recepção
se manifesta diferente de acordo com o produto apresentado.
“(...) tudo que é percebido e tem caráter sensível, é algo que nos
atinge. Com isso favoreceu a demanda pelo cinema, cujo valor de
distração é fundamentalmente de ordem tátil, isto é, baseia-se na
mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o
espectador.” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 –, 1994, p.192).
16
Tradução: O enquadre, a composição, o claro-escuro, o escorço e os valores plásticos procederam do
vocabulário dos pintores e dos fotógrafos. Da literatura tomaram-se os conceitos de narração, ação
paralela, flash-back e metáfora. Da terminologia e das práticas teatrais se adotou o pôr em cena, o
cenário, a iluminação, e a interpretação dos atores. Da música proveniente do concerto de ritmo. E os
cineastas soviéticos adotaram da engenharia o conceito crucial de montagem.
52
É através do olhar que o cinema ativa o sistema tátil do expectador. Os efeitos
de choque das seqüências de imagens dominam o corpo, num espaço onde a
coletividade procura a distração. É ali que ocorre a reestruturação do sistema perceptivo.
“A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios
da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas,
tem no cinema o seu cenário privilegiado” (BENJAMIN,– Obras Escolhidas v.1 , 1994,
p.194).
É este processo, que tem início no cinema, que só continua a se expandir e a
trazer novas possibilidades de imersão para o observador. Para Milena, a tecnologia
digital traz aos artistas novas possibilidades de „produção‟ e não só de „reprodução‟,
como anunciou Benjamin no início do século passado ao referir-se às inovações
tecnológicas da época, como o cinema, por exemplo. Sobre as tecnologias atuais, ela
lança: “A realidade virtual, por exemplo, um dos resultados mais enigmáticos da
tecnologia digital, não é uma mera tradução de dados em imagem de tamanho natural
que imitam a realidade; é a própria realidade.” (TRAVASSOS, 2009, p. 3). E é
trabalhando com esta premissa de produção e não de reprodução, que a artista entende a
contribuição das tecnologias em sua arte. Ela faz uma adaptação do que Benjamin disse
em 1935.
“Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de
tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua
reprodução (...) Retirar o objeto de seu invólucro, destruir a sua aura,
é a característica de uma forma de percepção cuja a capacidade de
captar o semelhante no mundo é tão aguda, que graças a reprodução
ela consegue captá-lo até no fenômeno único.” (BENJAMIN,– Obras
Escolhidas v.1 – , 1994, p.170).
A percepção humana vai sendo alterada diante das possibilidades, das
combinações e dos rearranjos culturais que a sociedade vai passando. As novas relações
que o corpo começa a estabelecer com o seu entorno também sinalizam o caminhar
desse processo de transformação cultural. É impossível impedir o corpo de experimentar
as variações sensoriais da cultura. Quando falamos do corpo que vive inserido num
social coletivo, a tendência é sempre o aumento da experiência sensível dentro do
laboratório da cultura.
53
2.5 Tecnologia e percepção
Dentro desta ótica que Travassos traz a partir de sua produção, quanto a
relevância e as estratégias permitidas pela tecnologia, acrescento a análise sobre as
conseqüências desta no ambiente social coletivo.
Quando admitimos esta inserção crescente das tecnologias, não só nos ambientes
artístico, mas no cotidiano social, percebemos que as relações entre o indivíduo e a
coletividade começam se estruturar de maneira diferente. A cognição humana é um dos
alvos mais certeiros de mudanças com estas relações emergentes. Sousa Santos adverte
sobre o impacto da tecnologia no avanço das ciências humanas:
“A impossibilidade ou a dificuldade crescente de desenvolver
projetos de pesquisas capazes de investigar as conseqüências das
novas capacidades de manipulação da vida ao longo do tempo e sobre
os ecossistemas e a sociedade, cria um hiato perigoso entre a
crescente capacidade de intervenção e a transformação através da
inovação tecnológica e a reduzida compreensão dos processos que
organizam a vida (SANTOS, 2008, p. 64)”.
Esta é uma questão global trazida pelo autor a partir desse contexto social
tecnológico que se apresenta nos dias atuais. O alerta é sobre as transformações
culturais sem perder de vista os fatos ocorridos no curso da história. “O surgimento de
tais tecnologias na América Latina se inscreve, em todo caso, num velho processo de
esquizofrenia entre modernização e possibilidades reais de apropriação social e cultural
daquilo que nos moderniza” (BARBERO, 2009, p. 256). Cabe-nos olhar tal fato com
relevância sem escorregar no ufanismo fetichista de atribuir ao surgimento desta a razão
da mudança dos paradigmas que movem o século XXI, pois Barbero já anunciava: “a
imagem das „novas‟ tecnologias educa as classes populares latino-americanas na atitude
mais conveniente para seus produtores: a fascinação pelo novo fetiche” (BARBERO,
2009, p. 258).
Sem dúvida, os tipos de estética proporcionados a partir das tecnologias geram
fetiches de várias ordens no imaginário do observador. O deslumbramento com o belo é
um recurso eficaz numa exposição de arte e ele tem se dado de maneira diferente na era
tecnológica, mas não é ele o único responsável pelas novas articulações culturais em
que as sociedades se encontram. As transformações envolvem maior complexidade, que
articulam diversos elementos.
54
Em Sala de Jejum, a tecnologia funciona como elemento central para a
exposição das obras. É comum uma associação reducionista da tecnologia com a
impessoalidade e um simples desenvolvimento de uma técnica. Em Sala de Jejum, o
afeto se potencializa com a forma de apresentação dos trabalhos. O que poderia ser
contrastante, de difícil enlace, se apresenta de forma fluida e conectada. Milena
Travassos consegue fazer elementos bucólicos e intimistas chegarem ao observador
através da tecnologia sob vídeos-instalação. A característica sinestésica e sensorial a que
a obra recorre é típica do universo das imagens. Gubern fala de uma aspiração
plurisensorial – visual, auditiva, tátil e olfativa. Mexer com os sentidos é mexer nos
afetos, e isto faz do uso da tecnologia em Sala de Jejum, uma obra regada de
subjetividade. “A situação narrativa que Milena Travassos provoca é aquela em que a
técnica e o mito partilham do mesmo paradoxo: a ambivalência da imagem”
(OLIVEIRA, 2010, p.42), reforça Eduardo Jorge Oliveira a dimensão marcante do uso
das imagens no trabalho da artista.
Em Vertigem e Tudo o que Sustenta, por exemplo, temos um balanço, um poço,
uma árvore centenária e um corpo nu em busca de interação com aqueles elementos e
integração no espaço. Milena fala de um corpo que age como um personagem,
totalmente integrado a cena. Tão relevante quanto os outros elementos que ali compõem
a obra. Há diversas facetas a serem exploradas em um corpo. E isto se deve a sua carga
plástica e ao seu potencial poético, acredita a artista. A questão da não personificação da
imagem desse corpo aparece como um problema a ser explorado pela artista no universo
das imagens de seus trabalhos. Eduardo Jorge Oliveira pontua:
“O corpo posto em cena, mesmo sendo o próprio corpo da artista, não
dispõe de um eu, de um rosto, que torne sua obra autobiográfica.
Milena Travassos dispõe de seu próprio corpo para abrir mão de sua
materialidade. E evoca, pois, uma condição fantasmática. (...) Entre
mito e modelo, mais uma vez as ninfas se insinuam na imagem”
(OLIVEIRA, 2010, p. 41 e 42).
Vertigem mostra um balanço sobre um grande poço cheio com água turva
esverdeada, rodeado por uma plantação rasteira. Um corpo nu a balançar-se, onde o
observador só o vê de costas, enquanto acompanha o ir e vir do balanço. Ao longo da
colona vertebral, frascos de vidro estão fixos sobre cada vértebra, formando o eixo de
sustentação daquele corpo que se balança. Um desenho sinuoso se sobressai daquela
linha frágil de sustentação a partir do balançar-se. Aqueles frascos, transparentes,
55
delicados e equilibrados sobre as costas evocam a união orgânica entre aqueles objetos
inanimados e a vida, a junção entre a paisagem e um corpo. Estranheza e delicadeza
encontram-se num mesmo contexto visual. O observador não vê onde o balanço está
preso. Só consegue acompanhar as cordas que vão e vêm no alto do vídeo, como se
viessem do infinito.
Ainda sobre o corpo, Eduardo Jorge Oliveira detém-se, agora sobre a nudez. Ele
cita Jaques Derrida, em O Animal que logo Sou: “assim, nus sem saber, os animais não
estariam, em verdade nus. Eles não estariam nus porque eles são nus” (DERRIDA apud
OLIVEIRA, 2010, p.45). O que lhe chama a atenção é a despersonificação de um rosto.
A figura da artista se apaga. Milena reconstrói um significado para os corpos que
aparecem em seus trabalhos, os distanciando de um corpo humano que habita o mesmo
mundo que o visitante, encaminhando a imaginação para o universo mitológico e
surreal, onde vivem ninfas e fadas. A nudez não aparece do ponto de vista erótico. Ela é
natural.
“O que torna duvidosa a nudez em Vertigem é uma coluna externa de
vidro na figura feminina que se balança. Uma nudez ambígua,
quando se trata de uma situação narrativa onde o corpo é outro,
despido de uma condição humana, isto é, o já nu – pensando aqui a
nudez como algo humano, enfim, um saber-se nu, isto é, perceber-se
em tal condição: despido. A nudez de Milena é ambígua porque joga
com a nudez animal (...)” (OLIVEIRA, 2010, p. 45).
Vertigem
56
Espaço de reflexão. O ato de balançar-se remete à tranqüilidade, à
contemplação. Ao mesmo tempo em que o estranhamento daquele eixo de sustentação
frágil sobre o corpo promove um ruído visual e atrai o observador para uma reflexão em
torno daquela cena. O balançar-se sobre o abismo, sobre o fosso de um grande poço
também causa estranhamento. Em Tudo que Sustenta a inquietação visual se repete. Aos
pés de uma árvore centenária, com raízes que saltam terra afora, está o mesmo corpo nu,
com a mesma estrutura de vidro nas costas. Uma bacia de alumínio com água. É noite e
o ambiente é iluminado somente com uma faixa de luz amarela. O corpo sentado diante
da bacia cheia de água realiza um único movimento: colhe a água da bacia com as mãos
e a leva sobre a cabeça, molhando o cabelo liso, fazendo-a escorrer sobre a pele branca.
Como um batismo ou um ritual de iniciação, define Oliveira. Esta ação é captada por
diversos ângulos, tanto de perto como distantes. Aqui, a semelhança com um ser
animalesco é maior. A ação reflete uma necessidade de qualquer ser vivo: banhar-se. E
em movimentos lentos, a ação se repete, em total consonância com a natureza. O
ambiente escuro leva o observador a um ambiente sombrio.
“O corpo ultrapassa a noção de escala e oscila entre o desejo e o luto,
ou ainda entre o extático e o depressivo. A paisagem contribui para
uma apreensão do pulsar extático-depressivo contido no movimento
de um corpo que nos é estranhamente familiar. Entre as duas obras
existe uma oscilação de luz, o claro e o escuro, que incidem sobre a
pele de uma ninfa em contato com o ar (no caso do balanço) ou com a
terra e a água (no caso do banho noturno).” (OLIVEIRA, 2011, p.37).
Em Tudo que Sustenta, a câmera capta imagens mais próximas que em Vertigem
da estrutura de vidro que acompanha a coluna vertebral do corpo, trazendo este
elemento de estranhamento mais visível aos olhos do observador. Através do uso do
vídeo e dos recursos disponibilizados pela tecnologia, como os „closes‟, por exemplo, é
permitido ao observador o acesso àquele corpo de forma detalhada. A estrutura dos
objetos de vidro ao longo das vértebras do corpo vista de perto estabelece outra relação
com o observador. O fato de ele conseguir desvendar o mistério sobre o que seriam
aqueles objetos grudados nas costas do corpo – devido aos closes e a forma de
exposição em uma televisão de tela plana de alta resolução – faz da reflexão sobre o seu
significado o questionamento maior daquelas obras. O estranhamento gira em torno da
função daqueles objetos no contexto visual artístico e não deixa dúvidas sobre o que
57
são: frascos de vidros transparentes grudados na pele branca do corpo ao longo de cada
vértebra. Porém, se o observador encaminha uma tentativa de desvendar, esta ação é
falida. A obra de Milena Travassos não é para ser decifrada. Os enigmas se dão na
poética do texto visual. Cada trabalho complementa o outro. A experiência estética não
exige explicações. A lógica artística dispensa a busca de significados.
“Acho que o meu trabalho tem muito de enigma, mas não um enigma
a ser decifrado. Eu não coloco o espectador como um astuto que está
ali diante de uma imagem e precisa decifrar o que está posto. É mais
uma experiência de „eu não alcanço muito esse vídeo, mas ele me
convida e me chama para uma experiência que não é da ordem da
interpretação, não é da ordem do „ah, entendi‟. Ele te convida a
embarcar naquele enigma e se perder nele.” (ENTREVISTA
PARTICULAR, 05/ 2011).
Tudo que Sustenta
A cena com pouca luz, tendo o corpo ligado a terra e a água de forma tão
rudimentar, aproxima o observador de um ambiente sombrio, o que nos permite
relacioná-lo com a mesma tensão daquele corpo balançando-se diante do abismo do
poço, em Vertigem. A bacia aqui poderia ser uma metonímia para o poço? Questiona
Eduardo Jorge Oliveira e continua: “Como pensar uma banhista fora d´água, se não pela
linguagem, isto é, por uma espécie de metonímia que é a própria bacia?” (OLIVEIRA,
2010, p. 36). Aqui, a analogia do professor se dá através de outra figura de linguagem.
Ele usa a metonímia para estabelecer seus parâmetros de diálogos entre os trabalhos.
58
Quando ele refere-se à bacia – que aparece em O Banho, Tudo que Sustenta,
Sonata –, ele propõe uma analogia entre os recipientes que também reservam água e,
ocasionalmente, também servem para banhar-se. Logo bacia e poço desempenhariam a
mesma função, uma vez que o poço não estivesse posto para o seguinte fim em
Vertigem. Em O Banho, como foi dito anteriormente, faço a analogia através da
metalinguagem, quando se projeta um banho sobre uma bacia de alumínio com água –
utilizando-se a mesma bacia que aquela vista nas imagens. E agora, a partir do olhar de
Eduardo Jorge, entendo que há também metonímia, quando aquele objeto sólido, de
alumínio, poderia estar representando grandes mananciais onde ninfas se banham
naturalmente. Não necessariamente somente uma metonímia do poço, mas de todos e
quaisquer ambientes aquosos, próprios das náiades mitológicas, como rios, riachos e
mananciais convenientes ao banho. Oliveira afirma: “Em O Banho, temos uma situação
limite tanto para Vertigem, quanto para Tudo que Sustenta, pois a projeção das imagens
acontece sobre a bacia com água. A bacia, ainda, é poço e ponto de contato entre as
duas obras, entre as duas condições metamórficas do corpo, a de ninfa e a de banhista.”
(OLIVEIRA, 2010, p.36).
Em Sala de Jejum, a tecnologia se funde com o corpo da artista. Como ela
mesma disse, seu corpo também é vídeo. Segundo Milena Travassos, a experiência com
o corpo é marcada pelos efeitos fragmentados das tecnologias da era pós-industrial.
“Estamos adentrando uma nova era e os corpos apresentados pelos
artistas não somente anunciam estes novos tempos, mas se afirmam
como protagonistas da trama intersubjetiva que constitui o social.
Identifico-me quando Bill Viola afirma: Minha obra é centrada em
um processo de realização e descoberta pessoal. O vídeo é uma parte
do meu corpo é intuitivo e inconsciente.17 Gosto de pensar que há
algo de intuitivo e inconsciente nos processos de criação, pois Flusser
já nos advertiu quanto as ilusões de liberdade com relação ao uso de
equipamentos tecnológicos pré-programados, não gostaria de ser uma
operadora de rótulos, ou uma operadora de botões18”. (TRAVASSOS,
2009, p.6).
Embora em seu artigo sobre a exposição Sala de Jejum a artista não deixe claro
sobre a que exatamente ela se refere quando utiliza o termo “novos tempos”, cabe-me
fazer uma leitura sobre as transformações culturais que vem assolando algumas esferas
sociais desde o início do século XX. Podemos identificar elementos relacionados à
17
RUSH, Michael. Novas Mídias na Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006.
FLUSSER, Vilém. A Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.São
Paulo: Relume Dumara, 2005.
18
59
tecnologia que vem alterando sensivelmente a percepção e a cognição humana. Porém,
estas transformações não se devem exclusivamente a elas. As maneiras de compreender
e de conhecer afetam a construção social e coletiva da cultura, à medida que também
são afetadas por ela ao longo da história. O processo não se dá por uma via de mão
única.
O autor Michael Tomaselo alertou-se justamente para estas novas representações
cognitivas sociais. Ele afirma que elas não surgem do cérebro do “novo” homem,
inserido na era tecnológica, e sim, de todo um processo de transformação social que
ocorrem entre os indivíduos de diferentes culturas que passam por diferentes
transformações. A tecnologia seria apenas uma delas.
“It is perhaps paradoxical, in this age of computer and this „decade of
the brain‟, that this radically new and powerful form of cognitive
representation emanates not from any new storage facilities or
computing power inside the human brain, but rather from the new
forms of social cognition, that take place between individuals inside
humans cultures.” (TOMASELLO, 1999, p. 213, 214).19
Corpo e cognição agora se encontram no mesmo caldeirão cultural num
processo de troca constante com o ambiente. Se pensarmos nos métodos co-evolutivos,
temos um mundo que não se altera sem alterar os corpos que nele habitam e vice versa.
Ambos são interdependentes e conectados em rede, formando um sistema que busca
constantemente o equilíbrio adaptativo. As realidades psicossociais se alteram em busca
de uma congruência com o mundo, assim como o mundo vai se adequando às novas
organizações psicossociais do homem.
“Falar em co-evolução significa dizer que não é apenas o ambiente
que constrói o corpo, nem tampouco o corpo que constrói o ambiente.
Ambos são ativos o tempo todo. A informação internalizada no corpo
não chega imune. É imediatamente transformada e, como explicou
Edelman, mesmo quando o tema é a memória (que sinaliza fluxo de
informação com alta taxa de estabilidade), há processos incessantes
de recategorização. Não há estoque, apenas percursos transcorridos e
conexões já experimentadas” (GREINER, 2005, p.43).
19
Tradução: É talvez paradoxal, nesta época de computador e desta "década do cérebro", que esta forma
radicalmente nova e poderosa de representação cognitiva não emana de instalações de armazenamento ou
poder de computação dentro do cérebro humano, mas sim das novas formas da cognição social que
ocorrem entre diferentes indivíduos dentro de culturas e seres humanos.
60
O corpo biológico e o corpo cultural integram um só sistema. Greiner busca no
filósofo Mark Johnson muitas reflexões em torno dessa discussão entre corpo e mente.
“(...) a significação compreende os esquemas da experiência corporal e das estruturas
pré-concebidas da nossa sensibilidade, nosso modo de percepção, nossa maneira de
orientar e de interagir com outros objetos, eventos ou pessoas.” (GREINER, 2005, p.
43).
Diferente da compreensão dos estudos tradicionais, corpo e mente não se
dissociam, uma vez que ambos integram o sujeito em seus aspectos singulares e
apresentam-se ao mundo de forma co-dependentes e interligados. A partir dessa
premissa, uma série de ramificações surge nos estudos do corpo capaz de provocar
reflexões sobre os novos parâmetros da realidade social presente. As teorias em torno do
tema ganham cada vez mais força e mostram-se cada vez mais coerentes, tendo em vista
a forma como elas se aplicam dentro do contexto atual.
Este entendimento direciona a reflexão para outra dimensão do humano que
envolve diretamente o corpo, implica o seu estar no mundo e dialoga com a produção
analisada Sala de Jejum: a expressão dos sentimentos. Marcel Mauss, sociólogo e
antropólogo; Edwin Hutchins, estudioso das ciências cognitivas são exemplos de
pesquisadores que embasaram seus estudos científicos sustentando a dimensão social e
cultural dos sentimentos. Isso dá margem a compreensão de que não existe uma
universalização dos sentimentos ou, se quer, uma essência. A subjetividade do ato de
sentir aparece em cada corpo de maneira distinta. A sensibilidade de Milena Travassos é
exclusiva de seu corpo e, de alguma maneira, aparece em sua produção.
“A diversidade nos modos de sentir e, ao mesmo tempo, a
singularidade por vezes radical de cada experiência configurada
fazem do sensível uma espécie de terreno brumoso para a consciência
do sujeito auto-reflexivo, porque o lançam numa imediatez múltipla e
fragmentada, onde os julgamentos tendem a ser mais estéticos do que
morais”. (SODRÉ, 2006, p.11).
Não se pode falar em uma natureza das emoções, uma vez que elas se
manifestam de forma singular em cada indivíduo, de acordo com o universo cultural em
que ele é imerso e suas construções psicossociais desenvolvidas ao longo da existência
humana. “É o homem quem faz a dor conforme o que ele é” (BRETON, 2007, p. 53).
Quando Darwin e outros pesquisadores oriundos da etologia e das ciências
biológicas perceberam que não conseguiriam provar nada desta ordem, que separassem
61
estas esferas, pipocaram estudos de várias áreas das ciências humanas trabalhando
exatamente sobre a premissa inversa.
“Para que o sentimento seja experimentado e expresso pelo ator, deve
pertencer de qualquer maneira ao repertório cultural de seu grupo. A
sociologia pode dedicar-se à descoberta desse conhecimento difuso
que atravessa as manifestações afetivas dos atores e contribui para a
evidência do vínculo social, graças a uma partilha de simbologia que
cada ator traduz com seu estilo próprio, mas numa área de
reconhecimento mútuo.” (BRETON, 2007, pag. 52)
Utilizando a dor como um exemplo de emoção para fazer sua análise, David Le
Breton discorre ainda:
“Entre o excitante e a percepção da dor, há a extensão do indivíduo
enquanto singularidade e ator de uma dada sociedade. As normas
implícitas, escapando ao julgamento do indivíduo, determinam sua
relação com o estímulo doloroso. Essa relação não responde a
nenhuma essência pura, ela traduz uma relação infinitamente mais
complexa entre as modificações do equilíbrio interno do corpo e os
ressentidos por um ator que aprendeu a conhecer essa sensação e a
relacioná-la a um sistema de sentido e valor. (...) os homens não
sofrem da mesma maneira e nem a partir da mesma intensidade da
agressão” (BRETON, 2007, pag. 53)
Tendo em vista a estruturação das idéias postas acima, podemos afirmar que a
experiência corporal modela nossa percepção sensorial através da integração de cada
nova informação que o sujeito entra em contato.
O pensamento de Edwin Hutchins sobre a cultura e o seu papel na construção
da cognição é fundamental para a construção desse corpo sensível, fruto da experiência
coletiva como ativador do processo cognitivo. Não existe uma coleção de coisas que
podemos nomear como cultura, isso varia de acordo com o meio onde ela está sendo
construída. “(...) A cultura se constrói no trânsito entre o individual e o coletivo, entre o
dentro e o fora do corpo, operando o tempo inteiro num continuum entre emoção, razão,
ação corpórea incluindo a aptidão para conceituação (...)” (GREINER, 2005, p. 103).
As pessoas integram a cultura, logo, a construção do que elas determinam ser cultura
passa pelos processos cognitivos coletivos.
“It is a human cognitive process that takes place both inside and
outside the minds of people. I am proposing an integrated view of
human cognition in which a major component of culture is a
cognitive process (it is also an energy process, but I‟m not dealing
62
with that) and cognition is a cultural process”20 (HUTCHINS, 1995,
p. 354).
Nesse sentido, o individual e o coletivo se constroem continuamente. Já tendo
em vista esta discussão sobre a construção cognitiva e cultural do homem; e o papel das
tecnologias neste processo, incluo neste caldeirão parte do meu entendimento sobre a
“nova era” e os “novos tempos” a que Milena Travassos se refere em seu artigo.
Quando ela afirma que se identifica com a premissa em que o vídeo integra o seu corpo,
ela se insere no contexto do aparecimento de novos elementos que fazem parte da
construção cognitiva coletiva. São transformações que alteram a percepção e se
traduzem de outras maneiras no âmbito artístico. No caso de Sala de Jejum, esta fusão
entre o corpo e a tecnologia é clara e o observador pode experimentar esta realidade
colocando diante da obra também o seu corpo, suas emoções e lançar sua percepção no
jogo de sensações proposto em cada trabalho.
2.6 Apreço ao belo
Sala de Jejum sugere, constantemente, elementos que remetem ao fantástico.
Talvez pela forte presença do onírico, do universo dos sonhos, apareçam detalhes que
levem o observador a outra instância da realidade, ao imaginário dos contos de fadas.
Quando a artista funde paisagem e corpo, o espaço cenográfico apresentado através das
vídeos-instalação e todo o contexto visual da exposição chega à percepção do
observador permeado de subjetividade, de sentimento e de emoções. Falar destas
instâncias é admitir a dimensão tácita do conhecimento que habita o universo artístico,
desde sua mais simples e rudimentar forma à moderna e tecnológica expressão.
“(...) el ciberespacio aparece como uma nueva última frontera
digna de exploración y de especial interés para los artistas (...)
La confusión entre vida real y ficción ha sido eficazmente
preparada por várias décadas de cultura cinematográfica,
televisiva y publicitária, y abonada por uma presión mediática
hacia el culto narcisista al look personal, um look que no es otra
cosa que la imposición de una ficción embellecedora a una
existência personal insatisfatória.”21 (GUBERN, 1996, p.175).
20
Tradução: “É um processo cognitivo humano que posiciona igualmente a parte interna como a externa
da mente das pessoas. Eu estou propondo uma integração do ponto de vista da cognição humana onde o
maior componente da cultura é um processo de cognição (é também um processo de energia, mas não
vamos tratar disso agora) e a cognição é um processo cultural.
21
O ciberespaço aparece como nova fronteira digna de exploração e de especial interesse para os artistas
(...) A confusão entre vida real e ficção tem sido eficazmente preparada por várias décadas pela cultura
63
O belo do qual Gubern se refere aparece imbricado nas relações midiáticas,
gerando apatia. O belo proposto em Sala de Jejum comunga com a idéia de promover
uma inércia sobre os sentidos na contramão da velocidade dos canais midiáticos
tradicionais. São formas distintas de trabalhar o belo. A contemplação permite ao
observador espaço de reflexão, o que não ocorre no contato midiático diário. Para o
cineasta Luiz Rosemberg Filho, Sala de Jejum trabalha com um ideal de antinaturalismo
que se vincula a um novo sentido de potência que é:
“não movido por promessas que nunca se realizam [como visto nas
imagens midiáticas], mas por responsabilidades poéticas profundas,
(...) pois vivemos num tempo onde o real empobrecedor serve bem a
política e a comunicação, mas não ao humano”. (FILHO, 2009, p.4).
Em Tempo de Paisagem, mais uma vez, o corpo se camufla na paisagem. A
árvore carrega nos braços e envolve aquele corpo, ninando-o ao som do vento. Ele
aparece entre largos galhos, em cima da árvore. Numa tomada circular e constante, de
baixo para cima, os enquadramentos enfocam a copa do Ipê amarelo, os galhos
retorcidos e o corpo deitado sobre as curvas naturais. A mistura de cores das folhas
amarelas, dos galhos marrons, do vestido branco que veste o corpo e do cabelo
comprido caído feito cipó orna a composição imagética da cena. Assim como em Vigília
(falaremos logo a seguir), Tempo de Paisagem conta com um elemento de grande
eloqüência na construção deste ambiente lírico: o vento. Neste trabalho, o áudio editado
é o natural, o som ambiente. Escuta-se o barulho do vento e do balançar dos galhos. São
sons da natureza. O sentimento de paz e harmonia que desencadeia a partir do contato
do observador com a imagem é proporcional ao que ele imagina da possível sensação
que aquele corpo estaria sentindo naquela situação. Aquele corpo espera. Mais um
ambiente onde a inércia é acionada. O observador é induzido à contemplação.
cinematográfica, televisiva e publicitária, e abonada por uma pressão mídiatica para o culto narcisista de
um look pessoal, um look que não é outra coisa se não a imposição de uma ficção embelezadora a uma
existência pessoal insatisfatória.
64
Tempo de Paisagem
Em Vigília, o zelo pela estética, que permeia toda a exposição, chega ao ápice.
O cenário: um navio encalhado há 25 anos, carcomido pela ferrugem, à 700 metros da
costa Fortalezense; um balanço, que mais uma vez, o expectador não identifica onde ele
foi preso; um corpo vestido de branco; uma botija de vidro com água pela metade.
O enquadramento do vídeo se dá no corpo sentado no balanço de costas, a
fazer movimentos leves, como se empurrasse o chão para mover-se, sem tirar os pés do
chão, para frente e para trás. O barulho forte de vento no áudio do equipamento pode ser
constatado também com o cabelo daquele corpo voando. Embora o navio estivesse
próximo da costa, não deixa de ser em alto mar. O mar dá uma dimensão para o vídeo
de grandes amplitudes, de um espaço aberto, totalmente ao ar livre. Aos pés da artista,
uma garrafa transparente, cheia de água. O reflexo dos pés da artista pode ser visto na
água do frasco, para frente e para trás, com a imagem invertida. Como se o vidro e a
água capturassem o corpo ali que se balança.
A opinião do cineasta Luiz Rosemberg Filho traz uma perspectiva curiosa em
torno da inversão de imagens que se dá na botija de água. “Balançar sobre a paisagem
não deixa de ser um rigoroso princípio de inversão. Avança-se e recua-se numa espécie de
confronto contínuo com a nefasta gestação da normalidade. Onde o impulso para frente
investe na liberdade e no risco. Já o recuo marcando nossas muitas imperfeições.” (FILHO,
2009, p.3).
65
As imagens são cheias de detalhes. E, assim como em Tempo de Paisagem, o
vento desempenha seu papel com incidência, conduzindo o observador ao deleite, à
espera, ao prazer de ficar ali parado, estabelecendo a sua própria relação com a imagem
e com o tempo.
“A idéia era ficar ali, num balanço mais sutil. O lugar é quase uma
ilha, por mais que não tenha referência a isso e eu não me importe em
dar esta referência no vídeo, isso dá contexto pro trabalho. Tudo
aquilo fica no meu imaginário, quando eu tô criando. Sempre me
vinha em mente esse navio encalhado, o mar, essa situação de um
balanço que é quase uma espera ali. Ou de saída, ou de chegada. Não
é uma espera sofrida. É totalmente sem ansiedade. Ali é como se o
tempo quase parasse. Os vidros funcionam como lentes também,
igual em Apnéia, que sugam as imagens pra dentro, miniaturalizam e
as inverte. A questão do vidro me encanta. Ele é um material
orgânico, artesanal, por mais que ele seja industrializado, ele é areia.”
(ENTREVISTA PARTICULAR, 05/2011).”
Quando falamos de estética, tratamos de um conceito milenar, discutido desde
muito tempo, sob vários aspectos teóricos. Então, sabendo que muitos significados
foram incorporados a semântica deste termo, proponho a definição de Ronaldo Bispo
dos Santos sobre o fenômeno:
“Toda percepção sensível de um objeto ou situação que ativa uma
rotina somática e/ou cerebral imediata tal que induz a alguns dos
seguintes afetos e/ou cognições: alegria, prazer, interesse vontade de
vida, beleza, atenção/concentração, vivacidade, lágrima nos olhos,
sorriso no rosto, rápida associação de idéias e sentimentos, vontade
de permanecer sob o efeito do objeto etc.” (SANTOS, 2004, p.40).
Portanto, é sob esta conceituação que Sala de Jejum promove seu flash
aesthesis, como define o autor, o momento deste encontro entre o belo e o sujeito; obra
e observador. A experiência estética pela qual cada sujeito passa é intrínseca e
intransferível. O papel do corpo e da ação desenvolvida por ele são determinantes nesse
processo. O conjunto de ações que compõem a cena, inclusive a „não ação‟, interferem
cognitivamente nesse encontro. Greiner fala do momento em que estas informações são
colocadas em relação no corpo do indivíduo.
Em termos de percepção, aos poucos torna-se claro que no momento
em que a informação vem de fora e as sensações são processadas no
organismo, colocam-se em relação. É quando o processo imaginativo
se desenvolve. Assim, a história do corpo em movimento é também a
história do movimento imaginado que se corporifica em ação. Os
66
diferentes estados corporais modificam o modo como a ação será
processada e o estado da mente pode ser entendido como uma classe
de estados funcionais ou de imagens sensóriomotoras com autoconsciência. (GREINER, 2005, p.64).
Vigília
Diferente de Vertigem e Tudo que Sustenta, Vigília e Tempo de Paisagem não
trazem um elemento estranho – como os frascos de vidro ao longo da coluna vertebral
nos trabalhos citados. Vigília e Tempo de Paisagem se voltam para a idéia de
contemplação com força total. São os trabalhos de Sala de Jejum que mais evocam o
belo a partir do ambiente proposto nas vídeos-instalação, sem elementos de incômodo.
Em ambos prevalecem a estética visual para o deleite dos olhos e a distensão dos
sentidos. O trabalho de Milena é suave. Ele age de maneira branda. São poucos os
elementos de estranhamento diante daqueles que acionam o prazer da beleza estética.
Para Eduardo Jorge Oliveira, há um tom fantasmagórico naquela cena sobre um
navio encalhado e o casco enferrujado, argumentação que discordo, uma vez que a
referência do espaço não se torna clara para o observador que acessa o vídeo. Para o
expectador, o casco enferrujado se confunde com o marrom da terra escura, não
assegurando a referência espacial onde aquele corpo se balança. Os planos são bem
fechados na ação. De cenário, vê-se apenas o mar, o chão (casco que se confunde com a
67
terra), e rápidos lances de outra estrutura de ferro comida pela maresia (o que é comum
próximo ao mar). No plano mais aberto, vê-se ainda uma rala e rasteira vegetação que
nasceu sobre o casco úmido e enferrujado, reforçando a idéia de que aquele chão é terra
e não ferro. Oliveira afirma:
“Há outra construção com a paisagem, que passa não pela tensão,
mas por uma melancolia impregnada pela ferrugem da velha proa.
Um corpo que se movimenta como uma antiga sobrevivente de um
naufrágio, ou ainda, como um fantasma. Saímos da pele branca para
o pano branco. As dobras do pano movimentadas pelo vento trazem
uma paisagem no limite da aparição, da visão, do assombro.”
(OLIVEIRA, 2010, p. 39).
Na exposição, eles não ganharam projeções exclusivas, talvez justamente para
diluir esta explosão do belo por outros espaços. Tempo de Paisagem aparece numa
televisão de plasma de alta resolução, no mesmo ambiente de Para ver amarelo, outro
trabalho que falaremos em seguida, que, ao lado de Casulo, não consiste em vídeoinstalação. E Vigília aparece sob o mesmo suporte de tela plana em alta resolução num
dos corredores do Sobrado, ao lado de Tudo que Sustenta e Vertigem, todos do mesmo
tamanho.
O discernimento para a apresentação de Vigília, Tudo que Sustenta e Vertigem
no corredor do Sobrado, em seqüência, em TVs de médio porte e em alta resolução,
veio a partir da reflexão da artista em torno das ações únicas e cíclicas que envolvem as
três obras . Ela explica:
“Acho que os três apresentados juntos ficam bons nesse formato, o
Vertigem, o Tudo que Sustenta e o Vigília. Todas criam ações
cíclicas. Para mim a ação lá do Sala de Jejum, por exemplo, é
acender os lampiões, abrir a janela e sair. Existe uma começo meio e
fim, tem momentos de ação. Já o Vertigem é só o balanço, o Tudo
que Sustenta é o movimento de eu me molhando. Por mais que o
balanço do Vigília seja mais contido, é também uma ação única de
estar ali sentada, se balançando com o pé. É um balanço bem tímido,
mas não tem um desdobramento.” (ENTREVISTA PARTICULAR
5/2011).
2.7 Emoções e sentimentos: a chave do conhecimento
O espaço comum ao observador e à obra, o espaço das mediações, que não
necessariamente refere-se ao espaço físico, mas ao espaço perceptivo de conexão,
68
saltam à pele, se processam no corpo, quando colocados frente a frente. Emoções e
sentimentos são elementos fundamentais para a experiência artística, principalmente
quando colocamos em evidência a produção de conhecimento por meio da presença e
do contato com o outro. Façamos um retrospecto teórico sobre o assunto.
Falar das manifestações de emoções e sentimentos no corpo humano implica
ainda lidarmos com o fantasma do racionalismo exacerbado como único meio válido
para o conhecimento que herdamos do Iluminismo no século XVIII e ainda se arrasta
até os dias atuais. Denominado o século das luzes, foi nessa época em que se
consolidou, de fato, a idéia de que somente à luz da razão o homem poderia chegar ao
verdadeiro conhecimento científico. Com a discussão entre as idéias empiristas e
racionalistas, constituiu-se um novo pensamento filosófico no século XVIII, que
reverberou em todos os âmbitos da sociedade e até hoje sentimos os seus efeitos.
René Descartes foi um desses pensadores que até hoje é citado pela suas
contribuições no campo da razão em contraponto com seu contemporâneo Francis
Bacon. Juntos acabaram reproduzindo, de algum modo, os embates de Platão versus
Aristóteles. “Aristotle believed that ideas are acquired from experience. Plato, on the
other hand, believed that ideas are innate and need only to be dug out from the
sometimes hidden nooks and cranies of the mind” (STERNBEG, 1999, p. 56).22 Estes
dualismos só levaram o pesquisador Sternberg a acreditar que “the most plausible
solution is that a synthesis of both experience and innate ability contribute to many
aspects of cognition and other psychological constructs” (STERNBERG, 1999, p. 56)23.
Como admitir que as emoções constituam o sujeito e integrem o mesmo
processo cognitivo que a razão? Embora atualmente o tema já esteja bastante discutido,
o pensamento dominante ainda é aquele que submete as emoções ao domínio da razão,
como se, biologicamente, eles acontecessem em processos distintos. O fato é que o
homem conhece bem menos os processos biológicos no que diz respeito às emoções e
aos sentimentos, e é por isso que, ainda hoje, eles são subjugados ao domínio da razão.
Porém, pesquisadores mais recentes da psicologia e dos estudos cognitivos como
António Damásio, Mark Johnson, Sternberg, Muniz Sodré tentam, aos poucos,
desconstruir essa máxima tão engessada no corpo social. “Alma e corpo são a mesma
22
Tradução: Aristóteles acreditava que as idéias eram adquiridas com a experiência. Platão, por outro
lado, acreditava que as idéias eram inatas e precisam apenas serem escavadas de recantos escondidos da
mente.
23
Tradução: A solução mais plausível é que uma síntese da experiência e uma habilidade inata
contribuam para muitos aspectos da cognição e outros construtos psicológicos.
69
coisa, apenas manifestada de formas diferentes, tendo a corporeidade relevância e
precedência, uma vez que a alma é a sua idéia ou a sua representação” (SODRÉ, 2006,
pag. 23). Inspiram-se, em muitos casos, em Spinoza, filósofo precursor do pensamento
iluminista, que acreditava que a mente humana era a idéia do corpo humano, já no
século XVII.
Mesmo que Francis Bacon e John Locke, por exemplo, tenham, ainda no
século XVII, sido partidários do empirismo, sustentando a experiência sensível como
algo que estava na origem do pensamento, esta compreensão foi suprimida pela
hegemonia racionalista da época. Eles acreditavam que não era possível o aparecimento
de nenhuma idéia no campo do pensamento sem que antes houvesse surgido no campo
dos sentidos.
À luz de Damásio, admite-se que a emoção funciona como reguladora do
conhecimento. “Independentemente do mecanismo pelo qual as emoções são induzidas,
o corpo é palco principal das emoções, seja diretamente, seja por intermédio de sua
representação em estruturas sômato-sensitivas do cérebro” (DAMÁSIO, 2000, p. 363).
Não existe processo de conhecimento sem emoção. E, mais uma vez, tudo isso se dá no
corpo. “O fato inescapável e notável no que concerne esses três fenômenos – emoção,
sentimento, e consciência – é sua relação com o corpo.” (DAMÁSIO, 2000, p. 359).
Mark Johnson se baseia nos estudos do pesquisador para desenvolver seu trabalho e
partilha de seu entendimento de emoção e sentimento. As ciências cognitivas passaram
por grandes transformações depois dos estudos desses pesquisadores. Para Johnson, a
dupla António Damásio e Josef Le Doux tem grande contribuição nessa reestruturação.
Quanto à Damásio, o autor afirma: “I am attracted by his philosophical turn of mind, as
he grapples with problems of how emotion and feeling shape the nature of mind,
thought, consciousness, and communication.24 (JOHNSON, 2007, pag. 55).
Johnson costurou a comunicação com os processos de transformação do
conhecimento que ocorrem na mente, incluindo emoções e sentimentos que se
manifestam no corpo. O autor interliga as ciências cognitivas e os processos de
comunicação de tal maneira que nos permite conectá-lo à teoria corpomídia com
prudência. Suas análises trouxeram grandes contribuições para a compreensão da
construção do conhecimento a partir da experiência na arte.
24
Tradução: Eu me sinto atraído pela mudança de direção da filosofia da mente deles, como eles se
agarram com os problemas de como as emoções e os sentimentos formam a natureza da mente, do
pensamento, da percepção e da comunicação.
70
Os sentimentos e as emoções são sistemas que integram a grande rede
biológica do corpo humano junto aos outros sistemas como o imunológico, o
metabólico, o reflexo motor etc. Esta rede composta por diferentes níveis de relações
dentro do corpo são essenciais para a construção dos nossos significantes e das
atividades que sustentam a vida. Sem esta rede, nossa existência se encontraria
ameaçada e nós não teríamos a possibilidade de intensificar a qualidade de nossas
experiências. Esta compreensão fez Johnson concluir: “What is meaningful to us, and
how it is meaningful, depends fundamentally on our ongoing of our bodily states as we
experience and act within our world”25 (JOHNSON, 2007, pag.57).
Aqui, podemos fazer a leitura sobre a experiência particular de cada sujeito
que se submete a Sala de Jejum, considerando suas particularidades. O conjunto de
informações que habita cada corpo visitante e a experiência individual soma-se aos
estados emocionais e sentimentais que cada um se encontra no momento da troca, do
diálogo, da contemplação, da ação do corpo sobre si.
A emoção é da ordem do sensório, é o instantâneo, aquele que responde de
imediato a situação. A emoção precede o sentimento que se caracteriza por ser mais
residual, ter uma duração maior e não necessariamente apresenta-se sob a manifestação
de alguma emoção. Dizemos que o sentimento perpassa pelos sentidos, ou seja, pode
iniciar numa emoção, e continuar agindo sobre o corpo. “(...) o sentimento é também
conotado como durável, embora mais atenuado, enquanto a emoção é aguda e efêmera.”
(SODRÉ, 2006, p.37).
Culturalmente, este entendimento de que a emoção faz parte também do
processo de conhecimento é rechaçado pela sociedade. A emoção é tida como uma
“verdadeira expressão do sentimento” quando, muitas vezes, ela é apenas uma
manifestação pontual que irá se transformar ainda em um sentimento que pode ou não
corresponder àquela emoção primeira. Isso é um grande impasse para os estudos
cognitivos na atualidade. Sodré complementa:
“A emoção não expressa assim, a independência de um afeto, porque
surge sempre acompanhada de pensamento e representação. Ou seja,
há um pensamento por trás dela, logo, uma separação entre sujeito e
objeto, entre o um e o outro, e o afeto surge da fantasia ou da imagem
idealizada que a subjetividade (o mental) forma de algo colocado no
25
O que é significativo para nós e como isto é significativo, depende fundamentalmente do
monitoramento de nosso processo de estados do corpo como nossas experiências e ações dentro do
mundo.
71
mundo externo. A emoção é o afeto pelo mundo próprio, que
pertence por sua vez ao ego e a idéia” (SODRÉ, 2006, p.44).
Toda manifestação que se dá no corpo se insere no contexto processual do
conhecimento. Não se podem separar transformações que ocorrem dentro de um mesmo
processo. Razão e emoção caminham juntas e são co-dependentes. A dimensão afetiva
na razão e no pensamento não se organiza como uma estrutura. Ela é mais conteúdo
sensível do que forma organizada. “Há uma co-dependência entre perceber uma forma
representacional e a concepção de uma situação. Isto envolve categorias perceptuais,
significados semânticos e um contexto, tudo isso co-construído” (GREINER, 2005,
p.113). Sala de Jejum apresenta-se para o observador como uma explosão de conteúdo
sensível. A dimensão afetiva da obra perpassa sentimentos e emoções que não se
estruturam em forma organizada, nem tampouco de maneira seqüenciada e repetida. A
exposição contou com uma forma de apresentação e produção pensada e trabalhada pela
artista e sua equipe. Porém, os espaços de mediações que surgem a partir do diálogo
entre obra e o público se multiplicam a cada minuto. Principalmente quando se trabalha
com o universo imagético, as variações se dão desde as particularidades de cada
observador até o estado relacional que cada corpo estabelece com o mundo no momento
do encontro. Gubern escreve:
“(...) la imagen es una abstración, una categoria perceptual y
cognitiva, mientras que las imágenes icônicas son textos,
manifestaciones singulares en forma de diferentes modalidades
técnicas derivadas daquele modelo26 (...) Los textos particulares los
que lo entronizan como supermodelo textual, de caráter preceptivo. O
si se quiere, que lo universal nace de la destilación de los casos
particulares. Al fin y Al cabo, no hay lengua sin habla, ni tampouco
habla sin lengua.” (GUBERN, 1996, p. 126 e 127).27
Existe uma dimensão não explícita, silenciosa, por onde o conhecimento se dá.
Este tipo de conhecimento chama-se tácito. Certamente, é esta a dimensão com que se
constrói a cultura, aquela que recorre ao campo sensório, através de emoções e
26
O autor faz uma comparação que me cabe esclarecer entre „la imagen‟, referindo-se ao sistema icônico
e „las imagenes‟, referindo-se às diversas representações materiais e relaciona as duas dentro do modelo
dicotômico de Saussure, entre a língua e a fala.
27
Tradução: A imagem é uma abstração, uma categorial perceptual e cognitiva, enquanto que as imagens
icônicas são textos, manifestações singulares em forma de diferentes modalidades técnicas derivadas
daquele modelo. Pois são os textos particulares que o consagram como um supermodelo textual, de
caráter prescritivo. Ou melhor, o universal vem a partir da destilação dos casos particulares. Enfim, não
há língua sem fala, nem tampouco fala sem língua.
72
sentimentos. Sodré, em sua produção sobre afeto, mídia e política, afirma: “(...) a
cultura passa a definir-se mais por signos de envolvimento sensorial do que pelo apelo
ao racionalismo da representação tradicional, que privilegia a linearidade da escrita.”
(SODRÉ, 2006, pag. 19). As habilidades humanas de avaliação e de julgamento, por
exemplo, passam, impreterivelmente, pelo processo emocional. E o universo icônico e
imagético vai de encontro justamente com estas representações tradicionais ditadas pelo
racionalismo.
Sodré atribui este racionalismo exacerbado à hegemonia da linguagem escrita
fincada no iluminismo. O poder da palavra impera sobre outras formas de expressão e
de linguagem, por isso é tão difícil para a ciência aceitar a dimensão tácita do
conhecimento. Porém, “uma parte ponderável do pensamento contemporâneo é
atravessada pela intuição de que a dimensão dos afetos pode escapar da apregoada
onipotência da razão metafísica” (SODRÉ, 2006, pag. 24). Ainda de acordo com Sodré,
pode-se falar de uma inteligência emocional:
“(...) uma inteligência baseada não apenas na racionalidade cognitiva,
mas também naquilo que se dá a conhecer como afetos e que
constituiria um elo essencial entre corpo e a consciência. Trata-se,
assim, tanto da emoção enquanto percepção direta dos estados
corporais quanto do emocionalismo, ou campo próprio do amor, da
raiva, da alegria, da tristeza, das diversas paixões.” (SODRÉ, 2006,
pag. 31).
Aos olhos de Johnson, é importante acompanhar como o estudo da neurociência
cognitiva se transformou ao longo da história e como se chegou a idéia de que é
exatamente nas emoções que se encontra a chave para o conhecimento humano. “What I
find especially important in this research is the way it shows how emotion and feeling
are the means by which we are most primordially in touch with our world, are able to
make sense of it, and are able to function within it.”28 (JOHNSON, 2007, pag. 54).
À medida que estas reflexões guiam minha análise, entendo o ato de submeter-se
a experiências que ativam nosso sistema perceptivo da seguinte forma: a ação prevê o
acionamento de processos que recorrem às emoções e sentimentos na elaboração do
conhecimento através da vivência artística. O encontro diário entre o corpo e o mundo
está em constante construção e é papel da arte manter o sujeito dentro dessa máquina
28
Tradução: O que eu encontro de mais importante nesta pesquisa é a maneira de mostrar como as
emoções e os sentimentos são um método para nós, primordialmente, entrarmos em contato com o
mundo, podendo elaborar o senso das coisas e capaz de entender as suas funções.
73
em funcionamento. O combustível vital para este processo está justamente nas emoções
e sentimentos.
2.8 Travessia de superfícies
Como já foi dito no início deste trabalho, a artista Milena Travassos tem uma
pesquisa longa em torno das transparências e do material de vidro. Dentro da exposição
Sala de Jejum, ela apresenta dois trabalhos que não são vídeos-instalação. Casulo e
Para ver amarelo são trabalhos que dão continuidade à exploração destes materiais,
desenvolvendo sua pesquisa e, a partir das imagens fotográficas impressas em vidro,
trazem outra dimensão para as imagens-movimento vistas nas vídeos-instalação de Sala
de Jejum. Embora aqui as imagens não se apresentem em movimento, elas chegam aos
olhos do observador através de lâminas de vidro superpostas, dando a idéia de
profundidade.
Em Casulo, por exemplo, a imagem de um
corpo nu, sentado ao chão, encolhido sobre um piso
de madeira corrida (dando a impressão que é o
mesmo piso sob o qual o observador está no
momento em que observa o trabalho) aparece sob
formas difusas e superpostas. A impressão da
imagem sobre três peças de vidro apresentam-se
montadas uma sobre as outras com uma diferença
de superposição suficiente para trazer a idéia de um
corpo em camadas. As imagens impressas também
não
são
exatamente
as
mesmas.
Pequenas
modificações na forma do corpo se diferenciam. Sombras e reflexos são elementos que
aparecem na obra. A visão, mais uma vez, é aguçada, sob alguns elementos comuns em
relação a outros trabalhos da mesma exposição. A percepção confusa da imagem não
deixa a visão identificar com clareza o que vê, uma vez que suas fronteiras estão
borradas, devido à superposição dos vidros. O sentido da visão é ludibriado, dando a
idéia de uma profundidade imagética. “Uma espécie de tridimensionalização por
acumulação de planos visuais, onde as placas de vidro superpostas criam uma percepção
difusa da planaridade da imagem” (TRAVASSOS, 2009, p.7).
74
Casulo
Tanto em Para Ver Amarelo como em Casulo, ambos evocam um elemento
externo, porém, tão importante quanto cada placa de vidro: a iluminação. Por serem
impressas em superfícies transparentes, as imagens ganham forma à medida que são
lançadas sobre elas determinada iluminação. No dicionário Michaelis, temos o seguinte
conceito para a palavra translúcido: “1- Diz-se do corpo que deixa passar a luz, mas
através do qual não se vêem os objetos com nitidez; diáfano. 2- Transparente. 3- Que
não oferece qualquer dúvida; evidente, claríssimo. Antôn (acepções 1 e 2): opaco.”
(MICHAELLIS, 2009). O vidro onde as imagens foram impressas é translúcido, ele
deixa a luz passar. Isso faz com que os objetos cheguem ao observador de forma
embaçada. A falta de nitidez proporciona uma percepção difusa daquela terceira
imagem que se forma na junção das placas de vidro. A composição se dá de maneira
borrada. Citando a artista, um corpo sutil surge daí.
Outro ponto recorrente já tratado quando analisado O Banho e Sala de Jejum é a
questão do espaço cena e o espaço ação. É notória a associação entre o piso que o
observador caminha na sala e aquele expresso nas imagens. Diante dos olhos do
observador, o piso das imagens ora se apresenta sob uma coloração forte, ora suave,
chegando, por vezes, a se camuflar com o piso real da sala, uma vez que as placas estão
75
encostadas na parede, em pé, sobre a madeira corrida do chão. Uma superfície se liga a
outra, num olhar contínuo que só não deixa o chão real confundir-se ao chão imagem,
por estarem dispostos em direções transversais e não contínua29.
Em Para Ver Amarelo a idéia da superposição de imagens aparece novamente,
porém o corpo não é mais o elemento central da superposição. A paisagem formada –
incluindo o corpo com um dos elementos dessa paisagem – a partir da superposição das
placas é o principal elemento na composição deste trabalho. Sob os mesmos princípios
utilizados em Casulo, Para Ver Amarelo traz impresso imagens estáticas, fisgadas
daquelas captadas em movimento para a vídeo-instalação Tempo de Paisagem (tanto
que ambos os trabalhos são expostos na mesma sala). Impressa na placa, tem-se
fotografias de partes da folhagem de um Ipê amarelo. Em outra, vê-se o tronco
carregando o corpo feminino vestido de branco com o cabelo esvoaçante. Numa
terceira, galhos retorcidos com a folhagem verde. Este trabalho forma uma extensa
composição, na horizontal, onde partes da árvore aparecem superpostas justamente no
jogo de luz da superfície translúcida. As superposições formam uma grande imagem
labirinto entre folhas e galhos da árvore em um formato estático e retangular. No meio
das folhagens e dos troncos superpostos, o corpo feminino deitado aparece, compondo a
paisagem em superfície transparente.
Para Ver Amarelo
29
A foto grande que apresenta Casulo não foi tirada no espaço de exposição analisado, Sobrado José
Lourenço, pois, como se vê, o chão não é de madeira corrida. A foto pequena, na página anterior,
representa o espaço de exposição de Sala de jejum.
76
As imagens formadas nas superfícies transparentes enriquecem a estética da
exposição, além de dar continuidade à pesquisa desenvolvida pela artista. Nos vídeos, a
água também funciona como um desses elementos de transparência. Casulo e Para Ver
Amarelo dialogam com as vídeos-instalação à medida que paisagem, corpo e imagem
estão no cerne dos trabalhos. O jogo de imagens superpostas, por vezes, engana a visão
do observador quando se borram as fronteiras. Este jogo com os sentidos também
aparece ao longo de toda a exposição. Quando a imersão proposta em Apnéa e Náiades,
por exemplo, aparece, ela confunde os sentidos também, através de mecanismos
distintos. Em nível gradual, os trabalhos que utilizam os recursos tecnológicos acabam
sendo mais competentes nesta tarefa de dissolver o observador na obra através dos
sentidos. Isto assim se caracteriza pela inclusão crescente do ciberespaço no cotidiano
das pessoas e da maneira como os indivíduos tem se relacionado com o ambiente
virtual. Gubern o define:
“El ciberespaço es, en efecto, un paradójico lugar y un espacio sin
extensión, un espacio figurativo inmaterial, un espacio mental
iconizado esterescopicamente, que permite el efecto de penetración
ilusoria em un território infográfico para vivir dentro de una imagen,
sin tener la impresión de que se está dentro de tal imagen, y viajar así
en la imovilidad.”30 (GUBERN, 1996, p.166).
A partir desta definição, entende-se como se dá a experiência imersiva no
ambiente imagético. No espaço artístico, este ambiente por onde se navega tem sido
bastante utilizado como recurso. Sala de Jejum recorre ao ciberespaço para conduzir o
observador no labirinto da obra, pelos corredores do casarão. A terminologia “navegar”,
comumente utilizada para referir-se à maneira de deslocamento no ambiente virtual
remete ao ambiente fluido encontrado em Sala de Jejum. Gubern, ao discorrer sobre o
tema, refere-se ao espaço onírico encaixando-o como uma luva no espaço explorado
pela artista visual na obra analisada. “Por el ciberespaço si „navega‟ – no se camina –
para expresar con este verbo la fluidez del entorno, que tiene también algo de espacio
onírico, pues permite atravesar ilusoriamente puertas y paredes.”31 (GUBERN, 1996,
p.168).
30
Tradução: O ciberespaço é, de fato, um lugar paradoxo e um espaço sem extensão, um espaço
figurativo imaterial, um espaço mental iconizado estereoscopicamente, que permite o efeito de penetração
ilusória em um território infográfico para viver dentro de uma imagem, sem ter a impressão de que se está
dentro de tal imagem e viajara assim na imobilidade.
31
Tradução: Pelo ciberespaço se navega – não se caminha – para expressar com este verbo a fluidez do
entorno, que tem também algo de espaço onírico, pois permite atravessar ilusoriamente portas e paredes.
77
Em Sonata, um movimento semelhante acontece. Dispostos na vertical, três
grandes projeções são organizadas lado a lado, como grandes portais. A palavra sonata,
segundo o dicionário da língua portuguesa Michaellis, possui dois significados.
“So.na.ta1 sf 1- Mús. Peça musical para um ou dois instrumentos, divergindo as partes
dela em caráter e andamento. 2 - poét. Concerto ou conjunto de melodias agradáveis ao
ouvido. So.na.ta2 sf (de sono) pop 1- O mesmo que soneca. 2- O mesmo que
sonolência.” (MICHAELLIS, 2009).
O trabalho recorre tanto ao sentido da audição – dialogando com a melodia
agradável do conceito um, descrito no parágrafo anterior – como ao estado de
sonolência que também é evocado no ato da contemplação, da imersão na peça – como
se descreve no conceito dois. Neste sentido, a capacidade imersiva da obra caminha na
mesma direção que em Apnéia, uma vez que as dimensões das imagens são da mesma
proporção, diferindo apenas que, em Sonata, o espaço da parede não é preenchido
apenas com uma única vídeo-instalação. O fato de serem três projeções incita o
observador a vagar o olhar entre cada „portal‟, assumindo a existência de três realidades
distintas.
Discorrer sobre os significados que dão nome aos trabalhos é um exercício
curioso para se construir analogias de semântica, embora saibamos que a construção
real do conhecimento se dá no encontro entre a obra e o observador, na experiência,
independente dessas analogias. Elas, de maneira nenhuma, são determinantes para a
conceituação da obra. A relação que o indivíduo estabelece no momento do encontro é
que se consumará. Prender-se a conceitos ainda permeia a lógica da supervalorização da
palavra, criticada já neste trabalho. No universo das imagens, estas associações nem
sempre se dão de forma clara entre os significantes e os significados das obras,
causando confusão ao observador. Gubern já dizia: “Paradigma de la imagen-laberinto,
las imagenes simbólicas proponen significantes cuyo significado, no es, en aquel
contexto, el común y obvio, de modo que engañan a la mirada y a la inteligência del
observador, presentandole cosas que no significan aquello que aparentan significar.”32
(GUBERN, 1996, p.89).
Este jogo de ilusão que se dá no âmbito das imagens acaba sendo um elemento
de fácil exploração por diferentes setores. No universo artístico, ele só enriquece as
32
Tradução: Paradigma da imagem-labirinto, as imagens simbólicas propõem significantes cujo
significado não é, naquele contexto, o comum e o óbvio, de modo que enganam o olhar e a inteligência do
observador, apresentando coisas que não significam aquilo que aparentam significar.
78
possibilidades, amplia os canais criativos e diversifica as formas de elaboração do
conhecimento tácito.
Em Sonata, são três vídeos que compõem uma única vídeo-instalação. Neles são
utilizados os mesmos elementos de Apnéia. São eles garrafas de vidros, materiais
orgânicos (como plantas, flores e galhos) e o corpo-artista. No primeiro, uma câmera do
alto enquadra a superfície aquosa de um poço (o mesmo utilizado em Vertigem), um
corpo vestido de lilás boiando, estático sobre a água. Leves movimentos são feitos,
quase que imperceptíveis. No mesmo plano, uma bacia de alumínio (a mesma de O
Banho e Tudo que Sustenta) cheia de pétalas de rosas reúne parte do material orgânico
que se vê, o tempo todo, solto, boiando na superfície e debaixo d´água. Ora o plano vêse do alto, com a câmera externa, ora vê-se do lado oposto, de dentro do poço. Neste
enquadramento, a imagem torna-se bicolor. O verde da água turva preenche a tela e
aparece no centro, o contorno sombreado do corpo que bóia na superfície. Aqui, a
câmera está submersa, o enquadre é de dentro para fora. Há uma alternância lenta dos
enquadramentos.
No segundo vídeo e no terceiro,
uma câmera próxima prioriza os
detalhes e recorta partes do corpo da
artista dado o enquadramento. O corpo
aparece submerso entre os frascos de
vidro e pétalas, no segundo; flores e
elementos orgânicos, no terceiro. O
jogo entre o dentro e o fora persiste.
Ora a câmera emerge, ora submerge. Nas duas últimas, o passar pela fronteira entre o
submerso e o ambiente externo dá-se de forma muito sutil, com uma fundição de
imagens ou mesmo com o enquadramento duplo, fora e dentro, simultaneamente.
Diferente do primeiro, onde prevalece a câmera parada fora, de cima para baixo e,
depois de um corte brusco, vê-se de dentro, de baixo para cima. Aqui a câmera realiza
movimentos lentos e leves, na horizontal, sem alterar a perspectiva de profundidade.
79
Sonata
O encontro do observador com os três trabalhos simultaneamente formando um
único, no caso, a vídeo-instalação Sonata, desperta uma atenção difusa, sem deixar
perder seu caráter uníssono. Embora as imagens apareçam fragmentadas, quando postas
uma ao lado da outra, formam uma paisagem única, que se modifica lentamente,
formando diferentes composições.
A atenção nos detalhes e o lento movimento das imagens vão de encontro à
velocidade característica do cotidiano midiático. O observador vê-se, mais uma vez,
convidado a desacelerar e a contemplar cada nova formação paisagística que se dá no
jogo dos três vídeos. Gubern contribui: “La imagen-escena habla el mismo lenguaje
que los sueños y de ahí deriva su capacidad paradójica, su turbador ilusionismo, su
eficácia para la comunicación emocional, su sugestión libidinal y sus enormes
potencialidades para el engaño y la confusión.”33 (GUBERN, 1996, p. 49). Dentro deste
universo, a confusão pode ser fruto, justamente, desta imersão. O estranhamento é uma
característica recorrente em alguns trabalhos de Sala de Jejum. Este estranhamento vem
à tona, muitas vezes, para incomodar. Ele deve sim ser questionado – mas não
decifrado, pois é a partir destas inquietações que os elementos se reorganizam para sair
de suas crises e reformular os sistemas. E nas experiências artísticas imersivas esta
conexão entre os elementos subjetivos do observador e a obra se dão de forma profunda.
33
A imagem cena fala da mesma linguagem que os sonhos e daí deriva a sua capacidade paradoxal, seu
desorganizador ilusionista, sua eficácia para a comunicação emocional, sua sugestão libidinal, e suas
enormes potencialidades para o engano e a confusão.
80
Quando o observador cruza com A um Passante, exposta no meio do corredor do
casarão, ele depara-se com o ato de caminhar – ação base do trabalho –, enquanto anda
pelo corredor onde a televisão de plasma está pendurada, na vertical. Entre uma sala e
outra, duas pernas caminham imersas num meio aquoso até os quadris. Um ambiente
com elementos orgânicos boiando, pernas em movimento e pés deslizantes. Um
caminhar incessante, de onde não se vê a origem e tampouco o destino. Esta é a ação
que se vê nas imagens movimento de A um Passante. O observador pára de andar pelos
corredores do casarão, posiciona-se defronte a instalação e continua caminhando na
obra, porém de maneira mais densa, lenta, com uma leve dificuldade de deslocamento,
como ocorre em meios submersos.
Mais uma vez percebe-se um jogo de metalinguagem. A um Passante convida a
se perder nesta caminhada pelo labirinto da exposição, no tempo de quem caminha
debaixo d´água. A ação evoca o passageiro. Tudo passa. Os trabalhos pedem uma
atenção profunda, que paralisa e anestesia o corpo, conduzindo o observador a um
mover-se pausadamente ou mesmo a uma inércia paralisante.
Considerando a experiência particular que as imagens proporcionam aos sujeitos
que se submetem a elas, despertando percepções singulares em cada um, compartilho da
conclusão de Gubern sobre a iconosfera: “(...) hablamos de modos de mirar, de modos
de ver y de modos de leer las imagenes. Existe uma visión activa y otra pasiva, del
mismo modo que existe una mirada consciente y outra distraída. (...) Al fin y al cabo la
iconosfera es un entorno óptico que solo puede ser activado por la mirada humana”34
(GUBERN, 1996, p. 136).
Logo, o entorno ótico que emerge de Sala de Jejum é ativado à medida que
diferentes olhares passam pelos corredores do Sobrado José Lourenço, despertando
percepções distintas nos transeuntes que se perdem no labirinto de imagens. Outras
formas e significações são atribuídas nesse processo de experimentação individual e
coletiva da obra. Surgem encontros que ramificam o potencial criativo e perceptivo da
obra, enriquecendo-a e modificando-a, a cada novo visitante que a experimenta.
Eduardo Jorge Oliveira atribui à caminhada submersa de A uma Passante a força
de reter a velocidade dos grandes centros urbanos. “(...) Pelo demorar-se e pelo título,
evoca a condição de flâneur do poeta, que um dia escreveu o poema sobre a pressa. (...)
34
Tradução: Falamos de modos de olhar, modos de enxergar e modos de ler as imagens. Existe um olhar
ativo e outro passivo, do mesmo modo que existe um olhar consciente e outro distraído. Afinal, a
iconosfera é um entorno ótico que só pode ser ativado pelo olhar humano.
81
O caminhar é lento, e essa lentidão é o vídeo. Mais uma vez, insistir no gesto. Fazer da
imagem uma condição de demora” (OLIVEIRA, 2011, p.40).
A Um Passante
E ao se aproximar do fim do capítulo de seu livro onde ele condensou a
pesquisa sobre a artista, Oliveira conclui:
“Milena Travassos reordena silenciosamente o que está posto em
memória. Imagens mudas (mas não sem ruídos), que igualmente
deixam o observador mudo, oscilando entre a angústia e o desejo.
Nas transformações que Milena Travassos opera existe um
desnudamenbto de todos esses fantasmas em torno do mito feminino,
um fantasma que provoca curiosidade como imagem, mas que
mesmo com sua aparente ausência de carne, com a brancura da pele e
as dobras do tecido , seduz como uma sereia cujo o discurso pode ser
apenas o som do mar vindo de seu ouvido” (OLIVEIRA, 2010, p. 49,
50).
82
2.9 Mídia e Imagem: manipulação e imersão
Dentro do bombardeio imagético que assola as sociedades na atualidade, a
artista Milena Travassos se questiona sobre como utilizar as imagens de maneira
eficiente em um mundo que se encontra tão saturada delas. A ligação da artista com o
universo cinematográfico é grande, assim como sua paixão pelas imagens em
movimento. Por isso, a produção técnica e o conteúdo das imagens foram utilizados e
amadurecidos dentro de suas reflexões teóricas na exposição Sala de Jejum.
A mídia tem contribuído bastante para a disseminação das imagens na sociedade
e para suscitar questionamentos em torno do uso delas. Vale enveredar pela discussão
em torno do tema, uma vez que Sala de Jejum tem como base vídeos-instalação
compostas de imagens em movimento com grande apelo imersivo. Tendo o corpo como
um elemento munido de afetos, sentimentos e em constante transformação, nos cabe
refletir sobre quais mecanismos de manipulação a mídia se apropria para estabelecer
relação com o outro. Existe uma série de jogos de interesse, grupos que se beneficiam
utilizando as mídias para apelos publicitários, por exemplo, tendo a imagem como
principal elemento desse jogo de manipulação. Isto traz riscos à maneira como se
constrói as relações dos homens com a imagem. “(...) es um proceso de abstración
progressivo que tiende a volatilizar las relaciones humanas y los procesos de la vida
cotidiana”35. (GUBERN, 1996, p. 165).
Discorrendo sobre este tema Sodré marca sua crítica sobre formas de
utilização dos afetos. Sabendo que estes são fundamentais na construção da cognição
humana, a mídia recorre a eles para fazer pontes e estabelecer hierarquias, além de
interferir no processo global da cultura.
A inserção das mídias na formação do corpo social se deu de forma tão
articulada e tentacular, depois do surgimento da televisão, que se discute o grau em que
se tem hoje esta relação. Que nível de dependência pode-se atribuir e de que maneira
estes laços se estabeleceram? “Se aceitarmos como vital a experiência da realidade
criada pelos dispositivos técnicos e mercadológicos da comunicação, segue-se que seus
efeitos de convencimento têm uma especificidade, não necessariamente afinada com a
razoabilidade tradicional”. (SODRÉ, 2006, p.43).
35
Tradução: É um processo de abstração progressiva que tende a volatilizar as relações humanas e os
processos da vida cotidiana.
83
A dimensão do afeto é colocada em outra esfera pela mídia, banalizando
emoções e moldando o intelecto de acordo com os interesses sociais vigentes do
capitalismo.
“(...) Se esvanece a força imaginativa do afeto, perdendo-se a
dimensão do Outro como diferença sensível e motivadora. De fato, na
contemporaneidade, quando o mundo se faz imagem por efeito da
razão tecnológica, a redescoberta pública (e publicitária) do afeto fazse sob a égide da emoção como um aspectos afetivo das operações
mentais, assim como o pensamento é o seu aspecto intelectual”
(SODRÉ, 2006, p.47).
Na conjectura política onde “a trama do poder ocupa o psiquismo e o corpo
dos indivíduos por meio do desejo” (SODRÉ, 2006, p.55), questiona-se sob quais
princípios se formulam as relações sociais. A grande mídia exerce a função mediadora
nesse processo, porém conduzida por núcleos de interesses que reforçam a “sociedade
de controle36”, dissecada por Deleuze. Agora as relações não se dão mais na esfera
disciplinar – entre patrão e operário – como anunciou Foucault. Os jogos de poder se
apresentam de forma simbólica, muitas vezes aparecem camuflados, difíceis de serem
identificados. Fronteiras sutis, tênues e perigosas. Redes mais difíceis de serem
desconectadas. A mídia aparece como um forte dispositivo de fixação dos sujeitos,
enquanto comunidade afetiva. Deste modo, “o trabalho (também sob forma de lazer),
invade toda a vida como repressão fundamental, como controle, como ocupação
permanente em lugares e tempos regulados, segundo um código onipresente” (SODRÉ
apud BAUDRILLARD, 2006, p. 59).
Um mecanismo simples de verificar a atuação da mídia nesse processo é
perceber como ela recorre ao campo afetivo do humano através do riso ou das lágrimas
de forma, muitas vezes, gratuitas. “A emoção está aí a serviço da produção de um novo
tipo de identidade coletiva e de controle social, travestido na felicidade pré-fabricada.”
(SODRÉ, 2006, p. 51). Fala-se, então, da onipresença das imagens. A opulência
imagética reproduzida pelas mídias acaba criando determinadas realidades que
funcionam como biombos, direcionando para um lado e ocultando o outro.
36
A Sociedade de Controle foi definida por Gilles Deleuze em 1990 num artigo chamado Post Scriptum –
Sobre as Sociedades de Controle, quando ele decide comparar as novas formas de controle comparandoas com as Sociedades Disciplinares de Michael Foucault. O que reinaria agora não seria mais as estruturas
de confinamento, responsáveis pela dinâmica coersiva das fábricas, mas a falsa liberdade dos discursos
empresariais, monitorando o controle por mecanismos regido pelo dinheiro. “Até a arte abandonou os
espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por
tomada de controle e não mais por fomação de disciplina por fixação de cotação, mais que por redução de
custos, por transformação do produto mais que por especialização de produção” (DELEUZE, 1990, p.3)
84
“No pocas veces las imágenes tienden hoy a enmascarar las
realidades ingratas de la vida social con el despliegue de su
tranqüilizadora sonrisa institucionaly, como han hecho notar Jean
Baudrillard y Paul Virilio analizando las nuevas tecnologias de la
imagen, ele efecto de real tiende a suplantar la realidad inmediata.
(...) De manera que la famosa „pantalización‟ de la sociedad,
responsable de la densificación icônica es también responsable de su
banalización icônica”.37 (GUBERN, 1996, p. 124).
Apesar de a atmosfera afetiva gerada pela mídia dar espaço a um sentimento
forte de comunidade, o caminho traçado pela horizontalidade e a precariedade das
emoções tornam o processo cada vez mais distante da lucidez e da verticalidade sólida
dos sentimentos. “É de fato o mercado, coadjuvado pela publicidade e pela mídia, que
influi poderosamente na redefinição da subjetividade contemporânea, acentuando os
elementos do imaginário e do desejo” (SODRÉ, 2006, p. 63).
Ao realizar suas análises sobre os impactos visuais sofridos pela percepção
humana quando surgem as telonas cinematográficas, Gubern discorre sobre
características que, já tendo sido parte delas identificadas na televisão, também
funcionam como mecanismo de manipulação acessando os afetos de maneira gratuita.
Embora a preocupação artística ligada à produção cinematográfica seja superior à da
produção televisiva, em ambas as linguagens identifica-se facilmente o mecanismo de
ação.
“Pero el encuadre que más contribuyó a diferenciar la estética del
teatro de la del cine y a potenciar su expresividad dramática fue el
primer plano, percepción visual que le está negada al espectador
teatral y cuyo uso avanzaría explorando sus progresivas
potencialidades semánticas (para hacer visible o legible um detalle
demasiado pequeño de la acción o de decorado), dramáticas (sobre
todo aplicado a escrutar la expresión del rostro humano) y, por fin,
sinecdóquicas (o la parte por el todo)” (GUBERN, 1996, p. 115).38
A partir desta descrição, identificamos sob quais elementos o mundo
imagético exerce o fascínio sobre os homens, mexendo na percepção humana. Assim, é
37
Tradução: Freqüentemente, as imagens tendem a mascarar as realidades ingratas da vida social e os
desdobramentos de seu tranqüilizador sorriso institucional e, como tem feito notar Jean Baudrillard e Paul
Virilio analisando as novas tecnologias da imagem, o efeito de real tende a suplantar a realidade imediata.
(...) De maneira que a famosa espetacularização da sociedade, responsável pela densificação icônica é
também responsável pela sua banalização.
38
Tradução: Mas o quadro que mais contribuiu para diferenciar a estética do teatro e a do cinema e a
potencializar sua expressividade dramática foi o primeiro plano, a percepção visual que é negada ao
público teatral e cujo uso seguiria explorando progressivamente o potencial semântico (para tornar visível
ou legível um detalhe demasiado pequeno da ação ou do cenário), dramática (especialmente aplicado para
controlar a expressão facial humana) e, finalmente, a sinédoque (ou parte de um todo).
85
possível trabalhar sobre estes mecanismos de forma a manipulá-los. Quando tratamos
do assunto na esfera artística, temos o uso das imagens de acordo com a proposta do
autor. Em Sala de Jejum, a contemplação hipnótica do belo, a imersão dos sentidos e a
tênue fronteira entre o onírico e o real proposto nas imagens sugerem a relação
estabelecida entre obra e observador. É por este viés que se dá a „manipulação‟. Sobre o
assunto, Milena Travassos afirma:
“Um dado que logo chama atenção é que nossa relação com a
imagem, no dia a dia, está submetida ao apelo publicitário e submissa
a literalização, também que esse encontro ocorre com um estado de
atenção mínima, nosso olhar não se fixa em nada e nada se fixa em
nós. Não nos permitimos manter o nosso olhar por muito tempo em
algo, uma paisagem, alguém, um detalhe, uma imagem, tampouco
nos permitimos sentir a atmosfera do que se passa em torno do que
olhamos” (TRAVASSOS, 2009, p.9)
A exposição é um exercício corporal e perceptivo que vai, justamente, na
contramão desses estágios fugazes de atenção mínima que o mundo impõe aos cidadãos.
Sala de Jejum pede predisposição e delicadeza; calma e paciência; dedicação e imersão.
“Estamos submetido a um fluxo de sensações, mas estas não se fixam em nossas
experiências.” (TRAVASSOS, 2009, p. 9). Tendo em vista esta análise da realidade
diante dos fluxos de informações e bombardeios de imagens na sociedade atual é que
Sala de Jejum se justifica e se firma quanto obra. A discussão a ser feita a partir deste
panorama é a respeito das maneiras de trabalhar a arte tirando os afetos da esfera de
manipulação das mídias com a missão de resgatá-los e explorar seu potencial de
fulguração. De que forma este manuseio é possível? Quando pensamos o corpo como
uma mídia de si temos uma sugestão de resposta para o questionamento dado. Um corpo
que não hesita em doar-se ao saber que é através dele que a experiência se consumará,
tendo os afetos como aliados nesse processo.
2.10 Arte como dispositivo
A terminologia profanar, conceituada por Agamben, se aplica aos objetos no
mundo frente a diferentes situações. Para exemplificar no âmbito artístico, tratarei antes
do tema sob a metáfora benjaminiana. Inspirado em um dos fragmentos póstumos de
Benjamin, Agambem compara o capitalismo com religião para metaforizar as relações
de poder e o ato de profanar. “Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia
86
sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está
voltada para a criação de algo absolutamente improfanável” (AGAMBEN, 2007, p.71).
Esta afirmação tem a ver com a capacidade de reestruturação rápida do sistema quando
este se encontra em alguma situação de ameaça. Ou seja, o caráter improfanável da
religião capitalista está na impossibilidade de enfrentamento, já que tudo é absorvido e
integrado. Em outras palavras: a capacidade do sistema em sanar a própria entropia e
regenerar-se sem perder o tipo de relação de poder antes já estabelecida é tamanha que
mina-se qualquer chance utópica de harmonia entre os sistemas. Aqui se inclui este
como mais um elemento de alta complexidade.
O capitalismo possui uma flexibilidade incrível de se reestruturar diante das
crises, além de incorporar ao sistema todo e qualquer manifesto subversivo que já se
tenha surgido ao longo de seu regime. Na obra O Estado de Exceção, Agamben retrata
isso demonstrando como se configura as relações de poder numa situação política de
estado de exceção. É clara a estrutura vertical e hierarquizada que o Estado continua
mantendo diante dos cidadãos sob a chancela da “exceção”. Ele apazigua as massas com
concessões que logo se tornam a regra, mantendo a situação de domínio. “Estar-fora e,
ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas
porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por
ela em seu ser, é que ele pode também ser definido pelo oxímoro êxtase-pertencimento”
(AGAMBEN, 2004, p. 57).
Através dessa leitura, do “estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer” também
podemos fazer uma ponte com o paradoxo atual do universo artístico. Muitas vezes, a
arte é utilizada como dispositivo, perdendo seu caráter profanador. Ela aparece, tem o
espaço, porém num lugar totalmente pré-determinado pelo sistema. Ela é mais um
elemento de manipulação e adestramento que se aplica sobre as massas. Os
experimentos de jogos com as novas tecnologias, por exemplo, estão dando uma falsa
sensação de liberdade aos usuários que, levados pelo entretenimento, imergem num
universo da apatia, de grande ilusão de controle proporcionada pela realidade virtual.
Gubern afirma: “(...) el programa es percibido como una extensión orgánica de su
conciencia. Esta impresión de ser libre dentro de uma estrutura impuesta por outro,
87
dentro de un laberinto emocionante, constituye uno de los estímulos mayores de los
videojuegos.” 39(GUBERN, 1996, p. 153).
Essa sentença nos faz olhar a realidade cultural atravessada por essas
experiências tecnológicas e refletir sobre como a arte está se apropriando desses
recursos. Assim, questiono: há ainda experiências artísticas profanadoras diante da
cooptação dos mecanismos subversivos, principalmente com a mídia mediando em prol
da manutenção do sistema e não da transformação? “Os dispositivos midiáticos têm
como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem como
meio puro, impedir que o meio abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova
experiência da palavra.” (AGAMBEN, 2007, p. 76). Nas palavras de Baudrillard,
“Vivimos en um mundo en que la más alta función del símbolo es la de hacer
desaparecer la realidad y la de enmascarar al mismo tiempo esta desaparición”.40
(BAUDRILLAD apud GUBERN, 1996, p.178). Neste sentido, a mídia neutraliza
mecanismos e mascara a realidade, roubando a autonomia e a capacidade de profanação
de vários espaços e linguagens.
Os mecanismos de organização do sistema engendram um novo processo de
adaptação daqueles elementos que surgiram, inicialmente, com caráter profanador. A
mutabilidade e a capacidade de readequação para se manter a estrutura do sistema
dificultam a restituição dos objetos ao uso livre do homem. Imaginar uma sociedade
sem classes, por exemplo, é pensar sobre quais estratégias foram utilizadas para se
conseguir tal fato.
“Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações,
mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A
sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda
a memória das diferenças de classes, mas uma sociedade que soube
desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso,
para transformá-las em meios puros” (AGAMBEN, 2007, p. 75).
Agamben diz que “é importante toda vez arrancar dos dispositivos – de todo
dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram” (AGAMBEN, 2007,
p.79). Este é o desafio. Tentar desativar os dispositivos que nos cercam, inclusive
aqueles que se apropriaram da arte – sem cair em armadilhas.
39
Tradução: O programa é percebido como uma extensão orgânica de sua consciência. Esta impressão de
ser livre dentro de uma estrutura imposta por outro, dentro de um labirinto emocionante, constitui um dos
maiores estímulos dos videogames.
40
Tradução: Vivemos em um mundo que a mais alta função do símbolo é a de fazer desaparecer a
realidade e de mascarar ao mesmo tempo este desaparecimento.
88
Dentro deste contexto, questiono: em que medida Sala de Jejum tem a
contribuir como uma experiência profanadora? Este método proposto pela artista e sua
curadoria trabalham com mecanismos do universo conceitual da profanação? Refazendo
usos do espaço, propondo outra lógica do tempo incitando a inércia, se utilizando dos
sentidos para mexer nas sensações e nos afetos são elementos que se enquadram no ato
de profanar. A experiência corporal imersiva pode sim proporcionar uma lógica de
organização cognitiva totalmente distinta daquelas que o mundo oferece diariamente. A
escolha de submeter-se pode – se assim deixarem envolver-se – reverberar em uma
experiência única e singular, onde os frutos poderão ser colhidos na associação com
novas informações que o sujeito possa a vir a entrar em contato no futuro. A percepção
do conhecimento tácito não se dá no ato da experiência. Ele se apresenta em outra
situação, onde o sujeito não mensura suas fronteiras, mas se for atento, identifica onde
ele se manifesta.
Através da arte, trabalhamos a cognição e a afetividade, assim, podemos
ampliar nossa percepção e o campo sensório para o desenvolvimento do conhecimento
tácito, sendo plausível recordarmos a análise de Benjamin em torno das transformações
perceptivas coletivas da sociedade.
“No interior de grandes períodos históricos, a forma da percepção das
coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo
de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o
meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas
também historicamente” (BENJAMIN – Obras Escolhidas v.1 – ,
1994, p.169).
O mesmo dispositivo utilizado pela mídia para garantir a manutenção do
sistema, o afeto, pode ser utilizado de maneira profanadora no universo da arte. Sodré
partilha do pensamento de António Negri quando o cita: “(...) Apostando no afeto como
uma potência de liberdade, Negri envereda por um projeto de resgate político da
dimensão afetiva enquanto „sedimento ontológico‟ de lutas sociais enquanto potência de
transformação expansiva, presumidamente capaz de revalorizar „o que é comum‟ em
termos de singularidade e universalidade” (SODRÉ, 2006, p.62), casando muito bem
com a conclusão de Milena Travassos no seu artigo sobre a obra:
“Hoje, vendo a imagem submetida a esse fluxo total informacional
que nos retira dessa zona de opacidade inventiva, cabe pensar as
experiências visuais provocadas pelos dispositivos imagéticos como
89
espaços de resistência, um outro povoamento de sentido, uma outra
temporalidade, uma experiência; é aqui que me coloco enquanto
produtora de imagens. Como já refletira Deleuze41: fazer já é pensar,
pensar é viver.” (TRAVASSOS, 2009, p.9).
41
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: editora 34, 1992, p.90 e 92.
90
3. Conexões filosóficas: caminhos e possibilidades da comunicação artística
3.1 Por uma autonomia coletiva
Ao destrinchar os parâmetros sistêmicos fundamentais da Teoria Geral dos
Sistemas admitem-se três, dispostos hierarquicamente: permanência, ambiente e
autonomia. É partindo desta premissa teórica que irei compor um panorama social
viável para a permanência e a convivência coletiva em sociedade, a fim de discutir as
relações estabelecidas de autonomia e dominação, procurando localizar o papel da arte
dentro deste processo.
A permanência é o parâmetro primordial da existência de todas as coisas. Tudo
tende a permanecer no mundo. Partindo da hipótese evolucionista do Big Bang, “a
expansão do universo implica uma transformação termodinâmica, com dissipação de
energia na forma da expansão e com produção de entropia. É como se o universo
dimensionasse „canais‟ para que essa transformação seja viabilizada a partir do local
para o global” (VIEIRA, 2008a, pag. 33). As condições de permanência de um sistema,
inevitavelmente, estão ligadas ao surgimento de outros sistemas e as interações
estabelecidas entre eles. Admitindo que os sistemas são abertos e encontram-se
permanentemente em trocas, é através do ambiente que ele irá obter mais complexidade
para garantir a sua permanência. Estas trocas agregam ao sistema a autonomia
necessária sob o acúmulo de reservas. Nos sistemas humanos, a autonomia se manifesta
sob a forma de estoque como a paciência, competência, tolerância, vontade etc. Estes
atributos permitem, mesmo com o elevado teor de complexidade dos sistemas vivos, a
permanência e a convivência em sociedade. A conquista de autonomia é o que
proporciona aos sistemas vivos a dinâmica do maior sistema motor da cultura: o
psicossocial. “A permanência está na aptidão do vivo para se organizar sempre em
relação a algo ou alguém, na tentativa de manter vínculos de naturezas diversas (sonhos,
afetos, ideias e assim por diante) e sobreviver”. (GREINER, 2005, p.82).
Como foi citado anteriormente, Hutchins acredita que a experiência coletiva é
o grande ativador do processo cognitivo. A compreensão da Teoria Geral dos Sistemas
toma por base a compreensão co-evolutiva do mundo, atribuindo o equilíbrio entre os
fatores biológicos e culturais do sistema à construção do universo.
Este raciocínio nos leva a entender que os traços biológicos na evolução dos
sistemas
são
radicalmente
interceptados
pelas
transformações
psicossociais
desenvolvidas pela interação entre os vários sistemas de diferentes níveis de
91
complexidade no mundo. Não temos como sobrepor uma característica a outra na
evolução natural dos sistemas vivos humanos. Evidentemente, temos casos específicos
em espécies vivas – no caso, os animais irracionais – cuja complexidade é inferior a da
espécie humana. Assim, o fator predominante na evolução daquele sistema é o
biológico. Isso não nos impede de avaliar singularmente as diferentes manifestações na
espécie humana, admitindo a forte influência de ambas as características.
Sem dúvida, a construção da memória nos sistemas vivos humanos é um dos
principais fatores que comprovam o aumento de complexidade do sistema. “É a partir
da memória, aqui generalizada, que um sistema consegue conectar seu passado, na
forma de uma história, com o presente transiente e com possíveis futuros.” (VIEIRA,
2008b, pag. 22). Essa constatação sobre a existência concreta da função memória
estabelece o ser humano numa rede complexa de sistemas universais que nos leva a,
cada vez mais, ficarmos atentos ao surgimento dos parâmetros psicossociais da
evolução humana. De acordo com cada sociedade, temos hábitos específicos criados
que relacionam esses parâmetros psicossociais de maneiras distintas. Greiner afirma que
falar de hábito para Mauss refere-se à origem etimológica do latim habitus. “Isso porque
seria sempre uma habilidade adquirida, que pedia uma investigação acerca da memória,
das práticas coletivas, das ações individuais, e de como tudo isso estaria enredado nos
processos cognitivos” (GREINER, 2005, p. 98).
Sendo a memória uma propriedade sistêmica fundamental para a
sobrevivência, vale nos atermos às formas como ela se manifesta nos indivíduos.
“Como as categorias perceptivas não são imutáveis e se modificam
sob o efeito de comportamentos do animal, a memória, vista por este
ângulo, resulta de um processo de recategorização contínua. Por isso
não pode ser explicada como um arquivo em computador e nem
tampouco como „coisas dentro das gavetas de uma cômoda‟. Por sua
própria natureza ela interfere através de procedimentos, em uma
atividade motriz, contínua, caracterizada por tentativas repetidas em
diversos contextos.” (GREINER, 2005, p. 41).
Em um dos seus artigos, este publicado no II Congresso Arte e Ciência:
Qualidade de Vida, em 1997, realizado na USP, Vieira discorre sobre o tema qualidade
de vida e discute o sistema social, reproduzindo a constituição de Mario Bunge dotada
de quatro subsistemas: biológico, cultural, econômico e político. O pesquisador afirma
que o sistema o cultural é aquele fundamental, de maior importância, sendo este
classificado como sistema hipercomplexo. Greiner, ao partilhar do pensamento do
92
etólogo Dominique Lestel, afirma que “o fenômeno cultural pode ser caracterizado
como um fenômeno de individualização e de comportamento de complexidade
progressiva, no qual a cultura humana constitui um caso particular” (GREINER, 2005,
p.40). A partir dos estudos sobre o corpo desenvolvido pela pesquisadora, não faz mais
sentido separar instâncias como o corpo biológico do corpo cultural. “O corpo
anatômico e o corpo vivo atuando no mundo, tornaram-se inseparáveis.” (GREINER,
2005, p. 42).
Venho por meio desta vertente teórica, mais uma vez, tentar expor as facetas
da constituição cultural que a imbricam na realidade do sujeito no mundo sem
possibilidade de separá-las. A cognição humana, inevitavelmente, atua no processo
cultural ao mesmo tempo em que é afetada por ele. No ambiente das mediações, o corpo
funciona como processador de informações que também age sobre a realidade e sofre
com as modificações oriundas desta.
A constituição do sujeito enquanto ser social nos impõe essa rede de fatores
que predispõe a permanência do sistema no universo e nos remete a uma reflexão de
cunho sócio-político quanto às conquistas humanas individuais e coletivas que garantem
a tal permanência. A compreensão de autonomia somente como mecanismo de
permanência não estaria reduzindo as capacidades desse sistema quanto ao alcance
coletivo dos usos que são feitos dessas trocas de informação, energia e matéria com o
ambiente? Faço tal questionamento tentando livrar-nos da compreensão errônea que o
termo autonomia pode gerar como algo alcançado unicamente pelo indivíduo, excluindo
a relevância do processo co-relacionado com o outro, também agente desta ação.
A busca pela autonomia é um denso exercício das complexidades humanas no
âmbito da vida social. As relações entre os variados sistemas seguem na direção da
permanência, recorrendo a vários recursos do conhecimento universal para que isso
ocorra da melhor forma. A arte, a filosofia e a ciência são formas de conhecimento que,
quando trabalhadas em conjuntos numa sociedade, produzem autonomia suficiente para
manter um sistema cultural ativo.
Foquemo-nos no conhecimento artístico. Voltar-se aos sistemas que envolvem
o conhecimento artístico é admitir “que os mistérios humanos são decifrados pela
sensibilidade”. (SANTAELLA, 2004, p. 81). Breton afirma que de um universo cultural
para outro, as pessoas decifram sensorialmente o mundo de maneira diferenciada. “Essa
é a dimensão mais enraizada na intimidade do sujeito, a mais intocável, é aquela do
claro-escuro, uma vez que drena o imenso campo sensório” (BRETON, 2007, P. 55).
93
Esta dimensão do conhecimento exige sensibilidade do sistema para que as
trocas com o ambiente e com outros sistemas se estabeleçam, respeitando devidamente
as soluções inesperadas e caóticas às quais os sistemas complexos estão sujeitos. Vieira
atribui à sensibilidade uma das capacidades necessárias aos sistemas para permanecer
no tempo. “Deve possuir sensibilidade no sentido de reagir adequadamente e ao tempo
às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente. Essas cadeias de
eventos, geradoras de processos, se manifestam para o sistema como sinais ou
simplesmente fluxos de informações”. (VIEIRA, 2008b, pag. 21).
Sendo assim, não teríamos em Sala de Jejum uma obra que contribui para esta
sensibilização dos sistemas? O conhecimento artístico é uma maneira de experimentar
outras formas de autonomia para a permanência dentro dos sistemas. Viver em
sociedade pressupõe encarar as crises que esta vivência traz. A experiência artística
pode funcionar tanto como catalisador de ruídos como apaziguador, uma vez que a
busca pela autonomia coletiva faz parte de um processo complexo e instável.
3.2 Entropia viabilizando autonomia
A coerência do sistema complexo mantém-se sempre no curto período até a
próxima crise, sempre tão recorrentes. “Se um sistema cognitivo, potencialmente com
certa complexidade, não encontra complexidade coerente em seu ambiente, torna-se
ameaçado de extinção” (VIEIRA, 2008b, pag. 23). Quando a entropia desses sistemas
encontra-se em nível elevado, a forma de recomposição organizacional pode se dar por
intermédio de uma produção artística. Esses sistemas dialogam com um ambiente,
muitas vezes, difícil de encontrar uma correspondência. A sensibilidade do sistema é
tamanha que a Umwelt correspondente ao ambiente adequado é parte do universo de
poucos. Mas são eles que, quando conseguem a conectividade, tocam e atingem altos
níveis de complexidade do outro, que conhecimento científico ou filosófico nenhum
atingiria. O conceito de Umwelt, termo desenvolvido pelo biólogo Uexküll, pressupõe
uma discussão específica. A tradução da palavra Umwelt significa “mundo à volta”,
“mundo entorno” ou “mundo particular”. Segundo Vieira, a Umwelt seria uma espécie
de interface entre o sistema vivo e a realidade, funcionando como um filtro de
informações, onde todo o material que o ser humano possui para construir o
conhecimento é representacional. Greiner define: “uma propriedade que diz respeito ao
modo como uma referida espécie constrói o seu mundo na relação com o ambiente onde
94
vive” (GREINER, 2005, p. 38). Esse conceito tornou-se a base biológica da teoria dos
signos ou a semiótica, no sentido peirceano.
“A internalização do fluxo de informações e sua conseqüente
elaboração, um processo bastante íntimo à Umwelt, é que embasa o
mecanismo de cognição (...) Tendo em vista que a Umwelt é a
interface, a ponte, entre a realidade objetiva e o mundo
representacional de um sistema cognitivo, vemos que o conceito não
pode ser visto como puramente objetivo ou subjetivo. Ele é o
domínio das mediações” (VIEIRA, 2008b, p. 80)
Greiner complementa a idéia: “Tudo vai depender das mediações, sobretudo
das mediações entre o corpo e o ambiente que são o momento estrutural da existência
humana. (...) Trata-se de uma mediação entre o corpo e ambiente, entre o interior do
corpo vivo e exterior” (GREINER, 2005, p. 40).
Portanto, sobre o processo de conhecer através da arte, temos algumas das
autonomias mais difíceis de serem elaboradas: a afetividade, sensibilidade e a emoção
do indivíduo. Assim como todas as outras, estas formas de elaboração da autonomia são
completamente dependentes do outro ser. “(...) Há uma ordem a partir do ruído que
pode vir a manifestar-se como muito fértil” (VIEIRA, 2008b, pag. 34). O ambiente no
qual o indivíduo identifica os canais perceptivos para a conexão com o outro se dá de
forma categórica, ainda que estas categorias, algumas vezes, tenham fronteiras tênues.
“Não há qualquer razão inefável ou qualquer essencialidade humana
(a exemplo da razão cultuada pelo Iluminismo) por trás da
sensibilidade, e sim contingências, que presidem a identificação dos
indivíduos com outros dentro de circunstâncias históricas precisas,
estimulando-lhes a potência de agir pela mobilização afetiva”
(SODRÉ, 2006, p. 54).
Os sistemas estão em constante busca de uma autonomia coletiva, a fim de sair
de suas crises, aumentarem suas complexidades e se prepararem para novas formas de
organização. “Acreditamos que esta última [qualidade de vida] vai depender, na sua
efetivação, do natural exercício de capacidades emotivas e afetivas dos elementos
humanos envolvidos” (VIEIRA, 2008b, pag. 24).
Tudo isso está ligado ao conceito de conhecimento tácito, desenvolvido pelo
pesquisador Michael Pollanyi, já discutido aqui neste trabalho. Vieira discute sobre
várias formas de conhecimento, dentre eles o conhecimento compreensivo, que se
baseia na apreensão do psíquico através das múltiplas exteriorizações. “(...) passar de
uma exteriorização do interno à sua vivência originária e isso seria o compreender: a
95
relação entre a exteriorização e o conjunto de atos que a produzem” (VIEIRA, 2008b, p.
52).
Para refletirmos sobre a produção do conhecimento nas experiências artísticas,
é indispensável recorrermos a estrutura do psiquismo do sujeito, a tríade: razão,
sentimento e vontade, trabalhado dentro do conceito de mundividência, por Luís
Washington Vita, em sua obra Introdução à Filosofia.
Esse conceito se baseia no “conjunto de intuições que dominam não só as
particularizações teóricas de um tipo humano ou cultural e condicionam toda a ciência,
como também englobam, em particular, as formas normativas, fazendo da
Mundividência uma norma para a ação” (VITA, 1964, p.20). Esta compreensão nos faz
entender que o mundo é a junção de vários níveis mundividentes, que une os seus
habitantes. Podemos falar de uma dimensão coletiva das Umwelten individuais. A
mundividência é a Umwelten social.
Esta vivência social nos traz um “„estar no mundo‟, em um conjunto de
circunstâncias, o nosso modo de viver, a nossa „lei de vida‟. Sob esse ponto de vista, o
ideal da ciência seria superar limitações mundividentes e elaborar uma imagem de
mundo que não dependesse do indivíduo, o que difere do procedimento artístico, não
compromissado com uma (única) realidade” (VIEIRA, 2008b, pag. 55). Esta definição
nos faz pensar no exercício do conhecimento artístico como livre da responsabilidade de
unificar uma forma de conhecimento dentro da mundividência. Pelo contrário, ele
admite a multiplicidade de “bolhas” que se fundem e trabalha com a possibilidade do
acaso, sem determinismos ou generalizações.
Desta forma, as relações entre os sistemas se tornam imprescindíveis como
uma forma de preservar a coletividade na conquista de autonomia. É reconhecendo esta
diversidade espacial que o conhecimento artístico se diferencia do sistema formal e
científico de produção do conhecimento. “(...) De alguma forma arte e corpo artista
colaboram para os estudos contemporâneos do corpo e a formulação de novas
epistemologias” (GREINER, 2005, p. 111). Quando a pesquisadora questiona sobre
quais as especificidades do corpo artista e qual a função da arte no processo evolutivo
da humanidade, ela provoca uma discussão sobre como podemos reformular algumas
questões em torno do tema, além de tentar salientar a importância da arte para a
sobrevivência humana.
96
“O corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo. E o corpo
artista é aquele em que aquilo que ocorre ocasionalmente como
desestabilizador de todos os outros corpos (acionando o sistema
límbico) vai perdurar. (...) Mas o motivo mais importante é que desta
experiência, necessariamente arrebatadora, nascem metáforas
imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadores de outras
experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos
(corpo e ambiente) mapeados instantaneamente de modo que o risco
torna-se-á inevitavelmente presente” (GREINER, 2005, p. 122 e
123).
A partir daí, questiono: como o corpo humano trabalha essa tríade, – razão,
sentimento e vontade – quando se submete a imersões artísticas que confundem a
experiência representacional com o universo real? Quando as imagens remetem a um
tempo diferente do cotidiano, a um universo onírico que se sobressai a realidade,
conduzindo o observador a um estado mental e corporal suspenso? “Sentimento,
inteligência e vontade sempre se encontram mesclados no devir interno do humano,
formando um sistema triúnico: pela razão buscamos conhecer o mundo; pelo sentimento
lidamos com os valores deste mundo e pelo desejo e vontade vemos o mundo como um
cenário de ação” (VIEIRA, 2008b, p. 56). A aquisição de determinadas autonomias
coletivas pressupõe um equilíbrio social dessa tríade. “(...) afeto pode muito bem
equivaler a idéia de energia psíquica, assinalada por uma tensão em campos de
consciência contraditórios. Mostra-se assim, no desejo, na vontade, na disposição
psíquica do indivíduo que, em busca de prazer, é provocado pela descarga da tensão.”
(SODRÉ, 2006, p. 29).
A experiência artística entra justamente para mexer nesse equilíbrio, seja
desorganizando sistemas ou permitindo uma reorganização de estruturas que pareciam
naufragar dentro de suas próprias crises. Nos dois casos, há uma elevação considerável
no nível de complexidade do sistema. Assim, surgem novas formas de autonomias
coletivas a partir do conhecimento produzido na experiência. E é isto que ocorre na
experiência proposta em Sala de Jejum. Para uns, ela reorganiza estruturas psíquicas,
para outros, provoca incômodo que pode gerar um processo de desestabilização, mas
não menos importante, já que ambos caminham para a permanência da gangorra do
sistema cultural ativo.
Montando esse quebra cabeça, proponho um entendimento que traz a busca
pela autonomia como uma das principais fontes do amadurecimento humano para uma
vivência coletiva em harmonia dentro dos parâmetros que regem a sociedade atual.
Sodré, ao lançar-se sobre o ethos, conceito de Heráclito – o entendendo como a
97
ambiência sensório-cognitiva, onde se estabelecem as diferenças e as aproximações
constitutivas da comunidade – conclui que “o ethos de hoje se deixa ver como a
consciência atuante e objetivada de um grupo social – explicitada em costumes, hábitos,
regras e valores –, onde se manifesta a compreensão histórica do sentido da existência,
onde têm lugar as interpretações simbólicas do mundo e, portanto, funciona a instância
de regulação das identificações individuais e coletivas” (SODRÉ, 2006, p. 67).
Certamente, a arte entra nessa esfera como um fator provocador e
desestabilizador de sistemas. São as produções artísticas que, muitas vezes, catalisam as
crises, desorganizam sistemas, os pondo em contato com um tipo de conhecimento
rechaçado pela ciência formal, o conhecimento tácito. Confrontar Umwelten a fim de
dilatá-los e alterar mundividências em prol da conquista cada vez maior de autonomias,
obriga o próprio sistema a se auto-organizar com novos elementos em vista, o que
favorece a sociabilidade humana. É tendo em vista justamente esta instância de
regulação das identificações individuais e coletivas que se imprime o sentido de
reformulações. Nesse processo, há o aumento da complexidade, possibilitando novas
formas de interações e possíveis integrações entre sistemas. A arte, elemento
fundamental nesse processo, tem o conhecimento tácito como um de seus principais
aliados dentro das tensões aplicáveis a ethos atual.
O encontro do sujeito e obra, quando em contato com o corpo, é capaz de
provocar alterações desconhecidas à percepção, impossíveis de serem mapeadas. Isso,
muitas vezes, deslegitima o conhecimento tácito perante a ciência. Greiner cita o autor
Semir Zeki acreditando que haveria uma questão chave para indagar o que a arte
mapeia: “ela mesma, objetos existentes no mundo, outros universos simbólicos (como
as mitologias), objetos como imagens mentais e não coisas, o corpo, os processos de
conhecimento.” (GREINER, 2005, p.110). A compreensão da cultura como processo
totalmente interligado à construção da cognição humana, ainda é uma discussão
resistente dentro das correntes científicas psicológicas. Porém, não temos mais como
negá-las. Gubern atribui três fatores determinantes a estas singularidades da percepção
humana: o fator fisiológico, programado pela genética, pelo equipamento sensorial e
pela biologia;
“El factor cultural o socio-cultural, determinado por las tradiciones,
convenciones y hábitos compartidos y que remiten a la historia del
grupo social al que pertenece el sujeto perceptor (...). Y, por último,
el factor individual determinado por los condicionamientos
98
personales y subjetivos, por la singularidades derivadas de la história
personal del sujeto, tanto en el plano orgânico como en el
psicológico, generando determinadas escalas de valores, expectativas,
preferências, aversiones etc.”42 (GUBERN, 1996, p. 17e 18).
Dentro da perspectiva por uma autonomia coletiva, acredito que um dos
maiores desafios sociais da atualidade é a conquista da afetividade. A elaboração desta é
uma das mais complexas formas de autonomia que garantiria, de forma utópica, a
harmonia geral dos sistemas, entre outros fatores. Como sabemos que são muitos os
elementos que envolveria esta utopia, trabalhamos por uma busca constante dela. Em
cada sistema no seu tempo. É o que nos move o estar no mundo. Em cada ciclo social
em suas dimensões e com suas peculiaridades culturais. Sala de Jejum é terno. É lírico.
É poético. É belo. Assim como também é estranho. Incomoda. Mas não mais que
provoca prazer. O deleite vivido durante a experiência entre os corredores e salões do
sobrado, sem dúvida, é superior às provocações. E isto aguça os sentidos e induz a
afetividade.
As entropias sempre assolarão os sistemas, o desafio é perceber cada vez mais
a eficácia da dimensão tácita do conhecimento no processo de dilatação das Umwelten,
que nos oferecem novas ferramentas para reorganizar informações, rearranjando laços e
modificando a rede.
“Tudo que é vivo deve co-habitar com a desordem e a instabilidade.
Não há escolha, esta é a natureza do vivo. Assim, no que diz respeito
ao corpo, para estudar um regime de atividade corporal é preciso
estudar a estabilidade e a instabilidade que, em certas circunstâncias,
têm uma configuração e em outras já são modificadas.” (GREINER,
2005, p. 39).
Por isso, falar de criação nos permite pensar em outras esferas de organização
de sistemas, inserindo mecanismos provenientes do universo da arte, que evoca,
imediatamente, o campo sensório. “Assim, „criar‟, é organizar categorizações
perceptuais com a possibilidade de estabilizar internamente eventos que se diferenciam
em relação a experiências passadas. A idéia de „criar informação‟ se ampara na idéia de
que detectar já é um evento, uma experiência no tempo”. (GREINER, 2005, p.115).
42
Tradução: O fator cultural e sócio-cultural, determinado pelas tradições, convenções e hábitos
partilhados e que remetem a história do grupo social a que pertence o sujeito perceptor (...). E, por último,
o fator individual determinado pelos condicionamentos pessoais e subjetivos, pelas singularidades
derivadas da história pessoal do sujeito tanto no plano orgânico como no plano psicológico, gerando
determinadas escalas de valores, expectativas, preferências, aversões etc.
99
3.3 Estratégias para uma nova curadoria
Tendo como base a discussão desenvolvida ao longo dessa dissertação, venho
propor uma maneira diferente de expor as obras que compõe a exposição Sala de Jejum.
Gostaria de deixar claro que as idéias que serão aqui apresentadas tentam encaixar-se
numa proposta teórica, sob os moldes de minhas lentes. A minha experiência de vida, as
informações processadas no meu corpo, as minhas trocas sensíveis com o ambiente, o
meu estar no mundo, os meus canais de percepção, a dilatação da minha Umwelt são
elementos determinantes para a maneira como eu dialoguei com a discussão teórica
desenvolvida em torno da exposição Sala de Jejum. Estamos diante da análise de um
trabalho artístico, que pressupõe um exercício complexo, onde regras e padrões têm
cada vez menos espaço na discussão das mediações no processo de comunicação.
O que tento construir nesta proposta é uma curadoria que contemple o espaço
do observador, que ele desfrute de um ambiente mais acolhedor e que o convide, de
maneira mais contundente, à espera, à observação, ao sentir, à desaceleração, à
contemplação, até mesmo, à confusão dos sentidos.
3.3.1 Sala de Jejum
Comecemos pela vídeo-instalação que dá nome à exposição. Sala de Jejum
está projetada numa janela branca, no piso superior do sobrado. Ou seja, ao deparar-se
com a obra, o visitante já terá subido a escadaria que foi palco da produção da vídeoinstalação.
A proposta seria colocar lampiões ao longo da escadaria apagados, com
fósforos ao lado, sugerindo um convite ao observador a acendê-los. Um convite a
interatividade. Provavelmente, ele não tenha esta iniciativa enquanto sobe a escadaria,
antes de deparar-se com a projeção na janela. Mas os objetos estarão ali, no percurso do
observador. Como objetos enigmáticos.
Ao chegar diante da vídeo-instalação projetada na janela do andar superior, o
observador faria a conexão entre a ação e aqueles objetos que ele encontrou no
caminho, o instigando, assim, a repetir a ação. Seria uma maneira de continuar
trabalhando em torno de enigmas, abordando a ação também do observador, que se vê
entre a inércia da contemplação e a iminência de uma ação.
100
3.3.2 O Banho
O Banho foi um dos trabalhos que se destacaram da exposição Sala de Jejum
para ser apresentado em exposições coletivas. Recentemente, em abril de 2011, no
Ateliê 397, em São Paulo, O Banho compôs a exposição coletiva A 4 Graus do
Equador, composto por diversos trabalhos de artistas cearenses. A curadora Carolina
Soares reservou um ambiente interessante para o trabalho de Milena Travassos: o
banheiro. A projeção na vertical, de cima para baixo, despejava as imagens na
circunferência da bacia de alumínio, que se situava no chão, vazia.
A maneira como O Banho foi exposto no Sobrado José Lourenço se dava de
outra maneira. Um espaço vazio, livre de referências ligadas ao ambiente do banho
(como um banheiro, por exemplo). Apenas uma bacia de alumínio, cheia de água,
iluminada pela própria projeção que incidia 90º, de cima para baixo, em direção a bacia.
O observador via a projeção de um banho noturno (imagens editadas de Tudo que
Sustenta) sobre a água colhida na bacia. Eu julgo que a água dentro da bacia é de total
relevância para se trabalhar o elemento da transparência e dos fluidos na obra da artista.
A água dentro da bacia não se configura um elemento dispensável.
A idéia é manter essa forma de projeção, frisando a importância da bacia cheia
d´água. Ao lado dela, colocam-se algumas toalhas de rosto, de forma que o observador
sinta-se convidado a molhar suas mãos, misturando-as com as imagens projetadas na
água. A toalha serviria para secar as mãos do observador após a imersão. Isso,
certamente, exigiria a troca da água com alguma freqüência pela organização da
exposição, além das toalhas. Seria esta uma maneira de exercitar o tato na exposição.
3.3.3 Náiades
Nesta obra, sugiro duas intervenções. A primeira seria no lado imersivo da
obra. Colocar goteiras na sala circular para que o observador sinta-se dentro de um
aquário gotejante, seguindo a sugestão do áudio. Enquanto se desloca contornando as
“paredes do poço” que o envolve, o observador sente gotas de água sobre a pele, além
de perceber o chão levemente molhado, devido a algum vazamento que ele demora a
identificar que vem do teto, uma vez que a iluminação do ambiente é reduzida.
A segunda intervenção seria no lado impeditivo. Erguer uma construção de
tijolo em torno da projeção arredondada, com uma formação vegetal encobrindo,
101
tentando simular a boca de um poço. A altura seria algo em torno de 1,5m. Estruturas de
pequenas escadas levariam o observador a subir e debruçar-se sobre a borda do poço
para então conseguir ver o seu interior e deparar-se com a projeção em movimentos
circulares.
Projeção 1 para Náiades, lado impeditivo
A idéia de poço, que já existe na proposta inicial, seria reforçada, diminuindo
ainda mais as fronteiras entre o real e o imagético.
Projeção 2 para Náiades, lado impeditivo
3.3.4 Vertigem
Vertigem é um trabalho que já foi bastante experimentado, em vários formatos.
Embora não tenha presenciado, uma das primeiras propostas de exposição me pareceu
bem interessante, realizada em 2006. A projeção dava-se numa grande placa de vidro
suspensa pelo teto por cabos de aço, onde ela atravessava a estrutura antes de chegar à
parede. Então, via-se a imagem no vidro, que se formava sobre a poeira contida na
grande placa e na parede. Em ambas as superfícies as imagens não se apresentavam
102
claras e definidas. E a artista ainda colocou uma TV virada pra cima, no chão, com
imagens do reflexo do balanço na água. “Então tinha essa coisa do poço, do reflexo, e o
balanço em cima mais sutilmente, que era a projeção do vidro.” (ENTREVISTA
PARTICULAR, 5/2011), relembra Milena Travassos.
Posteriormente, projeções grandes em parede cheia também estão na coleção
de maneiras de expor Vertigem. Lembrando que no sobrado ela aparece num corredor,
ao lado de Tudo que Sustenta e Vigília, em tamanhos medianos em TV de plasma. A
artista tem um grande apreço em manusear suas obras e repensá-las a partir de novas
pesquisas e da criação de novas idéias. De fato, ela desconstrói o conceito de aura da
arte, tão criticada em Benjamin. Não existe um trabalho intocável para Milena
Travassos. Ela faz e refaz, sem pudores de repensar sua própria obra. Em entrevista
particular, Milena soltou sua inquietação com o formato em que a obra se apresentou
em Sala de Jejum e desabafou sobre suas futuras propostas. “Porque, às vezes, você
ainda está entendendo o trabalho, você apresenta e depois você vê que tem muito mais
que o trabalho pode te oferecer como desdobramento”, justifica a artista.
A idéia de Milena é experimentar o Vertigem em um formato pequeno, ainda
menor do que aquele apresentado em Sala de Jejum, que dava-se numa TV de plasma
mediana. Expor a vídeo instalação numa sala grande, vazia, numa TV menor, onde o
áudio pudesse tomar conta do espaço. O observador entraria no ambiente e seria
imediatamente tomado pelo som e, aos poucos, como se olhasse por uma fechadura, se
aproximaria daquela imagem miniaturalizada. Trabalhar com outra dimensão de
Vertigem integra o plano de pesquisa de Milena Travassos. Apresento, aqui, a sugestão
da própria artista de apresentação do trabalho, além da minha, em seguida.
Vertigem proporciona algumas sensações em torno da ação executada no
vídeo. Porém, nesta forma miniaturalizada, o ato inseguro de balançar-se sobre um
grande poço ganha conotações irreais. A vertigem que a ação poderia causar é
surpreendida por uma cena que tira o observador do mundo real, o conduzindo para o
universo da fantasia.
A minha proposta de apresentação dá-se no espaço de onde o observador verá
a obra. Para reforçar estas idéias contrastantes entre a insegurança do ato de balançar-se
sobre o abismo e a serenidade irreal da ninfa que habita seu lar natural, proponho que o
observador esteja sobre uma ponte suspensa na sala – de madeira e cordas –, onde ele
pudesse caminhar por ela, equilibrando-se, enquanto olha a vídeo-instalação projetada
em grandes dimensões, em parede cheia.
103
Projeção para Vertigem
A imagem de um corpo nu visto de costas, com a coluna vertebral às avessas
(onde as vértebras são frascos delicados de vidros), a balançar-se sobre um poço
profundo onde não se vê o fundo demanda gigantismo na projeção. O ato que pode
parecer sombrio se contrasta com a idéia de simplicidade e naturalidade que aquele
corpo desempenha tal ação. Juliana Monachesi descreve:
“O balanço tem uma coisa. Lembra jogos de infância, quando o
tempo parecia eterno e se podia empregar em grandes quantidades em
atividades quase destituídas de sentido aos olhos de um adulto.
Crianças correm por correr, brincam por brincar, constroem castelos
de areia e livros de areia, fantasiam por fantasiar, giram por girar, vão
e vêm no balanço pelo simples prazer de se balançar e de sentir o
vento bater no rosto.” (MONACHESI, 2007).
3.3.5 Tudo que Sustenta
O vídeo produzido para este trabalho possui um enquadramento de câmera
bem próximo da ação. Em Tudo que Sustenta, o observador vê os detalhes da estrutura
delicada de vidro que acompanha o eixo de sustentação da coluna vertebral do corpo
artista. Os frascos de vidro se tocam com o movimento do corpo e produzem um som
que caracteriza os objetos com frágeis.
Neste trabalho o estranhamento diante das estruturas de vidro ao longo do
corpo se dá de maneira mais forte, já que o observador vê de perto. Proponho que
réplicas destes frascos de vidro estejam espalhadas pela sala, formando um caminho por
onde o observador deve caminhar. Logo, este caminhar, vai lhe exigir um cuidado maior
104
para não quebrar os frascos. Também proponho uma sala exclusiva para o trabalho, com
as imagens numa televisão de plasma de alta resolução de, pelo menos, 49 polegadas. A
riqueza desta vídeo-instalação está nos detalhes que a câmera capta ao fazer alguns
closes na ação. O elemento que quero ressaltar nessa proposta é a delicadeza.
Projeção para Tudo que Sustenta
3.3.6 Tempo de Paisagem e Para Ver Amarelo
A proposta aqui é o observador poder deitar e desfrutar da tranqüilidade vista
nas imagens tanto quanto a personagem. Sugiro uma projeção no teto – como já foi
experimentada antes pela artista no espaço do Alpendre – e a sala com três ou quatro
estruturas de madeira que simulem os troncos de uma árvore, onde as pessoas possam
sentar, deitar, apoiar-se, interagir, de alguma forma, com aquelas estruturas enquanto
assiste o vídeo no teto. Sai de cena a televisão de plasma – como foi apresentado no
sobrado – e entra a projeção no teto.
Na exposição vista em 2009, Tempo de Paisagem dividiu o mesmo espaço que
Para Ver Amarelo, em uma das salas do Sobrado. A proposta é que se mantenha a
aproximação entre elas, já que elas dialogam muito bem. Porém, há algo que as impede
de ocupar exatamente o mesmo ambiente. Para Ver Amarelo pede luz do sol,
iluminação natural, já Tempo de Paisagem, nos moldes como proponho, precisa de uma
sala escura.
105
Projeção 1 para Tempo de Paisagem
Projeção 2 para Tempo de Paisagem
Sugiro que Para Ver Amarelo se encontre no corredor que leva à sala de
Tempo de Paisagem, onde as placas de vidro possam receber a luz natural do dia. À
noite, sugiro iluminação artificial específica, com canhões de luz focados nas placas. É
interessante que o visitante tenha acesso aos dois trabalhos em seqüência.
3.3.7 Vigília
Vigília também merece outro espaço diferente do que lhe foi destinado em
2009. Não necessariamente uma sala exclusiva, mas, pelo menos, uma parede exclusiva.
A proposta é manter a televisão de plasma, porém, se possível, em dimensões maiores.
106
Sugiro uma de 49 polegadas. A idéia é pendurar alguns balanços frente à tela, onde três
ou quatro observadores possam sentar-se diante da televisão e assistir a vídeoinstalação, simultaneamente, na mesma cadência que a personagem em cena.
Um elemento importante a ser destacado neste trabalho é o vento, como já foi
colocado no capítulo anterior. Com os balanços a disposição dos visitantes, sensação
semelhante poderá ser experimentada por aquele que escolher assistir ao vídeo
balançando-se. Apesar de o ambiente fechado diferir bastante do espaço de locação do
vídeo – totalmente ao ar livre, conectado com a natureza – o ato de balançar-se faz com
que haja o deslocamento do ar, proporcionando o contato entre a pele do observador e o
vento.
3.3.8 Na mesma direção
As obras Casulo, Apnéia, Sonata e A um Passante não entraram no pacote de
novas formas de apresentação. A exposição como um todo ganha uma nova forma de
visitação quando alteradas a maneira de expor dos outros oito trabalhos. Na verdade,
alguns não se modificam tanto, como Para Ver Amarelo, que se desloca apenas da sala
que dividia com Tempo de Paisagem.
A maneira como Casulo, Apnéia, Sonata e A um Passante se apresentaram em
2009, no Sobrado José Lourenço, contempla a minha proposta de curadoria que trago a
partir deste tópico 3.3. Ao se situarem dentro do ambiente macro de Sala de Jejum, ao
lado de trabalhos vestidos com uma nova roupagem, eles se resignificam no contexto
espacial. As relações podem se dar de forma mais intensa.
A idéia é trazer o visitante o máximo possível para esse ambiente onírico que a
exposição suscita e levar o observador a imergir no contexto metafórico que o mundo
fantástico, surrealista o conduz através das imagens. Sala de Jejum pode ter seu
potencial imersivo intensificado a partir de pequenos gestos suscitado pelos trabalhos,
onde a experiência sensível pode ser vivida de maneira mais aguçada, possibilitando
outras conexões para o desenvolvimento do conhecimento tácito.
107
4. Conclusão
Discutir o potencial da arte como um meio de acessar um conhecimento de
ordem tácita através da comunicação que se estabelece entre o corpo e o meio não é
uma tarefa simples. Neste trabalho eu aponto caminhos para tentar entender esse
processo, a partir de discussões teóricas, tomando por base a obra de Milena Travassos.
Arlindo Machado questiona: “Em que nível de competência tecnológica deve
operar um artista que pretende realizar uma intervenção verdadeiramente fundante?”
(MACHADO, 2001, p. 35). Para esta colocação, o posicionamento de que os meios
tecnológicos não sustentam, por si só, uma produção artística de qualidade, nem
tampouco possibilitam o conhecimento a partir da comunicação artística, fica claro
neste trabalho. Milena Travassos também partilha desta idéia, quando ela recorre a estes
recursos – o vídeo, por exemplo – totalmente vinculado ao conteúdo de suas idéias,
pesquisas e criações. Não se pode falar em separar estas duas instâncias do objeto
artístico. Forma e conteúdo não se dissociam, nem tampouco se sobrepõem. E quando
se trata do corpo, há ainda uma dificuldade maior nessa tentativa.
Então, quando me vejo diante do questionamento que direcionou esta pesquisa
– como a Umwelt humana é dilatada e ativada pela experiência artística, estando ela
apoiada ou não na tecnologia? – concluo que o fato desta experiência estar apoiada ou
não na tecnologia não é determinante para promover esta dilatação da Umwelt humana,
uma vez que ela viria como mais um artifício do conjunto da obra para agregar o
processo. Os fatores que envolvem a dilatação da Umwelt não se resumem a
equipamentos tecnológicos. Ela depende de toda uma complexa estrutura de relações
entre o sujeito e o ambiente que perpassa pela configuração da cultura. A cognição
humana tem sido alterada, sim, pelo exercício complexo das experiências artísticas e as
tecnologias têm contribuído nestes desdobramentos.
Quando Román Gubern questiona “Estamos asistiendo a una verdadera
revolución cultural, además de tecnológica?43 (GUBERN, p.177, 1996), ele coloca em
xeque a que tipo de transformação é válido nos referirmos em tempos atuais. Ele traz
para a discussão presente as questões que vão além de uma transformação tecnológica,
que envolve as relações entre sujeito e cultura. Ele responde dizendo que a tecnologia
da imagem é mais uma reposta que surge para um questionamento velhíssimo da cultura
43
Tradução: Estamos assistindo a uma verdadeira revolução cultural, além de tecnológica?
108
ocidental, sobre a questão da mimese, da ilusão referencial, da aspiração de duplicar
perceptivos perfeitos das aparências do mundo.
As novas relações que o corpo estabelece com o seu entorno sinalizam a
direção desta caminhada rumo a mudanças estruturais da cultura. Acredito que a chave
deste processo está justamente na maneira como os sentimentos, as emoções e os afetos
se colocam nessa rede. O encontro diário entre o corpo e o mundo está em constante
construção e é a arte que mantém o sujeito sensível dentro dessa máquina. O ato de
submeter-se a experiências que ativam nosso sistema perceptivo prevê o acionamento
de processos que recorrem às emoções e sentimentos na elaboração do conhecimento
através da experiência artística.
Quando exponho minha preocupação em torno da apropriação dos afetos pelos
meios de comunicação dentro do capitalismo, lanço sobre a arte a responsabilidade de
redefinir os usos desses afetos e resgatar a capacidade de fulguração que eles possuem.
Ela parece estar se perdendo neste contexto político ríspido em que as sociedades atuais
se encontram. Quando pensamos o corpo como uma mídia de si temos uma sugestão de
solução para o problema dado. Os homens não podem esquecer o papel do corpo na
construção social da cultura, nem tampouco da potência dos afetos para reestruturar
formas dadas. Um corpo não hesita em lançar-se na experiência ao saber que é através
dele que o conhecimento se consumará e isto requer afetos, sentimentos e emoções.
Volto a citar o pensamento de António Negri, partilhado por Sodré: “(...)
Apostando no afeto como uma potência de liberdade, Negri envereda por um projeto de
resgate político da dimensão afetiva enquanto „sedimento ontológico‟ de lutas sociais
enquanto potência de transformação expansiva, presumidamente capaz de revalorizar „o
que é comum‟ em termos de singularidade e universalidade” (SODRÉ, 2006, p.62).
A partir dessa compreensão, o objeto escolhido para ilustrar esta questão que
assola diversas realidades sociais, a exposição Sala de Jejum, contribui para a
sensibilização dos sistemas. Assim como ela, inúmeras outras produções artísticas
desempenham seu papel de provocar um rearranjo de informações no corpo humano
capaz de despertá-lo para maneiras de enxergar o mundo de forma diferente,
proporcionando vivências antes nunca experimentadas, capazes de dilatar a Umwelt da
espécie.
Trago aqui reflexões já expostas no capítulo três. O conhecimento artístico é
uma maneira de experimentar outras formas de autonomia para a permanência dentro
dos sistemas. Viver em sociedade pressupõe encarar as crises que esta vivência traz. A
109
experiência artística pode funcionar tanto como catalisador de ruídos como apaziguador,
uma vez que a busca pela autonomia coletiva faz parte de um processo complexo e
instável.
Encarar a arte como um dispositivo de resistência ainda faz desse espaço, um
lugar para se pensar novos sentidos e valores para os objetos do cotidiano. O corpo
entra nesse jogo através do movimento e do gesto como mecanismo de mediação, já
dizia Greiner. “(...) O gesto é a exibição da mediação, o processo de tornar o significado
visível. As artes que pertencem essencialmente ao reino da ética e da política e não
apenas da estética, encontram no seu âmago o gesto, uma vez que ele é o fundamento da
comunicação” (GREINER, 2005, p.92).
Quando proponho uma nova curadoria que insira o corpo do visitante num
ambiente que o faça captar de outra maneira aquele contato que ele estabelece com
aquela obra, é porque acredito, assim como Milena Travassos, que a arte está posta no
mundo para ser reinventada e experimentada. Tento introduzir o visitante numa
realidade maior de diluição de seu corpo na obra, uma vez que acredito ser este o
caminho para maiores impactos entre sujeito e arte, dando outras possibilidades a
dilatação da Umwelt.
Quando nos deparamos com Sala de Jejum, temos uma obra que trabalha
exatamente com os elementos que Boaventura se refere nesta fala: “Vivemos num
tempo de repetição, e a aceleração da repetição produz simultaneamente uma sensação
de vertigem e uma de estagnação” (SANTOS, 2008, p. 67). Sala de Jejum representa
uma afronta ao comodismo social atual, questionando exatamente esta repetição, a
aceleração e a estagnação do homem diante da vida.
110
5. Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo - SP: Boitempo, 2007.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo - SP: Boitempo, 2004.
BARBERO, Jesús Martín. Dos Meios às Mediações. Rio de Janeiro - RJ: editora UFRJ,
2009
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política (Obras Escolhidas; V.1). São
Paulo - SP: Ed. Brasiliense, 1994.
_____________, Rua de Mão Única (Obras Escolhidas; V.2). São Paulo - SP: : Ed.
Brasiliense, 1987.
BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Petrópolis – RJ: Vozes, 2007.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas – Estratégias para entrar e sair da
Modernidade. São Paulo - SP: Edusp, 2008.
DAMÁSIO, António. O Mistério da Consciência: do corpo e das emoções ao
conhecimento de si; São Paulo - SP: Cia das Letras, 2000.
GREINER, Christine. O Corpo, Pistas para Estudos Indisciplinares. São Paulo - SP:
Annalube, 2005.
GUBERN, Román. Del bisonte a la Realidad Virtual.Barcelona: Ed. Anagrama, 1996.
HUTCHINS, Edward. Cognition in the Wild, Massachusetts: Ed. MIT, 1995.
JOHNSON, Mark. The Meaning of the Body; Chicago: University of Chicago Press,
2007.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três. A dança é o pensamento do corpo. São Paulo - SP:
Helena Katz, 2005.
LANGER, Susanne. Filosofia em Nova Chave; São Paulo - SP: Ed. Perspectiva, 1971.
MACHADO, Arlindo. O quarto Iconoclasmo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
MCLUHAN, Marshall. Os Meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo - SP: Cultrix, 1964.
MCLUHAN, Marshall. O Meio é a Mensagem. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1969.
MICHAELIS. Dicionário da Língua Portuguesa; São Paulo - SP: Ed. Melhoramentos,
2009.
111
OLIVEIRA, Eduardo Jorge. Três ou mais usos do corpo na arte brasileira
contemporânea. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Bolsa de Produção Crítica em Artes
Visuais - Funarte, 2010.
SANTAELLA, Lúcia. Corpo e Comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo. São Paulo - SP: Cortez
Editora, 2008.
SANTOS, Ronaldo Bispo. Flash Aesthesis: Comunicação Instantânea e Experiência
Estética. (Tese de doutorado – PUC), São Paulo - SP, 2004.
SENNET, Richard. O Artífice; Rio de Janeiro - RJ: Ed. Record, 2009.
SODRÉ, Muniz. As Estratégias Sensíveis; Petrópolis - RJ: Ed. Vozes, 2006.
STERNBERG, Robert J. The Nature of Cognition; Massachusetts: Ed. MIT, 1999.
TOMASELLO, Michael. The Cultural Origins of Human Cognition; Harvard: Harvard
University Press 1999.
VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ontologia; Fortaleza - CE: Expressão Gráfica, 2008a.
____________. Teoria do Conhecimento e Arte; Fortaleza - CE: Expressão Gráfica,
2008b.
VITA, Luís Washington. Introdução à Filosofia; São Paulo - SP: Ed. Melhoramentos,
1964.
Artigos
BEDÊ, Cecília. Sobre a Vertigem. São Paulo - SP, 2009.
FILHO, Luiz Rosembeg. Um Lugar Fora de Mim. Rio de Janeiro - RJ, 2009.
KATZ, Helena e GREINER, Christine. Por uma Teoria Corpomídia. São Paulo - SP,
2005.
RESENDE, Ricardo. Quase Nordeste. São Paulo - SP, 2007
TRAVASSOS, Milena. Sala de Jejum. Fortaleza - CE, 2009.
Catálogos de exposições
INTERLENGHI, Luíza. Exposição Ligações; texto: Indecifrável Simplicidade.
Fortaleza - CE, Centro Cultural Banco do Nordeste, 2004.
MONACHESI, Juliana. Temporada de Projetos 2007/2008; texto: A Artista Corpo. São
Paulo – SP, Paço das Artes, 2007.
112
NINO, Maria do Carmo. Exposição Corpo Instável; texto: Ode ao Vulnerável. Recife PE, Galeria Vicente do Rego Monteiro, 2007.
RESENDE, Ricardo. Exposição Um Lugar Fora Dele; texto: O Salto para Lugar
Nenhum; Fortaleza - CE, Alpendre – Casa das Artes, 2006.
RIBEIRO, Sólon. Exposição Confrontações Poéticas; texto:O Mergulho. Fortaleza CE, Centro Cultural Banco do Nordeste, 2007.
SOARES, Carolina. Exposição Projéteis de Arte Contemporânea 2005; texto: A
Observadora. Rio de Janeiro - RJ, Galeria do Palácio Gustavo Campanema, 2006.
_______________. Exposição Realidades Imprecisas; texto: Realidades Imprecisas. São
Paulo - SP, SESC Pinheiros, 2009.
5.1 Bibliografia de Pesquisa
ARANHA, Carmen. Exercícios do Olhar. Rio de Janeiro: Ed. Unesp e Fundação
Nacional de Artes – FUNARTE, 2008..
ARAÚJO, Rosângela Costa. Iê, Viva Meu Mestre: a Capoeira Angola da ‘escola
pastiniana’ como práxis educativa. Tese de doutorado – USP. São Paulo, 2004.
BRETON, David. Adeus ao Corpo. Campinas – SP: Papirus, 2003.
______________. As Paixões Ordinárias. São Paulo: Vozes, 2009.
COHN, Rodrigo Savazoni Sergio (org.) Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue Editora, 2009.
FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e a Constituição do Sujeito. São Paulo:
Educ, 2003.
FLUSSER, Vilém. A Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da
fotografia.São Paulo: Relume Dumara, 2005.
GRAU, Oliver. Arte Virtual, da ilusão à imersão. São Paulo: Editora UNESP e SENAC
São Paulo, 2007.
GREINER, Christine. Corpo em Crise. São Paulo - SP: Annalube, 2010.
GUBERN, Román. El Eros Eletrônico. Madrid: Taurus, 2000.
JOHNSON, Stiven. Cultura da Interface. Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed, 2001.
KERCKHOVE, Derrick de. A Pele da Cultura; São Paulo: Ed. Annablume, 2009.
LANGER, Susanne. Sentimento e Forma; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980.
113
LANZA, Sônia Maria (Org.) ; PINHEIRO, A. (Org.). Comunicação e Cultura. Campo
Grande: Uniderp, 2007.
PINHEIRO, Amálio (org.). O Meio é a Mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras e
Cores, 2009.
POLANYI, Michael. Knowing and Being; The University of Chicago Press, 1969.
POLANYI, Michael; PROSCH, Harry. Meaning; The University of Chicago Press,
1975.
PINKER, Steven. Do que é Feito o Pensamento; São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
PIRES, Ericson. Zé Celso e a Oficina Uzyna de Corpos. São Paulo: Annablube, 2005.
RUSH, Michael. Novas Mídias na Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Martins
Fontes, 2006.
SANTAELA, Lúcia. Navegar no Ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2004.
SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologia do Sul.
São Paulo: Cortez Editora, 2010.
SENNET, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro; Ed. Best Bolso, 2008.
SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico. Rio de Janeiro: Relume Dmará, 2002.
TENÓRIO, Robinson Moreira. Cérebros e Computadores. São Paulo: Escrituras
Editora, 2003.
TRAVASSOS, Milena. Reconfigurações do Alegórico no Contemporâneo. Fortaleza:
Ed. Alpendre e Fundação nacional de Artes – FUNARTE, 2011.
VENTURELLI Suzete. Arte, Espaço, Tempo e Imagem. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2004.
Catálogo de Exposição
Visionários: audiovisual na América Latina / Organização Núcleo Audiovisual. São
Paulo: Itaú Cultural, 2008.
Artigo
KATZ, Helena. Corporeidade no Século XX: o Corpo como Mídia, I Condança –
Congresso Nacional de Dança, 2001.
114
6. Anexo 1
Entrevista com Milena Travassos, realizada no Rio de Janeiro, em maio de 2011.
1. Como iniciou o seu interesse pela arte?
Primeiro eu tentei vestibular em Arte e Educação, em Recife, e não passei. Daí eu
comecei a freqüentar o IAC – Instituto de Arte Contemporânea, em Recife. Lá tinha uns
cursos livres e tinha a parte que mais me interessava: o laboratório. Lá você desenvolvia
sua pesquisa, tinha um professor orientador que conversava com cada um e ajudava a
desenvolver o projeto. Ali eu ainda fazia pintura e desenho. Foi muito legal porque eu
pude encontrar outras pessoas que já mexiam com a arte. Eu era muito verde. O Carlos
Melo, por exemplo, que trabalha com performance, eu conheci lá e a gente troca até
hoje.
2. Quem você admirava artisticamente nessa época?
É engraçado como tem influências que ficam ali guardadas, e influenciam no seu
interesse de produção. Eu gostava do Chagall, do Gustav Klimt, o austríaco. Ele tinha
umas pinturas que eram só mulheres em cena. Eram bem coloridas. É engraçado porque
hoje eu estou em todos meus trabalhos. O Odillon Redon também, com uma pintura
mais surreal. Ele tem um trabalho chamado Danae, ligado a mitologia grega. E esse
universo foi ficando dentro de mim, assim como coisas do cinema. Eu vejo obras que eu
me identifico muito como Tarkovsky, Sokurov que tem esse universo de trabalho de
cor, de imagens descoladas, de uma narrativa linear ou explicativa.
3. E como você saiu de Recife e foi parar em Fortaleza?
Tentei duas vezes vestibular, não passei, e acabei ficando quatro, cinco anos em Recife.
Aí fui trabalhar e fiquei fazendo minha pesquisa em paralelo. Em Recife eu nunca
concretizei nada mais sólido. Nunca expus lá. Eu acho que eu ainda tava querendo me
encontrar. Daí, fui passar umas férias em Fortaleza, porque meus pais já tinham ido
morar lá de novo, e foi o ano que surgiu o curso da Gama Filho, de Artes Visuais, em
2000. Aí eu me inscrevi, passei. Eu tinha 23 anos. Em Fortaleza tentei vestibular para
outras coisas também, Biologia na UFC, Educação Física na Unifor e Filosofia na
UECE. Passei na UECE e fiquei fazendo as duas. A Filosofia à noite e as Artes Visuais,
durante o dia. Levei os dois cursos. E a Filosofia me surpreendeu. Eu nunca tinha
115
pensado em fazer filosofia, mas no momento que eu passei eu me interessei em fazer o
curso. As leituras que eu encontrei na filosofia me encheram de inspiração para criar.
4. E a faculdade de Artes Visuais?
Lá foi um grande encontro de pessoas que tinham interesse em trabalhar, de alguma
maneira, com a arte, apesar de a turma ter sido bem eclética. Waléria Américo, eu, o
Euzébio Zloccowick, o Yuri Firmeza, o Murilo Maia, a Cecília Bedê. Todos estavam
entre a primeira, segunda turma do curso. E nessa época a gente trocou muito. Eu falava
da pintura urbana do Basquiat que eu tinha conhecido em Recife e todo mundo
conversava sobre as coisas que tinham marcado cada um. Eu tinha um interesse muito
forte na arte contemporânea, mas eu tinha também interesse grande na pintura, que
permanece até hoje. Por exemplo, no fim do ano passado eu viajei para Europa para ver
obras que pra mim eram importantes conhecer ao vivo. Quando eu estou criando,
pensando que imagem eu vou filmar, eu leio, eu desenho. Porém, tirando a época da
faculdade, eu nunca apresentei um trabalho que a base fosse meus desenhos. Sempre
predominaram mais os objetos, a instalação, o vídeo.
5. De que você falava na 1º exposição individual, Ligações ?
Eram sistemas, redes, relações. Meu desenho era bem esquemático. Eu os fazia num
suporte de acrílico, eram torres. Eu criava uma rede que ligavam as obras, utilizando o
espaço como mecanismo de ligação também. Eram linhas, pontos. Era tudo impresso no
acrílico. Eu queria vidro, mas diante das dificuldades de fazer estas torres, ficou acrílico
mesmo. Também foi a única vez que eu fiz com acrílico, depois eu parti logo para o
vidro. Aqui tinha a questão da transparência, mas ainda não era o mais importante. A
questão da complementaridade dos desenhos na coluna com o próprio espaço era o foco.
Depois que eu comecei a desenhar na transparência.
6. Como você vê este trabalho hoje?
Ele me incomoda um pouco, porque acho meio frio. Ele não faz mais tanto sentido. É
um trabalho com uma linha muito marcada, reta, não traz um movimento. Não aproxima
tanto o visitante.
116
7. E como surgem os outros elementos, o corpo, o vídeo?
Meu primeiro trabalho mesmo com transparência foi um livro de vidro. É anterior a
este. Eu já trabalhava com transparência. Depois eu comecei a utilizar os objetos de
vidro pequenininhos. Em Pedaços Profundos, eu fazia uns desenhos no chão com
vidrinho, subia pela parede. Daí eles também iam se esvaziando. Trabalhando com esses
objetos eu fui criando o interesse de levá-los para o corpo. Foi quase que instantâneo.
Comecei a fazer testes, tentei ver se eles aderiam a pele e, talvez pelo formato deles,
pensei que o lugar ideal para se tentar conjugá-lo no corpo seria ao longo da coluna
vertebral. Antes disso ainda teve um trabalho proposto na faculdade de Artes Visuais.
Era eu atrás de uma janela de vidro, desenhando essa janela. Então tinha a minha
imagem, o vidro, o desenho. Tudo isso foram exercícios onde eu me colocava em cena e
o elemento da transparência e do vidro foi ganhando mais força no meu trabalho.
O Euzébio [Zloccowick], que trabalhava com o teatro, fez um trabalho comigo,
chamado Nossa Senhora. Ele me vestiu como uma santa e me fotografou. A Wal
[Waléria Américo], também nessa época, pensava o corpo dela em cena. Embora fosse
sob outra perspectiva, diferente da minha, tudo isso foi me influenciando e me fazendo
pensar nessa proposta de se colocar em cena. Quando eu me coloco, desde a primeira
vez, o corpo que aparece é a criação de um personagem. Não é a Milena que está ali. É
outra pessoa. Como eu vinha lidando com a transparência, pensei num corpo na mesma
perspectiva. Eu não queria um corpo pesado, eu queria um corpo sutil. Nessa época, eu
comecei a freqüentar muito a fazenda e a me deparar com ambientes interessantes. O
Alexandre [Veras] me apresentou muitas coisas também que são referências pra mim,
principalmente ligados ao universo do vídeo e do cinema, que são referências fortes no
meu trabalho. O Alpendre [Casa das Artes] também me conectou com outro movimento
de arte em Fortaleza, proporcionando vários encontros. Nessa altura, Recife já nem
fazia mais sentido. Fortaleza estava tão pulsante, eu estava me deparando com muitas
coisas que eu me identificava, com coisas novas e estimulantes. Eu fui me
contaminando pelo espaço da cidade e das pessoas. Isso é bom. O Sólon Ribeiro
também foi uma pessoa muito importante na minha formação.
8. Como se deu a disseminação do seu trabalho pelo país? Como se deu os
primeiros convites para expor no exterior, uma vez que seu trabalho já foi a Cuba,
Espanha, Chile, Estados Unidos?
117
Esse contato com outros artistas foi importante também para eu ficar atenta a editais de
arte e com um deles eu entrei para o Paço das Artes, na USP, quando eu tive o primeiro
convite da curadora do Paço para ir para a Mostra na Espanha. Eu me interesso em
ocupar outros espaços que não somente galerias, porque eu acho que o público das
galerias não se modifica. São sempre as mesmas pessoas que freqüentam. Muita gente
que eu conheço não vai atrás de edital. Fica super tranqüilo com a sua galeria e pronto.
Está vendendo, se sustentando. E é engraçado com eu me preocupo em circular e em
participar de diferentes editais. Já expus de norte a sul do país. De Florianópolis a
Belém. Então os editais configuram uma outra forma de ocupação e circulação em
espaços por aí afora. Embora meu trabalho não tenha a preocupação de ocupar a cidade,
o espaço urbano, eu penso em espaços mais alternativos que não se limitam somente a
galerias. Como o próprio Sobrado José Lourenço. Eu penso ainda em fazer grandes
projeções em edifícios. Eu ainda não me movimentei para isso, mas tenho interesse. Eu
tenho trabalhos que super funcionariam nesses moldes de grandes projeções.
9. Como você conheceu o Walter Benjamin?
Conheci nas Artes Visuais, na Gama Filho. Com o professor Chiquinho Aragão,
passando o texto mais famoso dele: A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade
Técnica. Esse texto me afetou muito. A questão da aura também me chamou muita
atenção. Como era essa questão da perda da aura? Fiquei muito curiosa. Posteriormente,
me interessei pelo conceito de alegoria, o drama barroco, que eu vim trabalhar agora no
doutorado, pensando a arte contemporânea. Durante a faculdade eu descobri que tinha
uma professora que tinha terminado o doutorado dela em Benjamin, na USP. Aí eu fui
falar com ela porque a minha monografia da filosofia seria sobre ele. Eu tinha interesse
em pensar arte e política e, como ele tratava do audiovisual, me parecia que ia ser um
autor muito útil. O tema na monografia foi A Necessidade Filosófica e Política da Arte.
Já no mestrado foi A Estética do Choque e a Política de Walter Benjamin. Por isso,
encontrar a Teresa Calado foi importantíssimo. Ela foi minha orientadora tanto na
graduação como no mestrado, ambos na UECE. O Benjamin me encanta. Ele pega
temas do cotidiano e os enriquece com um vocabulário interessante, uma forma de
escrita muito poética, lírica. Ele se volta muito para artistas em seus escritos. Para arte
em geral, como ele fez com o Proust, Kafka. Isso me fascina.
118
10. Você acredita que existe uma ‘tendência’ dentro da arte contemporânea que se
coloca junto com o século XXI?
Hoje se fala muito em imagem, vídeo, fotografia, mas se for pensar, lá na década de 60,
o corpo já estava colocado e o audiovisual também. Hoje por conta do acesso, das
facilidades, das tecnologias ao alcance tem se falado mais nesse assunto. Mas a arte
caminha junto com o que está sendo colocado para a sociedade. Nós temos exemplos no
mundo todo de grupos que já mexiam com tudo isso na década de 60. Temos
experiências bem inventivas, que misturavam técnicos de som, artistas, dançarinos,
performers. O Stockhausen, por exemplo. Eu não tenho essa preocupação de inventar „o
novo‟ ou uma „nova moda‟. Questões ligadas ao corpo sempre existiram, não é de hoje.
Não é a linguagem que se usa que vai dizer se o trabalho é mais interessante que outro,
se é melhor ou pior. É preciso olhar o conteúdo, o trabalho por dentro e avaliar o
conjunto. A forma também faz parte do conjunto. Podem ter obras clássicas utilizando o
suporte do celular ou mesmo a pintura em tela. Por falar nisso, a pintura está voltando,
eu tenho visto pinturas mais realistas ultimamente, cenas cotidianas. O Fábio Baroli, por
exemplo, ele está pintando uns quadrinhos pequenos com cenas tipo: a mulher no
banheiro ou alguém no sofá com revistas na mão. Todos com muitas cores e com umas
pinceladas quase que pixeladas.
11. O que você estuda no seu doutorado?
São dois momentos de pesquisa bem definidos. O título do projeto foi Cena e
Performance: a mise-em-scène no vídeo contemporâneo. Mas ele está sofrendo algumas
alterações, o que é normal. Mas eu trabalho muito em torno desse conceito de mise-enscène. Ele está muito presente no meu trabalho. Eu me proponho a pensar como se dá a
câmera diante da cena e do corpo. Por mais que as primeiras experiências com o corpo,
em 60, os artistas que estavam falando em performances tentavam fugir de uma certa
representação que estava muito presente no universo do teatro, de uma construção de
cena também muito presente no cinema, resumindo numa mise-en-scène, eles estavam
apostando mais numa ação que era „o ali e o agora‟, às vezes improvisada, para fugir
também dessa coisa de um corpo aprisionado, de uma mise-en-scène pré-definida. E
também querendo fugir um pouco da experiência do cinema, usando o vídeo. No vídeo,
a câmera podia estar ali, filmando mais próximo do corpo, com detalhes. Já se via a
imagem captada rapidamente, não era preciso passar pelo processo de revelação, que era
custoso. E o cinema também tinha uma forma de apresentação muito comum, com o
119
público lá, diante da tela. Já no vídeo, as projeções apareciam muitas vezes sobre o
corpo, muito mais próximas do indivíduo expectador. A minha proposta é pensar
algumas obras que, muitas vezes, são vistas apenas como registros de uma performance,
mas pretendo pensá-las quanto obra em si. Porque a câmera quanto elemento de
linguagem está ali agregando sentido para aquela performance feita. Francis Naumann,
Letícia Parente. Esse pessoal tinha performances que se davam para a câmera. Por mais
que muitas dessas fossem câmeras fixas. Os elementos tempo e movimento estavam
presentes e agregavam sentido ao trabalho, um recorte foi escolhido. Configura-se um
novo ponto de vista. Quando o vídeo entra, aparecem elementos na linguagem que
agregam ao trabalho, que não é só o registro de uma ação que aconteceu. Por exemplo, a
efemeridade da performance se acaba com este recurso. Muitas vezes, as análises dessas
obras se voltam muito para falar do contexto da época, pra se falar do que está se vendo
na imagem, mas não para falar dessa linguagem propriamente do vídeo. Nessas
experiências de performances, penso numa mise-en-scène que se dá nessa relação da
câmera com o objeto, com o corpo, com tudo que estiver ali no lugar. Essa relação que
não é fechada, mas é partilhada por todos esses elementos. Num segundo momento,
seria analisar essa câmera com esses elementos mais claros, como a de Bill Viola, com
uma preocupação em torno da mise-en-scène. Para eles, essa câmera não está ali imune.
Existe uma razão para se apresentar daquela maneira. Aí eu gostaria de me voltar para
alguns conceitos. Além de mise-en-scène, pensar o gesto que não se esgota em si
mesmo, de Bertolt Brecht, mas um gesto que encadeia várias outras coisas. Daí tem o
Benjamin que discute gesto também, o [Gilles] Deleuze, o Roland Barthes. Quero
discutir o conceito de alegoria, de Benjamin, junto com o espanhol José Luiz Brea,
trazendo também para pensar obras mais contemporâneas, como em vídeoperformances. Eu tomo cuidado para não pegar um conceito que foi desenvolvido lá
atrás, que está fora, e aplicá-lo no objeto contemporâneo sem a trabalhá-lo de forma
adequada. Quero ver o conceito agindo, ele não virá cru. O Deleuze mesmo tem um
texto lindo sobre o [Samuel] Beckett que chama O Gesto Esgotado, que ele pega o
conceito de gesto e traz um outro elemento que é o „esgotado‟ para falar do gesto de
outra maneira. E eu quero fazer isso com o conceito de alegoria, ligando o conceito com
algum elemento que a obra suscite. O Benjamin vai falar que o símbolo é mais
enrijecido, mais atemporal, que não está presente numa historicidade, já a alegoria não,
ela vai se transmutando e se montando a partir de vários elementos descontextualizados.
É sempre um dizer de outro. A alegoria está lá com aqueles elementos, mas ela sempre
120
significa outra coisa, sempre sujeita a abertura de outros significados. Já o símbolo, não.
Ele significa aquilo e ponto final. E eu olho para essa discussão e vejo que a arte
contemporânea está aí, trabalhando com alegorias, significando outras coisas que não
estão ali postas de forma objetiva.
12. Como você avalia o panorama da arte contemporânea nacional? Como você
contextualizaria sua obra dentro dele?
Eu estou me colocando nesse exercício de ver mais coisas agora com a pesquisa do
doutorado. Eu também não sou uma profunda conhecedora da arte contemporânea não.
Tem alguns artistas que eu gosto muito como a Brígida Baltar, por exemplo. Tem um
momento forte do documentário que tem me chamado bastante atenção dentro das artes
visuais. O Cao Guimarães, por exemplo, trabalha com histórias do cotidiano, mas
trazendo outra camada para aquela realidade. Fora do Brasil tem a Maya Deren, Agnès
Varda, a Pipillot Rist. Tem também o Hatsushiba, que eu gosto muito. Ele tem uma
instalação que é toda submersa. Tem uma crítica por traz sobre as carroças humanas do
Japão. Tem algo de documental nesse trabalho dele que eu gosto muito. Então, me
interessa usar essa realidade documental para um universo lírico, poético. Acho que em
todo momento tem coisas interessantes se produzindo. A gente vive um bom momento
de produção. A gente precisa é encontrar essas coisas. Hoje em dia eu até acredito que
as pessoas tem trocado mais, tem surgido mais autorias coletivas, com a internet. A
produção de arte aumentou muito. É claro que a quantidade de coisas ruins também
aumentou, mas deu a oportunidade para muita coisa boa surgir também.
121
7. Anexo 2
Currículo Artístico de Milena de Lima Travassos
E-mail: [email protected]
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS:
2011
- Sala de jejum – Galeria da Funarte, Belo Horizonte MG;
2010
- Pequena sala de jejum – Alpendre, Fortaleza CE;
2010
- Pequena sala de jejum – Museu de Arte Contemporânea - Parque Florestal, Santiago,
Chile;
2009
- Sala de jejum – Sobrado Dr José Lourenço, Fortaleza CE.
2007
- Corpo instável - Projeto Trajetórias 2007 – Galeria Vicente do Rego Monteiro, Recife
– PE;
- Vertigem - Temporada de Projetos do Paço das Artes 2007/ 2008 - Paço das Artes, São
Paulo – SP;
2006
- Um lugar fora dele, Galeria do Alpendre - Casa de Arte, Pesquisa e Produção,
Fortaleza – CE;
2003
- Ligações, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE.
EXPOSIÇÕES COLETIVAS:
2011
- Como o tempo passa quando a gente se diverte – Casa Triângulo, São Paulo – SP;
2011
- A 4 Graus do Equador – Ateliê 397, São Paulo – SP;
2011
122
- O cinema dos pequenos gestos (des)narrativos – Centro Cultural Banco do Nordeste,
Fortaleza – CE;
2010
- Salão de Abril 1980-2009 - De casa para o mundo, do mundo para casa – Museu de
Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE;
- deVercidade – Mercado do Pinhões, Fortaleza – CE;
2009
- Entre Margens – Espaço Cultural Oi Futuro, Rio de Janeiro – RJ;
- La Atmosfera – V Festival de Videodanza DVDanza Habana, Havana/ Cuba,
- Coleção MAM-BA – 50 anos de arte brasileira, Museu de Arte Moderna da Bahia,
Salvador – BA;
- 63º Salão Paranaense – Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba – PN;
- Realidades imprecisas – SESC Pinheiros, São Paulo – SP.
2008
- 27º Arte Pará – Museu Histórico do Estado do Pará, Belém – PA;
- Paisagens – Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid, Espanha;
- Circuito intensivo – Alpendre, Fortaleza – CE.
- 59º Salão de Abril – intervenção urbana no centro da cidade, Fortaleza – CE.
2007
- DeVercidade – Mercado do Pinhões, Fortaleza – CE;
- I Contemporâneo – Feira de fotografia, São Paulo – SP;
- Quase Nordeste – Galeria Oeste, São Paulo – SP;
- Abre-Alas – Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro – RJ;
- Projéteis de Arte Contemporânea 2005, Galeria do Palácio Gustavo Capanema, Rio de
Janeiro – RJ;
- O Mergulho - Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE.
2006
- 25º Arte Pará – Museu Histórico do Estado do Pará, Belém – PA;
- 9º Salão Victor Meirelles - Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis – SC;
- Fiat Mostra Brasil – Porão da Bienal, São Paulo – SP;
- DeVercidade – Mercado dos Pinhões, Fortaleza – CE;
- Dias estranhos vistos de perto, Galeria de Arte da UNICAMP, Campinas – SP;
- de um lugar a outro, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE;
- 57º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE.
123
2005
- 12º Salão da Bahia, Museu de Arte Moderna de Salvador, Salvador – BA.
- Projeto Atos Visuais 2004-2005, Galeria Fayga Ostrower, Brasília – DF;
- Projéteis de Arte Contemporânea 2004, Galeria do Palácio Gustavo Capanema, Rio de
Janeiro – RJ;
- Programa Exposições - MARP, Casa da Cultura de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto –
SP;
- 56º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE;
2004
- 3º Semana de Artes Visuais do Recife/ Spa, Rua Imperatriz Teresa Cristina, Recife –
PE;
- VII Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE;
- Adesgraçadalebre, Alpendre Casa de Arte, Pesquisa e Produção, Fortaleza – CE;
- Contemporâneos - Mostra de Artistas Plásticos cearenses no Maranhão, Galeria
Mauro Soh, Imperatriz – MA;
2003
- Experimental II – Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE.
- 54º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE;
- VI Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE;
2002
- Ainda Gravura, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE.
- Mostra de Arte e Tecnologia, Base, Fortaleza – CE;
- 53º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE;
- V Salão de Arte Contemporânea de Sobral, Sobral – CE;
- Múltiplas Poéticas, Centro Cultural Oboé, Fortaleza – CE;
2001
- Novíssimos, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Fortaleza – CE;
- Gravuras, Galeria Casa D‟arte, Fortaleza – CE.
- Mostras de desenhos, Galeria Aldemir Martins, Fortaleza – CE;
2000
- Pintura e palavra, Galeria Aldemir Martins, Fortaleza – CE.
124
PRÊMIOS:
- Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais, FUNARTE, 2010;
- Prêmio Funarte de Arte Contemporânea Ocupação dos Espaços Funarte 2010,
FUNARTE, 2010;
- Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Artística em Artes Visuais, FUNARTE,
2008;
- IV Edital de Incentivo às Artes, da SECULT-CE, 2008;
- 7º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia, Bolsa de fomento à pesquisa, 2007;
- 25º Arte Pará, Menção Honrosa 2006 - Novos Talentos;
- 12º Salão da Bahia, Prêmio Aquisição, Museu de Arte Moderna de Salvador, Salvador
BA, 2005;
- 57º Salão de Abril, Galeria Antônio Bandeira, Fortaleza – CE, 2006;
- 4º Salão da Base Aérea, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza – CE, 2002.
DEBATES:
- Pequena sala de jejum, Museu de Arte Contemporânea - Parque Florestal, Santiago,
Chile, 2010;
- Pequena sala de jejum, Galeria de arte Arquipélago, Florianópolis – SC, 2009;
- Imagem e pensamento, Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes, Belo Horizonte –
MG, 2008;
- Projeto Chá com porradas, Museu de arte contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE,
2006;
- Projeto Fala de Artista, Museu de arte contemporânea do Ceará, Fortaleza – CE,
2004;
SUAS OBRAS ENCONTRAM-SE NOS SEGUINTES ACERVOS:
- Museu de Arte Moderna da Bahia (BA);
- Museu de Arte Contemporânea do Ceará (CE);
- Fundação Rômulo Maiorana (PA);
- Na coleção do colecionador Paulo Geyerhah (RJ);
- Na coleção da colecionadora Marisa D`Vari (NY);
- Na coleção da colecionadora Eliza Ryan (NY);
- Na coleção da museóloga Maguinólia Serrão (CE).
125
Download

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO