Teresa Gonçalves Lobo e a família dos is
Esta exposição revela múltiplas faces no trabalho de Teresa Gonçalves Lobo. A artista, isolando um
elemento das suas anteriores experiências de escrita/desenho-poesia visual, desenvolve-o formalmente a
partir da sua matriz original; oferece-nos o lado de pura inscrição do signo; depois, materializa no espaço
tridimensional os gestos desse fazer sobre o papel (não como cristalização mas como síntese perfeita de
todo o processo/projecto de trabalho); e, finalmente, cria as bases de uma estrutura narrativa que introduz
a possibilidade de um universo ficcional ou de uma pura abstracção cinética.
Em primeiro lugar reconhecemos esse elemento desencadeador, essa célula original. Trata-se de uma letra,
o i minúsculo, terceira vogal e nona letra do alfabeto latino. Não há, da parte da artista, misticismo nesta
coincidência numerológica de 3 x 3. O que há é a consciência da autonomia formal/sígnica nascida de um
gesto repetido. Como se, na repetição desse gesto, Teresa Gonçalves Lobo tivesse encontrado a maior
economia (elegância) possível para quem, como ela, escreve/desenha compulsivamente. Trata-se de
registar através de um media (tintas, carvão) e de um instrumento (barra, lápis, caneta, pincel) uma livre
coreografia de gestos: uma dança da mão, do braço, do corpo sobre o/no espaço do papel. Através dessa
dupla (inseparável) actividade de desenhar/escrever, Teresa Gonçalves Lobo deseja registar
gestos/sensações, mantendo-se perto do imediato (da natureza) para alcançar sentimentos, ou seja, para
recuperar, construindo, memórias (o subjectivo).
Temos, portanto, nestes pequenos ou grandes papéis de complexas e delicadas texturas, registos da letra i
sob múltiplas formas, obtidas através de múltiplas matérias e técnicas. É uma profusão de imagens que,
para constantemente se renovarem, a obrigam a um trabalho infinito, tendente a esgotar as possibilidades
de representação.
Numa tradição nacional a filiação em certos trabalhos de Ana Hatherly é evidente e necessária – como se
apenas partindo dela se pudesse iniciar a exploração de outros territórios. De facto, estes, como muitos
outros trabalhos de Teresa Gonçalves Lobo, situam-na na longa teia de relações entre a escrita e as artes
visuais, onde as liberdades propostas por Henri Michaux parecem ter deixado em aberto todos os limites. A
partir destas referências Teresa Gonçalves Lobo permite-se trilhar múltiplas vias: autonomizar a própria
escrita verbal como imagem artística, ou seja, levar essa imagem até à indecifrabilidade fonética colocandoa no campo da pura decifração visual e plástica; isolar um signo levando-o a desempenhar o papel de
máxima transparência destinado aos elementos de design de comunicação gráfica; fazer com que, em cada
momento, estas imagens, aparentemente mais claras, recuperem uma dimensão de ambiguidade semântica
que as recoloca no campo da expressão artística.
Os trabalhos desenvolvidos em redor do signo mínimo referido, o i, organizam-se em diferentes famílias
multiplicando, no seu interior, soluções que nos levam de uma sucessão de simples variantes formais entre
cada elemento até às dimensões do irreconhecível – entre o que poderia ser uma mera diferença de
caligrafias e territórios de absoluta independência gráfica e plástica. É evidente que tal sucessão (interior a
cada grupo de trabalho e comum ao seu conjunto) nasce de (e cria) uma pulsão cinética (se nos limitarmos
a uma análise formal) ou uma temporalidade verdadeiramente narrativa (se percebermos que cada um
desses sinais não representa apenas uma letra mas sintetiza uma forma humana encadeando a sabedoria
das representações neolíticas). Formando grupos de is ou is isolados, dispostos em linhas, amontoados
numa zona do papel, subindo e descendo no papel ou organizando-se em círculos, cada um deles revelando
uma expressão própria capaz de o individualizar na multidão dos outros is, estes sinais, mais frágeis ou mais
robustos, tornam-se personagens de histórias (ou micro-histórias) com diferentes ritmos, diferentes tempos
e diferentes energias. Claro que, em todo o processo, Teresa Gonçalves Lobo explicita estruturas narrativas
e não propriamente histórias. Por isso, mais facilmente percebemos como as podemos ir recompondo e
decompondo para nós mesmos, descobrindo, um a um, o carácter através do qual a artista diferenciou cada
elemento, descobrindo as coreografias que desenham no papel, espaço de largos brancos como largas salas
vazias, vastos campos lisos ou limpas praças urbanas.
Sínteses do corpo humano, dois membros encimados por uma cabeça, os sinais gráficos de Teresa
Gonçalves Lobo ultrapassam frequentemente a simplicidade dessa relação. Ao destacar-se a “cabeça” como
elemento dominante obtemos o disco de um sol ou de uma lua, um ponto de cor, liberto como uma
© Teresa Gonçalves Lobo
“mancha-cor” de Miró, ou como uma superfície onde se inscrevem jogos primários de expressões faciais. E,
ao realizar-se através dos enrolamentos da espiral (como em Victor Brauner que, por sua vez, influenciou
alguma colagens iniciais de Mário Cesariny) essa “cabeça” ganha as complexidade de um olho, a sugestão
de impressões digitais individualizadoras ou uma expressão vegetal que se comunica aos corpos criando
florestas ou paisagens marinhas de memória ernestiana. Finalmente, ainda neste campo de influência,
alguns sinais surgem fortemente erotizados, misteriosos amantes enlaçados, implícitos sexos. Já outros se
libertam dessa subjectividade poética para simularem linguagens de comunicação urbana. São aparentes
pictogramas representando um ser humano genérico mas que logo retomam a ambiguidade da sua
mensagem quer pela abertura narrativa que explicitam, quer por nunca deixarem de se referir à raiz das
caligrafias chinesa e japonesa e ao modo como, nessas culturas, a escrita é uma forma de desenho que
concentra, na energia do gesto, o sentido da forma e, na síntese da forma, a multiplicidade poética da
palavra, da mancha da tinta, a vibração do ar, a textura dos papéis...
Há dois momentos especiais nesta exposição que merecem destaque: um livro de gravuras e duas peças de
mobiliário. A seu modo, ambos sintetizam a totalidade dos esforços de trabalho de Teresa Gonçalves Lobo.
Primeiramente, A Família dos is regista, num traço frágil que evoca as delicadezas de Paul Klee e Max Ernst,
tanto a vocação narrativa como a capacidade de autonomia formal do elemento-chave deste vasto conjunto
de obras. Depois, as i-chair e i-chair long, introduzindo elementos volumétricos no discurso, materializam as
formas bidimensionais do desenho fazendo-as passar para o domínio da escultura, (embora segundo as
convenções de utilidade e durabilidade exigidas pela construção do mobiliário).
É através destas duas linhas de trabalho, gravura em metal e design de equipamento, que a artista reforça a
sua ligação à Casa que a acolhe povoando-a de seres essenciais, simples sinais que vemos partir em todas as
direcções do vasto edifício ao mesmo tempo que folheamos o Álbum sentados ou reclinados numa das duas
cadeiras colocadas à nossa disposição. Esses sinais estão, primeiro, nos desenhos, maiores e mais pequenos,
monocromáticos e bicromáticos, a tinta-da-china ou a carvão que nos rodeiam nas salas de exposição.
Depois, perdem-se nos salões e corredores, escadarias, pátios, armazéns e laboriosas oficinas de construção
e restauro que constituem a Fundação Ricardo Espírito Santos Silva. Finalmente, regressam ao próprio lugar
de onde partiram quando fechamos o Álbum como quem acaba de ler uma história. Mas alguma coisa do
ritmo musical, natural e humanizado, do leve humor e lenta melancolia desses is permanece ali, no gesto de
dança que o corpo das cadeiras fixa, no calor orgânico das madeiras, na sensualidade táctil dos volumes
ondulantes construídos em vinhático e pau-santo. Elas são is feitos corpos sobre os quais podemos
descansar os nossos corpos e desassossegar a nossa imaginação.
João Pinharanda
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2013
© Teresa Gonçalves Lobo
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