ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Unidade II 5 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Na primeira unidade apresentamos a Antropologia e suas escolas, bem como a cultura como objeto desta ciência. Na segunda unidade, trataremos da formação da sociedade brasileira e da identidade cultural do nosso povo a partir das análises de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro. Mostrando como a Antropologia elaborada aqui percebe o surgimento do povo brasileiro e como resultou em nossa identidade cultural. Finalizando a unidade, com apresentação das diversas categorias culturais como: popular, erudita e de massa. 5.1 Histórico da formação da sociedade brasileira Para falar do povo brasileiro citarei alguns dos grandes autores da história das ciências sociais. Entre eles, destacamos principalmente Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro. A compreensão da alteridade é dependente do olhar que daremos ao “outro”, como poderá ser percebido ao lermos sobre os intelectuais citados acima. Pois poderá perceber como cada um analisa as relações sociais, como percebem a estrutura de classe, a relação da raça com as demais dimensões das relações de trabalho tanto no período colonial como no modo de produção capitalista. Vamos conhecer um novo conceito, agora, que é muito utilizado em Antropologia: o de identidade. Porém, não estamos falando daquele documento chamado RG nem dos traços marcantes da personalidade de uma pessoa. Identidade, em Antropologia, é um conceito interligado a outros, como grupo social e cultura. A identidade dos sujeitos se forma a partir das condições históricas e culturais em que vivem – condições que não escolheram, pois ao nascer tudo já estava pronto, então se deparam com um grupo familiar e social, com uma língua usada por todos e com um conjunto de regras, hábitos e tradições utilizadas. A sociedade e a cultura delimitam a nossa vida. Porém, chega um momento da vida em que a pessoa tem a possibilidade de negociar e alterar essas limitações, já que a cultura é dinâmica. Assim, a constituição das identidades é vista como processos de identificação: no cotidiano, há situações em que precisamos 49 Unidade II tomar decisões e escolhas quanto à conduta que vamos ter e os valores que nos cercam, tanto no plano pessoal quanto no social. “Nós e os outros, os semelhantes e os diferentes: as noções que construímos socialmente de igualdade e diferença são a moeda do jogo de construção das identidades”. (KEMP, 2003, p. 66). É a cultura que nos dá o referencial para desenvolver os papéis sociais. A Antropologia busca conhecer “o incessante movimento de diálogo entre os símbolos que fazem parte da cultura dos diferentes sujeitos” (KEMP, 2003, p. 66). Assim sendo, podemos pensar sobre as várias identidades que utilizamos para cada situação social, levando em consideração os fatores que interferem nesse processo: a idade, a participação nos grupos, a atuação de papéis socialmente reconhecidos. Por exemplo: hippie, rapper, homossexual, careca, compatriota, estrangeiro, negro, oriental, índio. A rotulação social faz parte da forma de categorizar as identidades culturais na nossa sociedade. São esses os fatores que fundamentam a identidade que cada sujeito se atribui e a que os outros reconhecem nas pessoas. Por isso, podemos possuir várias identidades como: nacional, regional, de classe, de grupo, de profissional, de gênero (feminino/masculino) etc. Segundo Alves e Barros (2007), no caso do Brasil, já que houve um período referente a um processo de colonização, a questão da raça se tornou um adjetivo que acaba por dar significado a nossa identidade, como por exemplo: “trabalhadores negros”, “índios”, “operários italianos”, “alemães”, “imigrantes brancos”. Essas raças se tornaram adjetivo que acabaram dando à identidade de trabalhador uma singularidade, de forma que passam a ser reproduzidas nas relações sociais de trabalho. Nesse sentido, o discurso da Antropologia aqui tem o intuito de levá-lo a perceber que as desigualdades sociais são históricas e que a naturalização da pobreza passa por uma falta de postura crítica quanto à vida desses pobres, dos seus direitos como cidadão brasileiro. Já que a constituição de identidades é decorrente do jogo simbólico, como a forma de apreensão do mundo, preste atenção na explicação de Kênia Kemp (2003, p. 83): Manipulamos socialmente nossa identidade, e também a dos outros, para demarcar lugares. Numa sociedade com uma hierarquia complexa como a nossa, as categorias sociais movem-se o tempo todo – em certos contextos, nossa identidade nos faz ser respeitados e, em outros, sofremos preconceito. A partir disso, elegemos os que consideramos diferentes simbolicamente, porém iguais em direitos e posição social e aqueles que consideramos iguais simbolicamente, porém desiguais na posição que ocupam em relação à nossa. Lembrete A cultura é percebida como um sistema de símbolos e significados partilhados pelos membros dessa cultura que sabem as regras existentes nas relações sociais e modos de comportamento. 50 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Agora vamos entender como se formou a sociedade e a cultura brasileira? A história do Brasil e do povo brasileiro coloca sempre os portugueses como a matriz de nossa etnia3. Porém, como já foi falado, os europeus – em especial, neste caso, os portugueses – vinham para os novos continentes para descobrir as características culturais dos povos que ali habitavam com fins de exploração. Assim, os europeus elaboraram versões da história, de suas colonizações segundo um olhar etnocêntrico. Lembrete Uma posição etnocentrista é quando consideramos a nossa cultura como a melhor e analisamos o outro, nesse caso, o indígena, a partir de nossos valores e conhecimentos. Porém, a Antropologia, aqui, tem como objetivo mostrar este processo, de constituição do povo brasileiro, de outra perspectiva, buscando, a partir de autores brasileiros, como eles analisaram a nossa origem, como se forma nossa identidade nacional, já que a identidade não vem pronta: pelo contrário, ela é resultado de uma construção contínua. Existem interesses de “legitimação do próprio grupo, ou interesses em retirar a legitimidade do outro” (KEMP, 2003, p. 83). Existe uma relação de poder. Lembrete O povo que vivia no Brasil antes da colonização tinha seus costumes, hábitos, forma de se comportar, linguagem, conhecimento e religião, muito diferente do que temos hoje. A cultura deles era outra. Figura 8 – Índios adaptados à cultura brasileira contemporânea Significado de Etnia: Grupo social, pessoas que compartilham cultura, origens e história. Povo, raça”. Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/definicao.php?palavra=etnia&id=5406. Acesso em: 01 abr. 2011. 3 51 Unidade II Os povos indígenas que habitavam as terras brasileiras antes do encontro com os europeus eram povos autóctones4, Isto é, havia povos, tribos diferentes entre si que viviam aqui, sendo os mesmos os mais antigos deste território. Estimativas demográficas apontam que, por volta de 1500, quando da chegada de Pedro Álvares Cabral à terra hoje conhecida como Brasil, essa região era habitada pelo menos por 5 milhões de índios. Hoje, essa população está reduzida a pouco mais de 700.000 índios em todo o Brasil, segundo dados de 2001 do IBGE. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) trabalham com dados ainda muito inferiores: pouco mais de 300.000 índios (...) distribuídos em 3.225 aldeias, pertencentes a 291 etnias e falantes de 180 línguas divididas por 35 grupos linguísticos (FUNASA, Relatório DESAI, 2002, p. 3). Dos 374.123 indígenas atendidos pela FUNASA, 192.773 são homens e 181.350 são mulheres. Ainda segundo os dados da FUNASA, a população indígena está dispersa por todo o território brasileiro, sendo que na região Norte concentra-se o maior contingente populacional indígena, com 49%, e na região Sudeste está o menor contingente populacional indígena do país, com apenas 2%. (BANIWA, 2006, p. 27-28). Se havia 5 milhões de índios e atualmente a população é pouco maior do que 700.000, é porque muita tragédia ocorreu na vida destes, com a colonização: escravidão, guerras, doenças e massacres. Segundo Darcy Ribeiro (apud MARCONI; PRESOTTO, 1998), em 1900 havia 230 grupos tribais, que foram reduzidos, em 1957, a apenas 43. Desapareceram 187 grupos indígenas do nosso território. Muito desses habitantes eram nômades, isto é, eram pessoas que não ficavam em um lugar por muito tempo. Mudavam em busca de alimento. Além disso, viviam de caça, da pesca e coletavam alimentos da floresta e, por isso mesmo, havia uma grande disputa por território entre os povos que possuíam abundância de recursos. Índios dominadores e bons guerreiros, que falavam a língua tupi, instalaram-se pelo território brasileiro. Eles eram mais corajosos e diversificados em sua cultura que os demais. Desenvolveram muitos nomes para as coisas, objetos, animais e plantas. O que os diferenciava era o fato destes serem os primeiros a realizar a produção agrícola, isto é, domesticaram plantas e raízes, “como a mandioca, o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas” (RIBEIRO, 1995, p. 28), o que lhes permitiu deixar de ser nômades, podendo se estabelecer em determinado território e formar as aldeias. Os grupos indígenas eram diferentes, tinham uma ampla diversidade linguística e de origem, mas também possuíam uma série de características comuns. Cada um deles tinha a sua casa, tinha sua roça. A divisão de terras era feita com base em guerras entre povos, em laços de parentesco ou clãs (famílias). Significado de Autóctone: próprio do lugar, que nasceu naquele lugar e guarda dentro de si costumes, cultura e jeitos dos costumes daquele povo que ali nasceu. Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/definicao.php?pal avra=aut%F3ctone&id=18327. Acesso em: 01 abr. 2011 4 52 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA No mapa abaixo apresento as quantidades de línguas indígenas faladas no Brasil, para que você perceba a diversidade cultural indígena presente em nosso país: Figura 9 – Mapa das línguas indígenas faladas atualmente no Brasil Segundo Ribeiro (1995), a autoridade dentro de um grupo indígena é exercida pelo chefe, geralmente o representante mais velho da tribo, ligada mais diretamente às tradições da cultura e à experiência do povo. Ele é uma espécie de mediador. Dentro das sociedades indígenas existem instituições e organizações culturais que se prestam à manutenção da tradição e que funcionam à base do exercício de poder. Alguns ritos de passagem envolvem mortificações e experiências extremamente dolorosas e marcantes. Ritos de passagem, rituais religiosos e papéis sociais bem definidos. A força da estrutura 53 Unidade II e poder das regras sociais são tão fortes que, em alguns grupos, as mulheres chegam a passar a vida inteira em entrar em determinado lugar da aldeia, reservado aos homens, sem nem saber o que se passa lá dentro. Lembrete Em nossos dias, estas mesmas divisões e instituições também fazem parte de nossas vidas. Também encontramos uma série de órgãos sociais instituídos e que servem para a manutenção da ordem e o cumprimento das regras culturais. É importante sabermos sobre as instituições sociais e, principalmente, sermos críticos quanto aos valores e regras que essas buscam manter, já que as mesmas influenciam diretamente à nossa vida cotidiana. Os índios eram povos praticamente autossuficientes. Eles se bastavam a si mesmos. Um índio sabia, antigamente, produzir tudo o que precisaria ao longo da sua vida. Suas ferramentas, suas armas, sua casa, sua roça, o plantio e a colheita, seus instrumentos de trabalho, sua canoa. Esteira, rede onde dormia, além de identificar os elementos do seu ambiente que poderiam servir para alimentação ou como medicamento. O conceito utilizado aqui é o de etnia, isto é, grupo com as mesmas características biológicas, físicas e culturais, valores, instituições etc. Lembrete Algo que talvez você já tenha se perguntado algumas vezes: “Por que o índio é chamado de índio?”. Pois bem, índio ou indígena é aquele que é nativo, natural de um lugar. Os índios encontrados aqui no Brasil pelos portugueses, por exemplo, são nativos da América. A partir da colonização do nosso país, em 1500, segundo Cristina Costa (2005), a cultura que será imposta a esse povo que aqui vivia será a dos europeus, trazida principalmente pelos religiosos, particularmente pelos jesuítas, que mantiveram durante três séculos o domínio da educação, do pensamento culto e da produção artística desenvolvida em nosso território. Esses religiosos elegeram o tupi como a “língua geral”, popular, e o latim e o português como as línguas cultas. Além disso, combinaram a exploração do trabalho indígena com o ensino religioso. Desta forma, aos poucos, destruíram a cultura nativa. A população indígena se tornou escrava e se distinguia das camadas cultas, que se dedicavam ao saber. Essa distinção social e a alienação quanto aos problemas reais da colônia marcaram profundamente a área intelectual que se formou no Brasil. O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, 54 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA que se tinha acostumado a lançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros (...).” (HOLANDA, 1995, p. 49). A colonização de um povo era uma iniciativa bastante grande e com alto custo. Desta forma, a coroa portuguesa não estava interessada em investir na colonização do Brasil, já que estava envolvida com a expansão e o mercado de especiarias no oriente. Em um primeiro momento, averiguou e colocou alguns representantes na terra, a partir de várias expedições exploratórias com o objetivo de mapear e trazer informações para a metrópole. Porém, com a crise do comércio na Europa da época, Portugal volta-se para a colônia em busca de pedras preciosas e outras fontes de lucro. Os portugueses (HOLANDA, 1995) tinham grande conhecimento sobre navegação e, a partir da iniciativa política e econômica, chegaram e descobriram estas terras, às quais, de início, não deram muito valor. No entanto, depois da organização de expedições para a exploração e instalação de missões jesuíticas no Brasil, vamos ter os relatos feitos pelos padres e pelos exploradores sobre as riquezas desta terra – e isso era o que interessava aos portugueses. Os índios adoeceram, com as doenças trazidas pelos portugueses, e milhares morreram indefesos. Houve também o papel da religião que, nesse processo, buscava ampliar os domínios da Igreja. Por isso, foram enviados muitos religiosos para catequizar os índios, o que levou a uma grande quantidade de mortes de índios a partir da transmissão de doenças e da contaminação das águas. Os índios viviam aqui muito antes dos portugueses desembarcarem no Brasil. Eles tinham sua organização social e uma cultura com vários elementos simbólicos e os mesmos foram deixados de lado, negligenciados. A busca pela riqueza trouxe sérias consequências para a terra do Brasil, já que foi castigada pelos vastos campos latifundiários (grandes porções de terras) de monocultura (a plantação de uma única espécie) e pastagens de animais. A monocultura aconteceu porque muitos produtos que não eram produzidos na Europa passaram a ser produzidos aqui, devido ao clima quente e por estarem em alta no mercado europeu. A Europa não estava industrializada na época dos descobrimentos e produzia os bens agrários para o próprio consumo, como na produção da cana-de-açúcar para exportação. Essa colonização será marcada pela escravidão, em um primeiro momento os indígenas; em um segundo, os negros africanos. (HOLANDA, 1995, p. 47-49). Segundo Cristina Costa (2005), é a partir do século XVIII, por causa da mineração, que houve transformações sociais. Minas Gerais passa pela urbanização, contando com atividades comerciais e para exportação, mudando a organização social colonial, passando a ser dividida por dois grupos: os donos de terra e administradores e os escravos. Novas profissões começam a surgir: comerciantes, criadores de animais, artífices, funcionários administrativos para controlar a mineração e a exportação. Nesse momento, a população livre é maior do que a escrava e essa camada intermediária precisa de uma cultura que seja diferente da do escravo inculto e dedicado ao trabalho braçal. Será essa camada, as dos homens livres e sem propriedade, que irá consumir a erudição e a cultura europeia, o conhecimento 55 Unidade II como forma de ostentação. Em um primeiro momento, os jesuítas os ensinarão a cultura literária e a retórica. Após a expulsão destes do Brasil, as escolas régias se encarregarão do ensino. Há mudanças com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, já que, conjuntamente com esses, vem a cultura portuguesa, trazendo modernidade. Criam a Academia de Belas-Artes, fundam a imprensa, lançam um jornal, instalam a primeira biblioteca e surgem os primeiros cursos superiores. (COSTA, 2005). Quanto à produção intelectual, Cristina Costa (2005) conta que destinava-se a descrever a colônia a partir de estudos naturalistas, com o nome de História Natural, e passaram a recrutar da classe intermediária intelectuais que estivessem dispostos a servir ao rei e às classes dominantes. Continuava a ser uma produção alienada, ditada pelos europeus, com o objetivo de organizar o saber descritivo, funcional e de ostentação. Havia um grupo que possuía conhecimento jurídico e descritivo, mas sem pensamento crítico. Era uma formação filosófica e humanística desempenhada por professores, jornalistas e funcionários públicos que eram dependentes da corte e dos donos de terras. Lembrete Nessa época, ter um diploma era a mesma coisa que ter uma propriedade de terra. Somente após 1870 é que vão haver mudanças na sociedade brasileira. Com o crescimento da população, com a expansão da produção cafeeira, tem-se a implantação das ferrovias e aumenta a pressão das camadas médias urbanas para que possam participar mais da política do país. Essas mudanças vão repercutir na literatura e na crítica social nas obras de: Aluísio Azevedo, no Maranhão, Adolfo Caminha, no Ceará, Tobias Barreto, em Pernambuco, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (...) Machado de Assis e Castro Alves, Sílvio Romero, desenvolvendo a crítica literária, e Euclides da Cunha, que traça em Os Sertões uma elaborada análise da rebelião camponesa de Canudos, explicitando o conflito de uma sociedade dividida em dois mundos aparentemente irreconciliáveis: o das cidades litorâneas, receptivas à influencia externa, e o do interior, agrário e tradicional. (COSTA, 2005, p. 149). Ao mesmo tempo, tem início o processo de desenvolvimento científico, com a criação da Escola Politécnica de Ouro Preto, em 1874, e a Escola de Engenharia de São Paulo, em 1893 (COSTA, 2005). No início do século XX, tem-se a criação dos institutos Biológico e Butantã, em São Paulo; o Agronômico, em Campinas; e o de Patologia Experimental, em Belém. O modo de pensar foi revolucionado pela atividade comercial, exportação e pela expansão do modo de produção capitalista do início do século XX, com a formação da burguesia nacional. 56 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Essa nova classe precisava de um pensamento mais racional e estruturado para transformar o país de colônia em uma nação capitalista. Para tal, se faz necessário chegar às camadas populares e desenvolver novos interesses de defender o comércio e a produção nacional. Para tal, rompe-se com passado e buscam “acabar com o analfabetismo, homogeneizar os valores e o discurso, criar um sentimento de patriotismo que levasse a mudanças reais na estrutura social.” (COSTA, 2005, p. 149). Ao término da Primeira Guerra Mundial, enquanto a crise se instala na Europa, aqui no Brasil a burguesia cresce econômica e politicamente. Além disso, o nacionalismo aflora na sociedade brasileira, buscando unir a nação. Este nacionalismo se apresentou no desejo de se conhecer o povo brasileiro, rejeitando os traços do colonialismo de atraso e de importação cultural. Esse movimento no início do século XX reorientou o pensamento social, refletindo em estudos históricos de cunho literário ou sociológico. Assim, a Sociologia e a Antropologia, como conhecimentos científicos, só surgem no século XX, na década de 1930, com a criação da Universidade de São Paulo (USP) e com a produção de intelectuais como Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Assim, na década de 1930, as preocupações dos intelectuais serão (COSTA, 2005): • A descoberta do Brasil como realmente é (e não o que foi contado pela visão etnocêntrica europeia). • A busca pelo sentimento de nacionalismo para unir as camadas sociais (levando em conta que este pensamento foi inspirador para a política e a economia como meta de proteção ao comércio e à indústria brasileira). • Valorização da ciência, para explicar a nação. • Um grande desejo de modernizar toda estrutura social da nossa sociedade. Neste momento, surge a chamada geração de 1930, representada por Caio Prado Júnior e Fernando de Azevedo, na Sociologia; e Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, na Antropologia. Os estudos clássicos de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda contribuíram para construir um olhar antropológico sobre a formação da sociedade brasileira. Esses estudos tiveram como principal proposta entender as características presentes na sociedade brasileira, considerando seu passado. Freyre dedicou-se à interpretação do nordeste açucareiro em obras como Casa-grande e senzala e Sobrados e mucambos, enquanto Sérgio Buarque de Holanda priorizou em suas análises o processo colonizador em sua clássica obra Raízes do Brasil. A publicação dessas obras aconteceu na década de 1930, período de intensas transformações no país, marcado pela expansão das atividades urbanas em relação ao processo de decadência das áreas rurais. A partir de agora vamos ver como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro pensaram o povo brasileiro. 57 Unidade II 6 UMA ANTROPOLOGIA DO BRASIL: OS PILARES 6.1 A perspectiva de Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala O primeiro livro de Gilberto Freyre foi Casa-grande e senzala, e é a partir deste autor que teremos a introdução da Antropologia moderna no Brasil. Nesta obra, ele descreve a vida cotidiana nos engenhos e como acontece a formação da economia brasileira a partir da escravidão. Ao elaborar sua pesquisa a partir do cotidiano, coloca esse elemento como foco de importância para o estudo de Antropologia e Sociologia, e esse elemento é adotado, posteriormente, por outros pesquisadores. Seu livro é publicado em 1936 e, nesse momento, Gilberto Freyre representa o pensamento dessa época em Pernambuco. Teve como influência intelectual o antropólogo culturalista Franz Boas, devido a sua pós-graduação em Ciências políticas, jurídicas e sociais, realizado nos EUA, na Universidade de Columbia. O seu tema de mestrado foi sobre “A vida social do Brasil no século XIX” e, deste, resultou sua obra clássica Casa-grande e senzala. A forma de pesquisar do culturalismo americano vai fundamentar o antropólogo Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, resultando em uma representação da Antropologia brasileira nesta linha de pesquisa. Quadro 11 – Principais obras publicadas de Gilberto Freyre. Fonte: Shvoong. Ano de publicação Título 1933 Casa-grande e senzala 1935 Sobrado e mucambos 1940 O mundo que o português criou 1947 Interpretação do Brasil 1950 Quase política 1962 Arte, ciência e trópico 1979 Heróis e vilões no romance brasileiro Lembrete O culturalismo norte-americano, também chamado de difusionismo, é a linha de Franz Boas. Nesta forma de pesquisa, o antropólogo precisa buscar a particularidade de cada sociedade, precisa reconstruir a história dos povos para entender a sua cultura, entendendo que cada cultura é única. 58 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Nesse livro, Casa-grande e senzala, você notará que a cultura brasileira pode ser apreendida pela observação do universo cotidiano a partir dos detalhes das práticas sociais, a observação do micro. Freyre busca aquilo que é específico da nossa cultura e muitas vezes sua explicação se embasa nos aspectos geográficos, em outro momento pela “raça” e pela personalidade dos povos que formam a cultura brasileira, como também, a partir da língua utilizada. Esses aspectos são os que o levarão a formar o conceito de cultura brasileira. E são justamente esses aspectos que fazem parte da forma de se fazer pesquisa no culturalismo americano de Franz Boas. Segundo Gilberto Velho (2008), Gilberto Freyre se destaca, nesse momento, devido à ousadia na forma como vai interpretar o Brasil e os brasileiros – a partir das características geográficas, das origens étnicas ou da raça, como ele usa em seu texto, buscando descrever a formação do nosso povo. Ao escrever Casa-grande e senzala, Gilberto Freyre deu início às análises da cultura brasileira de uma maneira bastante original, na medida em que viu com otimismo a miscigenação racial e as particularidades das relações sociais no Brasil. De maneira diferente dos estudos anteriores desenvolvidos no Brasil, Freyre busca compreender a relação entre raça e cultura, demonstrando que a questão genética não está acima da dimensão cultural, ou seja, a existência dos problemas sociais não estaria, necessariamente, relacionada ao caráter mestiço do povo brasileiro, demonstrando, assim, pensamento contrário ao determinismo biológico. Lembrete Determinismo biológico afirma que a cultura é resultado das características genéticas que são transmitidas pela hereditariedade. Freyre (1997) diz que a sociedade brasileira vai se organizar tanto economicamente como enquanto civilização somente depois de quase um século do contato dos portugueses com outros povos. Pois Portugal, em seu momento mercantilista, realizava suas relações comerciais com a Índia e com a África. Com o Brasil, a relação será outra: a da produção agrícola. E será justamente esta que organizará a sociedade brasileira colonial em base sólida e favorável, como você pode notar na citação retirada do livro Casa-grande e senzala, de Freyre, a caracterização da base da sociedade brasileira (1997, p. 4): “a agricultura, as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor”. Percebe-se que a sociedade que toma forma aqui é agrária em sua estrutura, com a mão de obra escrava, a técnica de exploração econômica, híbrida5 dos índios, em um primeiro momento, depois de negros. No ponto de vista de Freyre (1997), as pessoas pertencentes a essa sociedade se preocupavam menos com a questão da raça, em especial os portugueses, do que a esfera religiosa, que se desdobrava em uma 5 Híbrida significa aquele que se formou da relação do português com o índio, com o negro, isto é, o mestiço. 59 Unidade II fiscalização social e política. Isto não é demonstrado a partir de ações oficiais, mas em ações particulares com agressões físicas, castigos nos quais, muitas vezes, ocorria a morte da pessoa vitimada. Porém, tudo isso é dependente da organização política, econômica e jurídica que o povo português implantou na sociedade brasileira. Assim, a sociedade estava hierarquizada6 em famílias proprietárias e autônomas, os senhores de engenho e o capelão (conhecido hoje como padre, o representante da religião) dentro da casa-grande; e os demais (índios ou negros), os que obedeciam a suas ordens, fora. São esses senhores, os donos de terras e de escravos, que defendiam a colônia politicamente; bem como seus filhos doutores, estudados, que defendiam os escravos dos abusos cometidos tanto por Portugal quanto pela Igreja. Figura 10 – Construções típicas do período colonial, em Paraty, RJ Figura 11 – Porta da casa dos escravos, Ilha de Gorée, Senegal Segundo Freyre (1997), a aceitabilidade dos portugueses quanto à colonização híbrida, o resultado da mistura entre eles e os índios e negros, era consequência do seu passado étnico e cultural, já que os mesmos receberam influências sexuais, alimentícias e religiosas nas suas relações com a África. A partir disto, já havia o mestiço, da relação do português com o negro, na própria África. 6 60 Hierarquia é a ordem ou a organização de acordo com a ordem de importância. ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA O pensador demonstra a influência dos africanos sobre os europeus de uma forma poética e romântica. Observe: A influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina carônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando, mas sem governar; governado antes a África. (FREYRE, 1997, p. 5). Lembrete O livro Casa-grande e senzala foi publicado em 1936. Assim, seu conteúdo representa o pensamento daquela época. Perceba, na citação acima, a influência da escola culturalista norte-americana, de Franz Boas, no pensamento de Gilberto Freyre, já que o mesmo afirma que as características climáticas da África levaram a mudanças das instituições e da cultura europeias. Por mais que Freyre (1997) demonstre a existência de uma forte ligação sexual entre os portugueses e seus escravos, que resultou na miscigenação e no encontro cultural, ele não deixa de demonstrar, também, que a atitude do português era a do colonizador sobre o trabalho agrícola, industrial, na forma da escravidão ou da semiescravidão dos africanos e indígenas. Assim, segundo Freyre (1997), esse contato cultural transformou o português, levando-o a não se importar com a raça. A partir disto, os traços de comportamento do português são caracterizados como “vagos e imprecisos”. Isto é, ao mesmo tempo que são utilitaristas, caem em sonho, saem da alegria para tristeza, alternando o amor com a aventura. Essas contradições, para Freyre (1997), são resultantes do encontro entre as duas culturas, a europeia e a africana, repercutindo na vida, na economia, na moral, na arte do povo português, que se alternam em momentos de equilíbrio ou desarmonia. É justamente esse caráter que vai formar, na sociedade brasileira, no momento da colonização, o antagonismo (ideias opostas, comportamentos opostos). Observação Veja, no parágrafo acima, a forma de análise de Gilberto Freyre, que usa as influências do ambiente geográfico (clima), personalidade e raça, para explicar ao povo brasileiro os fundamentos utilizados no culturalismo americano. Os portugueses são apresentados por Freyre (1997) como homens de condições físicas e psíquicas importantes para suas conquistas e resistências. Por exemplo, o realismo econômico, que não os 61 Unidade II deixou se exceder nas conquistas militares e nem religiosas na formação brasileira. Segundo ele, o desenvolvimento do povo português se deve a suas conquistas coloniais na Ásia, na África, na América, onde houve, como resultado destas conquistas, um aumento populacional de mestiços. Sendo que os portugueses que eram visto pelo Estado como homens de valor. Bons administradores e técnicos eram colocados nas colônias “como peças num tabuleiro de gamão: da Ásia para a América ou daí para a África, conforme conveniências de momento ou de religião”. (FREYRE, 1997, p. 9). Assim, a mistura do colonizador com os colonizados, para Freyre (1997) demonstra uma particularidade dos portugueses em relação a outros povos, porque nenhum se misturou aos colonizados tanto quanto eles. E esta, mais do que mobilidade ou mudança de posição social, foi a forma de compensarem por terem poucos habitantes portugueses em seu próprio território. Isso os levou à colonização de muitos povos e aumentaram muita sua área e sua população. As mulheres índias brasileiras, no pensar de Freyre (1997), são preferidas pelos portugueses devido ao fato destas se parecerem muito no aspecto físico com as mulheres da colônia da Península: Ao longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os portugueses a figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas – que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho, e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher. (FREYRE, 1997, p. 9-11). Figura 12 – índia tomando banho na lagoa Mawaiaka. Festa do Kuarup, na aldeia Kamayurá 62 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA O livro Casa-grande e senzala é criticado por apresentar uma relação social entre portugueses, índios e negros de uma maneira fantasiosa. Há intelectuais que o criticam por encontrar na obra uma mensagem de que, naquele tempo, existia uma “democracia racial”. Mas esse termo não é usado por Freyre em seu texto. É preciso ter claro que toda obra tem um contexto histórico que precisa ser levado em conta para sua compreensão. Para tanto, perceba que, por mais que os portugueses preferissem a mulher brasileira, assim mesmo transparece na fala de Freyre (1997, p. 10) o pré-conceito racial existente na sociedade, a partir de ditado usual: “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”, esse ditado demonstra a superioridade em que é colocada a mulher branca e a inferioridade das demais. Além desses aspectos – da miscigenação e da mobilidade –, o que ajudou o português a conquistar novos territórios foi também a sua facilidade em se aclimatar, chamado por Freyre (1997) de aclimatabilidade. As condições geográficas de Portugal eram parecidas mais com a África do que com a própria Europa, por isso eles não sentiram tanta diferença no Brasil. Desta forma, isso os ajudará em sua fixação na formação da colônia híbrida (mestiça). Sendo que as duas regiões de grande foco de início da miscigenação é São Paulo e Pernambuco. Assim, Freyre (1997) coloca os portugueses como melhores homens em comparação a outros povos europeus, já que estes conseguiram se adaptar às condições geográficas, sociais e culturais, chegando a colocar que os portugueses superaram até a falta de pessoas brancas, a partir da miscigenação, ao se unir à mulher de cor – e isso o ajudou na adaptação social. Esse fator, o clima tropical do Brasil é referido por Freyre (1997) porque o mesmo o considera um forte influenciador na formação e no desenvolvimento econômico das sociedades: a produtividade da terra, a fonte de nutrição, os recursos naturais para o povo. Além disso, devemos considerar também as doenças tropicais, que levavam os habitantes à diminuição da sua capacidade para o trabalho; ou seja, também neste aspecto o clima surge como característica fundamental em sua análise. Porém, o que chama a atenção é que Freyre percebe que a capacidade para o trabalho, a eficiência econômica dos homens e seu metabolismo são piores onde não existem higiene e engenharia sanitária. Além disso, aponta a necessidade adaptação da vida cotidiana do homem ao local onde vive, como por exemplo, a dieta, o vestuário, a habitação que tem que ser de acordo com a temperatura da região. Problemas que são resolvidos com a criação de aparelhos e tecnologias, como a navegação a vapor, ajudando no transporte mais rápido, para a melhora da qualidade e para a preservação do alimento. Outro problema enfrentado pelos portugueses foi o fato de o clima não permitir que eles desenvolvessem aqui os produtos que consumiam na Europa. Por isso, tiveram que mudar radicalmente sua alimentação, trocando, por exemplo, o trigo pela mandioca. Freyre (1997) vê a colonização como uma nova fase, já que se caracteriza a partir da plantação, com base agrícola, com a permanência do colono na terra, do ponto de vista econômico e de uma política 63 Unidade II social por utilizar os nativos, especialmente a mulher, no trabalho, bem como para a formação da família. A sociedade colonial brasileira se desenvolveu a partir das grandes plantações de açúcar, mas isto não se deu por causa do Estado colonizador, mas sim de iniciativas particulares, que povoaram e defenderam militarmente a terra. Assim, a partir de 1532, o que caracteriza nossa colonização perante as outras é o domínio da família rural ou semirrural. Maior que esse poder, apenas o da Igreja, com a atividade dos padres da Companhia de Jesus, sendo que a família representava a unidade produtiva do solo, das fazendas, com compra de escravos, animais, ferramentas. Foi essa força social que imperou no Brasil colônia e que atingiu a política, a aristocracia (nobreza) colonial poderosa, já que os senados de Câmara vão delimitar o poder dos reis e, depois, do imperialismo. As pessoas que vieram para colonizar o Brasil eram “soldados da fortuna, aventureiros, degredados, cristão-novos fugidos à perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira”, características não muito desejadas para o povo brasileiro. Porém, para Freyre (1997, p. 19), esses não deixaram suas características indesejadas na área econômica de nosso país. Além de não aceitar que todos fossem realmente criminosos. Quanto às características genéticas destes portugueses que chegam ao Brasil, para o autor, a única que permaneceu foram os traços de fisionomia coletiva do nosso povo. Freyre (1997, p. 19) ainda crítica Azevedo Amaral por exagero, quando o segundo considera os colonizadores como “tarados, criminosos e semiloucos”, pois não havia fundamento para tal opinião, já que alguns deles eram pessoas boas, porém foram categorizadas como criminosos ou de má índole, devido ao fato do direito português considerar o misticismo como delito, além do fato da religião também colocá-los como criminosos, feiticeiros. De outra perspectiva, Freyre (1997) acredita que a coroa portuguesa tenha enviado para cá homens que cometiam excessos em sua vida sexual em sua terra natal, e que isso foi uma estratégia política e econômica, já que esses viriam para cá para ficarem livres da cadeia, e também por ficarem soltos em meio às mulheres nuas, levando-os a povoar a colônia com seus filhos. Porém, segundo o autor, é a partir de 1532 que nós teremos nossa formação social, em família rural e semirrural, a partir da vinda de gente casada de Portugal ou pela união de colonos com moças caboclas, órfãs ou até de à-toa, vinda do território português pelos padres casamenteiros. A formação social do Brasil se deu a partir da família colonial, sobre a base econômica agrícola e o trabalho escravo, com variadas funções sociais e econômicas. Por exemplo, o mando político, a oligarquia (governo de poucos, de uma minoria) ou nepotismo (corrupção na qual um funcionário público, a partir de sua posição, dá cargo público para as pessoas com quem possui laços familiares). Muitos dos colonos se tornaram grandes proprietários rurais, porém os mesmos não tinham o menor amor pela terra e nem por sua cultura. Assim, o colono se desenvolveu devido às próprias características da terra e dos povos que aqui viviam, sem a menor organização comercial, restando-lhes apenas a produção rural. 64 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Saiba mais Sobre oligarquia, leia: http://www.brasilescola.com/sociologia/democracia-oligarquia.htm Sobre nepotismo, leia: http://www.brasilescola.com/politica/nepotismo.htm Segundo Freyre (1997), os portugueses eram despreocupados com a unidade ou pureza de raça. O único requisito exigido para um estrangeiro vir ao Brasil era que professasse a religião católica, chegando ao ponto de Portugal, no século XVI, mandar um frade a bordo de cada navio que vinha para o Brasil, com o objetivo de verificar se os estrangeiros eram mesmo católicos. Não só os estrangeiros vieram para o Brasil, mas com eles as doenças físicas, como sífilis e lepra. Entravam com os europeus e os negros de todos os territórios, sendo a religião católica o “cimento da nossa unidade.” (FREYRE, 1997, p. 30). A cana-de-açúcar foi sendo cultivada em São Vicente, em Pernambuco e, depois, na Bahia e no Maranhão, de forma que foi se formando uma tendência aristocrática (governo que fica nas mãos de poucos) e escravocrata (a produção por meio de escravos). Assim, teremos os homens com mais condições financeiras, que irão se manter na produção agrícola da cana; e os menos favorecidos, que irão para os sertões buscar escravos ou criar gado (os sertanejos ou vaqueiros). Freyre (1997) afirma que é essa a aproximação entre os interesses agrários e escravocratas, que nos séculos XVI e XVII vão predominar na colônia, dedicada à cultura do açúcar. Porém, a mesma não foi perturbada pela descoberta das minas e nem pela introdução do café. Pois o que aconteceu foi a transferência do interesse no açúcar para o ouro, depois para o café. Porém, a base se manteve: a terra e o instrumento de exploração, o trabalho escravo. Além disso, o açúcar ficou no Nordeste; o ouro, em Minas Gerais; e, em São Paulo, o café – e, em todas essas regiões, a escravidão da mão de obra africana. A base da alimentação da colônia era a farinha de mandioca e o milho, alterando-se apenas por meio das especialidades das frutas e verduras de cada região. O latifúndio (grandes porções de terras, pouco usadas para agricultura), foi característico no período colonial. Assim sendo, para Freyre (1997), este contexto não permitiu que a população tivesse a oportunidade de uma alimentação equilibrada, por mais que coloquem que a inferioridade física do brasileiro é totalmente relacionada à raça, ao clima – não podemos deixar de ver que o mau aproveitamento dos recursos naturais para nutrição é o que levou a essa inferioridade. 65 Unidade II Observação A análise realizada por Freyre destrói a teoria do determinismo biológico e a do geográfico. O povo dessa época não era bem alimentado, segundo Freyre (1997). Lembre que há uma diferença gritante quanto à quantidade de comida que os proprietários brancos das casas-grandes recebem, em comparação com a quantidade de comida que os escravos negros da senzala recebem, já que esses precisavam de mais alimento para se manter no trabalho duro. Desta forma, foi a alimentação escassa na variedade que levou o povo brasileiro a ser mais deficiente e instável do que os europeus, e não a mistura de raças e o clima, como muitos intelectuais falaram. Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro no mesmo mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas suas fontes de nutrição e de vida. (FREYRE, 1997, p. 34) Os melhores alimentados eram os senhores e os escravos, mas não esqueça que havia homens livres, mais miseráveis, sendo mais débeis e incapazes de terem melhor alimento. Por isso, havia muitas pessoas com anemia, verminoses e outras doenças. Assim, para Freyre (1997), o problema social é o que debilita a população brasileira e não a mestiçagem, já que não é a mistura de raça que traz a debilidade a esse povo, mas a pobreza, a escassez de alimentação, o regime escravo, a química dos alimentos tradicionais que consomem, a irregularidade alimentar, a falta de higiene na conservação e distribuição dos alimentos. Não só os homens livres passam por esses problemas alimentares, mas também os senhores de engenho de Pernambuco e da Bahia, já que os mesmos comiam pouca carne de boi e, de vez em quando, poucos frutos, geralmente bichados. Além disso, raramente os legumes faziam parte de seu prato. Por isso que, os médicos atribuíam aos “maus ares” muitas das doenças digestivas. É dentro desse antagonismo que será formada a sociedade brasileira: de um lado, a grande lavoura, a monocultura do litoral; e, de outro, a pecuária do sertão. Porém, tanto monocultores quanto pecuaristas não tinham uma alimentação sadia. Freyre (1997) diz que durante os três séculos de colonização a vida foi difícil, pois a monocultura esterilizou a terra, os senhores rurais se endividaram, as formigas, as enchentes e as secas dificultaram a produção dos alimentos. Não havia luxo. No Norte açucareiro, as famílias mais ricas da Bahia e de Pernambuco tinham algum luxo a partir de dívidas, mas em outras localidades, eram deficientes, com as 66 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA casas forradas de seda, mas com bichos caindo em suas camas. No Pará do século XVII, por exemplo, os nobres não tinham como ir para a festa de Natal da cidade, porque suas filhas não tinham o que vestir para a missa. Em contrapartida, os colonos de São Paulo, devido ao ambiente geográfico e ao clima, teve uma produção agrícola que lhes favoreceu, concedendo maior riqueza alimentar. Além disso, nessa região ocorreu tanto a produção agrícola quanto a pastoril, resultando em uma alimentação equilibrada e rica em variedades. Os negros, segundo Freyre (1997), eram bem alimentados porque os senhores de engenho queriam utilizá-los o máximo possível. Então, para os escravos nunca faltava comida, com abundância de milho, toucinho e feijão, comida forte para o trabalho duro ao qual iria se dedicar na agricultura. Apesar de toda deficiência alimentar, o escravo foi o quem melhor pôde aproveitar os nutrientes utilizados em sua dieta alimentar. E seus descendentes conservaram tal hábito, demonstrados em sua beleza física e nas expressões de vigor das mulatas, das baianas, dos crioulos, dos atletas, dos capoeiristas, dos jagunços dos sertões baianos e dos cangaceiros do Nordeste. Figura 13 – Grupo de capoeira do Centro Cultural Sol Nascente da Cidade Satélite de Ceilândia (DF) Freyre (1997) crítica autores como Euclides da Cunha, por acreditarem que o caboclo-índio, advindo do índio civilizado ou do resultado da miscigenação do índio com o branco, seja a raça mais pura quanto à capacidade física, a beleza, e de resistência moral, pois para o autor, o brasileiro é resultado da união das três raças: indígenas, negros e brancos, uma vez que os negros que fugiam para os quilombos raptavam as índias ou as caboclas para com eles viverem, porque as negras dificilmente conseguiam fugir. Desta forma, espalharam em muito seu sangue em várias regiões do país, formando a sociedade brasileira com base nessas três raças. Sobretudo a partir da abolição, os negros puderam se espalhar e perpetuar sua descendência sadia e vigorosa. A doença desse período foi a sífilis, que ocorria tanto na casa-grande quanto na senzala, já que o filho do senhor contraia com as negras e com as mulatas essa doença, quando tinham entre doze e treze anos. Isso porque a marca da doença no corpo era usada para ostentação, pois quem não tinha as marcas da sífilis era donzelo, virgem. Por isso, era ridicularizado: por não ter conhecido mulher. 67 Unidade II Saiba mais Ainda hoje a sífilis atinge muitas pessoas. Para descobrir mais sobre esta doença, acesse: http://www.jornalnovafronteira.com.br/?p=MConteudo&i=1780 De um lado, tem-se a formação do brasileiro, um homem dos trópicos, resultado do europeu com sangue índio ou negro fornecendo-lhe energia; de outro, a sífilis, que o deformava. Freyre (1997) critica aqueles que culpam a feiura do nosso povo por causa da miscigenação das três raças, pois, para ele, a feiura é resultado dos afetados pela sífilis ou pela verminose e deveriam ter responsabilizado as doenças, no lugar de responsabilizarem a miscigenação. Segundo Freyre (1997), a deformação da beleza do povo brasileiro é resultado da má alimentação e da sífilis trazida pelos europeus (portugueses, franceses e espanhóis), que passaram a doença para as índias, a partir das relações sexuais. Muitos destes europeus acabavam tomando gosto por essa vida e eram deixados aqui. A relação do europeu com a índia foi uma relação de colonizador como possuidor de suas escravas. Essa forma de pensar e agir resultou historicamente em um sadismo dos homens brancos com mulheres em condições desfavoráveis, prosseguindo no trato da exploração do senhor com as escravas africanas. Havia também o sadismo em que o menino que acompanhava o filho senhor em suas brincadeiras e chamado de “leva-pancadas” e que muitas vezes foi o instrumento de iniciação sexual do menino branco. Freyre (1997) já destaca, citando Moll, que nesta época a direção tomada quanto ao impulso sexual, na criança, depende muito mais da oportunidade e das influências sociais do que da predisposição ou perversão inata. Observação Você percebeu qual teoria Freyre está criticando ao dizer que a perversão não é inata? E qual teoria ele utiliza ao afirmar que o impulso sexual é resultado da oportunidade e influências sociais? Esse sadismo de menino levava ao gosto de surrar, judiar do negro, tornando-se violento e perverso no exercício de profissão elevada, na política, na administração pública; o gosto pelo mando, pelo autoritarismo. Freyre (1997) coloca o senhor na posição do sádico e o negro como o masoquista – lógico que, isso se dava em função das condições econômicas –, e afirma que essa relação sexual e doméstica acaba por levar-nos à nossa conhecida formação patriarcal, colocando a mulher sempre como a vítima do domínio e abuso do homem, sempre reprimida pelo pai e pelo marido. Além disso, há também o sadismo da mulher branca sobre as escravas, por inveja sexual e ciúmes. 68 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA O sadismo do senhor para com o escravo resulta na nossa vida política: no mandonismo, em relação às suas vitimas, disfarçado de autoridade ou defesa da ordem. É assim que surge a democracia, que tenta se equilibrar na sociedade que acaba de sair do regime de escravos e senhores. Freyre (1997) vê a missão jesuíta como importantíssima na formação cultural da sociedade brasileira. Os jesuítas trouxeram a cultura europeia para os indígenas e foram influenciados pelos africanos. Trouxeram a técnica, a cultura, a moral e a intelectualidade dos europeus para os indígenas. A conquista da confiança dos indígenas, pelos europeus, se deu por meio do cristianismo e seus instrumentos: a música, o canto, a liturgia, as profissões, as festas, as danças, as comédias, os cordões e os rosários. Além de terem passado a rígida cultura europeia, os jesuítas receberam a influência dos africanos, tornando-se, assim, os mediadores entre os índios e os europeus. Na análise de Freyre (1997), o que caracteriza a formação da sociedade brasileira é o equilíbrio de antagonismo: Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. (FREYRE, 1997, p. 53). Porém, o autor vê que o antagonismo é harmonizado pela confraternização e mobilidade social, a partir da miscigenação, pela mudança de profissão, de residência, pelo acesso a cargos, posições políticas e sociais de mestiços, pela tolerância moral e pela hospitalidade aos estrangeiros, bem como a intercomunicação entre as longínquas terras do país. Freyre, segundo Cristina Costa (2001), compreendia o nacionalismo como união de raças, regiões, culturas e grupos sociais permitida pelas características da colonização pela qual passou o Brasil. Colocando o papel do negro e do mestiço como primordial na adaptação da cultura do europeu ao Brasil e na formação da nossa identidade cultural. Dessa forma, na visão do autor, é a organização do sistema econômico, e não a mestiçagem, como era tradicionalmente citada, a responsável pelos problemas sociais existentes em nosso país. Apesar das críticas por minimizar os conflitos presentes nas relações raciais e defender o processo de mestiçagem como remédio para os males da sociedade brasileira, a obra de Freyre é considerada inovadora pelo fato de destacar, pela primeira vez, algumas características positivas nos grupos indígenas e negros. Em relação aos costumes indígenas, por exemplo, Freyre (1997) destaca sua influência na introdução dos hábitos de higiene e na dieta do colonizador português, com a introdução de alimentos nutritivos como a mandioca e o conhecimento do poder de algumas ervas. Para este 69 Unidade II antropólogo, coube à mulher indígena o papel de transmitir esses costumes, pois o homem índio tendia a ser nômade, enquanto a mulher, por se fixar em um só local, teria a facilidade de se amancebar com os portugueses e, consequentemente, transmitir ao europeu um pouco da sua cultura. Quanto ao homem indígena, coube a responsabilidade de transmitir aos portugueses o gosto pela guerra. Quanto à marca da influência negra na sociedade brasileira, Freyre (1997) destaca algumas características como a ternura, a mímica excessiva, o catolicismo, a música, o andar, entre outras. Sem negar a importância do negro na vida estética e no progresso econômico do Brasil, o autor enfatiza, em sua análise, a separação entre negro e escravo, contrariando as teorias eugênicas predominantes na época, que, influenciadas pelo cientificismo e darwinismo social, descreviam o negro como uma raça inferior. Para Freyre, o negro brasileiro não era inferior, mas sim, foi inferiorizado durante a escravidão. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de sua família, soltando-o entre gente estranha e, muitas vezes, hostil. (...) É absurdo responsabilizar o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime... (FREYRE, 1997, p. 315-316). No entanto, a violência e os conflitos que envolveram a escravidão, presentes nas relações entre senhores e escravos, foram minimizados em Casa-grande e senzala, reproduzidos em apenas algumas citações sobre as humilhações, castigos e torturas aos quais os negros eram submetidos. De forma geral, a ideia que se difunde é a de que portugueses, índios e negros trocaram, de forma natural e pacífica, seus costumes, suas diferentes culturas, transformando-se em um exemplo de convívio racial. Ao aplicar o termo “assimilação” para descrever os contatos entre colonizadores e colonizados, Freyre (1997) traz a visão antropológica da ideia de solidariedade e interação entre os grupos, minimizando os aspectos que demonstram a exploração e a violência que marcaram a história da colonização brasileira. Há intelectuais que não entendem dessa forma, como o antropólogo Hermano Vianna (2000), que em seu artigo na Folha de São Paulo coloca: Como dizer que “Casa-Grande & Senzala” criou uma imagem idílica da sociedade brasileira se, logo no prefácio de sua primeira edição, aprendemos que senhores mandavam “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”, ou ouvimos a história de um senhor que, na tentativa de dar longevidade às paredes de sua casa-grande, “mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces”? Que país é esse? Que paraíso tropical é esse? Que “democracia racial” é essa? Como diz Ricardo Benzaquem de Araújo, para Gilberto Freyre “o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial”. 70 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Saiba mais Leia a matéria completa de Hermano Vianna publicada no caderno Mais!, da Folha de São Paulo, em 12/03/2000, e reflita: O texto pode ser encontrado no seguinte endereço da internet: http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/antagonismosfreyre.html Seguem aqui algumas obras que certamente enriquecerão seu conhecimento de Antropologia brasileira: AMADO, Gilberto et al. Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte (ensaios sobre o autor de Casa-grande & senzala e sua influência na moderna cultura do Brasil). Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. CANDIDO, Antônio. “O significado de ‘Raízes do Brasil’”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. DEBRUN, Michel. A identidade nacional brasileira: estudos avançados. Vol. 4, nº 8, 1990, p. 39-49. 6.2 A perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil Os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda estão elaborados da mesma forma que os de Gilberto Freyre, que, segundo Cristina Costa (2005), iniciou sua produção intelectual a partir da crítica literária para a crítica cultural. Publicou, em 1936, seu primeiro livro, Raízes do Brasil, sendo este um clássico da Sociologia, da Antropologia e da História brasileira. É uma obra na qual elabora uma análise social criticando a formação das elites culturais e políticas do Brasil. Ao elaborar essa obra, tinha como objetivo delinear uma “psicologia” do povo brasileiro, a partir do processo colonizador. Em sua grande obra, Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1995) conta a História do Brasil com um foco sociológico e tem como influências intelectuais as obras de Max Weber e George Simmel. Influências estas que recebera a partir dos textos lido diretamente quando esteve na Alemanha entre 1929-1930. Desta forma, nesta obra ele recorre à Sociologia weberiana, buscando identificar entre os ocupantes do nosso território os “tipos ideais” de homens brasileiros, cunhando então as figuras do semeador e do ladrilhador, para melhor explicar a diferença entre a colonização lusitana da espanhola. 71 Unidade II Sérgio Buarque crítica a falta de preocupação dos portugueses com a educação, com a linguagem e com a imprensa, resultando em três séculos de ignorância para o nosso país. Em Raízes do Brasil, o autor, a partir de uma análise dos contrários, demonstra nossas origens. Demonstra que o povo português trouxe para a colonização características próprias de seus estilos de vida como: ausência da hierarquia social e a utilização do prestígio social em busca de privilégios. Assim, um dos temas fundamentais deste livro será o não interesse pelo trabalho e por atividades úteis, resultando na falta de organização, pois os ibéricos não abrem mão de sua vaidade, de seus caprichos ou interesses particulares para beneficiar o seu grupo. Buarque de Holanda (1995) distingue o trabalhador e o aventureiro, demonstrando duas formas opostas de comportamento psicológico, dois tipos ideais, para analisar o espanhol e o português. O aventureiro seria o homem que busca novas experiências, vive uma vida provisória e tem como objetivo apenas descobrir. Já o trabalhador seria o homem que analisa as dificuldades que enfrentará e a partir do esforço lento e continuo persiste planejando para tirar o maior proveito possível. Há uma ética do trabalho, por isso, para o trabalhador, só tem valor moral positivo às ações que tem vontade de realizar para melhor organizar o seu trabalho e, contrariamente, os aventureiros só realizarão os imorais e desprezíveis como a ousadia, o descuido, o desleixo, a falta de responsabilidade, a inconstância, a vagabundagem... enfim, tudo o que é desprezível, buscando sempre dirigir seus esforços para uma compensação imediata. O ideal do trabalhador é algo estúpido para o aventureiro. Quadro 12 – Principais obras publicadas de Sérgio Buarque de Holanda. Ano publicação Título 1936 Raízes do Brasil 1946 Monções 1949 Índios e mamelucos na expansão paulista 1957 Caminhos e fronteiras 1958 Visões do paraíso 1960-72 História geral da civilização brasileira (org.) Observação Essa categorização, de “trabalhador” e “aventureiro”, é o tipo ideal de Weber. Não existe, na realidade, uma pessoa que seja apenas um tipo. É uma construção teórica para poder explicar a realidade. Mas a construção teórica nos ajuda a obter conhecimento sobre o homem e a sociedade. 72 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Saiba mais Para ampliar seu leque de conhecimentos, leia: Cristina Costa. Sociologia: introdução à Ciência da Sociedade. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2005. 6.2.1 Pedagogia moderna e as virtudes antifamiliares Buarque de Holanda descreve de maneira inovadora os costumes e as características do povo brasileiro, destacando sua formação colonial em uma sociedade dividida entre senhores e escravos. Holanda (1995) explica que a busca pela propriedade e riqueza sem muito esforço é uma característica do nosso povo, a partir da influência do tipo de homem aventureiro, que influenciou a formação da vida nacional. Isso se deve a vários fatores, como: as raças que se encontraram aqui, os hábitos que trouxeram e as condições geográficas (terra, clima) às quais se adaptaram. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995), em especial, os portugueses foram os mais perfeitos quanto à sua adaptação ao nosso território, já que substituíram o trigo pela mandioca, a cama pela rede, chegando ao ponto de beber e mascar fumo. Aprendendo com os índios a andar de canoa, a caçar e a pescar. A produção de cana-de-açúcar, no pensar deste autor, ocorre devido à boa qualidade da terra do Nordeste e à abundância de terras para serem desbravadas, sendo a exploração latifundiária e a monocultura o cenário típico da organização agrária deste território. Assim, a agricultura se tornou nossa forma de produção. Porém, havia o problema da mão de obra, pois a utilização da mão de obra indígena não foi possível, sendo necessária a utilização da mão de obra africana. O negro foi um fator obrigatório para o desenvolvimento dos latifúndios da colônia. Para Buarque de Holanda (1995), os índios foram prestativos na extração de madeira, na caça e na pesca. No entanto, devido à sua versatilidade, não conseguiam aprender noções de tempo, de ordem, de exatidão, características necessárias para a formação social e civil. Os indígenas apresentavam uma resistência obstinada, mesmo que silenciosa e passiva. Os portugueses buscavam riqueza, sem que isso lhe custasse esforços ou trabalho. Assim, o lucro que advinha da exportação do açúcar era efetuado pelos negros africanos escravizados. Além do mais, os portugueses que vieram para o Brasil não eram “uma civilização tipicamente agrícola” (HOLANDA, 1995, p. 49). Primeiro porque eram aventureiros, segundo porque devido a pouca população que havia em Portugal, não concedia mandar para cá muitos trabalhadores rurais, e, por último, porque a atividade agrícola não era colocada como primeira grandeza nem mesmo no seu território de origem – era uma atividade desprezada pelos portugueses, que preferiam as aventuras marítimas e conquistas para obtenção de riquezas. 73 Unidade II Assim, o Brasil permaneceu, segundo Buarque de Holanda (1995), sem progresso técnico na agricultura, sem aumento da produção. Outra característica do comportamento do português é “a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho da raça” (HOLANDA, 1995, p. 53). Isto se dá devido ao fato deles serem já um povo de mestiços. Por isso, a mistura dos portugueses com os africanos não era novidade alguma para eles, pois antes de 1500, já traziam negros para plantar, desbravar terras, para trabalhar em suas casas e, por meio das relações sexuais com os negros, formavam uma nação de mestiços. Desta forma, é possível compreender o sentimento dos dominadores, os portugueses, para com os dominados. A massa trabalhadora de homens de cor representava apenas a energia necessária para produção. “O escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera que a época industrial o substituísse pelo combustível.” (HOLANDA, 1995, p. 55). A relação entre dono e escravo oscilava com frequência, isto é, de dependente ao protegido, chegando o negro a influenciar a esfera doméstica, mas isso não quer dizer que não houve casos particulares de tentativa de acabar com a influência destes na vida da colônia, como por exemplo: Aquela ordem régia de 1726, que vedava a qualquer mulato, até a quarta geração, o exercício de cargos municipais em Minas Gerais, tornando tal proibição extensiva aos brancos casados com mulheres de cor. (HOLANDA, 1995, p. 55) Mesmo havendo essa tentativa de barrar a influência dos negros e mulatos, a tendência da sociedade brasileira era a de abandonar as barreiras sociais, políticas e econômicas entre as diferentes categorias de homem, de cor, livres e escravos. Para fundamentar este pensamento, Holanda (1995) coloca como exemplo o fato de um governador de Pernambuco, em 1731, ter nomeado ao ofício de procurador um bacharel mulato, como podemos ler abaixo: Porque, diz a ordem de D. João V, “o defeito de ser pardo não obsta para este ministério e se separa muito que vós, por este acidente, excluísseis um bacharel formado provido por mim para introduzirdes e conservardes um homem que não é formado, o qual nunca o podia ser por lei, havendo bacharel formado”. (HOLANDA, 1995, p. 55). Lembrete Perceba que isso não era lei geral. Pois, em sua maioria, os negros eram obrigados a viver em regime de escravidão. No pensar de Holanda (1995), o índio, mesmo não tendo liberdade, tinha certa liberdade “tutelada”, sendo distanciado do estigma social da escravidão. Deram-lhes características que os deixam menos competentes para realização de tarefas como: “preguiçoso”, “imprevidente”, “aventureiro”, sendo mais parecidos com os padrões de classe nobres do que com escravo, virtudes de fidalgos e cavaleiros. Já aos 74 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA negros era dado o rótulo de vítima ou rebelde. Tanto era assim, que o governo português não condenava casamentos entre índios e brancos. Em 1755, cria o alvará que determina que, nesses casos, o cônjuge e seus filhos podem ocupar cargo em qualquer emprego, com honra e dignidade, ficando os demais proibidos de chamar-lhes de caboclos ou coisa semelhante. Porém, os negros e seus descendentes ficavam direcionados aos trabalhos de baixa reputação. Para demonstrar esta posição, Holanda nos dá um exemplo: ... em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de capitão-mor a um índio, porque “se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando o seu sangue com esta aliança, e tornando-se assim indigno de exercer o referido posto”. (HOLANDA, 1995, p. 56) Um problema causado pela escravidão e pela monocultura latifundiária na economia brasileira colonial foi a ausência de outras atividades produtoras, o que aconteceu em outros países. Enquanto nos outros países houve a criação de grêmios de artesãos, aqui a organização dos ofícios ficou sob a utilização do trabalho escravo em indústria caseira, tendo como único objetivo a independência dos mais ricos, não deixando o comércio crescer, sem artesões livres nas vilas e cidades. Aquele que tinha um ofício muitas vezes o deixava para ter as regalias que sua função não lhe concedia. Por exemplo, “a certo Manuel Alves, de São Paulo, que deixa em 1639 sua profissão de seleiro para subir à posição de ‘homem nobre’ e servir os cargos da República”. (HOLANDA, 1995, p. 58) A lei não estabelecia hierarquias, mas os costumes diferenciavam os trabalhos manuais, principalmente os ofícios de baixa reputação social. Na cidade, segundo Holanda (1995), os valores que vão ser utilizados serão o de que o melhor ofício é aquele de ganho fácil, que tanto caracteriza o Brasil. Desta forma, ao final do colonialismo, as tendas de comércio tinham de todas as coisas para serem vendidas, pois nenhum dos proprietários havia aprendido a se especializar em determinado ramo, já que sempre estavam atraídos pelo ganho que outro produto poderia lhe trazer. Nem sequer o mesmo oficio era passado de uma geração a outra, contrariamente ao que ocorria na área rural, que já possuía maior estabilidade. Foi devido a essa tradição trazida da base familiar que não se propiciou o desenvolvimento entre nós de um conjunto de ofícios, artesanatos e oficinas habilitados para desenvolver a área dos serviços. Além disso, outro fator negativo eram os chamados “negros de ganho” ou “moços de ganho”, isto é, escravos que trabalhavam segundo a permissão de seus senhores para que recebessem pelos trabalhos dos negros. Assim, os portugueses não contribuíram para desenvolver aqui oficinas, pois, segundo o autor, eles gostavam muito mais de espetáculos coloridos do que de trabalho. Assim sendo, preferiam procissões reais. Um tipo de trabalho que vai ter êxito era o coletivo, contanto que fosse para satisfazer questões emocionais, como culto religioso. Por exemplo, a construção da matriz de Iguape, no século XVII, no qual tanto homens de classe como o povo da vila se organizaram para carregar as pedras da praia até a obra. (HOLANDA, 1995, p. 60) 75 Unidade II Além destes, há outros costumes, como o do mutirão, em que os roceiros ajudam uns aos outros para derrubar mato, plantar, colher, fazer casa etc. Um auxílio recíproco, tanto no trabalho como na ceia, na dança – em tudo que acompanha esse evento. O momento crucial de nossa história se dá com a abolição (TERRA, 2007), pois, a partir de 1888, teremos uma revolução silenciosa, uma busca pelo progresso tanto material quanto moral. Pois, a partir disto, o povo brasileiro se deslocou do mundo rural para o urbano, tendo acabado o Império e, com isso, destruindo as marcas dos portugueses. A partir da sociedade urbana, rompe-se com a ordem agrária e algo novo surge: a organização político-administrativa moderna. No ponto de vista do autor, o Estado não é uma ampliação da família, muito menos um conjunto de pessoas que tenta atender as suas vontades, não existe um contínuo entre o particular e o público, mas pelo contrário, uma oposição. Segundo Holanda (1995), no século XIX acreditava-se que as instituições evoluíam em uma linha reta da família até chegar ao Estado. Porém, a realidade é que essas instituições pertencem a esferas diferentes. Somente o homem saindo da esfera doméstico-familiar, que passa necessitar do Estado, por meio do qual se faz cidadão, eleitor e responsável pela cidade. O geral sobre o particular, o intelectual sobre o material e o público sobre o familiar. Nas corporações de ofício, a relação entre aprendizes e mestres era como se os mesmos pertencessem à mesma família, pertencentes a uma hierarquia, com as mesmas privações e conforto. Com a revolução industrial, haverá a separação entre empregadores e empregados, diferenciando-os em suas funções, acabando com as relações íntimas, aumentado as diferenças de classe, deixando mais fácil para o capitalista a sua exploração sobre os empregados, com um salário mísero. Na sociedade capitalista, o trabalhador se torna um número para seu patrão, desaparecendo assim as relações sociais entre eles. Compare: Quadro 13 – Comparação dos sistemas de produção. Fonte: Holanda (1995, p. 144). Relação social Organização Mestre e aprendiz Na mesma sala e usando os mesmos instrumentos. Relação pessoal e direta. Capitalista e proletariado Entre o dono da empresa e o trabalhador temos: o diretorgeral, o presidente, os executivos da diretoria, chefes de setor; há uma hierarquia, assim fica fácil pagar salários inadequados e oferecer condições anti-higienicas para o trabalhador. Segundo Holanda (1995), é preciso compreender a crise que acompanha a transição do trabalho rural para o trabalho industrial a partir da dificuldade de abolir a ordem familiar e implantar outra, pois a ordem familiar tem base no afeto e no sangue e a outra é a substituição dessas por instituições sociais e relações sociais. Tanto é que, segundo o autor, quando ele lança Raízes do Brasil, ainda havia famílias 76 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA que educavam seus filhos em casa. Porém, isso desaparece devido às novas condições de vida, libertando o indivíduo da comunidade doméstica. Holanda (1995) afirma que a pedagogia moderna se coloca como favorável a essa separação, colocando a liberdade como condição necessária para o ser humano se adaptar à vida prática. E reconhece que a sociedade brasileira possui base muito sólida na família, em especial a patriarcal. Para ele, isto passa a ser um problema, já que acaba por não auxiliar na formação de uma sociedade do modo de produção capitalista, isto é, não incentiva valores como a iniciativa pessoal e concorrência entre os cidadãos. Tanto é que Holanda (1995) afirma que, mesmo no Império, em 1827, a fundação do ensino superior, em São Paulo e Olinda, foi de grande ajuda para formar profissionais públicos competentes, fazendo com que esses conseguissem se libertar das amarras familiares, conforme se desenvolviam em sua faculdade de curso jurídico. Assim, com essa nova pedagogia, os jovens eram levados para estudar longe de seus pais, para adquirirem responsabilidade, já que, como crianças, ficaram dependentes dos mesmos. Porém, nem sempre isso bastava para destruir os vínculos familiares, valores que eram opostos às necessidades de uma sociedade de homens livres. Tanto é que Holanda (1995, p. 144) cita o pensamento de Joaquim Nabuco, o qual afirmava que “em nossa política e em nossa sociedade (...), são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”. Desta forma, a concorrência entre os cidadãos é vista como um valor positivo. Por isso, a necessidade de uma nova forma de educação que levasse os jovens a ter iniciativa pessoal e desenvolver o individualismo. Assim, para Sérgio Buarque de Holanda (1995), no Brasil, o tipo de família que tivemos foi e é patriarcal. Desta forma, o desenvolvimento urbano vai acarretar um desequilíbrio social sentido até hoje. Segundo ele, o desenvolvimento urbano não é resultado apenas do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação e de sua influência sobre todos, inclusive sobre as áreas rurais. Observação Na definição da família patriarcal, temos uma família numerosa, composta não só pelos pais e filhos, mas incluindo: criados, parentes, agregados e escravos. Todos aqueles que são submetidos ao poder absoluto do chefe da família, isto é, o marido, o pai, o patriarca. Com essa educação familiar doméstica, não era fácil aos profissionais da esfera pública compreender a diferença entre privado e público. Para melhor explicar tais diferenças entre o privado e o público, Holanda (1995) utiliza os tipos ideais de Weber. 77 Unidade II Saiba mais Para conhecer a sociologia weberiana, consulte o texto contido no site Cultura Brasil. O endereço é: http://www.culturabrasil.pro.br/weber.htm Se quiser se aprofundar ainda mais nas teorias de Weber, leia estes livros: • Weber. Coleção Os pensadores, Ed. Abril. • Weber. Coleção Grandes cientistas sociais, Ed. Ática. Desta forma, Holanda (1995) classifica dois perfis de funcionários públicos: • O primeiro destes perfis é o patrimonial, que é aquele que vê as questões políticas como assunto de interesse particular, assim sendo, sua gestão será a de conceder empregos e benefícios segundo seus interesses particulares e não segundo os interesses do Estado. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. (HOLANDA, 1995, p. 146) • O outro tipo de funcionário público é o puro burocrata, de Weber, aquele funcionário de formação especializada, profissional, cujas condições de serviço estão determinadas por um contrato, com pagamento fixo e sua ascensão na hierarquia de cargos é determinada por regras do Estado. Seu trabalho segue o objetivo ao qual foi determinado, não levando em conta seus interesses pessoais, mas as regras racionais de sua função. Segundo o autor, a nossa história governamental está marcada muito mais pela existência de um sistema administrativo com um corpo de funcionários dedicados aos seus próprios interesses, isto é, dedicam-se aos seus objetivos particulares e pouco se mobilizam em função de uma ordenação impessoal. Assim sendo, Holanda (1995) considera que a família é a instituição que mais influenciou o desenvolvimento de nossa sociedade dentro desses padrões. Isto é, as relações domésticas nos forneceram um modelo de organização social na qual as relações de sangue e de sentimento determinam nossas escolhas profissionais. Este será o modelo utilizado até em instituições democráticas, que, em sua base, deveriam ser neutras. Isto é, deveriam guiar-se sem interesses particulares, apenas para o interesse do público, do povo. 78 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA 6.2.2 A identidade do homem cordial Segundo Leenhardt (2011), Sérgio Buarque de Holanda trabalha nesta obra com a forte hipótese de que os portugueses eram os mais preparados para executar a colonização brasileira, devido à sua forma de civilização. Essa conquista é vista como consequência das suas necessidades naturais de aventuras. A ética da aventura é também um conceito utilizado para a compreensão da sociedade brasileira contemporânea em sua origem histórica. Por essa análise, é explicada a questão da colonização do Brasil pelos portugueses. Para o autor, a colonização se justifica pelo espírito aventureiro do português, que conseguiu se adaptar à América como nenhum outro povo conseguiu. Ao analisar a colonização da América, destacou a sua concepção de cultura da personalidade, na qual o seu apego pelo prestígio pessoal resultava da ausência de uma moral de culto ao trabalho, diferente dos países protestantes. É essa cultura que contribuiu para que se desse valor ao indivíduo autônomo e não à organização espontânea, formada pela coesão social. Assim, essa característica está intimamente ligada à outra herança ibérica, que é a repulsa ao trabalho. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, (...) a carência dessa moral do trabalho se ajusta bem a uma reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. (Holanda, 1995, p. 39) O “homem cordial” é um dos conceitos centrais da obra de Sérgio Buarque de Holanda, que passou a ser utilizado por nós como referência para a compreensão de sua teoria. Ao definir o conceito de homem cordial, o autor buscou compreender as características psicológicas marcantes do modo de ser do brasileiro. Na verdade demonstra que o homem realiza determinadas atitudes mais pessoais em momentos que deveria ser mais formal. Assim, mostrando cordialidade, torna-se mais flexível. Por exemplo, no uso de nome e sobrenome, normalmente o sobrenome é deixado de lado para haver mais personalização nas relações sociais. Isto se dá de forma semelhante, na religião, pela superficialidade, para que não haja extremismos. São características que fazem parte da personalidade do brasileiro, como podemos perceber: A lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças. (HOLANDA, 1995, p. 141) O “homem cordial” seria o resultado da cultura patriarcal e rural própria da sociedade brasileira. Para Holanda (1995), a cordialidade do povo brasileiro foi formada pelo predomínio de relações humanas mais simples e diretas que rejeitavam a polidez e a padronização, características da civilidade. 79 Unidade II A dificuldade de se desvinvular dos laços familiares e se constituir como cidadão brasileiro se expressa no fato da oposição entre Estado e família. Ao contrário do que o senso comum mostra, o Estado não é extensão da família – pelo contrário, é seu opositor. Porém, para a sociedade brasileira isso é complicado, já que aqui a instituição família é a base de nossa sociedade. É na esfera da família que se constituiu o aconchego e as formas emotivas de tratar o próximo. Consequentemente, isso interferiu na organização da esfera do Estado, gerando confusão entre aquilo que é privado e o que é público. Assim, a existência de um núcleo familiar patriarcal na sociedade brasileira resultou em um meio público específico, que continha traços que formaram o indivíduo. Essa cordialidade seria alcançada a partir da divisão das emoções, da fala de seus sentimentos e problemas sentimentais. Esse comportamento está, segundo Buarque de Holanda (1995), presente em nossa vida cotidiana por meio da linguagem, na religião, buscando diminuir as diferenças de classe e de poder entre as classes sociais. Segundo Holanda (1995), a contribuição do brasileiro para a civilização é a cordialidade, isto é, a sua forma de se comportar, por meio da hospitalidade e da generosidade, demonstrando esses traços como componentes do nosso caráter, segundo os estrangeiros que vêm nos visitar. Porém, para o autor, isso não representa boas maneiras, muito menos civilidade. Pois, na verdade, isso representa nosso lado emotivo rico e envolvente. Já que a civilidade carrega dentro de si a coerção, a partir de regras, normas e castigos. Ainda segundo Buarque de Holanda (1995), o povo brasileiro é contrário à civilidade, à delicadeza, à polidez. A forma natural do “homem cordial brasileiro” pode até parecer uma atitude polida, de bondade. No entanto, essa é mais uma forma de defesa dele perante a sociedade. Isso é um disfarce, uma máscara para manter intocável sua sensibilidade e emoção. Desta forma, o pessoal se sobressai ao social. Assim, Holanda (1995) diz que, para o homem cordial, viver em sociedade significa uma libertação do terror de viver consigo mesmo, de poder contar apenas consigo mesmo para superar as circunstâncias de sua vida. Assim sendo, a sua relação com os outros diminui a vivência consigo mesmo, podendo agora contar com o outro. Segundo Nietzsche (apud HOLANDA, 1995, p. 147) “vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. O brasileiro tem aversão ao ritual social, assim precisa muitas vezes apresentar uma personalidade semelhante e equilibrada, para conseguir mostrar respeito a um superior. O nosso temperamento até concebe um acatar o comando de outro, mas somente quando não é possível um contato mais íntimo, familiar. A questão do respeito a outros povos está na intenção de construir uma relação de intimidade. Nesse sentido, para Holanda (1995), somos muito parecidos com os portugueses. Isto pode ser notado no uso que fazemos de nossa língua, na qual sempre está presente o diminutivo, isto é, a utilização de “inho” complementando a palavra serve como forma de familiarizar as pessoas e os objetos, no sentido de aproximá-los. Assim também o fazemos quando da omissão do sobrenome nas relações sociais, pois quando empregamos o primeiro nome, deixamos as pessoas mais próximas. Isto, segundo Holanda (1995), vem de nossa origem cultural portuguesa, já que os sobrenomes, na Europa, só predominam a partir do século XII. De qualquer modo, essa forma de tratamento com nome de família 80 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA foi implantado aqui. Porém, o fato de, nas relações, o nome da família ser deixada de fora representa, psicologicamente, uma tentativa de derrubar as barreiras sociais, de famílias diferentes e independentes, buscando uma união entre os diferentes. Assim, o que determina a forma de convívio social é o fundo emotivo. Essa maneira de ser é característica do brasileiro. Holanda (1995, p. 149), para demonstrar isto, cita o pensamento de André Siegfried, que consiste em dizer que “um negociante de Filadélfia manifestou certa vez (...) seu espanto ao verificar que, no Brasil, como na Argentina, para conquista um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo”. O autor também explora essa intimidade do brasileiro quando fala de catolicismo, no qual os santos são tratados com muita intimidade, chegando próximo da falta de respeito, atitude estranha para os verdadeiros religiosos. Podemos concordar com o autor quando vemos as promessas feitas pelas moças ao casamenteiro Santo Antônio, para o qual as mulheres pedem para ajudá-las a casar, porém o mesmo não é muito bem tratado por elas, pois judiam da imagem do santo, afogando-a, colocando-a de cabeça para baixo, enfim, fazem de tudo ao pobre santo, para que ele traga a elas um marido. Como podemos observar, também nas palavras do autor: A popularidade, entre nós, de uma santa Teresa de Lisieux – santa Teresinha – resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto, culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. É o que também ocorreu com o nosso Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho da Infância. Os que assistiram às festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, conhecem a história do Cristo que desce do altar para sambar com o povo. (HOLANDA, 1995, p. 149) Segundo o autor, este sentimento religioso que torna os santos humanos mais simples, a partir do qual em suas próprias casas vão ter suas capelas, e fazem suas orações ao santo devoto. Até Deus se torna amigo da família, próximo da esfera doméstica. Tamanha intimidade é contrária à ideia que existia no período feudal, em que Deus era homenageado apenas pelos nobres, pelos senhores feudais. Esse horror às distancias é, segundo Holanda (1995), o que caracteriza o brasileiro, pois, no Brasil, o rito serve para aproximar e humanizar as relações sociais. Em consequência deste comportamento, acabamos por ter uma religiosidade de superfície, segundo o autor, pois nos preocupamos mais com a pompa das cerimônias do que com o sentido religioso em si, perdendo a compreensão verdadeira da espiritualidade. Essa mesma ordem será transposta para o mundo político, que também apela para os sentimentos e sentidos e quase nunca para a razão. A pequena devoção da sociedade brasileira se coloca para todos os outros povos que nos visitam, já que percebem que poucos brasileiros frequentam as missas, as pregações e as confissões, chegando ao 81 Unidade II ponto de um visitante afirmar que, em nosso país, “o clima não favorece a severidade das seitas nórdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais florescerão nos trópicos”. (HOLANDA, 1995, p. 151) O autor conclui que o ritual não nos é necessário, já que o meio em que vivemos não necessita de uma reação de defesa. Somos livres em relação a todas as ideias, gestos e formas, assimilando-os sem dificuldade. Saiba mais Filmes História do Brasil. Direção: Glauber Rocha e Marcos Medeiros. Brasil, 1974. 166 min. Os inconfidentes. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Brasil, 1972. 100 min. Carlota Joaquina. Direção: Carla Camurati. Brasil, 1995. 100 min. Independência ou morte. Direção: Carlos Coimbra. Brasil, 1972. 108 min. Chica da Silva. Direção: Carlos Diegues. Brasil, 1976. 117 min. Mauá – o imperador e o rei. Direção: Sérgio Rezende. Brasil, 1999. 132 min. Policarpo Quaresma, herói do Brasil. Direção: Paulo Thiago. Brasil, 1988. 120 min. Cafundó. Direção: Clóvis Bueno e Paulo Betti. Brasil, 2006. 101 min. O quatrilho. Direção: Fábio Barreto. Brasil, 1994. 120 min. Gaijin, caminhos da liberdade. Direção: Tizuka Yamazaki. Brasil, 1980. 104 min. Baile perfumado. Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Brasil, 1997. 93 min. Menino de engenho. Direção: Walter Lima Jr. Brasil, 1965. 110 min. Documentários Legalidade. Direção: Fernando Brito. Brasil. 50 min. A Revolução de 30. Direção: Sylvio Back. Brasil, 1980. 118 min. Soldado de Deus. Direção: Sérgio Sanz. Brasil, 2005. 80 min. Getúlio Vargas. Direção: Ana Carolina Teixeira. Brasil, 1974. 76 min. Brasilianas nº 5 R11 – Cantos do trabalho: cana-de-açúcar. Brasil, 1955. Direção: Humberto Moura. 35 min. 82 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA 6.3 A perspectiva de Darcy Ribeiro em O povo brasileiro As pesquisas sobre os índios, negros e sertanejos no Brasil intensificaram-se na década de 1940, momento em que também apareceram os estudos e as interpretações sobre a sociedade em sua totalidade, ou seja, a pesquisa que considera o chamado “povo brasileiro”. Essas análises, elaboradas a partir de 1930 e 1940, tiveram como propostas compreender a “identidade nacional”, resultado do contexto histórico-político do país. Essa fase da Antropologia brasileira estendeu-se até a década de 1960. A partir da década de 1980, as análises antropológicas voltaram-se para temáticas como a diversidade de valores, expressões culturais e variados modos de ser e viver dos grupos sociais urbanos, destacando-se as pesquisas sobre gênero; sobre o papel da mulher na sociedade e seus direitos; sobre a prostituição; análises que buscavam interpretar os diferentes modelos de família, a arquitetura urbana, as chamadas minorias étnicas, incluindo pesquisas de memória histórico-cultural e as formas de interação e sociabilidade nas grandes cidades. Com o surgimento da Antropologia urbana, são contemplados nas análises os valores do homem urbano, as representações e as práticas socioculturais dos diversos grupos que vivem nas vilas, cidades e grandes centros, além da questão da cultura capitalista e da industrialização. Nesse contexto, encontra-se a obra do antropólogo Darcy Ribeiro, que buscou elaborar uma teoria para o Brasil, preocupando-se em entender seu desenvolvimento e as desigualdades sociais existentes desde a formação nacional. Assim, reconstituindo os aspectos históricos, Darcy Ribeiro desenvolve uma análise voltada à compreensão sobre a gestação do Brasil e dos brasileiros como povo: “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos”. (RIBEIRO, 1995, p. 19) Romancista, etnólogo e político, Darcy Ribeiro, de formação acadêmica funcionalista, contribuiu em sua análise para desmistificar a ideia de integração racial pacífica no Brasil. De acordo com seus estudos, a unidade nacional resultou de “um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista”. (COSTA, 2005, p. 157). Apesar da unidade étnica existente, ressaltada pelo antropólogo, não há uniformidade no país, pois atuaram sobre ele três forças diversificadoras: a ecológica, fazendo surgir paisagens distintas; a econômica, criando formas diferenciadas de produção; e a imigração, que introduziu nessa mistura novos contingentes humanos. Como resultado deste processo histórico, surgiram no país o que Darcy Ribeiro considerou como “modos rústicos de ser dos brasileiros”, ou seja, grupos que se diferenciam devido às adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação, mas que têm em comum a brasilidade. Entre eles, destacam-se os sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro-oeste do país, gaúchos, além dos ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros, entre outros. A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias 83 Unidade II paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais. Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas. Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino... (RIBEIRO, 1995, p. 21-22). Quadro 14 – Principais obras publicadas de Darcy Ribeiro. Ano publicação Título 1968 O processo civilizatório 1970 Os índios e a civilização 1976 Maíra 1982 Utopia selvagem 1988 Migo 1995 O povo brasileiro 1996 Diários dos índios 1997 Confissões Fonte: Darcy Ribeiro (1995). Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, explica quem é o povo brasileiro e, para isso, propõe uma análise teórica a partir de nosso contexto histórico. É com este intuito que formaliza um conjunto de pesquisas que resultam em uma teoria do Brasil até então inédita. Buscando, a partir desta teoria, entender o que nos levou ao processo de formação nacional a tantas diferenças sociais. A partir de nossa história, ele descreve como foi surgindo o Brasil e o povo brasileiro. Nessa reconstituição, ele fala da união entre o invasor português com os índios silvícolas e campineiros, isto é, as matrizes étnicas do povo brasileiro. É desta união que surgiu um novo povo, uma nova sociedade. 6.3.1 A formação da organização social do Brasil Segundo Ribeiro (1995), o povo brasileiro é novo porque só haverá uma etnia nacional diferente de nossas matrizes formadoras a partir de nossa mestiçagem. Isto é, forma-se uma nova cultura a partir de várias culturas. É um povo novo, também, por que se vê e é visto pelos outros como gente nova, diferente dos que existiam. Novo, além disso, porque é uma nova forma de organização da estrutura da sociedade 84 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA brasileira, já que inaugura uma forma particular da sua organização, tanto social como econômica, a partir de uma restauração de escravismo e em uma prática de servidão continua ao mercado mundial. Novo, até mesmo, pela incrível alegria e inacreditável vontade de ser feliz. Mesmo sendo um povo que passa por tantas necessidades e sofrimentos, tem coragem e capacidade de se emocionar. A colonização guardou em sua essência o sentido de empreendimento comercial donde proveio, a não existência de produtos comercializáveis levou à sua produção, e disto resultou a ação colonizadora [...]. A colonização moderna, portanto, [...] tem uma natureza essencialmente comercial: produzir para o mercado externo, fornecer produtos tropicais e metais nobres à economia europeia [...] apresenta-se como peça de um sistema, instrumento da acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil. (NOVAIS apud CHAUÍ, 2000, p. 23) Para Darcy Ribeiro (1995), essa gente fez-se também velha, porque continua a ser o proletariado (classe trabalhadora) das nações estrangeiras, já que gera lucro na produção de bens para o mercado mundial, a partir da deterioração e do sacrifício dos habitantes do nosso país. Dessa forma, inegavelmente encontramos na formação do povo brasileiro um intenso processo de aculturação. Os portugueses que aqui vieram se esforçaram para trazer e implantar no território brasileiro o modo de funcionamento tradicional da Europa, negligenciando em muito a cultura dos povos indígenas e dos negros africanos neste processo. A formação da sociedade a partir da formação e estruturação de uma colônia de exploração, com uma economia voltada para o mercado externo e com base ampla na propriedade de mão de obra escrava. Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e, em seguida, café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo [...] que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do país. (PRADO JR. apud CHAUÍ, 2000, p. 22) O povo brasileiro, devido à colonização portuguesa, que tinha como objetivo ampliar seu mercado mundial, nasce sob uma série de necessidades políticas e econômicas que dizem respeito ao mercado mundial e à produção de riquezas para Portugal. O povo brasileiro se origina sob a base da escravidão, da servidão. Observação Aculturação: é o processo que ocorre quando há um grupo de uma cultura que se encontra com outra e absorve a cultura do outro, podendo surgir uma nova cultura. Exemplo: cultura indígena + cultura africana + cultura portuguesa = cultura brasileira. 85 Unidade II O nosso povo, segundo o autor, é conformista e isso é resultado do comportamento aprendido da tradição civilizatória europeia ocidental. Porém, ao mesmo tempo, é diferente, devido aos traços herdados dos negros africanos e índios americanos. É assim que nasce o Brasil, um mutante, com características próprias, porém, ligado geneticamente à nossa origem portuguesa. A força da identidade étnica dos povos que formaram o Brasil fez com que sobrevivessem muitas tradições, valores, princípios e cultos. Destes nasceram muitas das manifestações culturais que conhecemos, amplamente marcadas pela fusão cultural e pela riqueza de tradições das matrizes culturais que formaram o nosso povo e foram sendo adaptadas às regiões e suas estruturas econômicas. Quando pensamos nesta grande diversidade de culturas e etnias que está na base da formação do povo brasileiro, algo que pode espantar em um primeiro momento é o fato de que, em toda vastidão deste território e da própria constituição do povo ao longo dos séculos, pouquíssimos conflitos interétnicos aconteceram no Brasil. Não vemos, por exemplo, grandes levantes de grupos e minorias étnicas isoladas na tentativa de estabelecer ou manter fronteiras étnicas claras e intransponíveis ao processo de intercâmbio e miscigenação cultural. Em vez de vermos uma sociedade e uma cultura dilaceradas por esse tipo de conflito, vemos nascer um povo que procura viver em paz com sua origem multiétnica, sem que nenhum destes grupos étnicos menores se sobressaia em busca do controle sociopolítico do país. Poderíamos ter formado uma sociedade com problemas, devido aos diferentes povos que nos formaram, mas ao contrário, mesmo tendo fisionomias e crenças diferentes, somos leais à nação, leais ao Brasil. Para Ribeiro (1995), o único diferencial que permanece são algumas tribos que vivem separadas, como se estivessem cercadas pela civilização, que conservam sua identidade étnica (pertencentes ao mesmo povo). São muito pequenas e, qualquer que seja o seu futuro, não tem como afetar a sociedade como um todo. Para ele, a diferença do povo brasileiro em relação aos portugueses está nas nossas qualidades recebidas dos indígenas e dos africanos, da sua unificação, das condições geográficas que enfrentaram em nossa terra e da condição de produção que foi colocada. Porém, Ribeiro (1995) sugere que não devemos pensar que essa unidade étnica significa uniformidade, pois não somos iguais. Isso porque tivemos a influência de três forças diferentes: a ecológica, a econômica e a imigração. A ecológica levou a paisagens de pessoas distintas, segundo as condições ambientais em que viviam. A econômica acabou por criar formas diferenciadas de produção, bem como a mão de obra especializada, o processo de industrialização e urbanização do Brasil que foi longo e se realizou mais tardiamente do que em outras nações. É nesse momento que veremos a chegada dos imigrantes em nosso país – especialmente europeus, árabes e japoneses. Porém, pelo fato do Brasil já estar formado, os mesmos foram abrasileirados e absorvidos, muito mais do que eles conseguiram “estrangeirar” os brasileiros que aqui existiam. 86 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas. (RIBEIRO, 1995, p. 21-22) A partir dessas variáveis históricas, tivemos vários modelos de “ser brasileiro”, a identidade regional, “como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc.” (RIBEIRO, 1995, p. 21) Porém, como parte que não pode ser destacada de tal processo, a urbanização, consequentemente, irá contribuir para que estes perfis de brasileiros sejam culturalmente uniformizados, ainda que se preservem as peculiaridades de cada um desses grupos. A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação. (RIBEIRO, 1995, p. 21) De uma maneira geral e simplificada, esse foi o panorama geral da constituição deste povo e de seus modos de vida, a partir do seu cotidiano e da sua adaptação aos diferentes ambientes e regiões nos quais os brasileiros se tornaram filhos dessa terra. 6.3.2 Conformação urbana e cultural O povo brasileiro, mesmo com o processo de urbanização gerador de variados modos de vida característicos da cidade e com o processo de industrialização, que organiza a produção com novas formas de espaço do trabalho – a utilização de máquinas nas fábricas foi crescendo no país ao longo do tempo, mas mesmo assim a sociedade brasileira manteve o processo de unificação de suas características culturais, sem perder, porém, a diversidade interna. É neste momento que vemos um grande contingente de imigrantes chegando ao país para trabalhar nas terras brasileiras. Antes acompanhando este progresso com o desenvolvimento e manutenção de 87 Unidade II suas características de identidade, do que se perdendo entre as novas tradições culturais, vemos assim, o fortalecimento das características que definem os brasileiros nos modos de vida das grandes cidades. Segundo o autor, o Brasil nasce historicamente como uma civilização urbana, com conteúdos rurais e de cidades, com funções diferenciadas que se complementam comandados por grupos ilustres da cidade. A primeira cidade a comandar os desígnios do Brasil é Lisboa, mas este comando a distância, originário de Portugal, não deve ser levado conta. No Brasil, mais especificamente na Bahia, temos fundada a primeira cidade, em 1549, por Tomé de Sousa. Era a cidade de São Salvador, capital da colônia, a sede política, administrativa e também “polo de desenvolvimento econômico de toda região, com açúcar, tabaco e algodão no século XVIII e tráfico de escravos até meados do século XIX” (PORTALBRASIL, 2011). Em 1565, surge a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, fundado por Estácio de Sá, com a intenção de ocupar estrategicamente o território, já que o mesmo é rico para o comércio de pau-brasil com os índios, e os franceses tentavam penetrar nessa região. Assim a povoação irá crescer como local portuário e comercial. A partir do desenvolvimento da mineração das vilas de Minas Gerais, o porto do Rio de Janeiro se torna o principal exportador e importador de escravos ouro e diamante, entre os demais produtos. Em 1763, a cidade passa a ser a sede do governo, a capital da colônia. A terceira cidade que surgiu foi João Pessoa, na Paraíba, em 1585, que inicialmente, com a ocupação e a colonização da Paraíba, era chamada de Vila de Felipeia de Nossa Senhora das Neves, fundada por colonos portugueses que vieram de Pernambuco. Nessa vila irá ser cultivada a cana-de-açúcar, com mão de obra de escravos africanos. No segundo século teremos a formação de: São Luís, Cabo Frio, Belém, Olinda; no século seguinte: São Paulo, Mariana (MG), Oeiras (PI); no quinto século vamos ter cidades por todo o território brasileiro. Segundo Ribeiro (1995), durante os séculos as cidades cresceram e se tornaram centros de vida urbana. As riquezas advindas da produção do pau-brasil, depois da produção do açúcar, da extração do ouro, produtos para a exportação, eram exibidos pelas cidades, nos sobrados dos senhores. Por isso, as cidades passaram a receber portugueses em toda parte, voltados para o comércio, e ingleses para elaborar relações comerciais entre eles. Com a abolição da escravatura, as cidades do Rio e da Bahia passaram a serem chamados de núcleos de africanos, que se tornaram as favelas de hoje. Na passagem do século XIX para o XX há uma crise de desemprego na Europa, devido à industrialização. Por isso, 7 milhões de europeus vêm para o Brasil, sendo que 4.500.000 deles ficam para sempre em nosso território, especialmente em São Paulo, revigorando a vida comercial local. Realizaram a primeira implantação de indústrias no Brasil, que substituíram os produtos que importávamos de outros países. Teremos, no período entre 1920 e 1960, um grande crescimento da população urbana, passando de 30,6 milhões para 70,9 milhões de pessoas vivendo em cidades (grandes, pequenas e médias). Para Ribeiro (1995), as cidades e vilas do período colonial corresponderam ao momento agrário do país, já que eram centros criados por ato da Coroa com objetivo de defender a costa do território brasileiro, 88 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA como: Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Florianópolis etc. Tinham como função comércio, a partir de importação e contrabando, e também a função de agências do rei para cobrar impostos e taxas pelo uso da terra, para transmissão de bens herdados ou por venda, bem como para julgar conflitos. Além disso, realizavam auxílio religioso vinculado à função escolar primária e à introdução ao sacerdócio, além de assistência médica para os casos graves. A vida das cidades e vilas tinha base nisso, além de comercializar a importação de escravos e fabricar e exportar o açúcar, depois o ouro, pedras preciosas e outras mercadorias. Nesse momento, segundo Ribeiro (1995), essas cidades e vilas tinham como principais edifícios as igrejas, conventos e fortalezas. Em momento de festas religiosas, esses edifícios se tornavam a atração, já que as famílias de senhores deixavam as fazendas para visitar a cidade. Fora isso, as cidades eram tranquilas, com feira semanal, missas e novenas. Além disso, só o barulho das tropas de mulas, ou o rugido dos carros de boi que vinham dos sítios cheios de alimentos e lenha. De acordo com Ribeiro (1995), os funcionários, escrivães e oficiais de justiça, militares e padres (que eram também os educadores) e negociantes formavam a classe alta da cidade. Porém, fora os que pertenciam à alta hierarquia eclesiástica e civil, os demais eram considerados de segunda classe pelos senhores das fazendas, orgulhosos de suas posses e de seu isolamento rural. Os de terceira seriam os brancos, mestiços livres, pobres que tentavam sobreviver nessa organização urbana como agregados de fazendeiro ou comerciante, servindo-os sem receber salário em troca do que esses “patrões” quisessem dar. Faziam de tudo na casa, auxiliando em todas as tarefas domésticas, como também, na produção de artesanatos como panos, redes, costuras, bordados, sabões, linguiças, doces etc. Havia artesãos autônomos que recebiam encomendas de selas, montarias, sapatos ou ligados às construções. E, por último, vinham os criados escravos, destinados a mostrar a posição dos ricos, carregando-os ou a seus objetos e dejetos, e também, no caso das escravas, amamentando seus filhos. Com o crescimento urbano, teremos uma nova hierarquia: no lugar dos eclesiásticos e civis de alta cúpula, passaremos a ter os comerciantes autônomos e ricos, porém só eram reconhecidos como pertencentes à classe dominante se fossem proprietários de terra e fazendeiros. Além desses, apenas na área mineradora se tem, na área urbana, uma classe intermediária. Em cada área produtiva, houve a formação de aglomerados menores, os vilarejos estradeiros, que tinham como função dar pouso aos que vinham em viagens. Com a extração na Amazônia tivemos a criação dos portos para a exportação da borracha, bem como a criação de vilas e cidades. E, por fim, a criação das cidades com o desenvolvimento do café. Depois muitas acabariam devido à distância destas em relação aos centros urbanos. Essas cidades e vilas formaram a civilização agrário-mercantil, pois foram criadas para administrar a ordem colonial da sociedade brasileira, para produzir mercadorias e lucro à Coroa portuguesa. As mesmas eram um lugar de “imposição de ideias e das crenças oficiais e de defesa do velho corpo de tradições ocidentais, muito mais que núcleos criadores de uma tradição própria”. (RIBEIRO, 1995, p. 197) 89 Unidade II Desta forma, sofremos o mesmo curso civilizatório que os europeus. Porém, com a industrialização, tudo se altera. A industrialização e urbanização são fenômenos que acontecem juntos, já que a industrialização dá empregos na área urbana para aqueles que vivem em área rural, isto representa o êxodo (saída da população de um território para outro dentro do próprio país) desses do campo para buscar novas oportunidades para sua vida. Porém, não é isso que acontece, pois fatores externos influenciam tanto na industrialização como na urbanização. No Brasil, o que vai determinar a expulsão dos camponeses da terra são principalmente o monopólio e a monocultura. Lembrete Monopólio agrícola: poucos são donos de grandes extensões de terras. Monocultura: plantio de apenas um tipo de produto agrícola. Por causa desses dois fatores, muita gente acaba por ter que ir para a área urbana à procura de trabalho. Ribeiro (1995, p. 198) demonstra o aumento da população urbana, que foi de “12,8 milhões, em 1960, para 80,5 milhões, em 1980”. Em 1995, quando produziu seu livro, O povo brasileiro, já contávamos com 110,9 milhões habitantes na área urbana. Veja o gráfico abaixo para ver a progressão da população urbana e a diminuição da rural de 1950 a 2000. Habitantes Gráfico 1 – Evolução da população total, 1950-2000. 180.000.000 160.000.000 140.000.000 120.000.000 100.000.000 80.000.000 60.000.000 40.000.000 20.000.000 0 1950 População Total 1960 1970 1980 População Urbana 1991 2000 População Rural Fonte: UNESP. Podemos perceber que, a cada década, historicamente, há o decréscimo da população rural e o aumento da urbana. 90 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Segundo Ribeiro (1995), as cidades não estavam preparadas para receber todas essas pessoas, havendo como consequência a miséria da população urbana e a grande competição por trabalho na esfera industrial. Por mais que haja diferença na quantidade de pessoas que partiu para cada região e São Paulo tenha sido a cidade que mais recebeu a migração, a consequência foi a mesma: cidades cheias, área rural vazia, porém sem prejuízo para a produção, já que a agricultura foi mecanizada, produzindo mais e de modo mais eficiente. A urbanização brasileira foi caótica, segundo Ribeiro (1995), já que foi produzida pela evasão rural. Chegando ao ponto de São Paulo e Rio de janeiro terem o dobro da população de Paris ou Roma, tornando-se algumas das maiores cidades do mundo, porém, com dez vezes menos oferta de trabalho e serviços urbanos, levando milhões de paulistas e cariocas a sobreviverem sem trabalho. Esse crescimento exagerado irá, em 1982, gerar uma séria crise, demonstrando a impossibilidade de crescer economicamente a partir dos problemas sociais. Os motivos da crise estavam na expulsão do homem da área rural para a cidade, por causa dos latifúndios, e, também, pela exploração estrangeira, como podemos notar na citação abaixo: Primeiro, a estrutura agrária dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar a produção agrícola ao nível do crescimento da população, de ocupar e pagar as massas rurais, as expulsa em enormes contingentes do campo para as cidades, condenando a imensa maioria da população à marginalidade. Segundo, a espoliação estrangeira, que amparada pela política governamental fortalecera seu domínio, fazendo-se sócia da expansão industrial, jugulando a economia do país pela sucção de todas as riquezas produtiva. (RIBEIRO, 1995, p. 200) Para Ribeiro (1995), a vida urbana brasileira passa a ser de metrópole, porém, internamente há grandes tensões, já que a população se vê abandonada e continua tendo uma cultura obsoleta, mas integrada e criativa. No entanto, isso dificulta a modernização, já que o governo não se preocupa em realizar a educação popular e nem cuidar da saúde pública. O grande problema de nossa nação será como atender essa quantidade de população urbana, pois já se tem a evidência de que não poderia deixá-los morrer de fome e de violência, muito menos largar as crianças ao vício, delinquência e prostituição. A mudança só é possível com a garantia do emprego, sendo necessária uma transformação da área rural, pois é justamente no campo que se podem aumentar as oportunidades de trabalho. Porém, segundo Ribeiro (1995), como a organização da sociedade brasileira foi fundada no latifúndio e no direito de mantê-la improdutiva, a esfera política defende essa organização, tornando impossível a mudança necessária para atender ao povo como um todo, pois a UDR (União Democrática Ruralista), entidade que representa o produtor rural latifundiário, tem forte representação no congresso nacional, é o mais poderoso. Já a indústria tem cada vez mais diminuído as vagas para os trabalhadores, substituindo-os pelas máquinas e, consequentemente, aumentando o desemprego. 91 Unidade II Darcy Ribeiro (1995) diz que a introdução da modernidade na indústria brasileira ocorre a partir de dois atos de guerra: no período da Segunda Guerra Mundial, quando Getúlio Vargas estabelece que só apoiaria os Aliados (EUA, União Soviética, Império Britânico, China, França) contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) com tropas e matérias-primas se, em contrapartida, recebesse investimentos para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda, e da Vale do Rio Doce. A Companhia Siderúrgica Nacional foi a base para a indústria naval e automobilística, bem como para toda a indústria mecânica; a Vale produziu reservas minerais e o Brasil exportou-as para o mercado mundial. Duas empresas brasileiras como as principais em seu ramo, significando que realmente eram empresas modernas. Além dessas, o governo criou outras, como a Fábrica Nacional de Motores e Companhia Nacional Álcalis. Essa introdução do Estado foi extremamente importante para a modernidade da industrialização brasileira, pois criou a indústria de base. Saiba mais A indústria de bens de produção, também chamada de base ou pesada, é a que produz matérias-primas para as outras indústrias, por exemplo, a metalúrgica produz aço que é usado na indústria automobilística. Para conhecer os diversos tipos de indústria, leia o texto de Wagner de Cerqueira Francisco, “Tipos de indústrias”, disponível na internet: http://www.brasilescola.com/geografia/tipos-industrias.htm. No período do governo de Juscelino Kubitschek, segundo Ribeiro (1995), o Estado deixa de financiar o desenvolvimento industrial brasileiro. A partir daí, teremos a industrialização substitutiva, isto é, entrada das multinacionais, implantando suas filiais na área automobilística, química, mecânica etc. Porém, para isso ocorrer, o presidente dará todos os subsídios (benefícios) para os estrangeiros, como: terra, financiamento, isenção de impostos. Com isso, tivemos a dinamização da economia nacional, porém, pelo fato de as indústrias terem se concentrado em São Paulo, que ganhou ares de “colonizador interno”, crescendo e diminuindo o desenvolvimento dos demais estados. Junto a este processo, as metrópoles recebem grande parte da população rural, que, não tendo trabalho, será a massa desempregada e a sociedade viverá, consequentemente, uma crise imensa de violência urbana. Darcy Ribeiro (1995) afirma que nosso Estado não tem um programa para organizar a economia de maneira que garanta a todos um emprego. Também diz que os governos, até aquele momento – 1995 – só pensam em vender as indústrias nacionais para os estrangeiros, caracterizando assim um processo de privatização, alocando a indústria brasileira no mercado global. Assim se faz necessário, segundo o autor, um plano de governo que nos coloque no contexto mundial, porém preservando nossa autonomia econômica, pois o que falta é “indignação generalizada em face de tanto desemprego, tanta fome e tanta violência desnecessária, porque perfeitamente sanáveis com 92 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA alterações estratégicas na ordem econômica”. (RIBEIRO, 1995, p. 203). Bem como nos falta competência política para que o poder utilize toda a nossa potencialidade. A nossa tarefa, para o autor, é fazer deste país uma das nações mais desenvolvidas, justas e bem sucedidas. 6.3.3 Deterioração urbana Já que o Estado não resolve os problemas, segundo Ribeiro (1995), a própria população urbana busca as soluções que lhe parecem as mais adequadas e criativas, como a construção das favelas nos morros, fora dos regulamentos urbanísticos, mas que lhe concede viver perto do seu trabalho e conviver com comunidades, organizando uma vida social da qual podem se orgulhar. Figura 14 – Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro Como em São Paulo não há morros, as favelas se formam em propriedades contestadas. O governo tenta remover as pessoas que vivem nestas favelas, mas elas resistem o quanto podem. 93 Unidade II Figura 15 – Favela de Paraisópolis em São Paulo Outra forma que parte da população que não se sente amparada pelo Estado encontrou para sobreviver está ligada ao tráfico de drogas como fonte de emprego, por mais que esta atividade seja ilegal, o que demonstra que a crise não se restringe a nosso território, uma vez que o “produto” desta indústria criminosa tem espaço nos países de primeiro mundo, como os EUA, por exemplo. Essa é a base do crime organizado, que oferece emprego na própria favela, com ar de heroicidade e um padrão de carreira para as crianças. Antes, o meio de sobrevivência de parte dessas populações era apenas o jogo do bicho, que contava como empregados ex-presidiários e criminosos, uma vez que a atividade proporcionava condições para a sobrevivência. Agora “é o crime organizado como grande negócio que cumpre o encargo de viciar e satisfazer o vício de 1 milhão de drogados. Quem quiser acabar com o crime organizado, deve conter o subsídio ao vício dado pelos norte-americanos”. (RIBEIRO, 1995, p. 205) Hoje se faz necessário não só uma reforma agrária, como também uma reforma urbana, uma economia que conceda o pleno emprego a todos. Mas ainda não há planos concretos. Segundo Ribeiro (1995), outro problema enfrentado pela massa urbana é a sua desculturação. Trata-se de um processo tão grave quanto aquele sofrido por índios, negros e europeus, já que as culturas desses três grupos formaram a nossa, sendo que cada um perdeu a sua própria. Assim, forma-se uma população de cultura obsoleta, mas integrada, tanto é que o saber prático é levado de pai para filho e a organização social é dada pelo calendário da Igreja, com padrões morais estabelecidos. Segundo o autor, experimentamos, atualmente, um agravamento neste quadro, pois há uma luta terrível dentro dessa massa urbana. Esse povo marginalizado acaba se associando em eventos como festivais, festas como a do Carnaval, ritos de candomblé, torcidas esportivas, como expressão dos desesperados. Porém, não confunda esses com os marginalizados da favela, que são as verdadeiras vítimas dessa organização social. 94 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA O autor Darcy Ribeiro caracteriza a marginália (1995, p. 205-206): O normal na marginalia é uma agressividade em que cada um procura arrancar o seu, seja de quem for. Não há família, mas meros acasalamentos eventuais. A vida se assenta numa unidade matricêntrica de mulheres que parem filhos de vários homens. Apesar de toda a miséria, essa heroica mãe defende seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração do lixo e na medicância nas ruas das cidades. Assim, são aspectos componentes da marginália a agressividade, o sexo eventual, famílias desestruturadas, miseráveis e alcoólatras. Sendo que o sentimento que abate essa multidão é o de desânimo ou o de anarquia. Os valores que os tocam, geralmente, são advindos principalmente dos cultos afro-brasileiros, do futebol, Carnaval. Estas são as paixões de suas vidas. Ribeiro (1995) diz que o contexto e as circunstâncias trazem, de vez em quando, lideres ferozes que cobram do grupo parte do lucro obtido nos roubos. Tudo isso se torna mais grave com a “lúmpen-burguesia de microempresários”, que vivem da exploração dessas pessoas miseráveis e acabam por controlá-los por meio de matadores profissionais, fugidos da prisão e também de policiais desligados de suas funções nas corporações. O que dói, segundo o autor, é que esses bandidos vão morar entre a população favelada e da periferia, aplicando a opressão para que as famílias pobres e desajustadas não saiam de seu comando. Porém, contrariamente a tudo isso, as pessoas confiam no crime organizado, pois é a estrutura proveniente dessa mescla de atividades que tornam a favela menos violenta, controlando os pequenos delinquentes. Isso, talvez, leve muitos a se apegarem aos cultos evangélicos, que socorrem os homens do alcoolismo, as mulheres das surras do marido bêbado, e as crianças da violência e do incesto (abuso sexual por parte de alguém da família). Os padres católicos raramente aparecem na favela. Assim, a competição fica entre os evangélicos e os cultos afro-brasileiros. Figura 16 – Manifestação cultural afro-brasileira: assistentes de um centro levam oferendas para os santos, em Salvador, Bahia 95 Unidade II Saiba mais Para conhecer um pouco a influência africana na cultura brasileira, leia: FERREIRA, Márcio Carvalho C. “A influência africana no processo de formação da cultura afro-brasileira”. Disponível em: http://www.geledes.org.br/artigos-sobre-educacao/ainfluencia-africana-no-processo-de-formacao-da-cultura-afro-brasileira22/09/2009.html. 6.3.4 Classe, cor e preconceito A nossa sociedade é dividida em classes sociais e, no alto da hierarquia, temos dois tipos que, apesar de serem conflitantes, se complementam. Na análise de Darcy Ribeiro (1995) são estes: o poder do patronato de empresários advém da riqueza que conseguem angariar a partir da exploração econômica; e o patriciado, cujo poder se deve aos cargos que ocupam, por exemplo, os generais, deputados, bispos, líderes sindicais e outros. Consequentemente, quem é rico quer ser patrão e, sendo, quer ter o poder de mando, podendo determinar a vida dos outros. Durante as últimas décadas, outro segmento se expandiu no alto dessa hierarquia: os que gerenciam as empresas estrangeiras. Segundo Ribeiro (1995), eles são os que controlam os meios de comunicação (a mídia), deixando o povo conformado com a sua situação de miséria. Além disso, elegem políticos em todas as esferas, seja a municipal, a estadual ou a federal, tendo poder para mandar da maneira que quiser. Abaixo da cúpula, temos as classes intermediárias, os oficiais, profissionais autônomos, policiais, professores, religiosos (padres). Estes são os que prestam obediência às classes dominantes, com a intenção de receber alguma coisa em troca. É desta classe, sobretudo entre os religiosos e os poucos intelectuais, que advêm os tipos mais subversivos, que atuam contra a ordem vigente. As classes subalternas são formadas pela aristocracia operária, aqueles que possuem empregos constantes, os especialistas, e também pelos “pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc.” (RIBEIRO, 1995, p. 209). Abaixo de todas essas classes está a grande massa dos brasileiros, classes oprimidas dos chamados marginais, especialmente os negros e mulatos, moradores das favelas e das periferias das cidades. São os enxadeiros, os boias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos 96 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição da classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la. (RIBEIRO, 1995, p. 209) Lembrete Classe social: é a posição que cada indivíduo ocupa na hierarquia social, dependendo do seu poder econômico. Quanto mais dinheiro tiver, mais alta é sua classe social. É nessa hierarquia de classes que se estrutura e organiza a sociedade brasileira, na qual, segundo Ribeiro (1995), os dominantes estão no comando natural, sendo o seu corpo dirigente as classes intermediárias; e seus executores, as classes subalternas, sendo a maioria da sociedade pertencente às classes oprimidas, resignadas em sua miséria e incapazes de organizar-se e confrontar os donos do poder. Assim, a classe dominante é formada por um pequeno número de pessoas e tem o poder sobre a sociedade devido ao apoio das outras classes. Os que estão na classe intermediária são os que mantêm a ordem social. As subalternas, são formadas por aqueles que estão na vida social, já que trabalham no sistema produtivo e são os consumidores, sindicalizados, tendo como visão defender o que possuem e ganhar mais, muito mais do que lutar para transformar a sociedade. Por último, temos as classes oprimidas, os excluídos da vida social, que lutam para entrar no sistema produtivo pelo acesso ao trabalho. Segundo Ribeiro (1995, p. 211) é justamente a esses despossuídos “que cabe o papel de renovador da sociedade como combatente da causa de todos os outros explorados e oprimidos.” Já que a única forma de pertencer à vida social é acabando com essa estrutura de classes, pois antes eram os escravos e agora são os subassalariados. Veja o quadro abaixo da composição das classes sociais: Quadro 15 – Estratificação social brasileira. Classes dominantes PATRONATO: oligárquico – senhorial, parasitário; Moderno – empresarial, contratista. Estamento gerencial estrangeiro PATRICIADO: estatal – político, militar, tecnocrático; civil – eminências, lideranças, celebridades. Setores intermediários AUTÔNOMOS: profissionais liberais, pequenos empresários. DEPENDENTES: funcionários, empregados. Classes subalternas CAMPESINATO: assalariados rurais, parceiros, minifundistas. OPERARIADO: fabril, serviços. Classes oprimidas MARGINAIS: trabalhadores estacionais, recoletores, volantes, empregados domésticos, biscateiros – delinquentes, prostitutas – mendigos. Fonte: RIBEIRO (1995). 97 Unidade II No Brasil, as classes sociais estão separadas pela distância social, bem como pela cultura. Em termos culturais, os valores importantes para o rico têm base em vigor físico, vida longa, beleza, conhecimento e hábitos refinados como resultados de sua riqueza. Em vez disso, os valores que caracterizam o pobre são doença, vida curta, envelhecimento, feiúra, saber do senso comum, e hábitos arcaicos resultado de sua vida de miséria. Quando uma pessoa consegue a mobilidade social ingressando em outra classe e nessa permanece, nas duas próximas gerações pode se perceber a mudança: “(...) crescerem em estatura, se embelezarem, se refinarem, se educarem, acabando por confundir-se com o patriciado tradicional”. (RIBEIRO, 1995, p. 211) Lembrete Mobilidade social: é a transferência de uma classe para outra. Exemplo: trabalhador ganha na loteria, sai da classe intermediária e passa a empresário, a classe dominante. Ou um empresário vai à falência, torna-se funcionário, sai da classe dominante para a intermediária. Segundo Ribeiro (1995), a estratificação social (divisão da sociedade em camadas sociais), criada historicamente se caracteriza pela racionalidade que resulta da sua montagem, já que os privilegiados são os donos da vida e os demais são utilizados para o seu enriquecimento, sendo subjugados, tendo apenas o direito de comer para trabalhar e o de fazer filhos para repor a mão de obra. Isso, para o autor, ocorre devido o fato de o patrão brasileiro ter sido formado a partir de relações sociais da escravatura, do qual tirava do escravo o maior proveito possível. Assim, quando o escravo é substituído pelo parceiro, depois pelo assalariado agrícola, os valores que irão persistir nas relações com seus empregados são as mesmas que tinha com o escravo, valores desumanos. Consequentemente, nas vilas em volta das fazendas, haverá uma população de velhos desgastados no trabalho, com crianças para cuidarem. Aqueles com idade ativa ficam fora, são os boias-frias, as empregadas domésticas, as prostitutas etc. Nas cidades, a situação é pior, algumas pessoas tentam sair da pobreza e outras se integram cada vez mais nela. Ou, então, o caminho é a marginalidade. Ribeiro (1995) fez uma pesquisa sobre as condições de vida das camadas urbanas e rurais do Brasil e chegou à seguinte conclusão: As classes sociais brasileiras não podem ser representadas por um triângulo, com um nível superior, um núcleo e uma base. Elas configuram um losango, com um ápice finíssimo, de pouquíssimas pessoas, e um pescoço, que vai alargando daqueles que se integram no sistema econômico como trabalhadores 98 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA regulares e como consumidores. Tudo isso como um funil invertido, em que está a maior parte da população, marginalizada da economia e da sociedade, que não consegue empregos regulares nem ganhar o salário mínimo. Níveis de renda Classes dominantes Observe a imagem a seguir, na qual está demonstrada a citação acima. Dependentes Operariado Autônomos Campesinato Marginais População Figura 17 – Representação das classes sociais por níveis de renda Fonte: Ribeiro (1995, p. 213). Para Ribeiro (1995), é possível uma pessoa melhorar de situação economicamente simplesmente mudando de região, devido à nossa diversidade regional. A classe dominante tem um papel de explorador sobre as demais classes sociais, sua conduta é fundamentada em dois estilos contrários. Um, pela cordialidade com os que fazem parte da mesma classe que eles; outro, com descaso por aqueles que são de outras classes, os que são inferiores. A mesma pessoa representa dois papéis, gentil com seus convidados e senhor com seus subordinados. A dignidade pessoal, para Darcy Ribeiro (1995), na condição de exploração, é preservada por atitudes cautelosas para não cair em desentendimento, pois se o mesmo ocorrer, a pessoa de uma classe que não é a dominante pode perder o trabalho e acabar na anomia ou no banditismo. Porém, o contexto social os leva acomodação e não a rebeldia. 99 Unidade II Assim, percebe-se que, nesse contexto, não há instituições democráticas, mas o autogoverno. Pois o governo político, desde a Colônia, no Império e na República sempre foi exercido pela classe dominante. A sociedade resultante deste contexto tem problemas impossíveis de serem resolvidos, como a impossibilidade de garantir um padrão de vida satisfatório para a maioria da população brasileira, a incapacidade de ter uma cidadania livre e, por isso, a impossibilidade de fundar uma sociedade democrática. Segundo Ribeiro (1995, p. 219), “a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais”. A única forma de mudar essa estrutura de opressão é a partir do surgimento e expansão do movimento operário. O operário sindicalizado, nas cidades, reivindica, apresentando-se como um lutador enfrentando seu patrão. Além da distância econômica entre pobres e ricos, também há discriminação sobre os negros, mulatos e índios, sendo os negros os que mais sofrem. Entretanto, a rebeldia desses é menor do que deveria ser. No passado, as lutas mais longas que aconteceram no Brasil foram a “resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição”. (RIBEIRO, 1995, p. 219-220). A fuga era sua forma de resistência, e sua intenção era recomeçar uma vida com liberdade nos quilombos, comunidades de negros fugidos que se multiplicavam em milhares. O quilombola era um negro aculturado, pois usava uma cultura brasileira e não tinha como voltar a ter uma vida como na África. Ribeiro (1995) diz que isso demonstrava seu drama de vida, pois não podia voltar mais a ser o que era. O autor diz que a maior luta do negro africano e de seus filhos brasileiros foi e é a busca por um lugar e por um papel como participante legítimo da sociedade brasileira. Ele, a partir de sua força, ajudou a construir esta sociedade, e, com isto, ocorreu a sua desafricanização, começando pelos fatos de ter aprendido a falar o português e de tê-lo difundido por todo o território. No fim do período colonial, os negros tinham a maior quantidade de gente aqui no Brasil. Sua abolição levou à queda do Império e à proclamação da República. Porém, a classe dominante reorganizou a estrutura de força de trabalho com mão de obra do imigrante no lugar da dos escravos, já que esses estavam adaptados ao processo salarial e com vontade de trabalhar para conquistar um pouco de terra. Os negros, por sua vez libertos, abandonavam as fazendas, ganhavam a estrada e procuravam um terreno baldio para plantar milho e mandioca para comerem e viverem livres. Isso os levou a miserabilidade, pois toda vez que acampavam, os fazendeiros, por meio da policia, os expulsava, já que toda terra tinha dono. Ribeiro (1995) afirma que, pelo fato dos membros das classes dominantes no Brasil serem descendentes dos antigos senhores de escravos, persistiu nesses o comportamento de desprezo para com os negros. 100 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA A classe dominante apreendeu, com seus antepassados, que o negro servia apenas como força para o trabalho. Por isso, quando se encontrava sem força, este negro poderia ser substituído por outro, como um objeto qualquer. Da mesma forma são tratados os pobres, considerados ordinários pela falta de conhecimento, pela preguiça, pelos delitos que são inatos, sem a possibilidade de mudança. Lembrete O termo “inato”, colocado acima, fundamenta a teoria do determinismo biológico, cuja proposta consiste em que as características do meu comportamento cultural são adquiridas pela genética e hereditariedade. Isso é falso, pois sabemos que aprendemos nosso comportamento em sociedade, pelo processo de endoculturação. Desta forma, todos os pobres são considerados culpados pela sua desgraça, já que isso é característico da raça e não da escravatura. O pior é que essa forma de pensar também vai ser utilizada pelos mulatos e negros que passam a uma posição melhor na sociedade, acabando por discriminar a massa miserável de negros. Como podemos ver na fala de Ribeiro (1995, p. 222): A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente, discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontrava um ambiente de convivência social menos hostil. Constituíram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos. O negro, por não ter tido a oportunidade econômica, acaba, pois, correndo o risco de ir para a favela. No ponto de vista de Ribeiro (1995), o negro urbano é o mais vigoroso e belo de nossa cultura. É a partir dele que se desenvolve o Carnaval, o culto aos orixás, a capoeira e muitas manifestações culturais. Estas são oportunidades em que o negro expressa o seu valor, nas quais não se necessita a escolaridade. Isto ocorre também na música popular, no futebol e em outras formas menos visíveis. Por esses motivos, o negro apesar de todos os problemas que enfrenta, é o ser mais criativo de nossa cultura e são justamente ele e o índio os que mais caracterizam o nosso povo. Há uma grande multidão de negros e mulatos que, por ter perdido a sua cultura africana, e não sendo nem índios nem brancos, encontraram sua identidade como brasileiros. Um povo novo, feito de gente de todos os cantos do mundo, completo e feliz com sua fusão. Por isso os negros não disputam autonomia étnica, pois se sentem integrados sendo o povo brasileiro. O mulato acaba, devido às suas características físicas, participando da vida do branco, recebendo conhecimento e participando da arte e da vida política. Ribeiro (1995, p. 223) cita: 101 Unidade II entre eles, o artista Aleijadinho; o escritor Machado de Assis; o jurista Rui Barbosa, o compositor José Maurício; o poeta Cruz e Sousa; o tribuno Luís Gama; como políticos, os irmãos Mangabeira e Nelson Carneiro; e, como intelectuais, Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos. Além dos mulatos, também as mulatas, pela sua beleza estonteante, tiveram mais chances de ascender socialmente. Assim, o mulato estará na composição de dois mundos em conflito: o do negro, ao qual ele mesmo nega pertencer, e o do branco, que o rejeita. Assim, o mulato se humaniza em dois, não sendo de ninguém. É a partir dos últimos anos, apenas, que o negro tem sentido e expressado o orgulho de sua raça, devida à ascensão de alguns negros, a partir de uma melhor educação e de melhores oportunidades de emprego. O mesmo ocorreu com os mulatos, que passaram para o lado do negro a partir dessa ascensão. No ponto de vista de Ribeiro (1995), a sociedade brasileira é doentia com essa consciência deformada de que o negro é culpado pela sua miséria, e que o mesmo deveria desaparecer para haver a branquização brasileira. Porém, temos, na realidade o contrário, com a branquização do negro e a negrização do branco, levando a termo, no futuro, uma população morena. O racismo no Brasil não ocorre devido à origem racial, mas sim sobre a cor da pele. Aqueles que passam a integrar os grupos dos brancos passam a ser e a se sentir como brancos. Veja o exemplo de Darcy Ribeiro (1995, p. 225): Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”. Já no século passado, um estrangeiro, estranhando ver um mulato no alto posto de capitão-mor, ouviu a seguinte explicação: “Sim, ele foi mestiço, mas como capitão-mor não pode deixar de ser branco”. (KOSTER apud RIBEIRO, 1995, p. 225). O autor critica os intelectuais que acreditam em uma democracia racial. Já que o mestiço em nossa cultura não é punido, mas bem-visto. Isto se deve ao fato de sermos resultado da mestiçagem de poucos brancos com uma grande maioria de índios e negros. Tanto é que a situação colocada como uma democracia racial, como desejou apresentar Gilberto Freyre, é devido à imensa carga de opressão, preconceito e discriminação. Perceba que o desejo de que o negro suma, a partir da mestiçagem, é um racismo. Para Ribeiro (1995, p. 227), o lado mais perverso do racismo é esse que dá uma imagem de maior sociabilidade, pois isso desarma o negro para lutar contra a miséria que lhe é imposta e o leva a aceitar as condições de violência em que vive. “O assimilacionismo, como se vê, cria uma atmosfera de fluidez nas relações inter-raciais, 102 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA mas dissuade o negro para sua luta especifica, sem compreender que a vitória só é alcançável pela revolução social”. A democracia racial é possível. Porém, só é realizada com uma democracia social. Isto é, “ou bem há democracia para todos, ou não há democracia para ninguém, porque à opressão do negro condenado à dignidade de lutador da liberdade, corresponde o opróbio do branco posto no papel de opressor dentro de sua própria sociedade”. (RIBEIRO, 1995, p. 227) 6.3.5 Raça e cor Devido ao contingente de homens brancos vindos para o Brasil e as poucas brancas que para cá vieram, a matriz fundamental foi a mulher indígena, na maioria das vezes fecundada pelo branco. Isso explica a branquização do brasileiro, já que o mestiço de europeu e índio tem a pele de tom moreno claro, o que, no pensamento racista, passa facilmente como o “puro branco”. Darcy Ribeiro (1995) demonstra isso por meio do censo, no qual apresenta uma diminuição progressiva da população negra brasileira. Quadro 16 – Diminuição progressiva da população negra. * Foram considerados pardos os chamados de amarelos, nipo-brasileiros e índios, que não são nem 5% dos totais. Cor 1872 % 1890 % 1940 % 1950 % 1990 % Brancos 3854 38 6302 44 26206 63 32027 62 81407 55 Pretos 1976 20 2098 15 6644 15 5692 11 7264 5 Pardos* 4262 42 5934 41 8760 21 13786 26 57822 39 Totais 9930 14333 41236 51922 147306 Fonte: RIBEIRO (1995, p. 229). Você pode perceber que, com o passar das décadas, a porcentagem de negros diminui de 20% da população, para 15%, depois para 11% e, na década de 1990, para apenas 5%. Pode-se presumir que muito negro tenha se colocado como pardo, já que cada pessoa escolhe sua cor quando responde o censo. Porém, Ribeiro (1995) chama a atenção para o crescimento do grupo branco, que vai de 38% para 55% da população. Isso não ocorre devido à vinda dos imigrantes, mas é claro que esta porcentagem pode ter aumentado devido à melhor condição econômica, porque, enfim, isto resulta em uma parcela da população que vive em melhores condições – os bem-sucedidos –, que se classifica como brancos. Os indígenas foram quase exterminados devido às doenças, às condições de miséria e opressão em que foram colocados. O negro, quanto às doenças, tinha uma melhor condição, já que possuía anticorpos contra as mesmas, uma vez que na África estavam expostos às mesmas enfermidades que os europeus. Assim, com a abolição da escravatura, a população de negros livres também foi diminuindo devido às condições de miséria colocadas. 103 Unidade II Ribeiro (1995) afirma que, ao analisar as condições de carreira do negro em nosso país, chegando como escravo e sendo colocado para fazer as tarefas mais duras, como base para o processo produtivo, sendo tratado como um burro de cargas, para produção do máximo lucro e recebendo, em contrapartida, uma vida de miséria. Ao se tornar livre, o negro vai ter contato com novas formas de exploração que, ainda que menos cruéis do que na época da escravidão, ainda não vai lhe permitir pertencer à sociedade e ao mundo do conhecimento, tornando-se parte do subproletariado: o animal de serviço. Observação Proletariado é a classe dos trabalhadores. Portanto, o subproletariado consiste na classe que está abaixo da dos trabalhadores, pois as condições de trabalho e direitos são miseráveis. No momento da Lei do Ventre Livre, a primeira lei abolicionista, na qual os filhos das escravas passavam, a partir deste momento, a nascer livres, os fazendeiros abandonavam as crianças nas estradas e nas vilas, pois, não sendo objetos seus, não queriam mais ter de alimentá-las. Depois, o estado de São Paulo criou nessas vilas asilos para acolher essas crianças. Com a abolição, os que não queriam mais servir aos senhores saíram e os velhos e doentes foram expulsos. Desta forma, acabaram por se concentrar na entrada das vilas e cidades, em condições terríveis, e acabaram por aceitar condições de trabalho exploradoras ditadas pelos latifundiários. Com a implantação de máquinas nas lavouras comerciais, outro grupo de trabalhadores foi excluído, o que levou ao aumento da população dessas vilas: não havia mais somente negros, mas também pardos e brancos pobres, todos considerados como massa dos trabalhadores livres para comporem o subproletariados. Ribeiro (1995) diz que até hoje podemos observar que, próximos às cidades, encontramos essas concentrações de mendigos, domésticas, cegos, aleijados – os miseráveis –, sendo que os velhos, cansados pelo trabalho, cuidam das crianças. É a partir dessas condições que, segundo o autor, devemos procurar a diferença social entre a expansão do branco e do negro no desenvolvimento da sociedade brasileira. Essa situação ainda persiste na década de 1990: A situação de inferioridade dos pardos e negros com respeito aos brancos persiste em 1990. Os poucos dados disponíveis mostram que 12% dos brancos maiores de sete anos eram analfabetos, mas os negros eram 30% e os pardos 29%. Por outro lado, o rendimento anual médio (em Cr$) de pessoas de mais de dez anos era de 32212 para os brancos, de 13295 para os pretos e de 15308 para os pardos (Anuário estatístico do Brasil, IBGE, 1993). Lamentavelmente, as informações quanto à cor para 1990 são muito mais escassas que para 1950. (RIBEIRO, 1995, p. 234). 104 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Assim, a base da sociedade continua em situação de miséria, pois, pela industrialização, não está alterando a concentração de poder, riqueza e prestígio do branco. Por isso, as condições seculares de miséria do negro persistem ainda no século XXI, resultando nas maiores taxas de analfabetismo, criminalidade e morte, em um cenário em que predominam os negros, demonstrando o fracasso da nossa sociedade em promover uma democracia racial que incluísse o negro na condição de cidadão brasileiro. E, pior do que tudo isso, segundo Ribeiro (1995), mais do que preconceito por causa da raça ou da cor, hoje na sociedade brasileira se tem o preconceito de classe, pois a distância entre os pobres e os privilegiados é imensa, já que a diferença se dá não tanto pela posse financeira, mas também pelo estilo de vida, como a questão do conhecimento. Se diferenciarmos analfabetos e letrados, conhecimento vulgar e científico entre os de famílias abastadas e as de origem humilde, a oposição entre as classes sociais de pobres e ricos é muito maior do que a oposição entre negros e brancos. Por isso, é mais aceitável o casamento entre pessoas de raças diferentes do que o de pessoas de classes opostas, devido à discrepância social e cultural. Darcy Ribeiro (1995) crítica Gilberto Freyre por este dizer, em Casa-grande e senzala, que a mulher morena atraia o português. Para ele é desnecessária a explicação desse interesse sexual, já que o mesmo ocorreu no mundo inteiro, no período da colonização, quando o homem branco se encontrava com gente de cor e na ausência de suas mulheres brancas. E, para o autor, hoje ocorrem também relações sexuais entre homens de condição social superior com negras, índias e mulatas, mas são apenas relações de interesse sexual sem apego afetivo. São raros os casos de amor entre ambos. O sexo, nessa situação desigual, torna a mulher servil e dependente do homem, aceitando o que este lhe impõe, aceitando as relações ocasionais e de amasiadas temporárias. A partir disso, a família se estrutura na mulher, que tem filhos de homens diferentes. Só quando a mulher muda de condição social é que também consegue ter uma vida sentimental autônoma, na qual adquire dignidade nas relações sexuais e, a partir disto, conseguindo uma estrutura familiar estável, de reconhecimento religioso e social. Assim, essa mulher passa a superar as condições desfavoráveis e passa a ter condições igualitárias. Mas, para isso ser possível para todas as mulheres, é necessária a superação da condição de marginalidade socioeconômica da maioria da população. O que há de positivo na condição de conjunção inter-racial no Brasil é que o nascimento de um filho mulato não é pejorativo. Assim, podemos pensar que a população brasileira continuará a se homogeneizar, com um patrimônio multirracial. Por exemplo, nas famílias brasileiras, a composição dos filhos se difere muito: um moreno ou outro mais claro; um com cabelo liso, outro de cabelo encaracolado; irmãos com diferentes aberturas de olhos, de nariz etc. Ninguém estranha esse fato, segundo Ribeiro (1995), pois o fenótipo dos membros se deve ao seu patrimônio genético, que conta com todas as matrizes, resultando em brasileiros muito variados. Quanto ao contingente de imigrantes vindos para o Brasil, veja a tabela abaixo: 105 Unidade II Tabela 1 – Distribuição dos contingentes imigratórios por período de entrada (em milhares). Períodos Portugueses Italianos Espanhóis Japoneses Alemães Totais 1851/1885 237 128 17 - 59 441 1886/1900 278 911 187 - 23 1398 1901/1915 462 323 258 14 39 1096 1916/1930 365 128 118 85 81 777 1931/1945 105 19 10 88 25 247 1946/1960 285 110 104 42 23 564 Totais 1732 1619 694 229 250 4523 Fonte: RIBEIRO (1995, p. 242). Perceba que tivemos poucos imigrantes, porém o papel do mesmo foi muito relevante na formação de determinadas regiões, criando paisagens com características europeias e de populações, em sua maioria, brancas. Quanto às características da população brasileira, não houve interferência, pois quando os imigrantes começaram a chegar em maior número, a população nacional já era definida etnicamente, acabando por absorver a cultura e a raça desses sem que, com isso, houvesse grandes alterações. Esse cruzamento entre multietnias formando a etnia nacional não deixou lugar para tensões regionais, étnicas ou culturais, pois todos acabaram por se definir como participantes da cultura nacional e da sociedade brasileira. O brasileiro tem um fanatismo por sua identidade e por seu país, como podemos notar nas palavras de Ribeiro (1995, p. 243-244): Pude sentir, no exílio, como é difícil para um brasileiro viver fora do Brasil. Nosso país tem tanta seiva de singularidade que torna extremamente difícil aceitar e desfrutar do convívio com outros povos. O prefeito de Natal morreu em Montevidéu de pura tristeza. Nunca quis aprender espanhol, nem o suficiente para comprar uma caixa de fósforo. Alguns se suicidaram e todos sofreram demais. Basta ver uma reunião de brasileiros, do meio milhão que estamos exportando como trabalhadores, para sentir o fanatismo com que se apegam à sua identidade de brasileiro e o rechaço a qualquer ideia de deixar-se ficar lá fora. Saiba mais Sobre a questão de raça, cor e classes sociais que abordamos nestes parágrafos, há uma literatura que permite maior aprofundamento. Algumas obras importantes que você deveria conhecer são: CARDOSO, Ruth. Aventura antropológica. Rio de Janeiro: Paz e terra. 1986. 106 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. DURHAM, Eunice R. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo: Ática, 1973. Uma dica interessante, também para o aprofundamento destas questões, na internet, é o site do: Núcleo de Antropologia Urbana USP – NAU, disponível em: http://www.n-a-u.org/. 7 A CULTURA É POPULAR OU ERUDITA? Uma das características da sociedade contemporânea, assim como de outras, é a grande diversidade interna. Isso decorre do fato de que a população se encontra colocada de modo diferente no processo de produção capitalista (SANTOS, 2006). Há setores que são os proprietários das indústrias, das fazendas, dos negócios em geral, chamados de capitalistas e, do outro lado, há os que nada possuem para produzir para se manter e, por isso tornam-se os trabalhadores dessas organizações, chamados de proletariados. As classes sociais possuem formas diferentes de viver e enfrentam problemas diferentes em sua vida social. Mas não é apenas isso: é algo mais complexo, pois se formos analisar as maneiras, os modos não são homogêneos nem dentro das classes. Perceba que a realidade social dos trabalhadores rurais e suas famílias são diferentes das enfrentadas pelos trabalhadores industriais ou dos comerciários. Temos diferenças de renda, de estilos de vida, de acesso à escola, a hospital, a lazer. Além disso, também não há uma distinção muito nítida entre as classes, já que nas áreas urbanas encontramos camadas intermediárias, chamadas de classes médias. Essa análise acima nos serve para iniciar uma reflexão sobre como tratar a dimensão cultural de nossa sociedade. A cultura, entendida como a forma de dar conta dessas particularidades, pode detalhar ainda mais a vida concreta apresentada acima, já que é possível diferenciar a vida social entre homens e mulheres, bem como entre crianças, jovens e idosos. Também podemos diferenciar as práticas religiosas, médicas e alimentares. (SANTOS, 2006) Desta forma, poderíamos falar, a partir do exposto acima, em cultura dos idosos, dos evangélicos, dos aposentados, das mulheres de classe proletária. Ou poderia ser também dos idosos aposentados evangélicos, ou das mulheres de classe proletária do estado de São Paulo em 1980. Perceba que algumas preocupações são mais recorrentes do que outras. Assim, ao estudarmos cultura no Brasil, podemos nos preocupar em saber o que são as várias categorias de cultura utilizadas por pesquisadores e intelectuais como: cultura popular, cultura erudita, cultura de massa (ou indústria cultural). 107 Unidade II 7.1 Cultura popular e cultura erudita Ao tentar definir o conceito de cultura, precisaríamos procurar saber como esse conceito surgiu. Segundo o sociólogo Raymond Williams (apud TOMAZI, 2000, p. 175), a palavra cultura vem do latim – colere – e definia inicialmente o cultivo das plantas, o cuidado com os animais e também com a terra (por isso, agricultura). Definia, ainda, o cuidado com as crianças e sua educação; o cuidado com os deuses (seu culto); o cuidado com os ancestrais e seus monumentos (sua memória). Passando por todos esses elementos, chegaríamos, finalmente, ao sentido mais comum que o termo possui em nossa sociedade: o de que o homem que tem cultura é um homem “culto”. É aquele que “cultiva” (no sentido de desenvolver, praticar, cultuar) a inteligência, as artes e o conhecimento presente nos livros. Observação Só quem lê bastante, quem ficou muito tempo na escola, é possuidor de cultura? Só professor, intelectual, quem tem faculdade é que possui cultura? Existem autores que dizem já não ser possível achar cultura simplesmente popular ou erudita em uma sociedade como a nossa, integrada pelos veículos de comunicação, ou seja, pela indústria cultural. Porém, há outros que diferem a cultura em: cultura popular, cultura erudita e a indústria cultural, por vezes essa última atuando como ponte entre as duas anteriores. Segundo Santos (2006), na história das preocupações com a cultura, em um primeiro momento, a cultura é entendida como refinamento pessoal e, posteriormente, a cultura passa a ser a descrição das maneiras de conhecimento produzidas pelos dominantes nos estados nacionais, principalmente na Europa, a partir do fim da Idade Média. Desta forma, a preocupação com a cultura nasce voltada para o conhecimento erudito, cujo acesso era possível apenas às pessoas que pertenciam aos setores dominantes desses países. Segundo Santos (2006), essa forma de conhecimento, denominado erudito se contrapõe ao que a maior parte da população possuía: um conhecimento classificado como atrasado e inferior, que passou a ser visto como outra forma de cultura, chamada de cultura popular. Talvez você se pergunte, agora, o que é popular e o que é erudito, não? Então, prossigamos: Segundo Nelson Tomazi (2000), para pensar cultura popular versus cultura erudita, as quais designam formas diferentes de ser, pensar e agir, associando os dominados à popular e os dominantes à erudita, é preciso, antes de tudo, entender os porquês desta oposição. Por que fazer distinção, 108 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA categorizar a cultura em tipos e conceder a ela valores diferentes? Como defini-las e distingui-las uma da outra? Os antropólogos brasileiros Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro (apud Tomazi, 2000, p. 179) afirmam que a cultura se refere a toda produção simbólica, trazendo em si todas as contradições da sociedade. No caso de sociedades capitalistas como a nossa, a produção simbólica estaria relacionada às próprias relações capitalistas de produção, relações que opõem capital e trabalho e, consequentemente, dominantes e dominados. A preocupação dos dominantes em estudar a cultura popular, na verdade, representa uma tentativa de classificar a forma de pensamento e ação dos mais pobres da sociedade, buscando a lógica interna, a sua dinâmica e principalmente as consequências políticas dessa forma de pensar e ser. Percebe-se que, ao longo da história, a classe dominante desenvolveu o controle da cultura erudita e criou um mundo de legitimidade própria, expressado pelo conhecimento científico, pela filosofia e também pelas instituições oficiais, como a universidade, a academia, a ordem dos profissionais (por exemplo, dos médicos, advogados etc.). Desta forma, no modo de produção capitalista, no qual a sociedade é dividida em classes, essas instituições não passam pelo controle das classes dominadas. Pensando dessa forma, cultura popular é a manifestação dessas classes chamadas de dominadas, que são manifestações diferentes das elaboradas pela classe dominante, já que são produzidas fora das instituições oficiais, que existem de forma independente dessas. Ao pensar em cultura erudita, imediatamente somos remetidos ao fato de que seus produtores fazem parte de uma elite política, econômica e cultural que tem acesso à escrita, a livros, ao estudo. Porém, afirmar que quem faz cultura erudita são os que pertencem a uma classe dominante não significa que essa cultura seja homogênea. Segundo Gilberto Velho e Eduardo Viveiro de Castro (apud Tomazi, 2000), “é impossível definir a cultura erudita, porque os elementos culturais produzidos por intelectuais, fazendeiros, industriais, empresários, burocratas e políticos (...) não podem ser homogeneizados”. Definir a cultura popular no que tange a seus produtores é mais complexo ainda, pois, como coloca Tomazi (2000), expressando o pensar de Gilberto Velho e Eduardo Viveiro de Castro, é impossível homogeneizar, formando apenas um caráter, pois há diferença entre as produções dos camponeses, dos operários, de classes médias, baixas e outros setores sociais. Além desse fato, temos que considerar a multinacionalização do capital e, consequentemente, a transnacionalização da cultura, já que, a partir da internet, grupos étnicos de locais mais remotos podem realizar o intercâmbio econômico, político e cultural, de maneira que influenciam e são influenciados pela produção cultural mundial. Porém, é importante lembrarmos que quem definiu cultura popular foram justamente os participantes das instituições dominantes, os que se dizem possuidores da cultura erudita. 109 Unidade II Mas quando há essa separação entre cultura erudita e popular? Segundo o historiador Peter Burke (apud Tomazi, 2000), isso aconteceu no final do século XVIII e início do XIX, momento em que os intelectuais europeus passaram a se preocupar com produção do povo. Começaram a visitar casas e festas dos artesãos e camponeses para saber e aprender suas canções e estórias. Alguns desses intelectuais eram filhos de artesãos e camponeses. Porém, a maioria era de classes superiores e não os conheciam. “Quando pensavam no povo, imaginavam-no natural, simples, analfabeto, instintivo, irracional, enraizado na tradição e na terra, sem nenhum sentido de individualidade. Exatamente por isso, queriam conhecê-lo”. (TOMAZI, 2000, p. 191) Em um primeiro momento, consideraram o povo como exótico. Depois passaram a admirá-lo e até chegaram a imitá-lo. Porém, essa valorização do povo pelos intelectuais tinha motivos políticos, intelectuais e estéticos. Segundo Tomazi (2000), esse movimento representava a revolta contra a “arte”, sendo esta considerada como artificial. Desta forma, o que o povo elaborava era valorizado como o que era simples e natural, como os velhos poemas. Além disso, foi um movimento contra o Iluminismo, já que o mesmo não era apreciado em países como a Alemanha e a Espanha, pois o mesmo se originara na França e, desta forma, representava o predomínio da cultura estrangeira. Assim, a busca pela cultura popular significava oposição à dominação estrangeira, e fundamentação ao nacionalismo. É por isso que a cultura popular vai ser descoberta pelos intelectuais europeus “primeiramente na Alemanha, na Polônia, em Portugal, na Espanha, na Sérvia, que tinham problemas com relação à sua construção nacional (...)”. (TOMAZI, 2000, p. 192). Sendo assim, pode-se inferir que, de certo modo, foram os intelectuais que, ao pesquisar e coletar as canções, poemas e estórias populares, inventaram entre o próprio povo a ideia de “nação”. Além deste fator, as pesquisas também objetivavam resgatar a memória, pois, em 1800, falavam que as canções folclóricas estavam ficando esquecidas, pois o crescimento das cidades e o aumento da alfabetização acabavam com a cultura popular tradicional, segundo Tomazi (2000). Por isso, os pesquisadores de tradições populares faziam a coleta de antiguidades populares. Porém, esse produto era direcionado a um público constituído de pessoas que sabiam ler, escrever, conhecedoras da música erudita, sendo assim, possuíam uma visão de mundo muito diferente dos produtores, o povo. Desta forma, muitas vezes os intelectuais adaptavam o produto do povo para a linguagem e valores do público a que se direcionava. Harmonizavam as composições, modificavam as linhas melódicas que achassem desafinadas (ou seja, fora do padrão musical dominante) e substituíam as letras que julgassem inadequadas ou grosseiras. Ao transcreverem estórias e poemas para a língua nacional, também as transformavam, quer seja em termos de forma (a estrutura da métrica, do ritmo, da rima), quer em termos de conteúdo (colocavam finais moralizantes, mudavam as características de personagens, etc.). (TOMAZI, 2000, p. 193) Porém, Tomazi (2000) nos lembra que só foi possível saber da existência desse material a partir desses registros, que os pesquisadores ligados à cultura erudita realizaram. Mas, também, isso demonstra o grau 110 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA de interferência, com a mudança da linguagem, valores do popular para o público erudito. O autor ainda nos lembra que a grande maioria das canções e estórias brasileiras tradicionais foram produzidas pela escrita literária e musical de nosso país. Muito pouco foi passada oralmente, pela herança familiar. Conforme foi colocado até agora, as duas culturas se desenvolvem com a oposição entre o que é erudito e o que é popular, sendo que é transferida para a dimensão da cultura a oposição existente no modo de produção capitalista, os diferentes interesses das classes sociais. Segundo Santos (2006), a existência de classes dominadas demonstra a existência das desigualdades sociais e a obrigação de superá-las, por isso a cultura popular pode ser vista com um conteúdo transformador. Como também a cultura erudita compreendida como a elaborada pelas classes dominantes reflete a sua expansão colonizadora. Desta forma, segundo Santos (2006), a expansão do conhecimento a partir das escolas e do atendimento médico a partir dos postos de saúde pode ser entendida como controle social, mantendo as desigualdades básicas da sociedade, sempre em benefício dos que dominam a estrutura econômica e política de nossa sociedade. Perceba o quanto essa oposição entre cultura popular e cultura erudita nos levar a conclusões complicadas. Na verdade, a oposição não existe. Porque aquilo que antes era restrito a determinadas classes agora é domínio de uma grande maioria. Por exemplo, o domínio da escrita e da leitura, que antigamente era um saber de domínio das classes dominantes, tende cada vez mais a se generalizar, deixando de ser restrito e não podendo mais ser classificado como erudito. Não só o conhecimento da escrita como da leitura, mas também isso pode ser expresso a partir da formação das classes trabalhadoras em universidades. Essas classes agora estão obtendo nível universitário e pessoas pertencentes a esta classe estão se tornando professores, advogados, engenheiros etc., antes privilégios apenas de pequenas elites. Isso demonstra como é errôneo polarizar a cultura entre popular e erudito. Na verdade, essa oposição denuncia a associação ao processo político, no qual as ideologias são produzidas para manutenção do modo de produção capitalista, mantendo a desigualdade entre as classes sociais. Desta forma, Santos (2006) demonstra que as classes dominantes existem em relação com as classes dominadas e assim partilham de um único processo social e comum, do qual possuem o controle. Assim, toda a produção cultural é resultado dessa existência comum, da história coletiva, por mais que seus benefícios e controle sejam desiguais. Vejamos o futebol. Vamos analisá-lo? Pense! Tanto o futebol quanto o carnaval fazem parte do processo histórico da sociedade brasileira como um todo (SANTOS, 2006). Fazem parte da vida urbana, estão expressos nos centros políticos e econômicos tanto em nível nacional quanto internacional. Tanto um quanto o outro mudaram conjuntamente com o país, deixando de ser exclusivamente parte de uma população tanto na prática quanto na organização. Se a origem fosse tão determinante, teríamos que considerar o futebol como erudito, já que o mesmo é de origem inglesa e foi introduzido no Brasil pela elite no começo do século XX. Além disso, o mesmo não se generalizaria como o fez, tornando-se popular. 111 Unidade II Fique atento, pois o modo que pensamos a cultura de uma sociedade está unido a outras preocupações e às relações sociais, econômicas e políticas. Pense sempre a cultura em todos os processos sociais que fazem parte de toda a sociedade. A cultura é produto da sociedade. Porém, a mesma é quem ajuda a produzir a própria forma de organizar a vida, a maneira de pensar e sentir dos seres que vivem em sociedade. Por isso, segundo Santos (2006), a cultura não pode ser entendida como uma representação de outras esferas da sociedade, já que a dimensão cultural pode prever e propor mudanças nas situações de existência da sociedade. A cultura é dinâmica e criativa. 7.2 Cultura popular ou folclore? Muitos confundem cultura popular com folclore, conceitualmente falando. Existem pesquisadores que usam o termo cultura popular no lugar do termo folclore e outros que acham que não há distinção entre os termos. Mas, segundo Tomazi (2000), o antropólogo Antonio Arantes deixa claro que os dois termos servem para as mesmas realidades. Porém, o folclore tem um sentido mais conservador, enquanto a cultura popular é mais progressista. Já para Carlos Brandão, o conceito de folclore foi se ampliando, durante a história, e acabou por se associar à maneira do povo viver. Incorporando as festas, os ritos e, também, o cotidiano e seus produtos: “a comida, a casa, a vestimenta, os artefatos de trabalho. E, nesse sentido, os dois termos – cultura popular e folclore – querem dizer a mesma coisa.” (TOMAZI, 2000, p. 194). O importante é entendermos que nenhum autor considera a cultura popular (ou folclore) como algo estático, parado. Pelo contrário, é consenso que a cultura popular incorpora novos elementos e acaba por sofrer mudanças. Carlos Brandão (apud TOMAZI, 2000, p. 194) demonstra isso a partir da Folia de Santos Reis, quanto à máscara de um dos participantes dessa expressão cultural: “Quando é difícil fazer de palha, nós faz de plástico”. Vejam que a cultura popular ou o folclore, para continuar a existir, se utiliza de elementos da vida urbana. Assim sendo, Tomazi (2000, p. 194) explica que “a transformação dos eventos culturais em espetáculo ou a distribuição dos produtos culturais no mercado acaba servindo muitas vezes para a manutenção da prática cultural e para a projeção social de seus produtores (...)”. Figura 18 – Folia de Santo Reis em Brasília 112 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Segundo Tomazi (2000), a Folia de Santos Reis, assim como o Carnaval, tem sua origem nos antigos rituais da Idade Média na Europa, que acabaram por se tornar festa popular brasileira. Muitos acreditam que o Carnaval deixou de ser popular e hoje se tornou uma festa puramente turística. Porém, é preciso pensar o tema com maior atenção. Na atual sociedade em que vivemos, esse evento, o Carnaval, necessitou de toda uma nova estrutura de apoio que antes não era necessária. Isso demonstra que não há tradição pura e imutável. Por isso, a cultura popular não deve ser entendida separada da sociedade moderna. Como bem mostra Tomazi (2000, p. 195): Para preparar o carnaval, as escolas de samba do Rio de Janeiro e de outros centros urbanos organizam eventos sociais e culturais durante o ano inteiro, além de funcionarem como uma espécie de unidade produtiva importante, para permitir a própria organização do desfile. Organizando-se assim, elas acabam agindo como elemento congregador da comunidade local. O mesmo sucede com muitos blocos de carnaval da Bahia, que inclusive recebem apoio de organizações não governamentais, as ONGs, nacionais e estrangeiras, que lhes dão apoio principalmente para a manutenção de seus programas sociais e culturais. Além da Folia de Reis e do Carnaval, quando falamos em cultura popular brasileira, pensamos logo nas festas como a de São João, Bumba-Meu-Boi; personagens como a Mãe-d’Água, Saci-Pererê; as religiões afro-brasileiras; as músicas como samba, xaxado, forró, sertanejo, maxixe; literatura de cordel, adivinhas e os ditados populares; artesanato como “carrancas” de madeira, rendas e colchas de retalho realizadas por mulheres rendeiras; a comida típica como a feijoada, o tutu de feijão, vatapá, acarajé, e os doces como quindim, cocada e o brigadeiro. (TOMAZI, 2000). Observação Será que tudo isso ou apenas isso pode ser considerado como cultura popular brasileira? O que você pensa a respeito? Precisamos entender as relações que todos esses elementos têm com a sociedade na qual são realizados. “Para se compreender a cultura popular, deve-se perguntar por que e por quem ela é produzida, e por que, como, quando e por quem é consumida.” (TOMAZI, 2000, p. 196). Já que toda a criação cultural está intimamente ligada à produção material da sociedade, inspirando-a e sendo inspirada por ela. Isso pode ser demonstrado pela análise de Sylvia Gemignani Garcia (2001), em seu artigo “Folclore e sociologia em Florestan Fernandes”, no qual demonstra o pensar desse importante intelectual que analisa a função do folclore. Segundo Florestan Fernandes, a função dos folguedos é o de levar a criança a adquirir os padrões de comportamento e valores culturais da sua comunidade, conforme você pode ver na citação abaixo (GARCIA, 2001, p. 149-150): 113 Unidade II Florestan busca demonstrar o duplo caráter do grupo infantil: grupo de iniciação e de antecipação da vida adulta do indivíduo. Nele, a criança aprende, na medida em que participa dos folguedos, os valores positivos e negativos básicos da sociedade, relativos ao amor: romântico, ao namoro, ao casamento, à família, à fidelidade, ao incesto, conformando o indivíduo ainda imaturo aos valores e padrões de conduta da cultura tradicional em que se insere. A socialização no grupo infantil não se restringe ao aprendizado de relações específicas entre membros da comunidade, mas abarca também o aprendizado de regras sociais e de comportamento em uma situação privilegiada, já que a criança obedece espontaneamente às regras de funcionamento do grupo. O grupo infantil fornece, assim, elementos de base para a formação de personalidades ajustadas às formas que tomam as relações sociais em certa tradição cultural. É a opinião pública tradicional que fala nos folguedos, ensinando ludicamente às crianças como se vive em certa sociedade, o que se deve fazer, como se deve fazer e o que é proibido e castigado. Desse modo, revela-se a função que o grupo infantil exerce para a continuidade cultural. Ainda que de modo sucinto, Florestan aponta para a problematização desse aspecto da cultura infantil. Considerando que os padrões de comportamento que a criança adquire na infância podem orientar sua conduta de indivíduo adulto e que o grupo incorpora antigos elementos transferidos da cultura adulta do passado para a cultura lúdica do presente (...). A descrição detalhada das duas análises demonstra claramente a perspectiva generalizante a partir da qual Florestan aborda o folclore infantil, buscando identificar as funções que ele desempenha para a manutenção de uma certa identidade coletiva, atuando diretamente na socialização dos indivíduos desde a infância. A ideia da sociedade como totalidade coloca, desde o início, o problema da socialização do indivíduo, ou seja, os modos pelos quais os indivíduos são conformados pelo sistema sociocultural em que se inserem. (...). O enfoque sociológico não está apenas na representação do social como uma totalidade, mas também no desenvolvimento da análise do folclore a partir do estudo do grupo social que o pratica. Pela investigação do grupo e dos usos que faz do folclore, Florestan aborda-o como ”cultura infantil”, isto é, como um sistema parcial de um sistema sociocultural mais geral ao qual o primeiro vincula-se e em relação ao qual se define sua função, isto é, os resultados úteis que produz para a satisfação de necessidades gerais da estrutura social. 114 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Figura 19 – Apresentação de maracatu (Nazaré da Mata-PE) Perceba que, nos movimentos culturais apresentados, dos mais antigos aos mais modernos, referimo-nos à verdadeira definição do popular e do erudito. Assim, se popular fosse apenas o que é tradição e, portanto, algo que deve ser conservado, segundo Tomazi (2000), não poderíamos introduzir guitarras elétricas no que chamamos de música popular brasileira. Da mesma forma, se classificássemos o erudito como aquilo que chamamos de “belas-artes”, como a música, a dança e o teatro clássico, não poderíamos introduzir na linguagem plástica, escrita e musical imagens, canções e poemas advindos do folclore. Na realidade, nada disso ocorre. Em uma sociedade com o modo de produção capitalista, não é possível ignorar as relações estabelecidas entre a cultura erudita e a cultura popular, sua importância para a manutenção da própria sociedade. Todos os elementos mencionados como as festas, culinária, literatura, religião etc., demonstram em si a organização político-econômico-cultural do país, seus valores e suas contradições. “Apesar de estarem associados imediatamente a uma certa visão do povo e da cultura popular brasileira, de elite e da cultura erudita, esses elementos não são necessariamente harmoniosos nem estão parados no tempo” (TOMAZI, 2000, p. 201). Tomemos como exemplo a feijoada: uma comida produzida pelos escravos, que passou a ser símbolo da comida brasileira, sendo prato tanto de restaurante simples como dos mais requintados. Isso demonstra a dinâmica da cultura, e a indústria cultural é um elemento-chave para compreendermos essas questões. 8 INDÚSTRIA CULTURAL Podemos falar em indústria cultural, segundo Tomazi (2000), a partir do século XVIII. O fato histórico que marca esse século é a multiplicação dos jornais na Europa, já que, até a Idade Média, a leitura e a escrita eram privilégios do clero e de parte da nobreza. Isso muda com o capitalismo, pois o novo modelo socioeconômico trouxe como características a urbanização, industrialização e o aumento do mercado consumidor. Desta forma, as cidades se tornam polos de importância econômica, social e cultural. Por isso, a população deixa o campo rumo à cidade para trabalhar nas fábricas. Com a introdução das máquinas na produção de mercadoria, tem-se o barateamento dos produtos e, com isso, o aumento do mercado consumidor. Assim, a burguesia tanto comercial quanto industrial se constitui como classe 115 Unidade II hegemônica e as classes médias aumentam, sendo esse novo público conquistado pelo mercado e pelos bens culturais. Observação “Em primeira instância, hegemonia significa simplesmente liderança, derivada diretamente de seu sentido etimológico. O termo ganhou um segundo significado, mais preciso, desenvolvido por Gramsci para designar um tipo particular de dominação. Nessa acepção hegemonia é dominação consentida, especialmente de uma classe social ou nação sobre seus pares. Na sociedade capitalista, a burguesia detém a hegemonia mediante a produção de uma ideologia que apresenta a ordem social vigente, e sua forma de governo em particular, a democracia, como se não perfeita, a melhor organização social possível. Quanto mais difundida a ideologia, tanto mais sólida a hegemonia e tanto menos necessidade do uso de violência explícita”. (USP – STILLO, 1998) Assim, os jornais, como produto cultural, assumem grande importância, já que, com o barateamento do papel, há o aumento dos leitores, e esse produto divulga notícias e os folhetins (estórias publicadas em nota de rodapé das páginas, que, para saber a continuação, o leitor precisa comprar o próximo exemplar, como nas novelas atuais). Assim, os veículos de comunicação serão chamados de indústria cultural. Temos autores que defendem a cultura de massa ou indústria cultural e temos autores que a criticam. Indústria cultural é um termo criado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, em 1947. Estes pensadores pertenciam a um grupo chamado Escola de Frankfurt. Eles concluíram que essa indústria elaborava produtos culturais apenas para o consumo. “Conforme Adorno, a indústria cultural vende mercadorias, mas, mais do que isso, vende imagens do mundo e faz propaganda desse mundo tal como é, para que assim permaneça”. (TOMAZI, 2000, p. 206) Assim, os meios tornaram possível levar até o povo as obras de arte como os discos, as reproduções dos quadros, a música clássica em filmes de cinema etc. Mas isso não significou a democratização da arte, pois não chegou a esse público o conhecimento sobre essas, levando-as à banalidade e o consumidor a ser passivo. Assim, o único objetivo da indústria cultural é a alienação dos homens. Observação Alienação, aqui, tem um sentido negativo, no qual o homem, em vez de se realizar, se escraviza. 116 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA As sociedades urbanas industriais são chamadas de sociedades de massa, porque nessas, as instituições dominantes providenciam e criam as necessidades das populações, da mesma forma que criam maneiras para controlá-las, fazendo-as produzir, consumir e se conformar com a sua vida, com o seu futuro. Para que essa sociedade possa permanecer e atingir seus objetivos, fazem-se necessários mecanismos adequados, que tenham capacidade de levar mensagens com enorme rapidez para esse grande número de pessoas, transmitindo uma cultura capaz de homogeneizar a visão de mundo e a vida das populações tão diferentes que formam a nossa sociedade, capaz de atravessar fronteiras de classe social e promovendo, por causa disso, o controle das massas. Segundo Santos (2006), os mecanismos seriam principalmente o rádio, a televisão, a imprensa e o cinema. Eu incluiria aí também a internet. Essa cultura de massa, que tende a buscar a homogeneização, que quer nivelar, tem como núcleo de sua produção um setor específico, chamada de indústria cultural. A cultura de massa ou a indústria cultural, mais conhecida por meios de comunicação de massa, é um elemento extremamente importante nas sociedades modernas. Figura 20 – O cidadão e os meios de comunicação Segundo Santos (2006), o ritmo de produção e consumo nas sociedades do modo de produção capitalista é acompanhado de uma comunicação rápida e generalizada. Além do fato desta comunicação fazer parte da vida econômica, já que há investimento de capital, contratação de mão de obra especializada, criadora de novas técnicas, uma empresa, enfim, que produz bens e serviços. Ainda assim, os veículos de comunicação são parte fundamental da nossa organização social e estão associados à prática do poder e à hierarquização da vida coletiva. Por isso fazem parte do cenário moderno. Na visão de Adorno (apud TOMAZI, 2000), a indústria cultural, com seus anúncios, seduz as massas para consumir as mercadorias culturais, com o objetivo de fazê-las esquecer a exploração que sofrem no processo de produção. Levando a massa à imobilização. 117 Unidade II Ao contrário da Escola de Frankfurt, há o teórico Marshall McLuhan, que defende os meios de comunicação, nos anos 1960, afirmando que a televisão é a forma de aproximar os homens, diminuindo a distância territorial e social entre os seres humanos, levando à democracia. Segundo o pensador Umberto Eco (apud TOMAZI, 2000) as duas concepções estão equivocadas, pois não podemos considerar a cultura de massa apenas ruim pelo seu caráter industrial, já que a sociedade em que vivemos é industrial. E nem considerá-la boa, pois não podemos esquecer que a cultura de massa é produzida por aqueles que têm poder econômico, que buscam lucro e que, por meio das ideologias, busca manter a estrutura social segundo seus interesses. Eles penetram em todas as esferas da vida social, no meio urbano ou rural, na vida profissional, nas atividades religiosas, no lazer, na educação, na participação política. Tais meios de comunicação não só transmitem informações, não só apregoam mensagens. Eles também difundem maneiras de se comportar, propõem estilos de vida, modos de organizar a vida cotidiana, de arrumar a cãs, de se vestir, maneira de falar e de escrever, de sonhar, de sofrer, de pensar, de lutar, de amar. (SANTOS, 2006) Na época em que Darcy Ribeiro (1995) escreveu O povo brasileiro, o panorama estava piorando, pois as instituições tradicionais estavam ficando sem poder, como por exemplo, a escola, a Igreja e os partidos. O sistema de comunicação de massa, a televisão e o rádio principalmente, estavam deixando tudo pior, já que reproduziam padrões de consumo que além do alcance da grande parcela da população, gerando desejos inalcançáveis, aumentando a marginalidade desse povo e sua tendência à violência. Os meios de comunicação se preocupam apenas em vender produtos, não com os problemas morais que desencadeiam. São meios que transmitem mensagens e informações, agem poderosamente, principalmente porque não há controle do conteúdo que é transmitido. Até parece que a mensagem é dirigida a um indivíduo, porém suas mensagens são para todos, procurando criar necessidades e expectativas nas massas. Segundo Santos (2006), a lógica de funcionamento da indústria cultural está na tentativa de deixar a massa igual, isso é, acalmar os conflitos sociais. Porém, a cultura na sociedade contemporânea não é resultado apenas do conteúdo dos meios de comunicação de massa, e muito menos a lógica do funcionamento da indústria cultural é obrigatoriamente uma descrição da cultura de uma sociedade. Walter Benjamin, pensador ligado à Escola de Frankfurt, teve concepção diferente: para ele, a revolução tecnológica do final de século XIX e início do XX alterou o papel da arte e da cultura (TOMAZI, 2000), sendo que os meios de comunicação de massa trouxeram novas mudanças de visão ao público consumidor, podendo a gerar mobilização como contestação política. Isso porque temos que considerar que as populações a quem são dirigidas essas mensagens também passam por problemas sociais concretos e tensões que fazem parte de sua vida diária e, por mais que esses meios tentem dar-lhes explicação e solução para esses problemas, não são capazes de massificar a ponto de substituir completamente a percepção dos consumidores. Assim, a sociedade continua diferenciada e a sua história marcada por conflitos de classe. 118 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Hoje, com os avanços tecnológicos, temos o computador, a internet, que nos permitem o armazenamento e divulgação de ideias, dão acesso a conteúdos de museus e bibliotecas, catálogos de imagens, dicionários, enciclopédias etc., facilitando o acesso aos bens culturais e o intercâmbio cultural, científico e político entre nações. As vantagens que a informática gera são benéficas para empresas, partidos, organizações não governamentais, estudantes, empresários etc. Enfim, para todos que têm condições econômicas e conhecimento para utilizar esse veículo, que é um meio mais interativo que a televisão e o rádio, já que em um computador conectado à internet os sites e programas levam o sujeito a se comunicar em tempo real com outros indivíduos do mundo por meio de teleconferências, seções de bate-papo (ou chat rooms). Porém, por mais que esse novo meio reforce a possibilidade de intercâmbio cultural, não devemos deixar de discutir sobre o uso que se deve dar a esse recurso. A cultura é uma dimensão do processo social e devemos utilizá-la como instrumento para entender as sociedades contemporâneas. O que não devemos fazer é debater sobre cultura ignorando as relações de poder que há na e entre as sociedades. Resumo A questão das nossas origens e a formação da sociedade brasileira foram analisadas no século XX por pesquisadores que contribuíram para criação da história nacional. Os trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro levaram à redescoberta de nossa sociedade a partir da cultura, de nossas raízes e tradições. Gilberto Freyre, em seu livro Casa-grande e senzala, busca a formação do povo brasileiro, a partir do hibridismo das três raças, isto é, da mistura entre o negro, o índio e o português. Essa mistura, para Freyre, é algo positivo, já que a miscigenação foi necessária para o desenvolvimento de nossa sociedade. Com essa forma de análise sobre a mestiçagem da população brasileira, acaba por negar as teorias existentes. Para Freyre, as características do povo português e o fato dos mesmos serem mestiços ajudaram em sua adaptação com as demais raças, levando os portugueses a estarem mais aptos para a colonização do Brasil. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda busca interpretar o país, destacando as suas características, os aspectos culturais resultados do processo de mestiçagem, bem como o caráter pacífico desta identidade do brasileiro e a particularidade das relações. 119 Unidade II O autor rompe com as visões anteriores que viam o Brasil e o povo brasileiro a partir de referências evolucionistas, deterministas e racistas, inovando sua análise a partir da necessidade de uma compreensão histórica, buscando saber do brasileiro presente a partir de suas raízes históricas. Sérgio Buarque de Holanda vê a miscigenação como um ponto positivo, já que auxiliou o português a se adaptar ao Brasil. O português é caracterizado a partir de um espírito aventureiro, em busca da acumulação de riquezas. Desta forma, o duro trabalho manual não era para ser desenvolvido por eles, mas pelos escravos. Assim sendo, os valores da personalidade dos portugueses criaram obstáculos para a organização da sociedade brasileira, pois sua população acabou por aprender esses valores e, a partir daí, tiveram como base, nas relações comerciais e políticas, os laços pessoais. A partir desses valores, teremos a formação da política do Estado segundo as necessidades das famílias de senhores, proprietários de terra – uma elite autoritária na cultura e na política, impondo suas vontades aos menos favorecidos economicamente. Desta forma, impediu-se o desenvolvimento de uma sociedade democrática. Darcy Ribeiro, além de antropólogo, dedicou-se à política, e buscou, a partir de sua análise em O povo brasileiro, descobrir: por que o Brasil não dá certo? A partir da análise das etnias que resultaram no brasileiro – o português, o índio e o africano –, busca detectar o comportamento e a identidade do nosso povo, demonstrando as visões conflitantes existentes entre a cultura do europeu, que somente se interessava pelo lucro; do índio, que era puro e feliz em sua vida; e do africano, que foi desterrado de sua cultura e de seu país. No momento da colonização, há um verdadeiro genocídio, devido, em grande parte, à falta de imunidade dos índios em relação às doenças trazidas pelos portugueses, além da destruição da cultura dos mesmos em função da religião católica. A miscigenação ocorrida entre as três etnias leva à criação de diferentes mestiços, dos brasileiros, gente forte e corajosa, que consegue conciliar suas diferenças. O autor conclui afirmando que as ganâncias de poucos acabam por sacrificar o bem do povo, desnaturalizando a pobreza e demonstrando a realidade da miséria do povo brasileiro. 120 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Também nesta unidade apresentamos a cultura brasileira e a formação de suas diversas categorias, como cultura popular, cultura erudita e cultura de massa ou indústria cultural. Em um primeiro momento, somos levados a entender que cultura popular é aquela que é produzida pelas classes dominadas e cultura erudita é a produzida pelas classes dominantes. Em um segundo momento, percebemos que, na realidade, não cabe mais compreender a cultura por quem a produz, pois a cultura é uma parte da dimensão social. Assim, ao vivermos em uma sociedade com conflitos de classes, há, dentro da forma como são colocados esses conceitos, relações de poder que são transmitidas pelas mesmas. Por isso, um pesquisador precisa deter as várias linhas de pesquisa para escolher a qual melhor se encaixa ao seu pensar. A indústria cultural, como indústria que produz bens culturais, como a televisão, o cinema, o jornal e a internet, eles não só vendem produtos culturais, como vendem ideais, valores, hábitos, costumes e, de maneira geral, trabalham com o imaginário, podendo transmitir conteúdo que podem levar à alienação, assim como à superação desta alienação. Exercícios Questão 1 - Leia a notícia abaixo: NORUEGA: RETRATO DE UM ASSASSINO Fundamentalista cristão e conservador, o assassino mais sanguinário da Noruega apresenta-se como um cruzado. Anders Behring Breivik é um norueguês de 32 anos. Filho de uma enfermeira e de um diplomata, que se divorciaram quando ele tinha 1 ano. Afirma ter tido uma infância normal e uma educação privilegiada. No dia do massacre, este diplomado em economia e ciências políticas, colocou na internet um manifesto de 1500 páginas no qual desenvolve uma critica do Islão, do multiculturalismo e do marxismo. Disponível em: http://pt.euronews.net/2011/07/25/noruega-retrato-de-umassassino. Acesso em 01 de agosto de 2011. 121 Unidade II Agora leia este trecho da entrevista concedida a Luiz Armando Gandin, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Alvaro Moreira Hypolito, da Universidade de Pelotas, publicada na Revista Currículo sem Fronteiras, pelo professor Boaventura de Souza Santos, catedrático de Sociologia da Universidade de Coimbra (Portugal) e professor visitante da Universidade de Wisconsin, Madison (Estados Unidos), e veja o que ele afirma sobre o multiculturalismo: (...) nós temos que convir que nós hoje vivemos uma época de discussões sobre o multiculturalismo porque durante muito tempo vivemos sob o domínio exclusivo do monoculturalismo. Não que não houvesse multiculturalismo; ele existia, simplesmente não era reconhecido como tal e, portanto, o multiculturalismo assentou-se fundamentalmente numa grande supressão de culturas alternativas que sempre existiram sob a cultura dominante. Sob esta cultura elas foram progredindo, elas foram sobrevivendo, apesar de marginalizadas, apesar de por vezes suprimidas. Mas, de todo modo, elas nunca foram completamente abolidas e, em certos momentos, elas foram obviamente aparecendo. (...) o multiculturalismo progressista é o multiculturalismo que procura por numa equação, sem dúvida politicamente, cientificamente, intelectualmente e culturalmente complexa, mas a única que, ao meu entender, merece a pena ser um objeto de luta, esta tensão entre uma política de igualdade e uma política de diferença. Uma política que assenta em dois objetivos, que não devem colidir um com o outro, os objetivos da redistribuição social-econômica e do reconhecimento de diferença cultural. Claro que isto levanta uma série de problemas porque é mais fácil dizer, do que realizar, por um lado. E, por outro lado, porque pode vir a assumir uma ideia de homogeneidade das culturas que estão em presença. É fundamental que o multuculturalismo emancipatório, ao contrário, parta do pressuposto que as culturas são todas elas diferenciadas internamente e, portanto, é tão importante reconhecer as culturas uma entre as outras, como reconhecer a diversidade dentro de cada cultura e permitir que dentro da cultura haja resistência, haja diferença (GANDIN & HYPOLITO, 2003, p. 5-23). Agora, leia as alternativas abaixo: I – Os atentados ocorridos na Noruega foram justificados pelo autor como uma reação ao multiculturalismo, ao islamismo e ao marxismo. O multiculturalismo, nesse sentido, é colocado como negativo, não como um convívio de diferentes culturas, mas como ameaça à supremacia de uma cultura que é dominante e deve continuar como tal. II – O multiculturalismo proposto por Boaventura de Souza Santos é emancipatório porque propõe a convivência de culturas diferentes, sem supremacia de uma em relação à outra e, em especial, porque 122 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA reconhece que, em uma mesma cultura, podem existir formas diferentes de manifestação, o que não invalida os valores e práticas adotados por ela. O direito à diferença não se aplica apenas entre culturas, mas também no interior de uma mesma cultura. III – Os atentados ocorridos na Noruega não servem como ponto de partida para uma análise crítica e cultural porque foram atos isolados de uma pessoa que deve ter problemas de saúde mental. Somente quando realizados por grupos organizados os eventos têm significado social e político. IV – O autor dos atentados ocorridos na Noruega segue uma linha de pensamento que pode ser encontrada em muitos lugares em todo o mundo e que condena, em princípio, a mistura de raças e religiões. Os adeptos dessa linha de pensamento são, quase sempre, de origem oriental. V – A diversidade das culturas pode ser um risco para toda a humanidade, porque cada uma delas fica ameaçada de perder sua pureza e autenticidade. Levando em conta os textos apresentados e as alternativas, assinale a que for correta: a) I e V. b) I e II. c) III e IV. d) I e III. e) III e V. Resposta correta: Alternativa B. Análise das alternativas: a) Alternativa incorreta. Justificativa: A afirmação I está correta, porque o uso da expressão multiculturalismo no depoimento do autor dos atentados da Noruega, segundo noticiado pela imprensa, foi negativo. Ele afirma que a convivência entre culturas diferentes pode ser ruim, porque significaria a perda da hegemonia da cultura europeia em relação às outras. Multiculturalismo não tem esse sentido negativo, como afirma Boaventura de Souza Santos. Ao contrário, representa a possibilidade de culturas diferentes interagirem e aprenderem umas com as outras. A afirmação V está incorreta porque a interação entre culturas não significa nenhum risco para a humanidade. Ao contrário, significa a possibilidade de as diferentes culturas e os diferentes povos ampliarem suas possibilidades de compreensão e entendimento. b) Alternativa correta. Justificativa: A afirmativa I está correta, conforme explicado acima. E a afirmativa II está correta porque o que Boaventura de Souza Santos propõe com o termo “emancipatória” é exatamente a 123 Unidade II convivência entre diferentes culturas, com cada uma delas conhecendo os aspectos fundamentais da outra, sem que haja entre elas um traço de supremacia ou preponderância. É emancipatório porque permite a todas as manifestações culturais que ocorram livremente, respeitadas as diferenças entre elas, bem como as diferenças ocorridas no âmbito de uma mesma cultura. c) Alternativa incorreta. Justificativa: A afirmativa III está incorreta porque os atos praticados na Noruega não são atos isolados. Ao contrário, com frequência têm ocorrido atos de violência praticados contra pessoas que possuem práticas ou valores diferentes da maioria das sociedades. Essas agressões nem sempre são feitas por grupos organizados, mas por indivíduos que são aparentemente normais em seu convívio social e que, no entanto, se sentem agredidos por práticas diferentes das suas e, como reação, agem de forma agressiva. No Brasil, por exemplo, têm sido frequentes as agressões contra homossexuais ou tratamento preconceituoso contra adeptos de rap ou de outras formas de manifestação cultural. A afirmativa IV está incorreta porque as pessoas de origem oriental não podem ser associadas a práticas de intolerância racial ou cultural. d) Alternativa incorreta. Justificativa: A afirmativa I está correta e a III está incorreta, conforme já esclarecido acima. e) Alternativa incorreta. Justificativa: As afirmativas III e V estão incorretas, conforme já esclarecido acima. Questão 2 – Leia os artigos abaixo: Polêmica Sobre Infanticídio Indígena Mistura Leis, Valores Culturais e Saúde Pública Do UOL Notícias Em São Paulo O infanticídio entre indígenas é um tema que já gerou documentários, projetos de leis e muita polêmica em torno de saúde pública, cultura, religião e legislação. Ainda utilizado por volta de 20 etnias entre as mais de 200 do Brasil, esse princípio tribal leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo. Sobrevivência de Bebê Índia com Deficiência Opõe Funai e Justiça A quantidade de índios mortos por infanticídio no país é uma incógnita. Nos dados da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) sobre mortalidade infantil indígena, esse número aparece somado a óbitos causados por “lesões, 124 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA envenenamento e outras consequências de causas externas”. Esse grupo responde por 0,4% do total das mortes de menores de um ano de idade, segundo os últimos dados disponíveis da Funasa, de 2006. Tramitando no Congresso, a Lei Muwaji (em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar sua filha com paralisia cerebral) estabelece que “qualquer pessoa” que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis meses de detenção ou multa. Esse projeto se inspirou no caso da indígena Muwaji Suruwahá que lutou pela sobrevivência de sua filha Iganani, que tem paralisia cerebral – por isso, estava condenada à morte por envenenamento em sua própria comunidade. O caso alcançou repercussão nacional em outubro de 2005. A proposta é polêmica entre índios e não índios. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão. O antropólogo Mércio Pereira Gomes, que foi presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) nos quatro primeiros anos do governo Lula, admitiu que sofreu “um dilema muito grande” no órgão diante da questão do infanticídio. Como cidadão, é contrário à prática, mas como antropólogo e presidente do órgão, discorda de uma política intervencionista – segundo ele, há de cinco a dez mortes por infanticídio no Brasil por ano. Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e tribais “deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”. Antes disso, em 1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que reconhece “que toda criança tem o direito inerente à vida” e que os signatários devem adotar “todas as medidas eficazes e adequadas” para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança. O infanticídio voltou a criar polêmica com o lançamento do filme “Hakani”, dirigido por David Cunningham, filho do fundador de uma organização missionária norte-americana. A ONG Survival International, sediada em Londres, divulgou no começo do ano uma nota em que acusa os autores 125 Unidade II do controverso filme de incitar o ódio racial contra os índios brasileiros. A produção mostra cena protagonizada por supostos sobreviventes e parentes encenando pais enterrando viva uma criança deficiente. Outra ONG que atua na área é a Atini, sediada em Brasília, atua na defesa do direito das crianças indígenas. Formada por líderes indígenas, antropólogos, lingüistas, advogados, religiosos, políticos e educadores, a organização trabalha para erradicar o infanticídio nas comunidades indígenas, promovendo a conscientização. Disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2009/04/16/ult5772u3629. jhtm. Acesso em: 19 ago. 2011. APROVADA A LEI CONTRA O INFANTICÍDIO INDÍGENA Figura 21 – Criança indígena Foi aprovada hoje na Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados o projeto de lei 1057, de autoria do Deputado Henrique Afonso (PV – Acre). A proposta visa proteger as crianças indígenas em situação de risco por terem nascido com deficiência física ou mental, por serem gêmeas, filhas de mãe solteira ou por outras razões determinadas pela tradição de 126 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA cada povo indígena. Em algumas etnias essas crianças ainda correm risco de serem rejeitadas, abandonadas na mata ou mortas por membros da própria família, devido a pressão interna. Em algumas destas comunidades há relatos de mais de 200 crianças mortas nessas condições. O projeto de lei é conhecido como LEI MUWAJI, em homenagem a Muwaji, uma mulher da etnia suruwahá que decidiu abandonar seu povo para poder manter viva sua filha que sofre de paralisia cerebral. Hoje Muwaji vive na “Casa das Nações”, uma comunidade indígena multicultural mantida pela ATINI no Distrito Federal. O primeiro rascunho do texto da Lei Muwaji foi feito pelo líder indígena Eli Ticuna, que é também o diretor-adjunto da ATINI. Indígenas presentes no plenário de votação nesta manhã festejaram a aprovação e parabenizaram a Deputada Janete Pietá (PT – SP), relatora do projeto. O texto da Lei Muwaji que foi aprovado hoje prevê que o Estado deve desenvolver programas de conscientização e educação em direitos humanos nas comunidades indígenas, visando à proteção de crianças em risco por questões de origem cultural. Eli Ticuna comemorou: “– Realmente é uma grande vitória para o bem de nossos pequeninos!” Disponível em: http://vozpelavida.blogspot.com/2011_06_01_archive.html #6033767883336570170. Acesso em: 29 ago. 2011. Tendo em vista ambos os artigos apresentados, assinale a alternativa correta: a) A cultura de um povo é fruto de construção histórica, social, política e econômica que ocorre ao longo de muitos anos e, por isso, não pode ser modificada por uma lei ou determinação de pessoas que não partilhem aquela mesma cultura. b) O Estado brasileiro se organiza a partir de leis que defendem a vida e a dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, não sendo possível aceitar qualquer restrição ou desrespeito a esses direitos, independentemente dos diversos valores culturais existentes na sociedade brasileira. c) Os povos indígenas existentes no território brasileiro têm direito de cultivar amplamente sua cultura e se manifestar a partir dos valores e sentidos que essa cultura expressa, razão pela qual o infanticídio praticado em algumas tribos deve ser entendido como normal e aceitável. d) As manifestações culturais de um povo estão sujeitas a modificações decorrentes das vivências históricas e, por isso, não se pode aceitar que essas modificações sejam realizadas por meio de leis, apenas pelo encaminhamento histórico que cada cultura tiver ao longo de sua existência. 127 Unidade II e) Os indígenas brasileiros não tem perfeito discernimento do que é certo e do que é errado e, por isso, precisam ser permanentemente tutelados pelos brancos para poderem atuar em consonância com a lei. Resolução na plataforma Considerações finais A Antropologia, como ciência que estuda o homem como ser social e cultural, em seu início, foi usada como meio para descobrir a cultura do outro, das tribos, para que os europeus utilizassem esse conhecimento para seu domínio e império. Com seu desenvolvimento, a partir das várias escolas, ela se tornou uma ciência que hoje luta pelo respeito à diversidade cultural, deixando de ser etnocentrista e passando a um papel relativista. Deixou de compreender o outro como primitivo e passou a buscar o significado de sua cultura, segundo o próprio povo que a produz. Os três autores brasileiros apresentados demonstraram como foi pensado pela Antropologia o surgimento do nosso povo e como acabamos produzindo nossa identidade cultural a partir da nossa origem: portuguesa, indígena e africana. Essas análises ajudam a compreender as relações entre cor, posição social e preconceito no Brasil, relações estas que há muito tempo fazem parte dos debates e pesquisas, principalmente entre a Sociologia e a Antropologia. Hoje é consenso que: “A democracia racial é possível, mas só é praticável conjuntamente com a democracia social. Ou há democracia para todos, ou não há democracia para ninguém, porque à opressão do negro condenado, à dignidade de lutador da liberdade, corresponde o opróbrio do branco posto no papel de opressor dentro da sua própria sociedade”. (RIBEIRO, 1995, p. 227) Assim, a ciência antropológica no Brasil teve, em seu desenvolvimento, o desafio de interpretar e compreender a sociedade em suas diferentes épocas e suas diversidades. Mesmo que possamos encontrar uma uniformidade cultural associada a esta unidade nacional, não devemos nos iludir, acreditando que isto se dará de forma espontânea e harmoniosa. Há, dentro da sociedade brasileira – e de sua cultura –, contradições dinâmicas que são de extrema importância para que possamos compreendê-la. Assim, temos um quadro de grande distanciamento social entre as classes dominantes e as classes subordinadas. Esta forma de estratificação social separa e opõe os brasileiros ricos e os brasileiros pobres, e todos eles aos brasileiros miseráveis, quadro social característico da nossa sociedade. É importantíssimo que nós, povo brasileiro, estejamos mais conscientes das responsabilidades políticas e sociais que cabem a todos na busca por uma sociedade mais preocupada com os problemas sociais que atingem nossa sociedade. Assim, poderemos nos empenhar cotidianamente para encontrar soluções sociais e políticas que levem a uma mudança da ordem social, não apenas à manutenção das 128 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA estruturas a partir do processo de inclusão dos excluídos, que na verdade não passa, ideologicamente, de falsas soluções importadas para a manutenção da estrutura existente. O Brasil necessita de reformas políticas e sociais que atinjam amplas esferas de sua estrutura social. Ao longo da história, há marcas da violência que nos servem como modelo do que não podemos fazer, para que nos tornemos mais conscientes do processo vivido, para que então possamos redirecioná-lo. A Antropologia, como ciência que estuda o homem e a sua cultura, busca compreender as várias formas de organização e de resolução de problemas relativos a cada contexto, valorizando a identidade de cada povo. Espero que você tenha conseguido compreender esse olhar antropológico que tão bem irá lhe servir como instrumento neste processo de reflexão crítica na produção de melhores condições sociais, de formas menos violentas e negligentes de atenção social e de maior valorização da cultura e da identidade do nosso povo brasileiro, deixando uma visão etnocêntrica e passando a uma visão relativista do homem e da sociedade. 129 Unidade II FIGURAS E ILUSTRAÇÕES Figura 1 DETROIT PUBLISHING CO. Spanish caravel Santa Maria. 1892. 1 fotografia. Disponível em: <http://goo. gl/2W92U>. Acesso em: 5 set. 2011. Figura 2 Índios sioux norte-americanos. Disponível em: <http://goo.gl/FfUK3>. Acesso em: 5 ago. 2011. Figura 3 Fazenda em Old Fields, West Virginia, EUA. Disponível em: <http://goo.gl/cQW3x>. Acesso em: 12 ago. 2011. Figura 4 PHOTOGRAPH SERIES. Darwin. 1 fotografia. Disponível em: <http://goo.gl/27Y4c>. Acesso em: 28 ago. 2011. Figura 5 TIZIANO, V. G. 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Porta da casa dos escravos, Ilha de Gorée, Senegal. 1 fotografia. Disponível em: <http:// www.defenseimagery.mil/>. Acesso em: 5 set. 2011. Figura 12 CASAL JR, M. Mulher índia tomando banho na lagoa Mawaiaka. Festa do Kuarup, na aldeia Kamayurá. Alto Xingu (MT). 2004. 1 fotografia. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/sites/_ agenciabrasil/files/gallery_assist/3/gallery_assist639695/4123cf1e1d40d.jpg>. Acesso em: 28 ago. 2011. Figura 13 FIÚZA, E. Grupo de capoeira do Centro Cultural Sol Nascente da Cidade Satélite de Ceilândia (DF). 2007. 1 fotografia. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/sites/_agenciabrasil/files/gallery_ assist/3/gallery_assist639056/1815EF221.jpg>. Acesso em: 28 ago. 2011. Figura 14 POZZEBOM, F. R. Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. 2007. 1 fotografia. Disponível em: <http:// agenciabrasil.ebc.com.br/sites/_agenciabrasil/files/gallery_assist/3/gallery_assist637879/1300PP2687. jpg>. Acesso em: 28 ago. 2011. 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Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/sites/_agenciabrasil/files/gallery_assist/3/gallery_assist638474/ 1820AC3238a.jpg>. Acesso em: 28 ago. 2011. Figura 20 CASAL JR, M. Tablets (computadores portáteis). 2011. 1 fotografia. Disponível em: <http://agenciabrasil. ebc.com.br/sites/_agenciabrasil/files/gallery_assist/26/gallery_assist678505/Agencia%20Brasil060911_ MCA6376.JPG>. Acesso em: 5 set. 2011. Figura 21 CASAL JR, M. Criança índigena na lagoa Mawaiaka. Festa do Kuarup, na aldeia Kamayurá. Alto Xingu (MT). 2004. 1 fotografia. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/galeria/2004-08-20/20-deagosto-de-2004?foto=4123cf0fd44fe>. Acesso em: 28 ago. 2011. 132 REFERÊNCIAS Textuais ALVES, Andréa Moraes; BARROS, Myriam Moraes Lins de. “Quando o pobre é o ‘outro’”. Artigo decorrente do recebimento do prêmio ABA/FORD projetos inovadores no ensino da Antropologia, edição II, 2006. Publicado em 2007. 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Há muito tempo vimos refletindo sobre nossa inserção neste campo e compreendemos que o curso de extensão poderia contribuir para o diálogo entre duas diferentes tradições de ensino, pesquisa e extensão: a antropologia social e o serviço social. Foi neste sentido que procuramos iniciar o curso com panoramas históricos dos dois campos, tanto no Brasil como na Europa e EUA onde ambos têm suas referências de origem. Depois desta introdução, percorremos temas como classe social, desigualdades e diferenças sociais e desembocamos, então, em grandes questões como raça, gênero, violência, política social e família. A participação de professores de ambos os campos e a resposta da turma nas discussões, trazendo as experiências profissionais das assistentes sociais e dos estágios das estudantes revelaram interessantes pontos de reflexão tanto para o diálogo desejado entre antropologia e serviço social quanto para cada um dos interlocutores desta conversa. O curso de extensão antropologia e serviço social apresentou como uma de suas questões centrais a problemática da divisão de classes na sociedade contemporânea. Esse tema, caro ao serviço social, encontra bases novas para discussão através da reflexão antropológica. Tradicionalmente, as duas disciplinas partem de perspectivas distintas sobre o significado das classes sociais. Essas perspectivas são vistas, em geral, como excludentes. Um dos objetivos do curso foi estabelecer um patamar comum de diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao entendimento da estrutura de classes. Tratou-se, sobretudo, de mostrar como o tema das classes sociais conforma visões de mundo e cria uma gramática das relações sociais. O ponto nodal para pensarmos a estrutura de classes do ponto de vista do serviço social tem sido as relações de produção. Por essa via, o serviço social aponta para uma visão das relações sociais orientada pela perspectiva da exploração e da alienação. A “desigualdade” aparece como marca fundamental do mundo moderno-contemporâneo e a disciplina se volta para refletir sobre essa marca e as contradições que ela produz, além de criar estratégias políticas para o enfrentamento de seus efeitos perversos. O serviço social se debruça sobre a questão do poder na sociedade moderno-contemporânea e faz disso o seu campo de atuação. 135 As raízes históricas dessa visão de mundo já foram abordadas por autores provenientes do próprio campo do serviço social. A primeira aula do curso, “história do serviço social e suas conexões com a antropologia”, ministrada pela professora Marilena Jamur, apresentou um panorama desse percurso de formação do serviço social. Porém, o objetivo de nosso diálogo com o serviço social não era o de mostrar o caráter histórico do conceito de “relações de produção”, o que já é suficientemente debatido na própria área, mas o de inserir, no debate sobre as desigualdades sociais no mundo contemporâneo, um elemento que torna mais complexa a dinâmica das relações de poder, qual seja, a noção de “diferença”. É a partir da “diferença” que a antropologia traz uma contribuição relevante para o serviço social. Diferença, igualdade e desigualdade Podemos afirmar sem medo de errar que aquilo que nos constitui como “indivíduos modernos” é a percepção aguda das alteridades. Por outro lado, aquilo que denominamos por “alteridade” pode ter os mais distintos significados. Depende, como ensina o mais clássico do pensamento antropológico, das relações sociais em jogo. A dinâmica da criação de distinções configurou-se, no moderno mundo ocidental, em uma estrutura que sustenta as identidades individuais ao mesmo tempo em que é por elas sustentada. Um dos pilares dessas distinções sociais é o pertencimento de classe. No pensamento sociológico clássico temos duas grandes interpretações sobre o conceito de classe social: a marxista e a weberiana. Não é o objetivo desse texto abordar essas duas interpretações em detalhe; o que nos interessa sinalizar aqui é que as duas serviram de baliza para as reflexões posteriores que marcaram as ciências sociais. No que tange ao pensamento antropológico, a influência dessas abordagens sobre classe social mesclou-se, desde o início, com outras clivagens sociais; a principal delas e fundadora da disciplina antropológica é a dimensão de raça. Desde sempre, classe não foi pensada na antropologia como uma categoria isolada de outras dimensões o que deu a essa disciplina um contorno diferenciado das outras áreas das chamadas ciências sociais. As distinções raciais ocuparam um lugar chave na formação da disciplina antropológica e ligaram sua história ao empreendimento colonial. As relações de trabalho no capitalismo adquiriram, pela ótica da antropologia, uma abrangência que ultrapassou a análise dos processos de extração de mais valia, incorporando como elemento fundamental as “relações culturais”. Coloco o termo entre aspas porque, assim como mostraram as aulas de vários palestrantes (Maria Laura Cavalcanti, Elielma Ayres, Ilana Strozenberg, Hélio Silva e Patrícia Farias), as conexões entre raça e cultura têm uma longa e complexa trajetória na antropologia. Pensando no caso brasileiro, assim como em outros contextos de países colonizados, a raça serviu como adjetivo que acompanha e dá sentido às identidades. Não somos só trabalhadores, mas trabalhadores “negros”, “índios”, “operários italianos”, “alemães”, “imigrantes brancos com a missão de enobrecer a raça”. Esses adjetivos conferem à identidade de trabalhador uma particularidade e se tornam marcas visíveis e produtoras de relações sociais concretas entre esses trabalhadores. A leitura da raça como ideologia tem sentido se pensamos ideologia como tendo uma função simbólica, ou seja, de nomear a realidade e, portanto, de lhe conferir existência intersubjetiva. O mais curioso é que, embora o conceito de raça já tenha sido questionado tanto 136 no plano da antropologia quanto no da ciência biológica, o universo das distinções de cor e étnicas permanece como estrutura do mundo contemporâneo. A aula de Leilah Landim sobre cultura e política nas sociedades contemporâneas foi uma oportunidade para discutirmos com os alunos sobre a reconstrução política de categorias identitárias baseadas na cor da pele e na religião, por exemplo. Sendo uma disciplina que discute relações de poder, essas reflexões contribuíram significativamente para os alunos de serviço social, principalmente para aqueles que já se encontram na prática profissional e lidam diariamente com os desafios da promoção da participação associativa nas mais distintas comunidades. Faz parte da tradição antropológica pensar a classe social como integrante de um complexo de distinções sociais. Não se trata de atribuir-lhe um peso definido como se tratasse de uma equação matemática, mas de conferir-lhe complexidade na medida em que se combina com outras clivagens sociais, como “raça”, por exemplo. Essa maneira de classificar combinando os elementos faz da antropologia uma forma de pensar sobre as desigualdades que produz uma visão multifacetada das relações de poder. Nessa visão, o princípio da diferença ganha espaço. O que isso quer dizer? Num texto escrito em 1998, Antônio Flávio Pierucci argumentou com muita clareza sobre o impacto da defesa das diferenças no mundo contemporâneo. Segundo esse autor, a afirmação das diferenças sempre supõe o estabelecimento de hierarquias de valor, o que torna inglória a tentativa de conciliar, na esfera jurídica-política, a luta pela igualdade com o direito à diferença. A diferença é entendida por esse autor como a construção de singularidades; construção essa que só se dá mediante o recurso a alguma escala valorativa, ao passo que a igualdade é o oposto do estabelecimento de hierarquias valorativas. A igualdade exige a existência das singularidades tomadas no mesmo plano de julgamento, sem distinções de valor. Apoiando-se em Louis Dumont, Pierucci deixa claro como mecanismos valorativos estão sempre sendo produzidos e se imiscuem no plano da igualdade. Essa armadilha da incompatibilidade entre igualdade e diferença constitui-se como uma das grandes contradições das sociedades moderno-contemporâneas. No discurso liberal que funda as sociedades capitalistas modernas há uma tensão entre liberdade e igualdade. Essa tensão é uma produção dos valores individualistas dessa sociedade. O Ocidente criou a ilusão da igualdade, mas junto com ela produziu o sonho da liberdade individual. O “fim das hierarquias”, representado pela dissolução das sociedades tradicionais, gerou simultaneamente a expectativa da quebra dos laços de dependência/servidão entre “superiores” e “inferiores” e a possibilidade do desenvolvimento da “interioridade”. Esse duplo movimento gestado a partir do século XVII foi abalado pelo próprio discurso liberal no século XIX, quando o ideário do “self” e da “interioridade” ganha mais força. O investimento individual na conquista de uma “vida melhor”, principalmente através do trabalho assalariado, chocou-se com os processos excludentes de urbanização e industrialização dos anos de 1800. Do século XIX até os dias de hoje as relações entre liberdade e igualdade alcançaram novas configurações: a valorização das liberdades individuais tomou formas que ultrapassam a esfera do trabalho como meio exclusivo de estabelecimento da autonomia e independência. Os campos da sexualidade e da religião apresentam-se como espaços de afirmação das individualidades. A naturalização das diferenças, ancorada num discurso 137 essencialista, confronta-se com o modelo universalista dos direitos iguais que também recorre a argumentos abstratos e gerais para fazer valer seus pontos de vista. Se somarmos a isso a questão das desigualdades, ou seja, da distribuição social dos recursos existentes; estamos diante de um quadro cada vez mais problemático, onde as fronteiras entre o público e o privado mostram-se cada vez mais diluídas. Portanto, são duas ordens de problemas que se cruzam: de um lado, a incompatibilidade, no plano jurídico-político, da relação entre igualdade e diferença e, por outro, a persistência nas sociedades contemporâneas das desigualdades sociais. A antropologia pode contribuir para desamarrar esse nó na medida em que reflete sobre a constituição dessas categorias de pensamento. A igualdade e a diferença se referem à afirmação das singularidades, são bandeiras modernas que, opondose à lógica das sociedades hierarquizadas, criam as condições para o nascimento do “indivíduo como sujeito de direitos”. O discurso das desigualdades sociais, mais recente do que o primeiro, retoma um princípio básico das sociedades holistas, qual seja, a primazia do todo sobre as partes. A gestão pública dos recursos socialmente produzidos baseia-se na idéia de busca pelo equilíbrio da sociedade e o Estado é pensado como o maior responsável pela manutenção da coesão dos laços sociais. A convivência entre essas duas posições é o que dá um caráter tão contraditório à vida social moderna. No curso tentamos apresentar aos alunos, principalmente nas aulas que trataram de temas mais específicos de intervenção do serviço social, como: família, gênero, cidade e pobreza, os limites, nem sempre claros, entre o “individualismo” e o “holismo” como maneiras de abordar a vida social. Na prática cotidiana do assistente social, a negociação entre direitos individuais e escassez de recursos é constantemente encenada e vivida pelos estagiários e profissionais como uma grande frustração. Através das aulas, oferecemos um espaço de reflexão sobre esse dilema e elementos analíticos para interpretação dos “casos” por eles vivenciados. Casos que não são meros exemplos, mas material primário das relações sociais. (Fonseca, 1999). Quando o pobre é o “outro”: conhecimento e intervenção A questão da alteridade na antropologia e a problemática do objeto de intervenção do serviço social estiveram presentes ao longo de todo o curso. Marilena Jamur, na primeira aula, apresentou uma história da representação da pobreza na Europa e do tratamento dado ao pobre e à pobreza no serviço social desde o século XIX. Neste histórico, a desnaturalização da pobreza e a conseqüente postura crítica frente à condição de vida dos pobres ou dos desprovidos de direitos sociais, civis e políticos poderiam vir a ser a ponte de contato com a antropologia onde esta coloca em questão o que é dado como certo, familiar. Mas esta relação precisa ser pensada com mais atenção. Embora o questionamento do que é tido como natural seja comum aos dois campos, o tratamento do “objeto” de pesquisa e o da intervenção não tem sido o mesmo. A antropologia tem se definido historicamente pela compreensão comparativa das diferenças culturais. A postura metodológica frente à diferença tem sido um assunto de longos debates desde os primórdios da disciplina. Ao longo do século XX e no século atual a postura metodológica ganhou ênfases variadas que vão da preocupação em não reificar o objeto de estudo, eliminar seu 138 caráter exótico até, para outros, reforçar o exotismo, debruçar sobre a construção do caminho metodológico, refletir sobre o lugar da relação entre pesquisador e pesquisados, entre outros. Como nos relembra Marisa Peirano (2006) a discussão no século XX sobre o caráter específico da antropologia revela o descolamento de seu objeto empírico, as sociedades longínquas cultural e geograficamente e a reflexão sobre a diferença e a construção metodológica e teórica da alteridade. O “outro” é uma construção da própria pesquisa e não um dado natural advindo de diferenças dadas pela distância tecnológica, racial, cultural, religiosa, etc. Na literatura brasileira este processo de elaboração da distância em relação ao objeto de estudo antropológico foi por diversas vezes trazido para discussão: os trânsitos entre o exótico e o familiar em Da Matta (1973), a observação do familiar, o estranhamento do pretensamente próximo em Velho (1981) são dois campos de referência para a pesquisa no Brasil. Estas referências trazem, cada uma a seu modo, a relatividade da ideia de distância social. Por outro lado, o “outro” do serviço social engloba um universo também historicamente referido e, portanto, empiricamente mutável. Mas parece que, ao longo da história, há uma continuidade. A falta e a pobreza, mesmo que em condições de luta como nos movimentos sociais, parecem ser as condições para a constituição deste “outro” com o qual o serviço social se relaciona. A distância não se coloca como uma questão, ela é algo como um a priori sem o qual não faz sentido o trabalho do assistente social. Mas se este é um ponto que parece ser dissonante com a pesquisa antropológica, vale a pena observar algumas tonalidades mais próximas aos dois campos. Encontra-se como possibilidade de composição entre as duas áreas aqui tratadas as sugestões presentes em Lins de Barros (2004), sobretudo na remissão à idéia de conhecimento híbrido de Dauster (2003 e 2004) e de empréstimo do saber etnográfico em Fonseca (1999). Dauster argumenta que há na área de educação um espaço de interseção de duas áreas de pesquisa e ensino com tradições distintas, a educação e a antropologia. Neste campo de diálogo ocorre a construção de um saber específico que se caracteriza pela absorção de posturas teóricas e metodológicas da antropologia nas discussões próprias do campo educacional como a socialização. Trata-se, segundo Dauster, de problematizar temas tratados pela educação por uma outra linguagem, por um outro olhar através das discussões sobre cultura nos termos antropológicos. Esta apreensão de novas posturas que desnaturalizam o senso comum e relativizam os conhecimentos anteriores da área não tem como objetivo transformar educadores em antropólogos mas permitir que os fenômenos da educação possam ser apreendidos e compreendidos sob outro ponto de vista, o ponto de vista do universo social pesquisado. Diz a autora: “As limitações das visões etnocêntricas são descobertas em confronto com o „olhar. relativizador e a busca do ponto de vista do universo social nos seus termos” (Dauster, 2004, p. 204). O conhecimento híbrido não está pressupondo assim uma imersão na literatura antropológica mas uma interlocução com o caráter relativizador desta tradição de pesquisa. Este saber híbrido inicia-se com o movimento de tomar de empréstimo (Fonseca, op. cit.) conhecimentos e uma experiência de pesquisa etnográfica. Para Fonseca, pensando também na prática profissional de educadores e assistentes sociais, este empréstimo permite uma forma de enfrentamento com a população assistida que pressupõe a percepção de sua visão de mundo. 139 No primeiro caso, o do hibridismo do conhecimento, a importância da etnografia se alia à valorização do trabalho de contato e de abertura de campos de pesquisa que são próprios aos profissionais de intervenção social. Estar interagindo com o universo assistido é um primeiro passo para a construção do conhecimento híbrido. O foco são os pobres, aquele universo dado imediatamente pela própria condição profissional do assistente social. A partir daí as perguntas a serem feitas é que podem complexificar a percepção deste “outro”. Do pobre pré-definido a um “outro” que pode ser construído a partir de indagações é o que dá a partida tanto para o conhecimento híbrido como, nós acreditamos, para uma prática profissional diferenciada. O “estranhamento, a esquematização, a desconstrução de estereótipos e a comparação sistemática dos casos” (Fonseca, op.cit, p. 76) característicos do trabalho etnográfico fazem parte deste processo de construção da alteridade. Colocar em questão o familiar da profissão é parte deste caminho de compreensão das diferenças múltiplas e contextualizadas, diferenças culturais apreendidas por um processo de conhecimento que pretende compreender os modos de pensar e agir do grupo social, sem se confundir com ele. As aulas de Maria Laura V. C. Cavalcanti, Ilana Strozemberg, Elielma Ayres Machado desenvolveram estas discussões na história da antropologia, na elaboração da alteridade na etnografia, nos textos etnográficos. No mesmo caminho de Fonseca e em diálogo com o serviço social, colocamos a proposta de questionamento do próprio saber do senso comum, de construção de explicações sobre as relações sociais elaboradas dentro de um quadro teórico e da prática profissional como uma condição do conhecimento do “outro” e de uma prática que se faz no contato sistemático com uma diversidade de universos sociais. Esta proposta remete às questões referentes à relativização de visões de mundo em contato e em confronto. Trata-se, neste caso, de pensar os fundamentos das relações sociais em contextos sociais distintos e a linguagem que é empregada para se estabelecer estas relações. Trata-se, também, de estratégias de relação com o diferente, com o “outro”. Estratégias que podem ser entendidas como parte da vida cotidiana de contato com o “outro” ou como formas de intervenção social em suas múltiplas dimensões. A perspectiva do “outro” no sentido antropológico não é colocada como uma questão inicial para os trabalhos de intervenção. A pauta das atividades do trabalho do serviço social tem como finalidade alguma forma de enquadramento em uma classificação prévia dentro dos marcos definidores das políticas que pouco dá espaço para uma outra lógica, para outros valores e modos de vida. Não foi à toa que em aula (Ilana Strozemberg) a história do índio bêbado relatada no artigo “Usos da diversidade” de Geertz (1999) suscitou um levantamento enorme de narrativas de casos trazidos pelas alunas em suas experiências profissionais. Em resumo: a população atendida por elas é a que pode ser enquadrada nas políticas de assistência segundo critérios apresentados pelos órgãos públicos. A aplicação destes critérios vai depender ainda de outros fatores: ausência de verbas e outras prioridades que são mais ou menos objetivas e mais ou menos subjetivas, mais ou menos avaliadas por padrões morais. Nada muito diferente do impasse dos médicos norteamericanos frente à negação do índio em parar de beber para poder fazer uso da diálise em um hospital público. Aí elas se colocaram no lugar destes médicos e apontaram as brechas do sistema de planejamento e projetos das políticas para dar conta de outros tantos “índios bêbados”. Mas o impasse está dado. Se é possível apresentar algumas soluções em situações sem saída aparente, a visão de mundo do “outro” não fica em evidência. E desta forma a desconstrução dos estereótipos e a relativização das visões de mundo em confronto não é processada. O diálogo entendido como um “contato viável com uma subjetividade variante” (Geertz, p.30, 1999) acaba interrompido. 140 Acumula-se, entretanto, um conhecimento que é para os antropólogos ouvintes destas histórias o ponto de partida do trabalho antropológico (aula de Adriana Vianna). Entretanto, relembrando a aula de história da antropologia de Maria Laura V. C. Cavalcanti, de Eliane Cantarino sobre os limites da intervenção quando foram apresentados três casos de laudos antropológicos e se discutiu a antropologia da ação, a de Patrícia Farias sobre as políticas de ação afirmativa, a de Andréa Moraes Alves sobre gênero e a de Leilah Landim sobre cultura e política avaliamos algumas características de nossa própria disciplina que acabam, por nossa parte deste diálogo, abrindo espaços para a interlocução. Se o caso do índio bêbado é facilmente apreendido pelas alunas pela semelhança com as práticas profissionais, na antropologia brasileira esta história também soa bem. A questão do contato com a alteridade faz parte da tradição de trabalho antropológico no Brasil. Peirano (2006) na classificação da produção antropológica no Brasil aponta que o contato com a alteridade (a começar pela noção de fricção interétnica elaborada por Roberto Cardoso de Oliveira) é uma das linhagens de estudos da antropologia brasileira que, mais recentemente, desdobrou-se em pesquisas sobre políticas indigenistas, sobre demarcação das terras indígenas, sobre expansão das fronteiras nacionais. Pensar sobre políticas públicas, elaborar noções sobre a relação entre a sociedade nacional e os que estão nas suas bordas (índios, pobres urbanos, trabalhadores rurais, negros, desviantes e divergentes, etc) faz parte do próprio campo de estudos antropológicos na nossa tradição. Como a própria autora aponta ao tratar da composição dos campos antropológico e sociológico no Brasil a partir de 1950, a antropologia entre nós “... se insere em um quadro geral em que conhecimento e comprometimento político estão unidos em uma configuração única, situação distinta da que se pode encontrar, por exemplo, nas „humanidades....” (Peirano, p. 57, 2006). O contato com a alteridade traz, assim, a dimensão da implicação deste comprometimento. A antropologia da ação como podemos denominar as experiências profissionais de antropólogos no campo jurídico, nas organizações não governamentais, entre outros campos de intervenção, e as recentes participações em trabalhos de extensão universitária (ver Fonseca, 2006) traz ainda outra brecha para trocas de experiências profissionais entre antropólogos e assistentes sociais, não estritamente acadêmicas. Para esta prática profissional o antropólogo remete-se à sua tradição. Nos laudos periciais a viagem, o deslocamento cultural, o encontro com o “outro” fazem parte do trabalho assim como nos processos de pesquisa nas diferentes áreas, da etnologia às antropologias urbanas, dos mais distantes aos mais familiares. (foi importante, neste sentido, a apresentação na aula de Elielma Ayres Machado da estrutura de monografias clássicas como a de Malinowski e Ruth Landes). A perícia é uma diagnose da situação onde prevalece o modelo nativo. Portanto, também aí, o que se pretende é a compreensão do ponto de vista nativo para a aplicação dos direitos constitucionais. Além disso, o comprometimento do antropólogo com o grupo estudado e o estranhamento em relação ao próprio processo jurídico e político são igualmente incorporados nesta atividade profissional. Desmancha-se um dos estereótipos através dos quais somos caracterizados por parte dos assistentes sociais: pesquisadores sem participação política, sem interpretação histórica, sem comprometimento com a população estudada. Três características usadas no discurso dos assistentes sociais para se autoidentificarem. 141 Os pontos de contato e de interlocução não eliminam as fronteiras de cada tradição profissional. Ao contrário, é a partir de cada identidade profissional e intelectual que construímos o projeto de um diálogo. Acreditamos que a interlocução entre os dois campos tem efeitos positivos para os dois lados. Permite realizar uma forma de conhecimento híbrido por parte do serviço social como podemos ver em nossas próprias experiências bem sucedidas de orientação de graduação e de pós-graduação. A aproximação com o serviço social, por outro lado, faz com que nós, antropólogos, nos debrucemos com maior atenção sobre temas comuns ao serviço social e à antropologia, como vimos neste texto ao trabalhar os enfoques teóricos de classe social. As questões relativas a gênero, raça, violência, política e intervenção social somam-se à de classe social neste projeto de refinamento teórico e metodológico. Esta interlocução tem, também, permitido abrir espaços de pesquisa que são trazidos pela experiência do serviço social. Este diálogo é um exercício de troca semelhante aquele estabelecido com outras esferas da vida em uma sociedade complexa quando especialistas de diferentes áreas de conhecimento, a população estudada, representantes do poder público e da sociedade civil se confrontam, apresentando questões, respondendo a outras. Saber dar o tom certo à conversa é um aprendizado. REFERÊNCIAS BARROS, Myriam M L. de. “Até onde vai o olhar antropológico?” In: Ilha. Revista de Antropologia. Florianópolis, vol. 6, nº 1 e 2, jun. 2004. DA MATTA. Roberto. “O ofício do etnólogo ou como ter ‘anthropological blues’”. Comunicações do PPGAS 1. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1973. DAUSTER, Tânia. “Um saber de fronteira – entre a antropologia e a educação”. 26ª Reunião Anual da ANPED. Poços de Caldas, 2003. ___. (2004). “.Entre a antropologia e a educação.-a produção de um diálogo imprescindível e de um conhecimento híbrido”. In: Ilha. Revista de Antropologia. Florianópolis, vol. 6, no. 1 e 2, junho. FONSECA, Claudia. “Quando cada caso não é um caso. Pesquisa etnográfica e educação”. In: Revista Brasileira de Educação, nº 10, jan./fev./abr. 1999. ___. “O exercício da Antropologia: enfrentando os desafios da atualidade”. In: GROSSI, Miriam Pillar; TASARINI, Antonella; RIAL, Carmen (orgs.). Ensino de Antropologia no Brasil: formação, práticas disciplinares e além-fronteiras. Florianópolis: Nova Letra, 2006. GEERTZ, Clifford. “Os usos da diversidade”. In: Horizontes Antropológicos. 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