A liberdade e a dignidade da pessoa humana Pe. Paulo César Nodari Deus deu ao homem a razão e deu-lhe dignidade e dotou-o de poder de decisão (cf. Eclo 15, 14). Diz-nos Santo Irineu: “o homem é dotado de razão e por isso semelhante a Deus, foi criado livre e senhor de seus atos”. Segundo Karl Jaspers, “quanto mais autenticamente livre é o homem, mais ele tem consciência de Deus”. De modo bem geral, liberdade é o poder baseado na razão e na vontade, é a capacidade de tomar posição, escolher, optar, é o poder de agir ou não agir. Liberdade é a capacidade que só os homens têm de tomar posição, escolher, optar. É própria ao homem como ser espiritual que é: a vontade é o instrumento que possibilita a liberdade, mas a escolha repousa no conhecimento que é efetuado pela inteligência. Nem sempre as opções são livres, muitas também não são realizadas conscientemente e assim, como só há liberdade na medida do grau da consciência moral que um indivíduo tem da opção a ser feita, podemos falar de uma diminuição do grau de liberdade. Por sua vez, a medida de humanidade da ação é dada pela medida de liberdade da mesma, do que se conclui que o homem é livre até de ser livre, isto é, pode escolher ser mais ou menos livre, conseqüentemente, mais ou menos humano. No homem a ação interna antecede a ação externa. A opção é a ação interna e por isto é certo dizer que todo homem pode ser livre porque é sempre possível optar. Pode acontecer que o indivíduo não seja suficientemente independente para colocar sua opção livre no mundo, para agir de acordo com ela, enfim, que não tenha as condições necessárias para o exercício de sua liberdade, mas isto não significa que ele não seja livre 1 Para os cristãos, a verdadeira liberdade é a força de crescimento e amadurecimento na verdade e no bem. É perfeita quando alcança Deus. A liberdade divina é o fundamento último da liberdade humana. Se Deus não existe, o homem não pode ser verdadeiramente livre. Sem a liberdade divina, a liberdade humana é inconcebível, como o finito é inconcebível sem o infinito, o imperfeito sem o perfeito, o contingente sem o absoluto. A liberdade humana tem na divina a sua origem primeira e o seu último fim2. Neste sentido, quanto mais a pessoa praticar o bem, mais verdadeiramente é livre. A verdadeira liberdade torna o ser humano inteiramente responsável e coloca-o a serviço do bem e da justiça. O exercício da liberdade verdadeira torna o homem responsável, dá-lhe dignidade e coloca-o no ascendente amadurecimento, tanto no relacionamento horizontal (relação com os outros e com o mundo) quanto vertical (Deus), pois a liberdade é uma conquista contínua. A liberdade é dada ao ser humano para que se realize a si mesmo, o próprio ser; para que leve à realização aquilo que a natureza começou nele. Neste sentido, Sartre viu bem: a liberdade permite ao homem modelar o próprio ser, realizá-lo. Diz-nos Goethe: “conquista a existência e a liberdade somente quem todo o dia as reconquista”. Ser livre é uma opção de vida. Ser livre não é apenas o dever e o direito de exercer a capacidade de escolha; mais que isto, é o dever de optar corretamente, isto é, optar pela totalidade do ser, pela autenticidade, pela permanente humanização de si mesmo e do mundo. Quando o homem escolhe realmente o que é, realiza sua vocação, sente-se em harmonia consigo 1 Silvia de Melo LEMOS CURY, A filosofia da fidelidade ao ser: noções de humanismo, São Paulo, Loyola, 1986, p. 70. 2 Cf. Batista MONDIN, Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica, São Paulo, Paulus, 1997, p. 393. mesmo, conhece o bem, a paz interior. Entretanto, não se pode atingir a plenitude do ser de uma só vez; tal estado é progressivamente atingido 3. O direito à liberdade é exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, pois a liberdade é o poder de agir ou não agir, praticando atos deliberados. Todavia, deve-se enfatizar: a liberdade não é fazer tudo o que se quer e como se quer, pois a pessoa pode tornar-se escrava do pecado. O ser humano é livre dentro das condições de ser existencial, pois a liberdade não se identifica com o ser do homem, mas constitui uma propriedade fundamental dele, junto a outras propriedades também fundamentais como o viver, o pensar e o trabalhar; o ser humano não é livre de ser corpóreo, sociável, sexuado, de usar linguagem; o homem não pode subtrair-se de certa dependência do mundo, da sociedade e da história; a liberdade humana é, enfim, conquista, pois vê-se, muitas vezes, condicionada pelas paixões; o homem tende para o bem, mas deve exercer-se e mover-se para o bem4. Segundo São Paulo, a verdadeira liberdade está da passagem da escravidão à liberdade em Jesus Cristo. Libertação de uma vida programada externamente por um minucioso código de regras e leis, que conservam o homem numa atitude infantil diante da vida, para uma vida adulta e consciente, graças ao uso responsável da liberdade. A vida do homem somente é verdadeiramente livre, quando fundamentada por um compromisso pessoal e íntimo com Cristo (Gl 2, 20). Assim, a verdadeira liberdade é conduzida pelo amor a si mesmo e aos outros, amor que é compromisso ativo com o crescimento do outro (Gl 5, 1-13). Portanto, de acordo com a leitura de São Paulo, a liberdade, é dom de Deus, ou seja, é ação de Deus que suscita a liberdade no homem. Contudo, a liberdade não é nenhum objeto que se possa receber de uma vez por todas. Ela é um lento e progressivo processo. Deus está realizando esse processo pelo qual a liberdade emerge na criatura humana.5 A liberdade, portanto, como já sabemos, é dada ao homem para a sua auto-realização: para definir o seu projeto de humanidade e para realizá-lo. No entanto, só a liberdade divina doa ao homem condições suficientes para realizar-se plenamente como homem. Pela Revelação, sabemos que o sacramento de nossa libertação e humanização foi a obra de Jesus Cristo. Ele foi uma constante “revelação”, “epifania” do Pai. São Paulo não cansa de dizer e cantar a grandeza e a beleza da liberdade cristã em Cristo. Ele arrancou-nos do flagelo da lei, das cadeias do demônio, do flagelo da morte e chamou-nos a viver na verdadeira liberdade de filhos de Deus 3 Silvia de Melo LEMOS CURY, A filosofia da fidelidade ao ser: noções de humanismo, São Paulo, Loyola, 1986, p. 62. 4 De acordo com Mounier, é a pessoa que se faz livre, depois de ter escolhido ser livre. A liberdade não é simplesmente manifestação espontânea. Ser livre é antes de tudo aceita a condição de ser livre. Assim, liberdade não é somente espontânea, mas invocada, conquista, divina. Cf. Batista MONDIN, O homem quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica, São Paulo, Paulus, 1980, pp. 106-131. 5 Acerca da compreensão da liberdade, ver duas excelentes reflexões: José COMBLIN, A liberdade cristã, Petrópolis, Vozes, 1977; José COMBLIN, Vocação para a liberdade, São Paulo, Paulus, 1998. (Gl 3, 13; 5, 1). Deu-nos a liberdade do homem novo. A liberdade do homem novo, a liberdade cristã, é liberdade que impele à justiça, ao serviço de Deus, ao amor ao próximo (Rm 6, 16; Fl 2, 5ss). Agora, os cristãos, resgatados da antiga escravidão, deverão colocar-se, mediante a caridade, ao serviço uns dos outros. O segredo da liberdade dos filhos de Deus está, pois, em viver na caridade, ou seja, no Dom constante de si a Deus e aos irmãos. O amor a Deus e ao próximo é a realização da lei, o vínculo da perfeição (Cl 3, 12-14). Neste sentido, só o ser humano que ama a Deus e ao próximo é verdadeiramente livre. De fato, o amor a Deus e ao próximo o liberta de qualquer isolamento egoísta, o induz a carregar o peso dos outros; numa palavra, a comportar-se frente ao próximo como Cristo se comporta em relação à humanidade: até ao sacrifício completo de si mesmo (Fl 2, 5-11). Tal como a liberdade de Cristo, a liberdade do cristão é essencialmente proximidade, solidariedade, existência-em-favor-de6. A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criação à imagem e semelhança de Deus. Cada pessoa humana resplandece a imagem de Deus. Mas é apenas e tão-somente no mistério do Verbo encarnado que o mistério do homem se torna verdadeiramente claro. Jesus Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação. Vem restaurar a beleza original do homem decaída pelo pecado de Adão. Vem restituir aos filhos de Adão a semelhança divina. Por sua Encarnação, Jesus Cristo, assumindo a natureza humana (Jo 1, 1-18; Fl 2, 6-11), uniu-se de algum modo a toda humanidade e elevou a natureza humana a uma dignidade sublime7. A pessoa humana participa da luz e da força do Espírito divino. Pela razão a pessoa é capaz de compreender a ordem das coisas estabelecida pelo Criador. Pela vontade, ela é capaz de ir ao encontro de seu verdadeiro bem8, pois o ser humano encontra sua perfeição na busca e no amor da verdade e do bem9. E em virtude de sua alma e de seus poderes espirituais de inteligência e vontade, o ser humano é dotado de liberdade. Porém o ser humano não pode voltar-se para o bem a não ser livremente, pois foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5, 1). A dignidade de ser humano exige que ele possa agir de acordo com uma opção consciente e livre. A verdadeira liberdade é um sinal eminente da imagem de Deus no homem, pois Deus quis deixar ao ser humano o poder de decidir10. Diz-nos Santo Agostinho, “o Deus que te criou sem o teu sim, não te salvará sem o teu sim”. 6 Batista MONDIN, Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica, p. 396. Gaudium et Spes, 22. 8 Catecismo da Igreja Católica, 1704. 9 “Enfim, a natureza intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e deve ser aperfeiçoada pela sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura e ao amor da verdade e do bem. Impregnado de sabedoria o homem passa das coisas visíveis às invisíveis” (Gaudium et Spes, 15, 2). 10 Gaudium et Spes, 17. 7 A dignidade da pessoa humana é seguir Jesus. Toda a vida de Jesus foi uma epifania e revelação pessoal de Deus. “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Deus, em Jesus, revela-se como realmente é. A missão de Jesus é revelar o Pai, que o enviou. “A vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). E a missão que Jesus recebeu do Pai realizou-se com a força e sob a ação do Espírito Santo. Ele é o ungido, o consagrado pelo Espírito. Por sua encarnação, o Verbo de Deus tornou-se irmão de toda a humanidade. “Uniu-se de algum modo a todo homem”11. Ergueu sua tenda de peregrino no meio de nós (Jo 1, 14), para partilhar esponsalmente toda a história humana. Jesus aparece sempre próximo de toda pessoa humana na situação concreta de busca, pobreza, enfermidade, sofrimento, solidão, marginalização, pecado, nas circunstâncias de alegria e festa. Nada é indiferente a Jesus. Está inserido na história humana. “Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhe ressoe no coração”12. O amor de Jesus é amor esponsal. “Amou a Igreja e por ela se entregou” (Ef 5, 25s).A vida de Jesus é totalmente doação de si aos mais necessitados. Todo o ser humano, em sua realidade de peregrino fatigado, encontra, em Jesus Cristo, o irmão. “Vinde a mim todos que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso” (Mt 11, 28). Sua vida é uma vida consagrada como profeta que anuncia, como rei que estabelece um novo reino e como sacerdote e vítima que se oferece a si mesmo em sacrifício para salvar seu povo. As bem-aventuranças traçam a imagem de Cristo e descrevem sua caridade (Mt 5, 1-12). As bem-aventuranças respondem ao desejo natural de felicidade. Este desejo é de origem divina. Diz-nos Santo Agostinho: “todos certamente queremos viver felizes. Procurar-vos é a minha felicidade”. Santo Tomás, por sua vez, diz-nos: “só Deus satisfaz”. E Santa Teresa diz-nos: “Tudo passa, só Deus basta”. As bem-aventuranças nos fazem participar da natureza divina (cf. 1Pd 1, 4). Lembram-nos que a verdadeira felicidade não está nas riquezas ou no bem-estar, na glória humana ou no poder, mas apenas em Deus, fonte de todo bem e de todo amor. Assim, as bem-aventuranças respondem ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração do homem, ensinam-nos o fim último ao qual Deus nos chama, o Reino de Deus, e colocam-nos diante da escolha e discernimento13. Caxias do Sul, maio de 2014. 11 Gaudium et Spes, 22. Gaudium et Spes, 1. 13 Catecismo da Igreja Católica, 1720-1724. 12