IDENTIFICAÇÃO DA RESISTÊNCIA AO CORTE DA MADEIRA ATRAVÉS
DO ENSAIO DE TRACÇÃO “OFF-AXIS”
N. Garrido(1), J. Morais (2), J. Xavier(2), J. Pinto(2), J. Louzada(3)
(1)
ESTV - Depto de Engenharia de Madeira, Repeses
3504-510 – Viseu - Portugal
(2)
CETAV/UTAD – Depto de Engenharias, Quinta de Prados
5000-911 - Vila Real - Portugal
(3)
CEGE/UTAD – Depto de Florestal, Quinta de Prados
5000-911 - Vila Real - Portugal
RESUMO
É fundamental para o uso da madeira como material de construção conhecer com rigor
as suas propriedades mecânicas. Porém, devido à heterogeneidade, variabilidade e
anisotropia da madeira, a identificação experimental das suas propriedades é um
problema que ainda está por resolver. Uma das principais dificuldades prende-se com a
identificação das tensões de rotura ao corte no referencial de simetria material,
conhecido por referencial LRT. O ensaio de tracção “off-axis” é desde há muito
empregue na determinação da resistência ao corte dos materiais compósitos artificiais,
sendo escassos os trabalhos publicados sobre a aplicação deste ensaio à madeira. O
principal problema com esse ensaio tem a ver com o acoplamento entre a deformação
linear e a deformação de corte, que é uma característica dos materiais anisotrópicos.
Para lidar com este problema, Sun e Chung propuseram a utilização de bolachas
oblíquas coladas nas extremidades dos provetes. Neste artigo apresentamos um trabalho
experimental sobre a aplicação do ensaio “off-axis” na medição da resistência ao corte
da madeira de Pinus pinaster nos planos simetria natural LR e LT, com base em
provetes com o fio inclinado a 15º e com bolachas oblíquas. O método de identificação
da resistência ao corte foi validado recorrendo a ensaios de tracção “off-axis” no plano
LR, para diferentes inclinações do fio (entre 0º e 90º), e a vários critérios de rotura: da
tensão máxima, de Hankinson, de Tsai-Hill e de Norris-McKinnon. Através da
observação das superfícies de fractura por microscopia electrónica de varrimento foram
obtidos dados adicionais de validação do ensaio de tracção “off-axis”.
Palavras-chave: madeira; resistência ao corte; critérios de resistência; ensaio "off-axis";
microscopia electrónica.
1
INTRODUÇÃO
O uso da madeira como material de construção requer o conhecimento preciso
das suas propriedades mecânicas. Porém, devido à variabilidade e anisotropia da
madeira, a identificação experimental do seu comportamento mecânico é um problema
que está ainda em aberto. Uma das principais dificuldades diz respeito à identificação
das resistências ao corte no referencial de simetria material, conhecido por referencial
LRT [1]. Este referencial é definido em cada ponto pela direcção longitudinal das fibras
ou traqueídos (L), pela direcção radial dos anéis de crescimento (R) e pela direcção
tangencial aos anéis de crescimento (T).
Existem vários ensaios normalizados para a determinação da resistência ao
corte da madeira, como é o caso do ensaio da norma ASTM D143 [2] e do ensaio da
norma EN 408 [3]. É porém questionável que esses ensaios permitam a identificação
dos verdadeiros valores da resistência ao corte da madeira em todos os seus planos de
simetria anatómica: SLR (resistência ao corte no plano LR), SLT (resistência ao corte no
plano LT) e SRT (resistência ao corte no plano RT). Por essa razão, diversos autores têm
proposto ensaios alternativos [4-11], entre os quais se inclui o ensaio de tracção “offaxis” [6, 9, 10]. Todavia, em contraste com o que acontece com os compósitos
artificiais, está ainda por fazer um estudo detalhado sobre as potencialidades deste
ensaio para a madeira.
O ensaio de tracção “off-axis” foi proposto por Chamis e Sinclair [12], para a
caracterizar o comportamento ao corte de materiais compósitos unidireccionais, tendo
desde então sido exaustivamente estudado por outros autores. O principal problema com
este ensaio está relacionado com o acoplamento entre a deformação linear e a
deformação angular, que é uma característica dos materiais anisotrópicos [13]. O
referido acoplamento torna complexa a relação entre o estado de tensão instalado no
centro do provete e a força global aplicada ao provete e medida pela célula de carga
[14]. Duas vias alternativas foram propostas para ultrapassar os efeitos do
constrangimento das extremidades dos provetes no ensaio de tracção “off-axis”. Uma
delas consiste na aplicação aos resultados experimentais de factores de correcção
obtidos analiticamente ou numericamente [14-16]. A outra via consiste na tentativa de
reprodução das condições ideais de amarração, com vista à obtenção dum estado de
tensão uniforme na região de referência dos provetes [14, 17-19]. Nesta última via
inclui-se a utilização bolachas oblíquas coladas nas extremidades dos provetes [19].
Diversos trabalhos experimentais [20-22] demonstraram que o uso de bolachas oblíquas
melhora significativamente a homogeneidade dos campos das tensões, permitindo a
correcta identificação da resistência ao corte.
Neste artigo apresentamos os resultados dum trabalho experimental sobre a
aplicação do ensaio de tracção “off-axis” na identificação da resistência ao corte da
madeira de Pinus pinaster, nos planos de simetria anatómica LR e LT. São descritos os
provetes utilizados, bem como a metodologia de tratamento de dados. O método de
identificação das resistências SLR e SLT foi validado através da observação das
superfícies de fractura por microscopia electrónica de varrimento (SEM), assim como
através da realização de ensaios de tracção “off-axis” no plano LR para diferentes
ângulos de inclinação do fio e por comparação dos resultados expermentais com as
previsões fornecidas por diversos critérios de rotura.
2
METODOLOGIA E PROGRAMA EXPERIMENTAL
Na Figura 1 apresenta-se a forma e as dimensões dos provetes usados no ensaio
de tracção “off-axis”, para a identificação do comportamento ao corte da madeira de
Pinus pinaster nos planos de simetria material LR e LT. Este provete é uma adaptação
do provete que foi proposto por Sun e Chung [19] para a determinação do
comportamento ao corte de materiais compósitos unidireccionais de matriz polimérica.
As extremidades dos provetes foram reforçadas com bolachas coladas de madeira de
Kâmbala Iroko (Chlorophora excelsior). O ângulo de inclinação das bolachas (Figura
1) foi calculado através da equação [19]:
cot β = −
S xy
S xx
(1)
em que S xx e S xy são elementos da matriz de flexibilidade em relação ao sistema de
coordenadas do provete [13]. Por sua vez, o ângulo α existente entre a direcção das
fibras e a direcção longitudinal dos provetes (Figura 1), foi escolhido com base no
critério de Chamis e Sinclair [12]. Os detalhes sobre a manufactura dos provetes e a
selecção dos ângulos α e β podem ser encontrados em Garrido [23].
Os ensaios mecânicos foram executados numa máquina universal INSTRON
1125, à velocidade do travessão de 2mm/min, tendo sido usada uma célula de carga de
100 kN. Antes da realização dos ensaios mecânicos todos os provetes foram
estabilizados para as condições ambientais existentes no laboratório. Após os ensaios,
foi determinado o teor de humidade e a densidade de cada provete [3]. Registaram-se
teores de humidade entre 10% e 12%, e densidades entre 0.55 e 0.65.
3
MÉTODO DE IDENTIFICAÇÃO DA RESISTÊNCIA AO CORTE
Admitindo que o estado de tensão na secção central do provete é uniaxial, as
componentes do estado de tensão no referencial de simetria material (1, 2) são dadas
por:
β = 36°
α = 15°
Figura 1 – Provete do ensaio de tracção “off-axis”.
σ =
1
F
2
cos α
A
, σ =
2
F
2
sin α
A
e τ
12
=
F
sin α cos α
A
(2)
em que A é a área da secção transversal do provete e F é a força de tracção aplicada ao
provete. A partir destas equações e da força máxima registada nos ensaios (Fr), foi
determinado o valor na rotura das componentes do estado de tensão no referencial de
simetria material (1, 2): σ 1r , σ 2r e τ 12r . A resistência ao corte S12 (SLR ou SLT) foi então
obtida através do critério de Tsai-Hill [13, 24]:
σr
1
X
1
2
−
r r
σ1 σ 2
X1 X 2
+
σr
2
X
2
2
τr
+ 12
S2
12
2
= 1,
com 1=L e 2=R ou T.
(3)
Nesta equação, X1 (ou XL) representa a resistência à tracção da madeira na direcção
longitudinal, enquanto que X2 representa a resistência à tracção na direcção radial (XR)
ou na direcção tangencial (XT). As resistências à tracção da madeira de Pinus pinaster,
nas direcções de simetria anatómica, foram determinadas experimentalmente por Pereira
[25]: X L= 97.5 MPa, XR = 7.6 MPa e XT = 4.2 MPa. Os resultados assim obtidos para
SLR e para SLT encontram-se na Tabela 1, juntamente com os valores da densidade
medidos em cada provete.
TABELA 1 – Resistência ao corte no plano LR e LT.
Provete
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Média
C. V. (%)
densidade
Plano LR
SLR (MPa)
0.630
0.649
0.570
0.566
0.609
0.579
0.566
0.616
0.586
0.556
0.566
0.560
0.630
0.624
0.586
0.645
0.596
5.4
15.9
14.6
14.0
11.5
18.0
15.2
15.9
21.8
18.2
16.8
14.9
16.1
16.0
20.7
14.0
20.7
16.5
16.7
densidade
Plano LT
SLT (MPa)
0.552
0.527
0.532
0.543
0.532
0.547
0.592
0.591
0.534
0.501
0.516
0.527
0.562
0.534
14.5
18.2
15.8
18.3
14.5
17.0
16.2
20.0
19.3
15.7
15.3
17.1
14.3
16.0
-----
-----
0.542
4.7
16.6
10.9
25
SLR e SLT (MPa)
20
15
SLR = 15.736d + 8.0545
SLT = 39.925d - 7.2817
R2 = 0.0499
R2 = 0.2166
10
LR
LT
5
0
0.50
0.52
0.54
0.56
0.58
0.60
Densidade
0.62
0.64
0.66
Figura 2 – Variação da resistência ao corte com a densidade.
A dispersão dos valores da resistência ao corte apresentados na Tabela 1 é
típica da madeira. Apesar disso, verificou-se em que medida a dispersão de SLR e de SLT
é explicada pela dispersão da densidade. Da análise de regressão linear das duas
grandezas (Figura 2), conclui-se que a densidade apenas poderá explicar 21,7% da
variação observada em SLT e 5,0% da variação observada em SLR. Este resultado é
compatível com o facto do coeficiente de variação da densidade da amostra ensaiada ser
apenas de 5,4%, o que atesta a homogeneidade dessa amostra.
Usando o teste de Shapiro-Wilk [26] verificou-se a normalidade da distribuição
das duas amostras (provetes LR e LT). Depois disso, aplicou-se o teste t [26] para a
comparação das médias das duas amostras, tendo-se concluido que as resistências ao
corte nos planos LR (SLR) e LT (SLT) são iguais, para um nível de significância de 95%.
4
VALIDAÇÃO DO MÉTODO DE IDENTIFICAÇÃO DA RESISTÊNCIA AO
CORTE
Nesta secção será apresentado o trabalho de validação do método proposto no
presente trabalho para a identificação das resistências ao corte da madeira nos planos de
simetria anatómica LR e LT. Para o efeito, recorreu-se à microscopia electrónica de
varrimento e à comparação dos resultados experimentais de ensaios de tracção “offaxis” no plano LR para diferentes ângulos α de inclinação do fio (Figura 1) com as
previsões fornecidas por diversos critérios de rotura para materiais ortotrópicos.
4.1
Análise fractográfica
Na Figura 3 pode ser observado o aspecto macroscópio da rotura dos provetes
LR (Figura 3a) e LT (Figura 3b), empregues na determinação da resistência ao corte
(Figura 1). Em ambos os casos, a inclinação da superfície de rotura sugere que a rotura é
r
r
dominada pela tensão de corte, τ LR
ou τ LT
. A observação das superfícies de fractura por
microscopia electrónica de varrimento (Figura 4) reforça esse facto. No caso do plano
LR (Figura 4a), a rotura é essencialmente transcelular (pela parede e pelo lúmen das
células), com uma morfologia que é característica da fractura por corte nesse plano [27].
A Figura 4b mostra que a superfície de fractura dos provetes LT (Figura 4b) contém
raios e que a rotura, no que respeita aos traqueídos, é transcelular (expondo o lúmen) ou
intercelular (pela lamela média). Além disso, essa figura mostra a acumulação de
material lenhoso em bandas junto aos raios, o que constitui um sintoma de rotura por
corte.
4.2
Variação da resistência com a inclinação do fio, no plano LR
Foram realizados ensaios de tracção no plano de simetria anatómica LR, para
diferentes ângulos α (Figura 1) entre a força aplicada e a direcção do fio (ou direcção
L), compreendidos entre 0º (tracção na direcção L) e 90º (tracção na direcção R). Para o
efeito utilizaram-se os provetes representados na Figura 5, reforçados nas extremidades
com bolachas direitas de Kâmbala iroko. Na Figura 6 encontram-se as tensões de rotura
σ xr = F r A de todos os provetes ensaiados à tracção no LR, com orientações nominais
do fio da madeira entre α=0º e α=90º. Na mesma figura, os resultados experimentais
são comparados com as previsões fornecidas por vários critérios de rotura: tensão
máxima, Hankinson, Tsai-Hill e Norris-McKinnon.
De acordo com o critério da tensão máxima para os materiais ortotrópicos [13,
24], a rotura ocorre quando pelo menos uma das componentes do estado de tensão, no
referencial de simetria material, excede o respectivo valor da tensão de rotura. Para o
estado plano de tensão, este critério divide-se em três sub-critérios:
(a)
(b)
Figura 3 – Aspecto geral da rotura dos provetes no ensaio “off-axis”: (a) plano LR e (b)
plano LT.
(a)
(b)
Figura 4 – Morfologia das superfícies de fractura dos provetes do ensaio “off-axis”: (a)
plano LR e (b) plano LT.
R
L
α
Figura 5 – Provete dos ensaios de tracção “off-axis” para a inclinação do fio (α
α)
compreendida entre 0º e 90º.
σr =
1
σ 23 =
X 1t quando σ 1 > 0
− X 1c quando σ 1 < 0
X 2t quando σ 2 > 0
(4)
− X 2c quando σ 2 < 0
τ r = S12
12
Nestas equações, X 1t e X 2t são as resistências à tracção, enquanto que X 1c e X 2c são as
resistências à compressão, nas direcções de simetria 1 e 2. O critério da tensão máxima
divide o intervalo α ∈ [0º,90º] em três regiões distintas (Figura 6), correspondentes a
três modos diferentes de rotura: rotura por tracção longitudinal ( α ∈ [0º,10º] ), rotura
por corte ( α ∈ [10º,25º] ) e rotura por tracção transversal ( α ∈ [25º,90º] ). Porém, este
critério não traduz correctamente os dados experimentais, embora forneça um majorante
da tensão de rotura σ xr (Figura 6).
A fórmula de Hankinson é bastante utilizada para prever a resistência da
madeira em tracção uniaxial, para diferentes ângulos α (Figura 5) de inclinação do fio
[28]:
σ xr =
X 1t X 2t
X 1t sin n α + X 2t cos n α
(5)
onde n é uma constante, com valores compreendidos entre 1,5 e 2. Por comparação
com os resultados experimentais (Figura 6), podemos afirmar que a fórmula de
Hankinson com n = 1,5 fornece o espectro dos minorantes de σ xr . Por sua vez, a
fórmula de Hankinson com n = 2 fornece uma previsão da tensão de rotura σ xr que está
em bom acordo com os resultados experimentais e com a previsão fornecida pelo
critério de Tsai-Hill (Equação 3).
Para o caso do estado plano de tensão, o critério de Norris-McKinnon tem a
seguinte expressão [29]:
σ 1r
X1
2
+
σ 2r
X2
2
+
τ 12r
S12
2
= 1,
(6)
que difere da expressão do critério de Tsai-Hill (Equação 3) apenas na parcela que
envolve simultaneamente as componentes σ 1r e σ 2r . Todavia, o critério de NorrisMcKinnon é praticamente equivalente ao critério de Tsai-Hill, descrevendo também
com rigor razoável os resultados experimentais.
Os resultados apresentados e analisados nesta secção não constituem uma
prova de avaliação do mérito relativo dos critérios de rotura examinados. Mas a
consistência dos resultados serve para validar o método de identificação da resistência
ao corte no plano LR com base no ensaio de tracção “off-axis”.
Tensão de rotura (MPa)
120
100
Experimental
Tensão máxima
Hankinson (n=1.5)
Hankinson (n=2)
Tsai-Hill
Norris
80
60
40
20
0
0
10
20
30
40
50
Ângulo α (º)
60
70
80
90
Figura 6 – Variação da resistência à tracção com o ângulo de inclinação do fio.
5
CONCLUSÕES
As resistências ao corte da madeira de Pinus pinaster nos planos de simetria
anatómica LR (SLR) e LT (SLT) podem ser correctamente identificadas a partir do ensaio
de tracção “off-axis”, em provetes com as extremidades reforçadas com bolachas
inclinadas e com o fio inclinado a 15º. Para o efeito deverá ser usado o critério de rotura
de Tsai-Hill, uma vez que o estado de tensão no referencial de simetria material não é
de corte puro. Os resultados obtidos sugerem que as resistências ao corte SLR e SLT da
madeira de Pinus pinaster são iguais.
6
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à Fundação para a Ciência e a Tecnologia o apoio
financeiro
para
a
realização
deste
trabalho,
através
do
Projecto
POCTI/EME/36270/2000.
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